humor e populismo: a produção de josé nelo lorenzon

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Andréa de Araujo Nogueira Doutoranda da Escola de Comunicação e Artes Universidade de São Paulo Orientação: prof. Dr. Antonio Luiz Cagnin Humor e populismo: a produção de José Nelo Lorenzon Fico me desafiando o tempo todo em como transformar o assunto do dia ou da semana em algo mais elástico no tempo. Se no caso de uma invasão de terra, por exemplo, eu usar o conceito de reforma agrária no lugar de desenhar a cara do diretor do Incra, ficará mais fácil para um historiador entender o que aquilo quer dizer. Daqui a 15 anos a gente não vai lembrar a cara do ministro da Agricultura. Angeli (2004) Este texto apresenta uma síntese do estudo sobre a compreensão do significado da linguagem da charge 1 na imprensa, inserida no processo histórico brasileiro do movimento político populista. 1. A caricatura 1 Optamos pela denominação francesa charge, carga, reforço da idéia e do traço, que melhor enfatiza o tratamento à sátira visual de assuntos políticos contemporâneos. Lembramos, contudo, que a caricatura envolve o termo em seu sentido mais amplo e não apenas nos aspectos fisionômicos.

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Page 1: Humor e populismo: a produção de José Nelo Lorenzon

Andréa de Araujo NogueiraDoutoranda da Escola de Comunicação e ArtesUniversidade de São PauloOrientação: prof. Dr. Antonio Luiz Cagnin

Humor e populismo: a produção de José Nelo Lorenzon

Fico me desafiando o tempo todo em como transformar o assunto do dia ou da semana

em algo mais elástico no tempo. Se no caso de uma invasão de terra, por exemplo,

eu usar o conceito de reforma agrária no lugar de desenhar a cara do diretor do Incra, ficará mais fácil para um historiador entender o que aquilo quer dizer.

Daqui a 15 anos a gente não vai lembrar a cara do ministro da Agricultura. Angeli (2004)

Este texto apresenta uma síntese do estudo sobre a compreensão do significado da

linguagem da charge1 na imprensa, inserida no processo histórico brasileiro do movimento

político populista.

1. A caricatura

Já nos séculos XVIII e XIX os esquetes teatrais, curtos e satíricos diálogos realizados como

intervalo para as grandes trocas cênicas, auxiliavam a composição das operetas cômicas e

do teatro de revista. Os temas encenados revezavam-se entre a crítica aos costumes e a

sátira política, por meio de convenções cenográficas e da dramaturgia específicas do local a

ser encenado, como a figura-tipo do caipira ingênuo, adaptado às revistas nacionais.

1 Optamos pela denominação francesa charge, carga, reforço da idéia e do traço, que melhor enfatiza o tratamento à sátira visual de assuntos políticos contemporâneos. Lembramos, contudo, que a caricatura envolve o termo em seu sentido mais amplo e não apenas nos aspectos fisionômicos.

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Partindo dos personagens-tipo consagrados no gênero teatral, a caricatura na imprensa

abandonou o ornamento dramático, afinando-se com a atualidade. Incorpora os elementos

expressivos dos esquetes, considerados eficazes ao público, como a economia de traços e

movimentos, e, sobretudo a fruição do prazer, característica essencial das formações

psíquicas carregadas de comicidade, o que tornava mais eficaz a transmissão de conteúdos,

estabelecendo-se dentro de duas concepções sócio-culturais próprias da linguagem

jornalística. A primeira relacionada ao seu avanço tecnológico, iniciado com a litogravura,

desenvolvida pelo autor teatral Alois Senefelder, por volta de 1796, quando procurava uma

forma mais ágil de imprimir seus textos e partituras.2 A segunda concepção provém do

interesse da popularização do jornal enquanto veículo de comunicação de massa, como

menciona Marques de Melo, (MELO, 1994, p. 183) pois a caricatura, formada na inter-

relação do texto (legenda) e na força da imagem, com seu potencial de sedução, tornou-se

um instrumento eficaz de persuasão do público leitor.

