gota d'Água versão leitura(resumido)

32
Gota d’água A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia Pra ver Maria A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia A porta dela não tem tramela A janela é sem gelosia Nem desconfia Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família A armadilha A mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filha Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha Que maravilha Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua A gente sua A roupa suja da cuja se lava no meio da rua Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua E continua Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha O palco vazio com seus vários sets à vista do público; música de orquestra; no set das vizinhas, quatro mulheres começam a estender peças de roupa lavada, 1

Upload: anderson-sali

Post on 01-Oct-2015

34 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Versão resumida de Gota d'água.

TRANSCRIPT

Gota dgua

Gota dgua

A gente faz hora, faz fila na vila do meio diaPra ver MariaA gente almoa e s se coa e se roa e s se viciaA porta dela no tem tramelaA janela sem gelosiaNem desconfiaAi, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a famliaA armadilhaA mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filhaEla vive parada no sucesso do rdio de pilhaQue maravilhaAi, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor

V passar ela, como dana, balana, avana e recuaA gente suaA roupa suja da cuja se lava no meio da ruaDespudorada, dada, danada agrada andar seminuaE continuaAi, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que amava La que amava PauloQue amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava DoraQue amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amavaCarlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amavaa filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha

O palco vazio com seus vrios sets vista do pblico; msica de orquestra; no set das vizinhas, quatro mulheres comeam a estender peas de roupa lavada, lenis, camisas, camisolas, etc.; tempo; Corina chega apressada, sendo recebida com ansiedade pelas vizinhas.

CORINA No certo...ZARA Como que foi?...ESTELA Foi l?CORINA No certo...MARIA Ela no melhorou, no?CORINA de cortar corao...NEN Mas e ento?CORINA No sei, no d, certo que no estE olhe bem que aquilo muito mulherZARA Ela bem mais mulher que muito machoESTELA Joana fogo...MARIA fogo...NEN Joana o diacho

Casa de Joana

JASO Joana... (Tempo.)JOANA Que que veio fazer aqui, Jaso?(Tempo.)JASO Como vai?...JOANA Fala baixo que os meninos todormindo...Vizinhas

CORINA Pois ela est como o diabo querComadre Joana j saiu ilesaDe muito inferno, muita tempestadePrecisa mais que uma calamidadepra derrubar aquela fortalezaMas desta vez... acho que no agenta,

JASO E voc, como que vai?...JOANA Ah, eu voubem, vou muito bem, Jaso!...JASO Voc remoouum bocado... emagreceu... ficou mais bonita...S tem uma coisa que t meio esquisita...(Vai a ela e solta seus cabelos, jeitosamente.)Pronto... assim... O que foi que lhe deu, hein, mulher?Parece uma menina...JOANA O que que voc quer,Jaso?...JASO Dizem por a que voc sofreutanto com a nossa separao... Mas euno sei no... Deve ser mentira ou fingimentoOu ento mulher se d bem com sofrimento...

Vizinhas

ESTELA Culpa daquele muquiranaZARA Tudo por causa dum JasoCORINA E alm da pobre da Joanatem as crianas...MARIA Onde esto?CORINA Minha filha, s vendoTem resto de comidanas paredes fedendoa bosta, tem bebidacom talco, vaselina,barata, escova, pentesem dente. E ali, menina,brincando calmamentecoos cacos dos espelhos,esto os dois fedelhos...

JOANA Voc veio s debochar, Jaso, ou temcoisa sria pra dizer...JASO C t muito bem,no deboche...JOANA Sei, que mais?...JASO Joana, me escutavoc assim bonita, ainda moa, enxuta,pode encontrar uma pessoa... Quem sabe, talvez at voltarpro seu marido, ele no cansa de esperar,t sempre ali...JOANA Sei... E o que mais?...JASO Como, o que mais?Responde ao que eu tou falando...JOANA Me deixa em pazJaso, voc t com trinta anos, pau duro,samba nas paradas de sucesso, o futuromontado no dinheiro de Creonte, enfim,Jaso, o que que voc inda quer de mim?

Vizinhas

ESTELA Conta pra CorinaNEN Deixa eu guardar a boca pro feijoZARA Fala, Nen...CORINA Que foi?...NEN nada noMARIA Conta, Nen...CORINA O que que foi, menina?NEN Foi com Jaso... mas foi num outro diaESTELA Ontem. Jaso na maior alegriaNEN O caso que...CORINA Se vem com mais besteiradaquele homem, nem quero escutarJ chega de nhenhenhm, blablabl,disse-me-disse, diz-que-diz, zoeira.Chega, Nen, pro bem de Joana, esqueaESTELA Ento deixa, Nen...NEN Quem? Eu? Jaso?Se vi Jaso? Nem conheo a figura

