introdução ao platonismo

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1. COSMOLOGIA PLATÔNICA Em sua cosmologia Platão entende uma estrutura hierárquica do real. Que consiste nos princípios do Uno e Díade indeterminada do plano das ideias (números, ideias gerais e particulares), plano dos entes e seres matemáticos (objetos da aritmética, geometria plana, astronomia pura e musicologia, aqui se encontram as almas do mundo e alma em geral) e plano do mundo físico sensível. Platão supôs a necessidade de haver uma causa ordenadora de todas as coisas, e a esta chamou Demiurgo 1 . Mas esta inteligência ordenadora está em função do ser em sua dimensão de vir a ser, ou seja, o ser que é causa específica do demiurgo e de tudo que ele postula. O Pensamento cosmológico de Platão se divide em quatro axiomas: a) O ser que é sempre este é o ser inteligível, não está sujeito a geração ou ao devir. Este é captado pela inteligência através do raciocínio. b) O devir o que continuamente se engendra. Este sempre está em mudança, nunca é um ser verdadeiramente. É captado pelas sensações que são distintas da razão. c) Tudo o que está sujeito ao processo de geração, e para tal existe uma causa, que é o demiurgo. d) Demirugo artífice que produz algo, mas sempre parte de uma referência. Ou fruto da experiência sensível ou racional. Ao tomar como referência o que é eterno o produto é belo, caso contrário, o modelo seja algo gerado não é belo. 1 O termo Demiurgo (δημιουργός) significa artífice e, com Platão, assumiu um sentido técnico para designar Deus artífice do mundo. É a causa inteligente e voluntária que plasma a matéria informe e caótica produzindo o mundo como ordem. A razão que move o demiurgo a agir é o bem. Este é hierarquicamente inferior as ideias e depende delas, porém, é superior a todas as almas por ele produzidas. Ele é capaz de produzir outros deuses inferiores e as partes incorruptíveis do homem e do mundo. Desempenha papel intermediário entre o mundo das ideias e o sensível. REALE. Giovanni. Op. cit. p. 66.

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1. COSMOLOGIA PLATÔNICA

Em sua cosmologia Platão entende uma estrutura hierárquica do real. Que

consiste nos princípios do Uno e Díade indeterminada do plano das ideias

(números, ideias gerais e particulares), plano dos entes e seres matemáticos

(objetos da aritmética, geometria plana, astronomia pura e musicologia, aqui se

encontram as almas do mundo e alma em geral) e plano do mundo físico

sensível.

Platão supôs a necessidade de haver uma causa ordenadora de todas as

coisas, e a esta chamou Demiurgo1. Mas esta inteligência ordenadora está em

função do ser em sua dimensão de vir a ser, ou seja, o ser que é causa específica

do demiurgo e de tudo que ele postula.

O Pensamento cosmológico de Platão se divide em quatro axiomas:

a) O ser que é sempre à este é o ser inteligível, não está sujeito a

geração ou ao devir. Este é captado pela inteligência através do

raciocínio.

b) O devir à o que continuamente se engendra. Este sempre está em

mudança, nunca é um ser verdadeiramente. É captado pelas

sensações que são distintas da razão.

c) Tudo o que está sujeito ao processo de geração, e para tal existe uma

causa, que é o demiurgo.

d) Demirugo à artífice que produz algo, mas sempre parte de uma

referência. Ou fruto da experiência sensível ou racional. Ao tomar

como referência o que é eterno o produto é belo, caso contrário, o

modelo seja algo gerado não é belo.

                                                                                                                         1 O termo Demiurgo (δηµιουργός) significa artífice e, com Platão, assumiu um sentido técnico para designar Deus artífice do mundo. É a causa inteligente e voluntária que plasma a matéria informe e caótica produzindo o mundo como ordem. A razão que move o demiurgo a agir é o bem. Este é hierarquicamente inferior as ideias e depende delas, porém, é superior a todas as almas por ele produzidas. Ele é capaz de produzir outros deuses inferiores e as partes incorruptíveis do homem e do mundo. Desempenha papel intermediário entre o mundo das ideias e o sensível. REALE. Giovanni. Op. cit. p. 66.  

 

2  

 

Quanto as almas Platão diz: “A alma não tinha mácula antes de estar

aprisionada ao corpo, ao qual se une como a ostra a sua concha2.” Diante dessa

frase impactante de Platão, percebe-se a pureza que a alma, anteriormente ao

contato com a matéria; logo, essa alma necessitaria de uma volta para seu estado

inicial mais perfeito. Tal perfeição é conferida à alma humana, pela sua própria

natureza, por já ter contemplado, um dia, o Ser verdadeiro3, assim pode-se dizer

que e a alma é muitíssimo superior ao corpo.

A alma é “o movimento capaz de mover a si mesmo”4, segundo Teixeira a

alma do mundo é responsável por todo movimento, considerada imortal5. No

Timeu, Platão explica que esta alma não é mais nova que o corpo, mas anterior a

este e é responsável por seu governo e domínio6.

A alma do mundo foi criada pura, localiza-se, ao mesmo tempo, em seu

centro e envolve-o7. E a alma humana, também, foi criada pelo Demiurgo, a partir

da alma do mundo. Mesmo sendo inferior a esta, a ela foi dado todo

conhecimento das leis e das verdades8. Visto que, a alma humana comunga da

mesma natureza da alma do mundo, sendo entendida como imortal e, também,

ser chamada divina9. O Demiurgo, deste modo, constitui a alma do mundo de

acordo com seu intelecto10, e a partir disso fabricou tudo que é corpóreo e os

uniu: essa alma (do mundo) dá início ao começo divino de uma vida inextinguível

e racional para todo sempre. O corpo do céu é gerado (visível) e a alma, invisível,

participa da razão11.

No homem, quando a alma é implantada no corpo, por necessidade, ela se

depara com as paixões12, de acordo com a seguinte ordem:

                                                                                                                         2 PLATÃO. Fedro. São Paulo: EDIPRO, 2011. 250c. 3 Ibidem. 250a. 4 PLATÃO. As leis. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2010. 896a. 5 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 87. 6 PLATÃO. Timeu. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. 34c. 7. Ibidem. 34b.  8  PLATÃO. Timeu. 41d-e.  9  TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 89.  10 O termo Nous (νοῦς) é comumente traduzido por intelecto (ou também mente, inteligência e pensamento). Com Platão a problemática do Nous se enriquece com as aquisições da “segunda navegação” e, portanto, desloca-se para o plano metafísico. Nous é a alma racional, hierarquicamente superior à concupiscível e à irascível. Mas é também um intelecto próprio da alma mundo. Ibidem. p. 184-185.  11  PLATÃO. Timeu. 36d-37a.  12  PLATÃO. Op. cit. 42a.

3  

 

Em primeiro lugar, uma sensação única e congénita gerada por impressões violentas; em segundo lugar, o desejo amoroso, que é uma mistura de prazer e sofrimento; depois destes, o temor, a cólera e todas as sensações que se lhes seguem e todas as que por natureza são contrárias e se diferenciam destas13.

A alma, por sua excelência e existência anterior ao corpo, deve comandá-lo.

Desta forma, quando unidos no mesmo ser, cabe ao último obedecer e sujeitar-

se. A harmonia se faz plenamente estabelecida quando a alma exerce sua

natureza de comando e senhorio, enquanto o corpo se limita a servidão e

obediência. Isso se justifica pelo fato de a alma assemelhar-se à realidade divina

e o corpo àquilo que é mortal. A mesma alma tende a liberta-se do que é terreno

e perecível buscando o que lhe é semelhante. No entanto, o corpo é seu abrigo,

pois somente a partir dele ela pode purificar-se e voltar a sua origem. Isto explica

a permanência e unidade do composto no mundo sensível, pois apesar da

inquietação pela liberdade, é necessário o laço de união entre as partes14.

A alma humana é de natureza boa, essa bondade se deve ao fato da sua

criação pelo próprio Demiurgo, o mesmo que gerou a alma do mundo e a de

todos os deuses. Este fato também confere a ela certo potencial de ser chamada

“divina”. Uma vez criada, à alma humana foi apresentada a natureza do universo

e ainda, foi-lhe dado conhecer as leis e as verdades, as quais estava destinada a

saber. Outro fato que lhe pode ser acrescentado é a capacidade de praticar

sempre a justiça15.

Em contrapartida, o ser vivente é composto de corpo e alma; enquanto esta

permanecer misturada a tão grande mal, jamais poderá alcançar a verdade que

deseja. Essa limitação se deve ao fato de o corpo ser repleto de necessidades de

sustento, susceptibilidade às doenças, desejos sensuais, apetites temores e toda

infinidade de ilusões e tolices. Não é possível conceber que o impuro possa

atingir o puro, por isso, se torna inviável pensar que, estando aprisionada ao

corpo, a alma possa ir de encontro à verdade, que alguns já comungam. Aqueles

que se encontram atados neste cárcere, só podendo ser libertos pelo Deus, pela

experiência da morte. Somente desse modo libertando se da insanidade do corpo

                                                                                                                         13  Ibidem. 42a-b.  14  TEIXEIRA. Op. cit. p. 89.  15  PLATÃO. Timeu. 41c-e.  

4  

 

poder-se-á alcançar a almejada contemplação da verdade, e assim poderão

desfrutar da verdadeira felicidade16.

As almas que buscam manter-se na retidão, conservando sua pureza são

mais predispostas ao reencontro com a verdade. Por isso a necessidade do

cuidado desta, pois de nada vale o cuidado somente com o corpo sem querer

curar a alma17. Seria um grande erro voltar-se exclusivamente para os cuidados

do corpo – onde se encontram todas as coisas inferiores e que afastam a alma

daquilo para o qual ela foi criada – e não atentar-se para o princípio que o

movimenta. Quando se busca aperfeiçoar a alma, esta se torna boa, e assim

consegue a plenitude, que consiste na libertação do cárcere e contemplação

novamente das verdades eternas, conforme pode ser visto no Fédon.