No Brasil, o termo sinônimo francês de caricatura acabou adquirindo na imprensa o

significado diretamente relacionado à sátira gráfica a um determinado acontecimento

2 Essa transformação se afirma com a utilização dos chichês, as placas de metal geralmente de zinco, gravadas fotomecanicamente em relevo por meio da estereotipia, galvanotipia ou fotogravura, para a impressão de imagens e textos, aliada às rotativas, fundamental para a incorporação definitiva dos recursos visuais na chamada grande imprensa. Na contemporaneidade continuamos a poder perceber o processo de adaptação da charge aos diferentes suportes da mídia, como a Internet (no trabalho de Mauricio Ricardo, charges.com) e na televisão, com os trabalhos de Chico Caruso para o Jornal Nacional.

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político, enquanto manifestação comunicativa condensadora. Assim toda a charge em sua

essência critica um personagem, fato ou acontecimento político.

A produção de charges oferece uma fonte histórica fundamental ao debate político, por

desmistificar o poder e incentivar o envolvimento de pessoas comuns nos assuntos do

Estado (BURKE, 2004, p. 98) referência que pode ser aplicada quando consideramos como

objeto de estudo a produção de José Nelo Lorenzon (1909-1963). Aliado aos aspectos

visuais e lingüísticos próprios da caricatura, como a síntese, a ironia e a paródia, na gênese

de seu trabalho, Nelo preservou um caráter essencialmente provocativo na fórmula da

derrisão ao refletir sobre as arbitrariedades e contradições políticas.

A despretensão do trabalho de Nelo provém da clareza do desenho, da linearidade do traço,

ao mesmo tempo em que revela o elaborado movimento de captar os elementos ambíguos

da retórica política, aliás, muito bem supridos por nossos representantes, possuindo sua

força na capacidade de deslocá-los em símbolos,3 a partir da associação do personagem

instaurada na caricatura, como num cartum, permitindo segundo Gombrich:

O encontro da estampa simbólica com a nova arte da caricatura oferecia vantagens ao

cartunista. A redução da fisionomia a uma fórmula conveniente tornou possível manter

3A adoção de símbolos era recurso largamente utilizado pelos políticos e conseqüentemente pelo chargista para identificá-los.

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determinados políticos constantemente diante dos olhos do público em todos os tipos de

papéis simbólicos.4

Uma relação que se instaura na crítica, observação e expectativa, produzidas no cenário de

redemocratização nacional (1945 a 1964) em meio aos paradoxos políticos, após o período

do Estado Novo.

2. A Marmita

Criado por José Nelo Lorenzon para o Jornal de S. Paulo 5, Zé Marmiteiro (figura 1) pela

primeira vez em abril de 1946, passando em 1948 a ser publicado pela empresa Folha da

Manhã, dirigida por Nabantino Ramos, permanecendo até 1960 no jornal. A origem do

nome do personagem liga-se a uma polêmica política articulada por Hugo Borghi.

LORENZON, José Nelo. Zé Marmiteiro e Chuvisco. Postal.6 Fig. 1

4 GOMBRICH, (1999, p.135). No capítulo “O arsenal do cartunista,”o historiador cultural discorre sobre as “armas” que os cartunistas desenvolveram com o poder do contraste retórico, a utilização de metáforas, os recursos de imagens no bestiário político, além da condensação e comparação. 5O Jornal de S. Paulo, coordenado por Guilherme de Almeida e Hermínio Sacchetta surgiu de uma dissidência dos jornalistas da Folha de S. Paulo em 1945 (cf. texto GT1- As Folhas de Nabantino Ramos de 1945 a 1962).6 Acervo Família Lorenzon.

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Nas eleições de dezembro de 45, Hugo Borghi, que havia participado do movimento

queremista, favorável a manutenção de Getulio no poder, em razão a uma série de

interesses econômicos se empenhou na campanha do general Eurico Gaspar Dutra (PSD).

Borgui aproveitando-se de um discurso realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro do

candidato Eduardo Gomes (UDN), que declarara não precisar dos votos da “malta de

desocupados que freqüentavam os comícios de Getúlio Vargas”, (BELOCH, I. e ABREU,

A . A , 1984, p. 416) inverte o pronunciamento, destacando que o termo “malta” designava

também grupos de operários que percorrem as linhas férreas levando suas marmitas - os

marmiteiros - ou seja, grande parte da população de baixa-renda. Divulgou então o

sinônimo em suas rádios no Rio de Janeiro e em São Paulo, conseguindo provocar, em 48

horas, a indignação de todo o país contra Eduardo Gomes.