Boteco

CACETO Egeu! Casco escuro, bem geladaGrande, loura e solteira: sem empadaCACETO Xul! Egeu, outro copo...XUL Oi, Caceto, j?CACETO claro, tem que comemorar...XUL Que que h?CACETO Voc no l jornal? Jaso virou notciaXUL Boa, Egeu...EGEU Boa, amigo...XUL Como que ? Vai tudo bem?...EGEU Tudo na mesma...XUL E eu?EGEU Voc? Que que h? Brigou coa mulher?XUL Antes fosse. o dinheiro, mestre Egeu No deu de novo...EGEU Grande novidadeXUL Falhei de novo a prestao da casa...Mas, pela minha contabilidade,pagando ou no, a gente sempre atrasaEGEU Todo mundo est igual a vocXUL No d. todo ms a mesma lutaAlgum tem que falar com seu CreonteA gente vive nessa divisoSe subtrai, se multiplica, soma,no fim, ou come ou paga a prestaoO que posso fazer, mestre Egeu?...

BOCA Corina, t sabendo dos boatos?CORINA Que boatos?...BOCA Da festa do Jaso...Dos convidados e dos aparatos...CORINA Nunca vi nome melhor num cristodo que o que te deram, Boca PequenaNem boca, isso a um ferimentode onde sai a lngua que uma gangrenacuspindo maldade e constrangimentoVoc pare de carregar boatopra l e pra c em considerao dor de Joana...BOCA O que que eu fiz? O fato que vai haver muita festa. Eu notenho culpa...CORINA E vocs, no so amigasde Joana? Vo pra casa, tenham d...Deixa o Boca Pequena coas intrigasdele a...

JASO Joana, no nada disso...JOANA Onde j se viu...Me fode coa vida e inda vem tripudiar?JASO Joana...JOANA Vai dar conselho puta que o pariuJASO No d, no d... Eu tou querendo conversar,mas assim... no d no...JOANA Escuta aqui, meninoJASO Escuta, mulher, no tou a fim de brigarJOANA Veio pra qu, ento?...JASO Me ouve...JOANA Papo cretinono quero ouvir mais no...JASO Oua, posso falar?JOANA Jaso, voc bem folgado. Chega aqui...Joana, minha querida, sou eu, o ladroda tua tranqilidade, sou eu, fugilevando todo o sangue que o teu coraotransferiu pro meu nome...

CORINA Pensando bem, Nen, me conta...NEN O qu?CORINA Melhor eu saber, que pra amaciaressa pedrada antes dela pegara comadre de mau jeito...NEN Voc pediu, l vai: Jaso coa outra, maiso pai, ontem, l na quadra da escolabeberam OldEight com Coca-Cola,cantaram, pularam e coisas taisFalaram do casamento, os boaisE convidaram toda a curriolados Unidos pro festao.

CACETO Ih, Egeu, olha s o Jaso... (L:)Jaso de Oliveira, novo valorda emepeb, promissor autordo xito Gota dgua, vai casarcoa jovem Alma Vasconcelos, filhado grande comerciante benfeitorCreonte Vasconcelos...

ZARA ...em homem nunca confieiCORINA No sei como vai ser...MARIA Depois ExuCaveira pega esse traste...CORINA Eu no seiESTELA Comigo eu dava-lhe um tiro no cuNEN Eu nunca fui de meter o bedelho,mas mulher como Joana no temque juntar com homem mais novo. O velhomarido dela, manso, homem de bem,com salrio fixo e um SimcaChamborddava a ela do bom e do melhore ela foi largar o velho. Por qu?CORINA No fale assim da comadre, NenEla fez o que o corao ditou.Se deu dez anos de vidae o homem, satisfeito, deixa tudocomo quem deixa um prato sem comida.Agora isso o que voc vem dizer?NEN Eu no falo por falta de amizade a lei da natureza...

JASO J posso falar?JOANA No, deixa eu terminar... E agora que eu tou cheiode vida, tou com samba em primeiro lugar,Jaso de Oliveira, conhecido no meioartstico e social, enquanto eu tou eufrico,voc, infelizmente, t coa alma entrevada,bunda tombada pelo patrimnio histrico,museu, runa, arquivo, carne congeladaMas fica a calma, boba, feliz e soltaos cabelos que algum pode inda te querer,que talvez um coitado te aceite de voltaAqui, , Jaso, me esquece...JASO Quero dizer...JOANA Comigo, no...AMORIM Xul, ningum mais paga. Nem So Cosme e DamioPor que que eu vou pagar sem ter? No pago noEGEU fogo...

ESTELA destino...ZARA A pessoa j nasce avisada!Vai sofrer. Olha que vai sofrer. E o que faz?A pessoa vai e sofre...MARIA carta marcadaNEN No h beleza nem esperteza capazde resistir natureza...CORINA Isso que noNo, no e no. Repare a cor dos meus cabelosA boca amarga com seis dentes amarelosA bunda que caiu e a falta de tesoO peito que bichou e a pomba que um bagaoAs varizes da perna e as pelancas do braoFoi s a natureza, foi fatalidade?Pois sim, Nen. Que idade hoje voc me d?Sessenta? Errou. Quarenta e trs por completarVoc, Nen, quanto que tem?...