Pensando nesta necessidade da alma, surge assim a exigência de: ter um

autocontrole sobre as paixões; buscar uma boa conduta; e educar as ações para

que possa um dia alcançar a plenitude que consiste na vida junto aos deuses e

contemplação das perfeições. Como em Platão, a alma é concebida como imortal,

é preciso que ela não seja dominada por vícios que a corrompam e ocasione os

males como: injustiça, insensatez, impiedade e outros males próprios do corpo

fazendo com que ela permaneça mais tempo longe das verdades18.

Quanto à imortalidade, Platão diz no Ménon que a alma do homem mesmo,

ora na experiência que se chama morte, ora nascendo de novo, jamais será

aniquilada, demostrando que a alma do homem é imortal (Ψυχή ᴦού άνθρώπου

είναι ᴦού αθανασια)19. Para Casoretti, a imortalidade pode-se explicar através da

imaterialidade. Se entendermos que a alma tem acesso e conhecimento das

ideias que são imateriais, essa por conseguinte também tende a ser imaterial. Se

a imaterialidade pressupõe imortalidade, logo a alma é imortal20.

                                                                                                                         16  Idem. Fédon. São Paulo: EDIPRO, 2011. 66b-67b.  17   Pero que Zalmoxis, nuestrorey, siendo como es dios, sostenía que no había de intentarselacuración de unos ojossinlacabeza y lacabeza, sinel resto delcuerpo; así como tampocodelcuerpo, sinel alma. (Tradução livre). PLATÃO. Cármides. Disponível em: <http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/P/Platon%20-%20Carmide.pdf>. Acesso em: 03.09.2014. 156e-157a. 18 PLATÃO. Cármides. Disponível em: <http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/P/Pl aton%20-%20Carmide.pdf>. Acesso em: 03 set 2014. 154e. 19 Idem. Mênon. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001. 81b. 20 CASORETTI, Anna Maria. A origem da alma: do orfismo a Platão.2010. 73 f. Monografia (Graduação) – Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Mackenzie, São Paulo, 2010. p. 59.

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No Fédon encontramos, a partir da teoria dos opostos, uma satisfatória

explicação sobre esse assunto.

Ora, o que temos a determinar é quais coisas, sem que sejam os opostos de algo, não obstante isso, não admite, como número três, que embora não seja o oposto da forma do par, ainda assim não admite, apresentando sempre seu oposto contra ela, e tal como o número dois apresenta o oposto do ímpar, e o fogo o oposto do frio, e assim por diante, pois os casos são muitos. Bem, vê se aceitas a seguinte afirmação, a saber, não só opostos não admitirão seus opostos, como também nada que traga um oposto àquilo de que se aproxima jamais admitirá em si a oposição do que é trazido. Deixa-me refrescar tua memória, uma vez que nada a de danoso no fato de repetir. O número cinco não admitirá a Forma do par, do mesmo modo que o dobro de cinco, o número dez, não admitirá a fórmula do ímpar. Ora, ainda que o dez não seja ele próprio um oposto, não admitirá a Forma do ímpar. Tampouco, o um é meio e outras frações combinadas, bem como um terço e outras frações simples admitem a Forma do todo21.

A partir disso, o autor entende, de forma mais refinada, que o que pode torna

o corpo quente não é a quentura, mas sim o calor. Bem como o que o torna

enfermo, não é a enfermidade, mas sim a febre. Analogamente, o que pode ao

corpo torná-lo vivo não pode ser descrito tão somente como a vida mas a sua

alma. Consequentemente, entende que as coisas nas quais a alma habita a elas

transmite vida, não podendo aceitar o seu oposto, que é a morte. Como se

entende que tudo aquilo que não admite a morte é chamado imortal, logo a alma

será chamada imortal. Considerando que o imortal também é indestrutível, não

seria a alma, já que é imortal também indestrutível? Assim, quando a morte atinge

um ser humano, sua parte mortal, pelo que parece, morre, porém a parte imortal

segue incólume e não destruída para alguma região do Hades, furtando-se da

morte22.

Finalizando, observemos como se dá a demonstração da imortalidade no

Fedro.

Toda alma é imortal, pois aquilo que se mantém sempre em movimento é imortal; aquilo, entretanto, que move alguma coisa mais ou é movido por alguma coisa mais, quando cessa seu movimento, deixa de viver. Assim, é somente aquilo que move a si

                                                                                                                         21 PLATÃO. Fédon. 105ab.  22 PLATÃO. Fédon. 105c-107a.

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mesmo que nunca cessa de mover-se, constituindo também a fonte e princípio de movimento para todas as demais coisas que se movem. Mas o princípio não é gerado porque tudo que é gerado é necessariamente gerado a partir de um princípio, e o princípio não é gerado a partir de coisa alguma, pois se fosse gerado não seria a partir de um princípio. E uma vez que não é gerado, tem necessariamente que ser também indestrutível, já que se o princípio fosse destruído, jamais poderia ser gerado a partir de qualquer coisa nem qualquer coisa que lhe é distinta a partir dele, posto que todas as coisas tenham que ser geradas com base num princípio. Por conseguinte, o automotor (aquilo que move a si mesmo) é necessariamente o princípio do movimento, não sendo ele nem destruído nem gerado, caso contrário todo o céu e toda geração necessariamente se abateriam e se deteriam, jamais teriam novamente uma causa para retomar o movimento. Mas desde que constatamos que aquilo que se move por si mesmo é imortal, aquele que afirma que este auto movimento é a essência e o fundamento da alma não incorrerá em ignominia. De fato, todo corpo que recebe movimento de uma fonte externa não possui alma (αψυχος23), enquanto o que tem seu movimento dentro de si possui alma (Ζωντανός24), uma vez ser essa natureza da alma. Entretanto, na hipótese de ser isso verdadeiro, a saber, que aquilo que move a si mesmo (o automotor) nada é se não a alma, seria necessariamente de se inferir que a alma é não gerada e imortal25.

Platão, quando aborda a divisão da alma em sua segunda maior obra, A

República, afirma:

Bem, por certo estamos compelidos, então, a concordar que cada um de nós tem no interior de si as mesmas partes e características do Estado? Afinal, que outra origem poderiam ter? Seria absurdo alguém pensar que a animosidade não provém dos Estados de indivíduos que se supõem sejam possuidores de animosidade, como os trácios, cítios e outros povos que vivem ao norte, ou que algo idêntico não se aplique ao amor ao conhecimento, o qual é principalmente associado com a nossa parte do mundo, ou o amor ao dinheiro, o qual poder-se-ia dizer e manifestamente exibido pelos fenícios e os egípcios [...] Mas o que é difícil compreender é isso: executarmos as coisas com a mesma parte de nós mesmo ou a executarmos com as três partes distintas? Aprendemos com uma parte, ficamos irados com uma outra e com uma terceira desejamos os prazeres do alimento, da bebida, do sexo e outros que lhe são estreitamente aparentados? Ou quando procedemos a algo atuamos com a totalidade de nossa alma em cada caso? É isso que é difícil determinarmos de uma forma compatível com o nível de nossos argumentos26.

                                                                                                                         23 αψυχος. Termo grego que significa inanimado. 24 Ζωντανός. Termo grego que significa inanimado 25 PLATÃO. Op. cit. 245d-246a.  26 PLATÃO. A República. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2014. 435e-436b.

7  

 

Platão afirma que a alma, na equivalência com o Estado, é dividida, mas

sem que haja contradição entre as suas distintas porções, já que cada parte

exerce, a sua maneira, a sua respectiva função de forma que se mantenha no

todo a harmonia.

Na tradição platônica, a alma humana é entendida como tripartida, ou seja,

dividida em três partes a saber: apetitiva, racional e irascível27. O elemento

apetitivo irracional é “aquele com a qual a alma experimenta desejo sexual, fome,

sede e fica excitada por outros apetites, é o companheiro de certas concessões

(aos apetites) e prazeres.”28. O elemento racional é o que governa a favor da alma

inteira já que é, distintamente, o que possui a sabedoria29. O elemento irascível,

também chamado de animosidade, parece confundir-se com o que tratamos

anteriormente, a parte apetecível. No entanto “está longe de o ser, pois, no

conflito de facções no interior da alma, esta se alinha muito mais com o elemento

racional30” A guerra civil que ocorre no interior do homem entre o elemento

racional e o apetecível gera certo conflito. Para tentar manter uma ordem, entra

em ação o papel do elemento irascível, o qual trará equilíbrio na alma dominando

o apetitivo sob o governo da razão. Por isso, é considerado de fato o terceiro

elemento da alma, que por natureza deve auxiliar o elemento racional, devido à

educação, excluindo qualquer tipo de corrupção31.

A defesa da alma tripartida, segundo Platão, pode ser sustentada por pelo

menos três argumentos. O primeiro teria a necessidade de certo entrosamento

entre as virtudes do Estado e da alma de cada indivíduo, que são: a justiça, a

sabedoria, a coragem e a temperança. Encontram-se precisamente na obra A

República, na sua quarta parte, sendo essas características necessárias tanto à

alma do indivíduo como ao Estado. O segundo argumento advém dos diferentes

modos e características que as cidades podem ter, de acordo com os atributos

psicológicos de cada indivíduo32. O terceiro, por sua vez, está de acordo com o

princípio de não-contradição pelo qual não se pode ser e não ser ao mesmo                                                                                                                          27 Ibidem. 440e-441a. 28 Ibidem. 439d. 29 Ibidem. 441e. 30 Ibidem. 440e. 31 PLATÃO. República. 440b; 441a. 32 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 85-86.

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tempo em relação à mesma coisa33. Ou ainda, não é pertinente afirmar que uma

parte do indivíduo está em movimento enquanto outra parte está em repouso34.

Se nesse caso entende-se que o indivíduo como um todo está em movimento, da

mesma forma a alma age por inteiro.