A figura do marmiteiro, associada aos problemas da precária condição alimentar e

assistencial ao trabalhador, torna-se assim um elemento de resistência política.

Apesar da adoção do nome Zé Marmiteiro identificado a político Hugo Borgui, as charges,

diferencialmente, apresentavam o personagem de Nelo Lorenzon condensando a imagem

do trabalhador que atua na indústria, destituído ainda dos apelos de reivindicação sindical

empreendidos pelo movimento operário, como atuariam posteriormente o Zé Malho e o

João Ferrador. Assemelha-se a um bonachão, com formas arredondadas e fisionomia

simpática e irônica, mediando as relações entre Estado, sociedade e políticos, seguindo em

alguns casos a linha editorial, contrária ao populismo. Vestia-se com roupas de operário: o

macacão remendado; uma chave no bolso; a marmita em punho, motivo de seu sobrenome,

sempre acompanhado por seu cachorro, o Chuvisco.

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Detendo-nos sobre a compreensão da articulação de Zé Marmiteiro e a ideologia populista,

podemos perceber que a presença do personagem fazia parte da estratégia do jornal num

momento histórico de formação de uma nova demanda social, que começava a se destacar

no mercado consumidor, consciente de sua representatividade política.

Nelo Lorenzon, catedrático de Língua Portuguesa em colégios estaduais, formado pela

Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco, empregava com facilidade a retórica da

ironia na articulação entre a legenda e a imagem, mas de maneira menos contundente do

que a utilizada pelo personagem do humor gráfico mais conhecido desse período - O Amigo

da Onça, criado em 1943 por Péricles Maranhão - possibilitando a percepção das opções

lingüísticas adotadas na charge, ao articular a diferença entre a ironia e a mentira, tratada

por Beth Brait (1996, p.50), residindo no fato do enunciatário reconhecer e participar

ativamente de sua “não-sinceridade” ou inversão semântica.

Dessa forma, os elementos, que foram sempre compreendidos no processo da

homogeneização promovida pela indústria cultural, eram subvertidos na operação de Nelo

que possuía a intenção de esclarecer, sublinhando as contradições e conflitos no momento

de incorporação das camadas populares na vida política, pelo menos enquanto legitimadora

de seus representantes.

O conceito de populismo, atualmente revisto por nossa historiografia como uma sinalização

dos elementos projetados pelo comportamento político - em especial nas campanhas

eleitorais - que foram ao longo dos anos se cristalizando nos meios acadêmicos.

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Relativizando-o em suas características mais recorrentes, o populismo é pensado em nosso

trabalho nas articulações políticas que se desprendem da obra de Nelo, em suas referências

sobre a atuação dos políticos e nas sinalizações evidenciadas pelo artista sobre as novas

formas de relações sociais instauradas, somente possíveis em razão do aumento da

participação política das massas urbanas, efetivando sua luta pelos direitos à moradia, à

saúde e à educação e no que elas poderiam ser decisivas ao eleger, por exemplo, Getúlio

Vargas em 1950 ou Jânio Quadros para Prefeito de São Paulo em 1953.

Com o domínio da linguagem e da intertextualidade7 dos temas, Nelo Lorenzon, como

homem de esquerda, simpático às posições do Partido Comunista, dribla o discurso do

jornal Folhas, voltado ao “desenvolvimentismo como fator de segurança” (MOTA e

CAPELATO, 1981, p. 179), recorrendo as características polifônicas próprias da charge.

Utiliza a linguagem jogando com as palavras, transformando o “falar errado” em argúcia,

parodiando a retórica política. Ao tratar a percepção dos personagens populares, Nelo na

verdade procura compreender como as classes populares decodificam os produtos

simbólicos da cultura dominante.