Teixeira, corroborando esta ideia de tripartição e entendendo a alma como

um todo complexo, aborda suas partes, a partir de três funções:

A primeira função é aquela que é mais fundida com o corpo; pertence à ordem dos impulsos, dos desejos e das necessidades: é a alma desejante ou concupiscente – que ocupa seu lugar corporal no ventre: é a função pela qual a alma deseja e sente fome e sede e fica perturbada pelos demais apetites. Essa função desejante da alma é chamada também de epithymía, que corresponde à natureza do trabalhador produtor. A alma desejante é a das pulsões, das necessidades e dos desejos. É aquela que ama, que tem fome, que tem sede e se dispersa incessantemente em torno dos múltiplos desejos. A segunda função da alma consiste na razão: é a alma racional. Situada na cabeça, constitui a porção divina do homem, pois está, por natureza, em relação ao inteligível: é o “olho da alma”. Sua função é calcular, prever, submeter a exames os caprichos do desejo – seu último é a contemplação das essências. A terceira função diz respeito à dimensão do afeto: é a parte afetiva da alma e possui uma espécie de função mediadora. O coração exerce uma função mediadora, quando a deliberação da razão é oposta à necessidade do instinto. Essa terceira função é chamada por Platão de thymós35.

Silva também comenta que cada elemento da alma aspira um prazer

específico de acordo com as atividades cognitivas. O apetitivo se volta aos

prazeres relacionados à percepção, ou seja, às experiências sensíveis; o irascível

se volta a essência das coisas em particular, pela via da opinião; e o racional,

devido à sua capacidade cognitiva, busca entender as coisas como elas são,

segundo a ciência. Ele ainda comenta que a parte racional está sempre voltada

para a verdade e para o verdadeiro bem. As outras duas partes se ligam ao que

parecer ser um bem, ou seja, as coisas aparentes36.

No Fedro, Platão apresenta a alegoria da parelha alada de forma a explicar

a tripartição da alma, além de introduzir a importância da educação para a                                                                                                                          33 PLATÃO. Eutidemo. Rio de janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001. 293c. 34 Idem. A República.436c.  35 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 34. 36 SILVA, Wilson José. A unidade das virtudes nos diálogos socráticos: uma questão de método. 2006. 157 f. Dissertação (mestrado) – Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2006.p. 39-40.

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mesma. O mito consiste numa biga puxada por dois cavalos e conduzida por um

cocheiro. Um dos cavalos é de raça pura e caráter nobre equivalendo ao

elemento irascível, enquanto o outro não é de raça pura, mas miscigenada e nada

nobre quanto ao seu caráter, comparando-se ao elemento apetecível. O cocheiro,

que representa o elemento racional, possui a árdua missão de conciliador e guia

da parelha37.

Durante um determinado período essas almas tinham asas que as ajudavam

a se erguerem para o alto levando consigo o que é pesado até alcançarem o lugar

onde os deuses habitam, ou seja, a região celestial. Contudo, algumas almas

perderam suas asas, por isso perambularam até encontrarem um lugar sólido

para se instalar, assumindo um corpo terrestre, o qual, devido ao poder da alma

nele encerrada, parece capaz de movimento próprio. Esse composto de corpo e

alma é conhecido como ser vivo. A alma, mais do que qualquer outra coisa que

pertença ao corpo, participa da natureza do divino. O divino contém a beleza, a

sabedoria, a bondade e todas a demais qualidades a essas semelhantes. As

almas dotadas dessas qualidades são bem alimentadas e a elas são restituídas

as asas, enquanto as que se entregam aos vícios, as asas se encolhem e

desaparecem38. Dessa forma, aquelas almas que vivem virtuosamente, vivendo

sua vida humana de maneira digna, obtêm uma melhor sorte e são erguidas pela

justiça a uma região celestial, enquanto aquelas que vivem viciosamente

desfrutam de pior sorte, pois partem para os postos correcionais na terra para

cumprirem a sua pena até alcançarem a purificação39.

As virtudes estão presentes na alma e Platão entende que virtude é a

excelência na função própria. Já que cada coisa, ou seja, cada objeto assim como

cada ser vivo tem uma ou mais funções, a virtude consiste no fato de exercer

perfeitamente essa função. Sendo assim, a virtude da faca é cortar, do olho

enxergar, e em relação ao homem, este deve saber, ser corajoso e conseguir

dominar seus desejos. Dessa maneira, todo objeto técnico tem uma virtude, assim

como todo ser vivo. Com isso, vê-se que para definir a virtude de cada coisa ou

objeto faz-se necessário conhecer a natureza da mesma. Portanto, por virtude

                                                                                                                         37 PLATÃO. Fedro. 246a-b. 38 PLATÃO. Fedro. 246d-e. 39 Ibidem. 249a-b

10  

 

além da excelência do caráter, pode-se entender a perfeição de uma atividade,

seja ela qual for40.

A virtude como excelência deve ser entendida por um caminho que passa

pela posse de um saber que proporcionará a ela seu status. Sendo assim, a

excelência encontra-se na dimensão cognitiva, ou seja, ser excelente nada mais é

do que saber como sê-lo. Dessa forma, o homem de posse de um saber prévio de

suas próprias aptidões irá desenvolvê-las até alcançar a excelência, a virtude41.

Nas Leis, Platão afirma que o virtuoso é aquele homem que não comete

erros e, além disso, auxilia os magistrados a corrigir os erros alheios:

Aquele que não comete qualquer erro é efetivamente um homem digno de honra, porém digno de honra em dobro, e mais, é aquele que em adição a isto não permite que os cometedores de erros, os cometam, pois enquanto o primeiro vale por um homem, o segundo vale por muitos, já que informa os magistrados a respeito da ação errônea dos outros. E aquele que auxilia os magistrados, na medida de suas forças, a punir, que o proclamemos o grande homem do Estado, e homem consumado, o campeão da virtude42.

Ainda a respeito, Platão entende que o virtuoso é bom, mas para ser bom é

preciso ser “sábio, corajoso, moderado e justo”43, pode-se entender que em sua

concepção são quatro as virtudes principais ou capitais. Quanto a elas, ele

apresenta que se distinguem por caraterísticas próprias que devem ser

acentuadas em um determinado momento para exercer aquilo que lhes compete,

explicando as pela analogia com as partes da alma e sua correspondência com

as diferentes classes existentes em seu Estado44.

Em A República, por sua vez, encontram-se as definições de cada uma

destas quatro virtudes:

Então devemos lembrar que cada um de nós, no qual cada elemento cumpre sua própria função, será justo e fará o que lhe cabe. [..] eu suponho, que qualificaremos um indivíduo de corajoso, a saber, quando a animosidade preserva em meio a dores e prazeres, os ditames da razão sobre o que é para ser

                                                                                                                         40 BRISSON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de Platão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 72-73. 41 Ibidem. p. 73. 42 PLATÃO. As Leis. 730d. 43 Idem. A República. 427e. 44 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 93.  

11  

 

temido e o que não é para sê-lo. [...] e qualificaremos de sábio devido àquele pequeno elemento de si que nele governa, produz estes ditames e encerra dentro de si o conhecimento do que é proveitoso para cada elemento e para toda alma, que é a associação de todos os três elementos – irascível, apetitivo e racional. [..] e não é ele moderado devido as relações amistosas e harmoniosas entre esses mesmos elementos, a saber, quando o governante e os governados concordam que o elemento racional deve governar e não entram em conflito com este? A moderação é isso e nada mais tanto na (esfera do) Estado) quanto na (esfera do) indivíduo45.

2. A PÓLIS PLATÔNICA

Com o término do período homérico, ao olhar para a necessidade da cidade

primitiva, Platão propôs um Estado ideal, no qual foram propostas características

muito claras para homens que têm diferentes necessidades. A organização da

vida humana dentro de um estado não se daria apenas através de cumprimento

de ordens, ou seja, não bastaria somente viver, mas seria necessário, sobretudo,

viver bem. Com isso, o melhor lugar para o homem desenvolver as suas virtudes

é a Polis.

Para facilitar o entendimento a respeito do contexto da época em que

surgem as polis, é preciso, primeiramente, ater-se as questões dos períodos que

antecederam as mesmas, destacando a importância dos povos micênicos até o

período homérico.

O povo micênico possuía um estilo de vida social totalmente centralizada em

torno do palácio, tudo que dizia respeito aos poderes religiosos, políticos,

militares, econômicos estava organizado dessa forma, e tinha como apoio os

escribas que ajudavam a controlar toda essa estrutura de soberania46.

Nesse estilo de governo, o soberano exercia um poder total sobre todos os

demais, uma profunda submissão, pois os dignitários não eram funcionários, mas

eram encarregados de disseminar, em todos os lugares que fossem designados,

                                                                                                                         45  PLATÃO. A República. 441e-442d.  46 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 15.

 

12  

 

esse poder absoluto que se encarna no monarca. O Rei concentra em si todas as

atividades, como por exemplo: compra das armas, definir estratégias, escolher os

tipos de sacrifícios a serem oferecidos, determinar as taxas de sacrifícios e

organizar os cultos. E é chamado por todos por anáx. O palácio era o centro, o

lugar das prestações e gratificações47.

Essa realeza, sobre a qual não há muitos dados históricos, era dividida em

basicamente três estágios: o bélico – no qual o soberano se apoiava nos

aristocratas guerreiros, nos homens dos carros, que estavam sujeitos a sua

autoridade, mas que formavam um corpo social e na organização militar do reino.

Este grupo era privilegiado, pois possuía um estatuto particular e um gênero de

vida próprio; o rural – sua dependência não era tão absoluta em relação ao

palácio, no entanto tinham a obrigação de alimentar, dar “presentes” e fazer

prestações de contas ao palácio, com a função primordial de suprir as

necessidades desse; administrativo – manter a contabilidade e administração do

palácio, contudo, baseava-se, principalmente, na escrita e construção de arquivos

por escribas. Estes forneciam as técnicas e esquemas para administrar o palácio

fechando tudo aos reis. A língua se restringia a essa escrita, sendo objeto de uso

para administração do palácio48.

Devido ao rompimento do vínculo, que perdurava por vários séculos, entre a

Grécia e o Oriente, pela invasão dórica, fecha-se as portas do mar e retorna-se a

uma economia agrícola. No mundo homérico não é reconhecida a divisão do

trabalho anterior, como expressa pela sociedade micênica. Todos se encontram

agrupados ao redor do palácio ou agrupados nas aldeias para servir as ordens do

rei. A partir das invasões, o sistema palaciano desaba e nunca mais será o

mesmo, não se erguerá. O termo anáx desaparece do cenário político e é

substituído pelo termo técnico basileus – consiste no grupo dos Grandes que

desempenharão poder real, no cume da hierarquia real. A ruína dos palácios

promove ainda a mudança da escrita. Esta se deu, exclusivamente, por influência

fenícia, no qual não se limita somente a escrita, mas a presença da fonética que

ajudará a divulgar o regime, e colocá-lo igualmente sobre o olhar de todos as

diversas realidade sociais e políticas, abandonando a restrição única de

                                                                                                                         47 Ibidem. p. 22. 48 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 23-24.

13  

 

confecção de arquivos do palácio49. Nesse novo período o rei mudou não

somente de nome, mas de natureza50.

A queda do regime micênico inaugura uma nova civilização grega. Surgindo

assim, uma nova forma de entendimento do governo, pois após o

desmoronamento do palácio, promoveu-se o advento de conflitos entre as

famílias mais eminentes que ainda sustentavam a existência de uma aristocracia

guerreira versus as comunidades aldeãs. Com isso, visando a busca do equilibrio

e diminuição dos conflitos surgem acordos que farão nascer, em meio a toda a

desordem, um período de reflexão moral e especulações políticas que vão definir

uma primeira forma de “sabedoria” humana51.

Este período da “sophia” tem seu início desde a aurora do século VII, e foi

marcado pela presença de inúmeros personagens áureos, apesar de bem

estranhos. Estes homens eram detentores de glória lendária, tidos como os

verdadeiros sábios. Sua principal preocupação não era com a physis, mas com o

mundo dos homens, que elementos o compõe, que forças o dividem contra si

mesmo, como harmonizá-las e unificá-las para que de seus conflitos surja a

ordem humana da sociedade. Essa sabedoria é fruto de uma longa história difícil

e acidentada, em que se detêm fatores múltiplos, mas que desde seu início

afastou da concepção soberana da sociedade micênica para orientar-se num

outro caminho52.

As associações formadas pelos camponeses – campesina – aparecem na

história mais primitiva das polis, mas este regime vai sendo substituído, ou melhor

dizendo aprimorado, acompanhando o aperfeiçoamento das relações entre os

homens, que precisa por uma necessidade espiritual, formar comunidades. Essas

mudanças nas relações dos homens faz surgir as cidades, que são chamadas

pelos gregos de polis. Com isso, pode-se ver a polis como o centro principal e o

marco social a partir do qual se organiza historicamente o período mais

importante da evolução grega53.

                                                                                                                         49 Ibidem. p. 24-25. 50 Ibidem. p. 28. 51 Ibidem. p. 27. 52 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 27. 53 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 106-107.

14  

 

O sistema da polis é favorecido pela predominância da palavra sobre todos

os outros instrumentos do poder. Esta se torna o instrumento político por

excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de

domínio sobre outrem. Essa palavra entre os gregos se torna uma divindade:

Peithó, que quer significa persuadir, convencer ou influenciar. A palavra assume

um novo caráter, visto que não se restringe mais aos escribas, em seu caráter

ritualista, expressando apenas uma fórmula justa, mas agora ela está aberta ao

debate contraditório, a discussão e a argumentação, se tornando um novo

mecanismo, que favorece aquele que pela “sabedoria” e a capacidade oratória

consiga levar os demais a aderirem ao seu pensamento. Aqui vale destacar que

começa a se desenvolver a retórica e a sofistica54.

A palavra que agora assumiu caráter de publicidade fortalece o seu uso

pelos grupos e a exposição de condutas e conhecimentos. Esse desenvolvimento

comporta uma profunda transformação, que é bem expressa na obra Epopéia de

Homero. Nesta é bem expressa o fato da poesia, restrita a corte, proclamada nos

palácios sair destes ambientes e passar a ser poesia de festa. Dessa forma, os

valores, o conhecimento, as técnicas mentais são levadas à praça pública,

ficando sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como

garantia de poder, somente pelas tradições familiares. Mas agora se torna de

“domínio público”, motivando assim a exegese, interpretações diversas, oposições

e debates. Isto é um reflexo da descentralização e da queda dos palácios,

abriram-se as portas e o que estava restrito a poucos agora começa a se difundir.

Assim, a discussão, a argumentação, a polêmica torna-se regra do jogo

intelectual, assim como do jogo político. A lei da polis, em oposição ao poder do

monarca, exige que umas e outras sejam igualmente submetidas à “prestação de

contas” já que não impõem pela força de um prestígio pessoal ou religioso, mas

sim por um processo de ordem dialética, o que parece que favorecerá o

desenvolvimento filosófico55.

A vida social do homem, bem como suas relações, foi modificada a partir do

surgimento da polis, pois a mudança das leis e dos ritos fizeram dessa uma

comunidade de vida espiritual. A consciência dos cidadãos foi formada e inspirada

                                                                                                                         54 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 34.  55 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 35-36.

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por comportamentos fundados em normas que regulam algumas ações e o proíbe

outras56. Hannah Arendt entendia que, a vida na polis significava para os gregos

uma maneira possível de organização política que permitia os homens viverem

unidos e de maneira ordenada. Este ideal de cidade-estado faz com que o

homem além de viver sua vida pessoal ou privada passe também a preocupar-se

com a vida comum. Para a autora, a polis faz com que o homem saia de sua

futilidade individual, pois a cidade é um espaço protegido contra essa57.

Em Platão, a justiça tem um caráter objetivo e é o eixo que sustenta sua

ética e sua política58. A polis surge do princípio que o homem sozinho não

conseguirá dar conta das diversas atividades que necessita para viver bem, e daí

emergem as necessidades de organização desta relação, e assim surgem das

relações, que estão em mudança, às cidades. Por isso, Purshouse afirma que:

Uma extensa análise das razões pelas quais os seres humanos decidem se organizar em sociedades, em lugar de sobreviver sozinhos. A base do Estado é que ninguém é autossuficiente. A fim de satisfazer nossos desejos por alimentos, abrigo e vestuário, grupo de nós59.

E na República Platão explica que: As pessoas precisam de muitas coisas e porque uma pessoa recorre a uma segunda devido a uma necessidade e a uma terceira devido a uma outra necessidade, muitas pessoas se reúnem num único lugar para viver juntas como parceiros e colaboradores. E a esse estabelecimento denomina-se cidade ou estado60.

Anteriormente, ao tratar das virtudes, comentou-se que as principais

virtudes: sabedoria, coragem, justiça e temperança são responsáveis por

promover a harmonia dos diversos elementos que compõem o homem, ou seja,

                                                                                                                         56 TAVARES, Roberto Ramalho. A evolução da polis e da educação como consequência da evolução grega, da fase arcaica à clássica. Disponível em: <http://www.aei.com.br/userfiles/2_A%20EVOLU%C3%87%C3%83O%20DA%20POLIS%20%20DA%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20COMO%20CONSEQ%C3%9C%C3%8ANCIA%20DA%20EVOLU%C3%87%C3%83O%20DA%20%C3%89TICA%20GREGA.pdf>. Acesso em: 08 out 2014. p. 3-4. 57 ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 1981. p. 33. 58 REALE. Giovanni. História da filosofia grega e romana. Léxico da filosofia grega e romana. São Paulo: Paulus, 2014. v. IX. p. 144-145.  59 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 58. 60 PLATÃO. A República. 369b-c.  

16  

 

as três partes que constituem sua alma. No entanto, Platão entende que a justiça,

dentre todas é a virtude mais importante, pois esta permite que os homens se

assemelhem ao que é invisível, divino, imortal e sábio, e por meio dela o homem

alcança a felicidade61. E isso está muito bem expresso em suas diferentes obras,

como pode-se observar no seguinte trecho da República:

Não concerne a ação externa, mas consiste aquilo que está em seu interior. É a aquilo que genuinamente ele próprio e que verdadeiramente lhe pertence. [...] Aquele que é justo não permite que nenhum elemento de si mesmo cumpra a função de um outro elemento nem que os distintos elementos no seu interior produzam uma recíproca intromissão. Ele é capaz de regular bem o que verdadeiramente lhe é próprio e governa a si mesmo; instaura a ordem em si mesmo, é seu o próprio amigo e harmoniza os três elementos [de sua alma] como três notas limites de uma escala musical: a alta, a baixa e a mediana. Une esses elementos e quaisquer outros que possam haver entre eles, e da multiplicidade que ele era se faz unidade, moderado e harmonioso. E somente então ele age. E quando realiza qualquer coisa, seja aquisição de riqueza, o cuidado de seu corpo, a prática política, seja nos contratos particulares – em tudo isso crê que a ação justa e honrada é a que preserva essa harmonia interna e que ajuda a conquistá-la, assim a nomeando, e tem nas contas de sábio o conhecimento que preside tais ações. E acredita que a ação que destrói essa harmonia é injusta, nomeando-a assim, tendo na conta de ignorância a crença que preside tal ação62.

No Protágoras, a justiça é tida como um dom dos deuses dada ao homem

para que viva a ordem moral.

Zeus, então, com medo que sucumbisse toda a raça humana, enviou Hermes para mostrar aos homens o sentido moral e a justiça, para que houvesse ordem na cidade e relações cordiais de amizade. Hermes perguntou, então, a Zeus de que modo daria o sentido moral e a justiça aos homens: “Vou dividi-las como estão divididos os conhecimentos?” Estão divididos assim: um apenas que domine a medicina vale para muitos particulares, e o mesmo aos outros profissionais. “Também agora a justiça e o sentido moral serão infundidos nos humanos, ou repartidos a todos?”“A todos”, disse Zeus, e que todos sejam partícipes. Pois não haveria cidades, se somente alguns deles participassem, como dos outros conhecimentos. Além disso, impõe-se uma lei da minha parte: que ao incapaz de participar de honra e da justiça o eliminem como a uma enfermidade da cidade63.