Nelo sem a preocupação em revolucionar aspectos formais na caricatura, produz um humor

intrinsecamente relacionado ao riso de zombaria. O “rir de”, está presente em todos os

aspectos da vida física, moral e intelectual do homem, a ironia é isso mesmo: é um riso que

7Adotamos o sentido, com as devidas adaptações da charge enquanto texto não verbal, embora, sincronicamente presente na legenda. Em sua essência é o resultado da intenção do artista em compor a partir das referências externas presente nas fotos, artigos, editoriais e experiências do cotidiano o universo próprio da charge. Cf. ROMUALDO, 2000, p. 18.

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se leva a sério, é um riso que zomba, mas não de si, é um riso, e a expressão é bem

reveladora, que goza da cara dos outros (PROPP, p. 42).

O autor Vladimir Propp, consagrado por seus estudos sobre as tradições folclóricas russas,

escolheu tratar as especificidades do cômico, predispondo uma relação estreita entre o

estágio de desenvolvimento da sociedade e as formas de cultura. O riso para Propp

acontece na descoberta dos defeitos exteriores, quando é percebido um sinal que contraria

as regras morais e físicas, presentes nas desproporções, destruindo a falsa autoridade e a

falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio.

No cenário de transição política pós Estado Novo surgiram novas figuras controversas,

como Jânio Quadros era um prato perfeito para as charges de Nelo Lorenzon. Suas

recorrentes vitórias, segundo Weffort (1980, p.34), representaram a reação da população à

atuação dos políticos incapazes de atender às suas expectativas, aliada ao seu estilo pessoal

como líder político:

LORENZON, José Nelo. Folha da Noite. São Paulo, 8 abr. 1954, p. 1. Fig. 2

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As freqüentes atitudes de Jânio (figura 2) que assumiu diversas facetas, freqüentemente

contraditórias, assumidamente caricatas, desprezavam uma linha ideológica. A

interpretação do estilo singular da figura pública de Jânio Quadros é captada de maneira

estratégica pelo traço de Nelo, em seu disfarce que encobre a incongruência entre o teor de

seus discursos. Jânio, após ser eleito como prefeito de São Paulo, candidata-se ao cargo de

governador do Estado. Para aproximar-se da população recorre novamente a estratégia de

vestir-se de maneira simples, aparecendo em comícios com sua figura desalinhada, como

farsa moralizadora aos políticos corruptos. O “pobre de espírito” que Zé Marmiteiro

ironiza, rompendo a pretensa seriedade da máscara de Jânio.

A interpretação do estilo singular da figura pública de Jânio Quadros é captada pelo traço

de Nelo, aliado ao desenvolvimento técnico da grande imprensa, especialmente da

utilização do recurso cromático que contribuiu para ressaltar os elementos contraditórios do

discurso político, destacando a charge em meio às manchetes do jornal. Esta singularidade

encontra na expressão artística mais popular, a caricatura uma maneira de se propagar com

enorme poder de comunicação.

No movimento da mudança, a cultura popular, sob as novas condições de existência, foi

adaptada lentamente às novas demandas e relações, passando a mediar, isto é, encobrir as

diferenças e reconciliar os gostos (MARTÌN-BARBERO, 2003, p.181). A crítica produzida

pelos trabalhos de Nelo Lorenzon revelava seu desafio diário, consciente de sua influência

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enquanto formador de centenas de alunos, em seu trato na escola e na opinião de seus

leitores. Ao ter que atender as expectativas internas do jornal, o artista compreendia em seu

trabalho uma dimensão social, incorporando os elementos irreverentes das ruas, a

coloquialidade dos relacionamentos e da linguagem, permeando assim também os anseios

gerados em meio ao desenvolvimento urbano.

Bibliografia

BELOCH, I. e ABREU, A . A . Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro: 1930-1983. Rio de Janeiro: FGV/ CDDOC, 1984.

BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: UNICAMP, 1996.

BURKE, P., Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera M. X. dos Santos. Bauru, SP: EDUSC, 2004

GOMBRICH, E.H. Meditações sobre um cavalinho de pau. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2ed. RJ: Ed. UFRJ, 2003.

MELO, J. M. de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994.

MOTA, C. Guilherme e CAPELATO, M. Helena. História da Folha de S.Paulo (1921-1981). São Paulo: IMPRES, 1981

PROPP, V. Comicidade e riso. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero de Andrade. São Paulo: Ática, 1992

ROMUALDO, E.. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia. Maringá: Eduem, 2000.