                                                                                                                         61 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 37-38. 62 PLATÃO. A República. 443d-e.  63 Zeus, entonces, temió que sucumbiera toda nuestraraza, y envió a Hermes que rajera a loshombresel sentido moral y lajusticia, para que hubieraordenenlasciudades y ligaduras acordes

17  

 

Na Apologia de Sócrates tenta mostrar que a justiça parte do indivíduo para

a cidade e não a cidade impõe essa ao indivíduo. “Um homem que realmente luta

pela justiça tem que levar uma vida privada, e não pública, caso queira sobreviver

mesmo por um efêmero período”64. Isso parece querer mostrar que na vida

privada, o homem se forma nas virtudes, de onde brotará a justiça e daí poderá

ser instrumento para uma cidade justa.

Nas Leis a justiça é tida como aquela que constitui a harmonia, tanto no

homem quanto na cidade à semelhança da harmonia cósmica, e tudo assim está

regido por uma lei para garantir a justa medida e a devida proporção.

Persuadamos o jovem mediante palavras que dizem que todas as coisas estão ordenadas sistematicamente por aquele que cuida de tudo com olhar na preservação e excelência do todo no qual cada parte, na medida de sua capacidade, sofre e age segundo o que lhe é apropriado. Para cada uma dessas partes até as mais ínfimas delas são designados governantes de sua paixão e ação para que o cumprimento pleno de cada fração seja produzido, estando tu entre estas frações, ó homem perverso, tendo sempre, portanto, [cada uma das frações] em seu empenho para o todo, por mais minúsculas que sejam. Mas tudo não consegues perceber que toda geração parcial vida o todo para que seja assegurada a existência bem aventurada no universo – e que nada seja gerado para ti, mas sim tu gerado para o todo65.

Portanto, Platão entende que justiça não consiste apenas em dizer a

verdade e restituir aquilo que se tomou, nem em dar a cada um aquilo que se

deve, e muito menos ser a conveniência do mais forte66. Mas, a mais excelsa das

virtudes se dá quando cada homem ocupa-se, na cidade, tão somente da função,

para a qual a sua natureza é favorável e executa tal atividade sem interferir nas

dos demais. Como expresso no livro IV da República:

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 de amistad. Le preguntó, entonces, Hermes a Zeus de qué modo daríael sentido moral y lajusticia a loshombres: “¿Las reparto como están repartidos losconocimientos? Están repartidos así: uno solo que domine la medicina vale para muchos particulares, y lomismolosotrosprofesionales. ¿Tambiénahoralajusticia y el sentido moral losinfundiréasí a los humanos, o los reparto a todos?” “A todos, dijo Zeus, y que todos sean partícipes. Pues no habríaciudades, si sóloalgunos de ellosparticiparan, como de losotrosonocimientos. Además, impón una ley de mi parte: que al incapaz de participar del honor y lajusticialoeliminen como a una enfermedad de laciudad”. (Tradução livre). PLATÃO. Protágoras. Disponível em: <http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/P/Platon%20-%20Protagoras.pdf>. Acesso em: 9 out 2014. 322c-d. 64 Idem. Apologia de Sócrates. São Paulo: EDIPRO, 2008. 32a. 65 Idem. As leis. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2010. 903b-c. 66 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 39-40.

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Naquilo que devia ser estabelecido em todo o estado quando estávamos construindo – ou isso ou alguma forma disso. Formulamos e repetimos frequentemente – se o lembras – que todos precisavam se dedicar a uma das ocupações no Estado para qual tivesse naturalmente melhor aptidão. [...] dissemos, que justiça é realizar o próprio trabalho pessoal e não se intrometer no que não é da própria conta. [...] Penso que isso foi o que restou no Estado, uma vez descobertas a moderação, a coragem e a sabedoria. Trata-se do poder que possibilita o desenvolvimento dessas virtudes no Estado e que, quando desenvolvidas, as preserva enquanto ela própria estiver presente. E, é claro, dissemos que a justiça seria o que restasse quando tivéssemos localizado as outras três67.

A partir disso, pode-se ressaltar ainda, que a justiça tem duas noções. Uma

em âmbito individual e outra no nível político. A primeira consiste na harmônica

disposição das partes da alma pela qual cada uma delas faz o que lhe compete,

enquanto no Estado consiste na perfeição com que as várias classes sociais se

harmonizam entre si cumprindo as funções que lhe são próprias, ou seja, cada

um no seu devido lugar exercendo com perfeição sua função pelo bem comum68.

2.3. A cidade ideal: justa ou injusta

A noção de cidade ideal surge em contramão as limitações dos homens e os

problemas da sociedade ateniense; e Platão visa com esta criar um Estado

harmônico e homogêneo onde cada um, de posse do conhecimento de si, poderia

exercer com excelência sua função em prol de todos, já que “a cidade nada mais

é do que uma ampliação do homem, porque é composta de cidadãos”69.

Durante o diálogo, na obra A República, Glauco questiona Sócrates se não

seria melhor ser injusto do que ser justo. Surge a indagação sobre o que é melhor

para o homem: ser justo ou injusto? No livro I, ele apresenta três argumentos para

tentar fundamentar que o melhor para o homem é a justiça. E são elas: a unidade,

entendida a partir de um grupo de ladrões, que apesar de cometerem ações

injustas, para tenham êxito em suas ações devem ser justos entre si, caso

                                                                                                                         67 PLATÃO. República. 433a-c. 68 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 21-23. 69 MENESCAL, Ana Alice Miranda. A ideia de justiça e a formação da cidade ideal república de Platão. 2009. 103 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de filosofia, Curso de mestrado acadêmico em filosofia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2009. p. 74.

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contrário não haveria sociedade estabelecida entre eles; a psicologia interna, na

qual o homem injusto possui uma divisão em si, pois assim como os justo

apresentam uma profunda inquietação, esse passam pelo mesmo processo, pois

ao invés de ter uma mente una, possui esta como inimiga de si mesmos; e o da

função (érgon), pois se um objeto tem uma função, significa que somente ele

pode fazer esse algo ou faz melhor que qualquer outro. Por exemplo: pode ser

usada a faca, esta tem a função de cortar ou podar, sua virtude necessariamente

seria ter o gume afiado, para exercer com excelência sua função. Ao pensar na

alma, esta tem a função de governar, deliberar e acima de tudo viver, sendo

assim sua virtude consiste na justiça e a injustiça é sua deficiência. Dessa forma,

se um objeto quando cumpre bem sua função ao exibir a virtude que lhe é

associada, a alma o fará quando for justa, logo exclui-se a possibilidade de ser

melhor viver na injustiça70.

Disso surge o questionamento de Glauco – Porque ser justo? – Pois este

entende que existem três categorias diferentes de bens – os bens desejáveis por

si mesmos, e não por suas consequências; os bens desejáveis por si mesmos e

por suas consequências; e os bens desejáveis por suas consequências e não por

si mesmo – e inclui a justiça na categoria dos bens desejáveis somente pelas

suas consequências, pois ser justo, ao seu ver, é penoso, mas proporciona aos

homens benefícios, honras e popularidade. No entanto, Sócrates, o objeta

defendendo que a justiça se inclui entre os bens desejáveis por si mesmos e por

suas consequências, sua análise é sempre do ponto de vista do agente justo,

diferente de Glauco que olha no sentido dos benefícios que podem ser adquiridos

pela justiça. E assim, Platão entende que é bom ser justo não pelos benefícios

que se pode obter, mas por outras razões que não estejam diretamente ligadas

ao seu próprio interesse, como: promover o bem estar dos outros, a vontade dos

deuses, ou cumprir o dever conforme prescrito pelo código moral. Dessa forma, o

fim da ação justa não está em si mesmo, mas no outro, e assim se promoverá o

bem comum, que é objetivo da polis71. Segundo Bini, a diferença entre os dois

debatedores se encontra em sua origem, pois para Platão a justiça é determinada

                                                                                                                         70 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 42-45. 71 PURSHOUSE, Luke. A República de Platão: um guia de leitura. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2011. p. 48-49.

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pela natureza (physis), enquanto para Glauco está na lei (nomos), assume as

ideias sofistas, a ética é reduzida a lei, deslocando a justiça e as demais virtudes

a esse, deixando-as no campo da convenção. No entanto, a justiça é natural,

divina e parte constituinte do ethos72.

Chega-se então na disputa entre ser justo e parecer justo, pois Glauco

questiona a respeito dos homens que parecem ser justos, mas cometem ações

interiores injustas, e estes parecem ser mais felizes e aclamados enquanto os

homens justos são esquecidos, deixados de lado, e por vezes até perseguidos.

Isso parece confirmar que melhor é parecer justo, mas ser injusto, pois dessa

forma não estaria suscetível a punições que constituem sua maior preocupação,

gozaria das honras e teria satisfeitas suas necessidades pelo proveito das

situações.

Para ilustrar que os homens só comentem ações justas pelo medo das

punições, e que a injustiça é muito mais vantajosa que a justiça, Glauco se utiliza

da alegoria do “anel de Giges”.

Narra a história que ele era um pastor a serviço do soberano da Lídia. Houve uma tempestade torrencial, um terremoto fendeu o solo e criou um abismo no lugar do qual ele cuidava de seu rebanho. Ao contemplá-lo – contam – ficou perplexo, mas adentrou ao abismo, onde se deparou com muitas maravilhas – prossegue a narrativa –, entre as quais um cavalo oco de bronze; nesse havia aberturas semelhantes a janelas pelas quais eles expiou, vendo no interior um cadáver, que parecia ter proporções superiores às de um homem; o corpo estava nu e havia um anel de ouro em um dos dedos [de uma das mãos]. Ele apoderou-se do anel e saiu do abismo. Usou o anel na costumeira reunião mensal dos pastores, na qual eram feitos os relatórios a respeito do estado, dos rebanhos para serem entregues ao rei. E quando estava sentado entre os demais aconteceu de dirigir o engaste do anel para si mesmo, rumo à palma de sua mão. Ao fazê-lo tornou-se invisível para os que estavam sentados próximos de si e eles continuaram a falar como se ele tivesse ido embora. Em pasmo, ele voltou a tocar o anel e virando o engaste novamente para o exterior retomou a visibilidade. Não tardou a testar o anel, visando a confirmar se realmente possuía aquele poder – e [não restava dúvida de que] possuía: virando o engaste para o interior da mão tornava-se invisível; virando-o de novo para posição normal, recuperava a visibilidade compreendendo-o, logo conseguiu com os outros pastores ser ele um dos mensageiros que levariam os

                                                                                                                         72 BINI, Edson. Nota explicativa 66 (II). In: PLATÃO. República. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2014. p. 79.  

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relatórios ao rei. E quando chegou ao palácio seduziu a esposa do rei, e com ajuda dessa atacou-o, matou-o e se apossou do reino73.

Por essa história percebe-se que os homens agem, quando na certeza de

não serão punidos, sempre de forma injusta, e de maneira a satisfazer seus

desejos que estão ocultos, ou oprimidos melo medo. No entanto, mais uma vez

deve-se ajustar o foco para entender que, a justiça sempre deve ter o bem do

outro como referência e assim se promoverá o bem comum. E ainda, vale

ressaltar que, na República, Platão afirma que: “o auge da injustiça é fazer-se

passar por justiça sem o ser”74.

Sendo a cidade platônica constituída por três classes: governantes,

guardiões e artesãos, a justiça, como já dito anteriormente, se dará quando cada

classe desempenhar seu papel próprio. Analogamente, o homem justo não

diferirá em nada de uma cidade justa, mas ser-lhe-á semelhante. Com isso, a

partir do homem justo, e do exercício deste de sua função específica, com

excelência, a cidade será proporcionalmente justa. Então, os princípios

fundamentais que regulam este laço e equilibrio são, como visto, o de exercer a

própria função e a unidade que deriva da multiplicidade75.

Contudo, vale destacar que o ponto primordial para a formação da cidade

ideal é a adequação do homem às necessidades da polis, ou seja, assumir uma

postura de aceitação à situação que com ele condiz, pois assim emergirá deste

convívio harmônio e ético a justiça na cidade. Porém, tudo isto só será possível

pelo processo de educação76. 3. A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO

O homem é naturalmente um ser que tende a viver em sociedade, pois como

visto anteriormente, ele na cidade tem a satisfação de suas necessidades básicas

a partir da cooperação entre os demais. Sendo assim, a interação entre os

homens se faz necessária para que haja a o convívio. Contudo, para que isto

                                                                                                                         73 PLATÃO. República. 359d-360b. 74 Ibidem. p. 361a. 75 CASERTANO, Giovanni. Uma introdução para a república de Platão. São Paulo: Paulus, 2011. p. 45. 76 MENESCAL, Ana Alice Miranda. A ideia de justiça e a formação da cidade ideal república de Platão. 2009. 103 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de filosofia, Curso de mestrado acadêmico em filosofia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2009. p. 79.  

 

22  

 

aconteça de forma a garantir o bem comum faz-se necessário o processo de

educação. A partir do trecho de As Leis, a seguir, pode-se melhor elucidar tal

questão.

O ser humano, nós o afirmamos, é uma criatura doméstica, civilizada e, no entanto, se por um lado graças a uma correta educação combinada a uma felicidade natural se converte ordinariamente na mais divina e a mais dócil de todas as criaturas, à falta da educação suficiente e bem orientada, é a mais selvagem de todas sobre a terra. Diante disso, é imperioso que o legislador não permita que a Educação infantil seja encarada como matéria de importância secundária ou inessencial; mas, visto que o futuro diretor tem que ser bem selecionado, o legislador deverá começar por fazer com que se esforcem ao máximo para indicar entre os cidadãos aquele que mais se destacar em tudo com o mais virtuoso. E portanto, todos os magistrados, exceto os conselheiros e os prítanes, deverão se dirigir ao templo de Apolo e dar secretamente o seu voto àquele entre os guardiões das leis que julgarem o melhor para dirigir os assuntos da educação77.

No mundo grego entendia-se a educação como “formação da criança de

modo idôneo de forma a faze-la crescer e torna-se homem”78. Este vai tomando

consciência aos poucos da elevação de seu valor através do método formativo,

logo, a Paideia tornaria esse homem mais perfeito, ou seja, ao modo grego essa

era entendida como perfeição humana. No era pré-filosófica a paidéia possuía

características ginastico-musical. Desta maneira, a temperança do corpo e da

alma tinham sua origem nos ginásios de esportes e na poesia, os quais eram

promotores do corpo e mente são79.

No entanto, para Platão a educação deveria se dar de forma construtiva em

diversas esferas do homem: intelectual, moral e física. Acentuando assim, que

todo aquele que é beneficiado pela educação assume o compromisso de

contribuir com a esfera pública e comprometer-se com a formação integral do

cidadão ativo, e ainda tornar-se responsável pelo bem comum na Pólis80.

Platão entende que a infância é a primeira etapa da vida humana, que deve

ser valorizada sobretudo, pelos efeitos causados na vida adulta, pois ele se

admira com a noção de que os conhecimentos apreendidos na infância                                                                                                                          77 Platão. As Leis. 766a. 78 REALE, Giovanni. Op. cit. p. 191. 79 Ibidem. p. 191-192.  80 LASCH, Rudinei; SANTOS, Marcos André dos; SOMAVILLA, Luciano. A importância da educação na formação do indivíduo em Platão. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2s enafe/PDF/033e4.pdf >. Acesso em: 22 out 2014.

23  

 

permanecessem na memória ainda na fase adulta81. Isso é motivo de uma de

suas explanações na Apologia de Sócrates, onde afirma temer muito mais

aqueles que adquiriram certos conhecimentos ainda na infância.

De fato, muitos acusadores se levantaram contra mim perante vós, os quais têm falado a muito tempo, a anos, e nada do que dizem é verdadeiro. Eu os temo mais do que a Anito e os outros, embora estes também sejam temíveis. Mas aqueles primeiros são mais temíveis, senhores, uma vez que se apoderaram da maioria de vós desde a infância, convenceram-vos e a mim acusaram sem qualquer respaldo na verdade82.

A educação, em Platão, deve iniciar-se, preferencialmente, na tenra infância

e perdurar por toda a vida. Os pais têm função primordial neste processo, visto

que, devem assim que a criança começar a entender fazer de tudo para que essa

se torne a mais perfeita. E assim, quaisquer coisas que façam ou digam, deve ser

para as ensinar e ajudar a distinguir o que é justo ou injusto; o bonito do feio; e o

que se deve e não se deve fazer. E caso estas não obedeçam devem ser

corrigidas com pancadas, como se fosse um lenho curvo e retorcido. Após esta

etapa, as crianças devem ser entregues aos mestres, recomendando-lhes que

cuidem do bom comportamento da criança mais do que o ensino da cítara e das

letras. Em seguida, após doutrinadas nas letras, as crianças devem ser

recomendadas a ler os melhores poetas, que são aqueles que possuem histórias

educativas e solenes elogios a virtude para que elas busquem assemelhar-se a

tal. E por isso, rejeita a poesia mimética, pois estas somente geram fantasias na

alma e não favorecem a virtude como as primeiras83.

E então permitiremos negligentemente que as crianças escutem quaisquer antigas fábulas, contadas por qualquer um, assimilando crenças em suas almas que são, na maioria, contrárias as que pensamos que deveriam reter e sustentar quando crescer? [...] Consequentemente, temos de, antes de mais nada supervisionar os contadores de história e executar uma censura de suas histórias. Faremos uma seleção de suas fábulas, aprovando as boas ou belas e rejeitando as que não o são. Convenceremos, em seguida, as amas e mães a contar às suas crianças as fábulas que selecionamos, uma vez que elas moldarão as almas de suas crianças por meio de histórias bem mais do que os corpos dessas

                                                                                                                         81 KOHAN, Walter Omar. Infância e educação em Platão. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 11-26, 2003. p. 16. 82 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Bauru: EDIPRO, 2008. 18b. 83 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 72-73.  

24  

 

manuseando-os. Muitas das fábulas que lhes contam agora, entretanto, tende ser rejeitadas84.

Na República, o Ateniense, deixa claro sua posição desfavorável aos poetas,

pois entende que estes falam do que desconhecem, e apenas o fazem por

imitação. E em sua concepção, a verdadeira arte deve ser fecundada pelo logos,

pois ao contrário se tornaria falsa ou falaciosa, e assim promoveria perturbação

na alma, ao invés de formar o espírito, que é sua finalidade85. Sendo, então, a

educação a formação da alma, Platão afirma a importância da música (mousiké) e

da ginástica (gymnastiké), pois ambas possibilitam a educação harmônica do

corpo e do espírito de modo que prepare aquele que a recebe para chegar um dia

a verdadeira ciência, já que “a ginástica prepara o corpo e a música e a poesia

preparam a alma”86. No entanto, isso não quer dizer que a relação seja

meramente daquela atividade com sua parte correspondente, mas as ambas

estão para promover a educação genuína da alma, cada uma a seu modo próprio.

Por isso, não se deve privilegiar apenas uma delas, mas considerar a importância

particular de cada uma, pois ressaltar apenas a ginástica torna o homem

grosseiro, bem como presar somente pela música deixa-os moles e delicados87.

Essa constitui conforma trata em sua obra A República, a primeira etapa do

processo educativo. A etapa seguinte do processo formativo consiste no ensino

das disciplinas ligadas a matemática e a dialética88.

Todo esse processo educacional e seus efeitos podem ser resumidos e

melhor entendido pela explicação do “Mito da Caverna”, que está expresso no

livro VII da República.

A alegoria consiste em uma caverna profunda, estreita e em declive. Em seu

interior existem homens, que vivem lá desde seu nascimento e dela nunca

saíram. Permanecendo sentados e presos por correntes, que atadas ao seu

pescoço, eles ficam impossibilitados de se movimentar e mover o pescoço,

ficando voltados somente para a parede da caverna, da qual não conseguiam se

libertar e tampouco conhecer seu exterior, e não lhes é possível ver a luz do Sol.                                                                                                                          84 Platão. República. 377b-c. 85 TEIXEIRA, Evilázio. Op. cit. p. 76-78. 86 Platão. República. 376e. 87 TEIXEIRA, Evilázio. Op. cit. p. 80. 88 MOTTA, Guilherme Domingues da. A Educação como fundamento da unidade e da felicidade da polis na República, de Platão. 2010. 297 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. p. 9.

25  

 

Atrás deles está disposto um muro e por detrás deste passam pessoas

transportando objetos sob a cabeça. A iluminação do ambiente se faz por uma

grande fogueira. Figueiredo afirma que esta etapa representa a ignorância dos

homens. As coisas que os prisioneiros enxergam são apenas os objetos refletidos

na parede a sua frente e não as pessoas, representando uma espécie de teatro

de marionetes. Novamente Figueiredo comenta que por esta descrição, o filósofo

quer ressaltar que o mundo inteligível (fora da caverna) é superior ao mundo

sensível (interior da caverna)89.

Nesta representação os homens conhecem apenas as imagens que são

mostradas pelos reflexos na parede. Sendo estas produzidas pela luz do fogo,

que é artificial, aquilo que é fruto da projeção somente tem sentido

“semiverdadeiro”, ou seja, é uma representação do real, mas não consiste na

realidade. Porém para os homens que lá estão, as imagens são toda a realidade

na qual conhecem e associam as vozes das pessoas que estão atrás do muro

com as figuras projetadas, assumindo como verdade aquilo que são meramente

ecos das vozes reais. Ainda no diálogo, Platão sugere que se um destes homens

conseguisse se libertar e tomasse conhecimento de sua real situação, deixando

de enxergar as sombras das coisas e também as projeções que estão refletidas

na parede, mas ao sair da caverna pudesse contemplar a luz do sol, de início lhe

causaria uma grande dor e tamanho incômodo que preferiria deixar de olha o sol

e se voltaria para o ambiente ao redor, e de fato contemplaria a realidade,

enxergando os objetos reais90.

O prisioneiro ao libertar-se da caverna vive um dilema, visto que conhece o

mundo real, porém sente que deve retornar a caverna e revelar sua descoberta

aos demais para retirá-los da ilusão daquele mundo. Frente esse problema, ele

resolve voltar ao interior da caverna. Ao chegar lá, os demais homens, que lá

permaneceram, não acreditam nele e diante de sua insistência para que o sigam

para conhecer o mundo real, aqueles que somente conhecem as cópias das

realidades o espancam e o matam. Figueiredo complementa dizendo que esta

                                                                                                                         89 FIGUEIREDO, Júlia. A concepção de educação na obra República de Platão. 2012. 16 f. Trabalho de Conclusão (Graduação) – Departamento de Pedagogia, Centro de ciências humanas, letras e artes, Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2012. p. 8. 90 FIGUEIREDO, Júlia. A concepção de educação na obra República de Platão. 2012. 16 f. Trabalho de Conclusão (Graduação) – Departamento de Pedagogia, Centro de ciências humanas, letras e artes, Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2012. p. 8-9.

26  

 

consiste em uma crítica de Platão a atitude dos homens gregos com Sócrates,

que queria transmitir um saber, que para eles não servia de nada91.

O “mito da caverna” – além de apresentar a teoria do conhecimento

platônica e sua distinção entre os conhecimentos sensível e inteligível -

representa esta saída da ignorância do homem, no qual este assume uma

mudança em seu caminho. Representado pela libertação das correntes, que

podem se dar por acaso ou pelo auxílio de outro. Assim sendo, o mito reporta ao

dever dos governantes que, uma vez obtido o saber, devem retornar ao mundo

sensível para governar e conduzir os demais à liberdade e a verdade92.

Dessa forma, parece ficar claro que, o governante deve conduzir os demais

às verdades eternas que estão adormecidas e precisam ser despertadas – teoria

da reminiscência platônica93. E este processo educacional tem necessariamente

que possuir caráter social e não privado, ou seja, a educação para todos94. No

ideal platônico o Estado é o primeiro responsável pela aprendizagem dos

cidadãos, e assim ocorre uma interrelação entre Estado e educação, pois o ser

não é autossuficiente, mas precisa de um agente externo que o conduza, ou seja,

um mestre ou tutor. Dessa forma, o processo educacional é capaz de reformar a

polis, fazendo a mais justa e boa para todos, pois a educação de modo integral –

corpo e alma – leva a contemplação das ideias do Belo e do Bem95.

E a conclusão a respeito da importância da educação e seu papel na

concepção platônica por ser entendida a partir das palavras do próprio autor

expressas na obra A República:

A educação não é o que alguns indivíduos proclamam ser ela, a

saber, inserir conhecimento em almas que dele carecem, como

                                                                                                                         91 Ibidem. p. 9. 92 Ibidem. p. 9-10. 93 A teoria da Reminiscência platônica, que também é chamada anamnese ou reminiscência Platão indica a gênese e o fundamento do conhecimento. Consiste muito mais do que uma mera recordação empírica, podendo até mesmo ser chamada de memória metafísica, na medida que implica numa comunhão estrutural da alma humana com o mundo metaempírico e uma visão original do mesmo. Esta teoria longe de reduzir-se a um mito exprime na realidade a primeira concepção ocidental do a priori. REALE. Giovanni. História da filosofia grega e romana. Léxico da filosofia grega e romana. São Paulo: Paulus, 2014. v. IX. p. 235. 94 MOTTA, Guilherme Domingues da. A Educação como fundamento da unidade e da felicidade da polis na República, de Platão. 2010. 297 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. p. 9.  95 FIGUEIREDO, Júlia. A concepção de educação na obra República de Platão. 2012. 16 f. Trabalho de Conclusão (Graduação) – Departamento de Pedagogia, Centro de ciências humanas, letras e artes, Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2012. p. 12-13.  

27  

 

inserir visão com olhos cegos. [...] Mas nossa atual discussão, por outro lado, demonstra que o poder do aprendizado de cada um é como um olho que não é capaz de ser girado da escuridão para a luz sem que se gire o corpo inteiro o corpo inteiro. [...] A conclusão é que a educação é a arte que diz respeito exatamente a isso, a essa conversão, e a como pode a alma mais fácil e eficientemente ser levada a realizá-la. Não é a arte de introduzir visão na alma. A educação tem como certo que a visão já está presente na alma, mas essa não a dirige corretamente e não arroja o seu olhar para onde deveria; trata-se da arte da redirigir a visão adequadamente. [...] Ora, parece que as outras assim denominadas virtudes da alma têm afinidade com as do corpo, pois realmente não são preexistentes, mas sim adicionadas posteriormente através do hábito e da prática96.

Então, pode entender-se que a educação se dá pelo exercício ou prática,

que visa a excelência, ou seja, a educação visa a virtude.

A virtude é responsável por moldar a cidade. A forma usada para tal pode

ser considerada a educação, bem como as prescrições adicionais sobre o

ordenamento. Assim, a virtude pode ser entendida não só como efeito que

promove a educação, mas como dynamis97 resultante do processo educativo98. A

dynamis é produto da síntese entre a natureza (phýsis) e a educação (paidéia),

que permite ser submetido a diversos testes e sair-se bem sucedido, como o

exemplo de um tecido que após ser tingido e submetido a todos os detergentes

não desbota99. Essa relação entre paidéia e phýsis pode ser entendida como uma

relação de dependência, na qual a natureza apropriada anseia receber a

educação, como um tecido que espera ser tingido e assimilar a sua nova cor de

maneira indelével100.

Os efeitos da educação são percebidos na fundação da cidade platônica.

Esta que foi criada com o logos para ser a melhor possível não pode ser

entendida sem a presença das virtudes cardeais: sabedoria, coragem,

temperança e justiça. Ainda assim, mesmo que não tenha sido tão bem elucidada

a questão do objeto próprio dessa ciência que poucos possuem, que é a ideia de                                                                                                                          96 PLATÃO. República. 518b-e. 97 Dynamis (δυναµις) é o termo grego que se traduz mais corretamente como “potência”, ou seja, o princípio do movimento ou de mudança que se encontra em outra coisa, ou então na mesma coisa enquanto outro. Pode significar também “poder” ou “força”. REALE. Giovanni. História da filosofia grega e romana. Léxico da filosofia grega e romana. São Paulo: Paulus, 2014. v. IX. p. 80. 98 MOTTA, Guilherme Domingues da. A Educação como fundamento da unidade e da felicidade da polis na República, de Platão. 2010. 297 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. p. 94. 99 Ibidem. p. 107-108. 100 Ibidem. p. 108.  

28  

 

bem, já ficou esclarecido que a educação conduz a contemplação e consequente

posse do bem e do belo101.

Adentrando um pouco mais nesta temática do bem de do belo, Teixeira

afirma que a virtude dia respeito à aquilo que é bom e belo na vida, e constituem

dois aspectos de uma mesma realidade, dando lhe unidade. A suprema virtude do

homem como ser belo e bom forma o ideal daquilo que os gregos chamavam de

Kalokagathia102. E é justamente a Kalokagathia103 que vai gerar “o princípio

supremo de toda vontade e conduta humanas, o último motivo que age por uma

necessidade interior e que é ao mesmo tempo o fundo determinante de tudo o

que sucede a natureza”104.

Pagni entende que na República se expressa um novo elemento ao pensar

em virtude, que é o mundo interior, totalmente diferente do pensamento grego

inicial. Ele defende que a areté passa a possuir um valor espiritual. E daí se

desenvolve a ética como uma verdadeira expressão da natureza humana, que por

sua capacidade racional torna o ethos105 possível, caminhando pela via da

formação da alma nesse ethos. Este caminho levará a harmonia com a natureza

do universo, que consiste na eudaimonia. Sendo assim, o homem pode alcançar

a harmonia do ser pelo domínio completo de si mesmo, segundo a lei contida em

sua própria alma. Nesse contexto a educação sustentada na areté visa emancipar

a razão humana sob o elemento irascível e amenizar a luta pelo controle dos

cavalos na “parelha alada”, que por serem diferentes tendem cada um para um

lado, mas a educação na virtude estabiliza o império legal do espírito sobre os

instintos, pois o que realmente interessava era o autodomínio106.

                                                                                                                         101 Ibidem. p. 95. 102 TEIXEIRA, Evilázio. A educação do homem segundo Platão. São Paulo: Paulus, 1999. p. 34-35. 103 Kalokagathia consiste em “ser belo” ou “ser bom”, pois em Platão existe profunda harmonia entre o cosmo físico e o cosmo moral. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 745. 104 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 745. 105 Ethos (ἦθος) é o termo grego que se traduz como “bom costume”, “costume superior” ou “portador de caráter”. Indica comportamento de um homem e seu modo habitual de agir. REALE. Giovanni. História da filosofia grega e romana. Léxico da filosofia grega e romana. São Paulo: Paulus, 2014. v. IX. p. 40.  106 PAGNI, Pedro. A Filosofia da Educação Platônica: desejo de Sabedoria e a Paidéia Justa. Disponível em: <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/126/3/01d07t01.pdf>. Acesso em: 22 out 2014. p. 5-6;8.

29  

 

Silva et. al. corroboram com esse pensamento, pois afirmam que na

dimensão educacional, Platão se mostra muito preocupado com a qualificação

dos cidadãos, pois isso se faz um requisito para a cidade justa. Para que esta

existisse era necessário que fosse composta de homens virtuosos, ou seja,

homens que fossem capazes de dominar suas paixões pelo “domínio de si”. E

ainda formar adequadamente seus cidadãos para que fossem capazes de

argumentação e retórica, sendo assim habitantes ativos na sociedade e não

homens passivos, como os escravos, as mulheres e as crianças107.

Para Pereira, a educação e a virtude constituem o germe do Estado justo e o

cerne da formação do homem político. Para melhor esclarecer isso, a autora

propõe a imagem de uma família constituída de irmãos, filhos dos mesmos pais,

que seriam bons e justos, e outros maus e injustos. Esses irmãos poderiam dispor

de um juiz que trouxesse unidade a família e lhes foram oferecidos três tipos de

juízes diferentes: um que sugeriu destruir os irmãos maus e permitir que os bons

governassem; outro sugeriu que os bons governassem e os maus viveriam

submetidos voluntariamente ao governo dos bons; e um terceiro que sugeriu que

sugeriu manter todos os membros da família, mais que se promulgassem leis que

assegurassem permanentemente a amizade entre eles. Dessa forma concluiu-se

que o terceiro juiz seria o melhor de todos, pois a causa para legislar se fundou na

convivência harmoniosa e não na guerra. Fazendo perceber assim, que o primeiro

cuidado deve se dar para com a guerra e a harmonia interior, e apenas depois a

exterior. E assim, a primeira guerra a ser travada é pela harmonização interna

entre os elementos da alma, e assim essa será boa por disposição interior. E

finalmente, a harmonia e unidade interior no Estado se dão pelas leis, e na alma

se dão pela razão. E tanto no Estado quanto no homem deve existir uma parte

que governe, e assim quando quem deve governar o faz se chama virtude, e ao

exercício do governo se chama educação108.

                                                                                                                         107 SILVA, Sinicley da; MALINOSKI, Jocemar; RODRIGUES, Ricardo. O bem como finalidade da educação em Platão. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/067e4.pdf>. Acesso em: 22 out 2014. p. 2-3.  108 PEREIRA, Beatriz Quaglia. A educação segundo Platão: uma discussão sobre os processos de ensinar e aprender a virtude. In: Congresso Nacional de Educação, 6., 2006, Curitiba: EDUCERE, Anais... 2006. Disponível em: <http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2006/anaisEvento/do cs/CI-091-TC.pdf>. Acesso em: 22 out 2014. p. 960-961.

30  

 

Platão aponta a educação como a única forma de resolver os problemas da

justiça. Pois para se construir uma cidade justa a natureza humana precisa ser

ornada com a educação adequada. No entanto, é preciso cautela neste processo,

pois uma natureza melhor quando submetida a uma educação adversa a que lhe

compete pode gerar um resultado pior do que o de uma natureza medíocre. Bem

como as almas bem dotadas, que supridas com má educação tornar-se-ão

perversas. Portanto, percebe-se que a natureza desempenha um papel

importante no processo educativo, pois sobre essa constitui o arcabouço sobre o

qual se construirá, a partir da educação a cidade justa. Mas vale destacar que

uma natureza medíocre jamais fará algo de grande a alguém, seja a um indivíduo,

seja à cidade. Assim, somente a educação é capaz de desenvolver as qualidades

naturais do homem e garantir a justiça no indivíduo e na cidade109.

A ideia de Platão é construir uma cidade livre de conflitos e não ser apenas

um agrupamento de pessoas, mas tornar-se um todo organizado de forma

harmônica. Pois o maior bem da cidade é a sua unificação, na qual cada um

exerce seu papel com excelência110. E esta consiste na melhor forma de

desenvolver a justiça no indivíduo e na cidade, visto que a educação forma

homens virtuoso, esses desenvolvem suas atividades visando o bem comum da

cidade e brota em seu seio a justiça. Para que esta seja alcançada, Platão aposta

na educação, pois a partir dessa são incutidas as habilidades intelectuais aos

homens que o orientam a contemplação do bem. Tal educação tem por

fundamento a formação do caráter (ethos) muito mais do que formação

acadêmica, ou seja, visa primordialmente formar homens virtuosos, harmônicos e

equilibrados: justos111.

Pagni, concordando com o argumento anterior e complementando, afirma

que a educação é imprescindível para a formação do homem virtuoso que viverá

na cidade justa. Pois esta formação pressupõe o desenvolvimento das virtudes

entendidas como verdadeiras e dirigidas pelo sumo bem, que são alcançadas

pelo desejo, pela libertação das realidades sensíveis e do aporte na dimensão

inteligível, constituindo um domínio desta (faculdade superior) sobre aquela                                                                                                                          109 VICENTE, José João Neves Barbosa. O papel da educação na República de Platão. Kínesis, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 215-224, 2014. p. 219-221. 110 VICENTE, José João Neves Barbosa. O papel da educação na República de Platão. Kínesis, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 215-224, 2014. p. 223. 111 Ibidem. p. 224.

31  

 

(faculdade inferior). Em seu ideal, Platão almejava uma cidade que fosse capaz

de corrigir as distorções causadas pelos poetas e sofistas e reconduzir seus

cidadãos a retidão, e assim a razão poderia governar sobre as demais esperas da

alma caracterizando a cidade justa para qual os cidadãos deveriam ser formados

respeitando a sua própria natureza e segundo às leis racionais. Dessa forma, a

cidade justa adviria das potencialidades racionais dos homens, formadas pelo

processo educativo, regida pelas leis e pela ideia de Bem constituiriam o Estado

ideal e justo112.

Menescal entende que a formação do indivíduo não parece de forma alguma

afastada da justiça, pois somente pela educação apropriada os homens seriam

capazes de conduzir a sociedade até a felicidade. Ao que parece a educação foi o

caminho encontrado por Platão para promover a “homogeneização” da cidade.

Quando a educação é dada de maneira plena e consistente propicia uma

sociedade consciente de suas leis e organizada de forma a manter as suas regras

sociais, pois somente a partir da educação se pode manter a ordem e a seriedade

da sociedade e assim, tão somente se alcançará a excelência113.

Na República vê-se a intercessão feita por Platão entre educação e justiça e

o papel dos governantes na manutenção desta:

Quando se preserva a boa educação e boa criação, essas produzem naturezas boas, e naturezas saudáveis e úteis, que são, por sua vez bem-educadas, se desenvolvem ainda melhor do que suas predecessoras, tanto no que tange a sua prole quanto em outros aspectos, tal como ocorre entre outros animais [...] os supervisores [de nosso estado] tem de se prender a educação e zelar para que essa não seja corrompida sem que eles o percebam, protegendo-a contra tudo. Acima de tudo, devem zelar o tão cuidadosamente quanto possam para que nenhuma inovação que contrarie a ordem estabelecida seja introduzida na música, poesia e ginástica114.

Finalizando Menescal completa dizendo que não se pode nesse processo

separar a educação e a ética, pois para o bom funcionamento da cidade o homem

                                                                                                                         112 PAGNI, Pedro. A Filosofia da Educação Platônica: desejo de Sabedoria e a Paidéia Justa. Disponível em: <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/126/3/01d07t01.pdf>. Acesso em: 22 out 2014. p. 12-13.  113 MENESCAL, Ana Alice Miranda. A ideia de justiça e a formação da cidade ideal república de Platão. 2009. 103 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de filosofia, Curso de mestrado acadêmico em filosofia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2009. p. 69. 114 PLATÃO. República. 524a-b.

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deve reconhecer-se como cidadão e ter plena convicção de seus direitos e

deveres. Portanto, existem dois fatores primordiais para a formação dos cidadãos,

na cidade ideal de Platão: a educação, que prepara o homem para a justiça; e a

ética, pois além de educado, o homem precisa da plena convicção de que o

caminho que seguirá é o correto, e que não existe alternativa. Contudo, Platão

quer propor apenas um itinerário ético, pois qualquer descuido de conduto levaria

o homem a queda e perdição junto aos sofistas. Por isso, a República tenta

estabelecer um só, e único caminho para evitar que o homem se perca115.

                                                                                                                         115 MENESCAL, Ana Alice Miranda. Op. cit. p. 73.