JASO Joana, deixa eu falar agora?JOANA Voc faz o seguinte.JASO Agora acho que jposso falar...JOANA Voc vai e pega a senhorasua me e solta os cabelos dela. Vlhe fazer a proposta que me fez...JASO T bem,t bem, chegou a minha vez (Tempo.) Joana, vem aqui...Escuta aqui, Joana... Vem aqui, Joana...Vem... (Ela no responde; ele vai at ela etoca no seu rosto.)

AMORIM Mas ser que eu vou ter que perderos dois anos que j paguei de prestao?O corno velho do Creonte vai saberque no pago e me bota na rua...EGEU Entome escuta...AMORIM Mestre Egeu, voc pode dizero que pensa, j que dono de teto e choDono do seu nariz, no tem nada a perderTem a oficina e tudo o que est dentro delaEnto fala correto, justo, d conselhosMas eu devo tijolo, cal, porta e janelaAcho que no sou dono nem dos meus pentelhosEGEU Voc tem razo... (Um tempo.)AMORIM Mestre Egeu, por caridademe responda...Primeiro plano para botequim.XUL Se voc quer que eu lhe respondao que que eu penso, coa maior honestidade,ele est certo, tem que aproveitar a onda bom menino, sabe o que necessidade,faz bem em se casar coa filha do CreonteE assim que estiver sentado bem vontade direita de Deus Pai, talvez nos desconteum pouco de dvida e da mensalidade

JASO - Escuta mulher, sabe que eu gosto de ti?Gosto muito, voc sempre meu bem-querer,sempre. E nunca mais eu vou poder esquecervoc, esquecer o que voc fez por mim...Penso sempre em ti e nos meninos... Por issovim aqui... e ento...JOANA C lembra de mim, JasoAinda lembra?...JASO O que que eu falei?...JOANA Lembra noC gosta da filha do Creonte, Jaso?JASO No quero falar nisso agora...JOANA Gosta noT s perturbado, n? Responde pra mim...JASO Tava falando, deixa eu continuar, sim?JOANA Responde duma vez, homem, toma coragemVoc gosta mesmo da moa?...JASO (Gritando:) Mulher, pradeixa eu falar... (Tempo.)

CORINA Pois eu digo a vocs...

CACETO Voc acha? Que nada

CORINA Eu tenho medo. Estou lembrando de suas mos

CACETO Hein, Xul?...

CORINA Aquelas mos... cada garra afiapro bote.

CACETO E o dote? Reparte aqui coos irmoAqui, ...

CORINA Sem falar no olhar que j faleiNEN Mas voc acha que ela vai fazer besteira?

CACETO Tu acha que ele vai nos ajudar?...

CORINA No sei

JASO: Voc sabe... eu no tenho carapra chutar vocs pra crner... E sacanagemque eu no vou fazer. Mas tambm veja o meu ladoCedo ou tarde a gente ia ter que se separarQuando eu te conheci, tava pra completarvinte anos, no foi? Eu nem tinha completadoVoc tinha trinta e quatro mas era bemConservada.S que dez anos se passaram desde entoe a diferena, que mal nem se via, a bostado tempo s fez aumentar. Vou completartrinta e voc t com quarenta e quatro, agora claro que, daqui pra frente, cada horado dia s vai servir pra nos separarE quando eu estiver apenas com quarentae cinco anos, na fora do homem, segurode mim, vendendo sade, moo e maduro,voc vai ter seus cinqenta e nove, sessenta,exausta, do reumatismo, da menopausa,da vida. Ou quer que eu tambm fique velho, s por causada tua velhice?... Acho melhor procuraruma pessoa na mesma faixa de idade...Quer dizer...JOANA Jaso, pega a tua mocidadee enfia...JASO Joana, voc tem que se acalmarJOANA Acalmar, claro... JASO Joana, briga de casal sempre aconteceuNo deu, pacincia... Cada qual vai pro seu canto,chora um bocadinho e depois de mais um tantocomea a sua vida de novo...JOANA Que vidaeu tenho pra comear?...JASO Joana, eu no conheoningum com mais vida do que voc...JOANA Escolhelogo duma vez...JASO Escolhe o qu?...JOANA Jaso, olhepra mim e escolha se eu remoo ou se envelheoPorque pelas contas que voc faz, tem horaque eu j tou caquenta, moribunda, dementee depois tem hora que eu viro adolescenteComo que fica, hein?...JASO Olha, mulher...JOANA E agora?JASO Olha, mulher, o que eu tou querendo dizer...JOANA Eu sei...JASO (Gritando:)Deixa eu falar, p... que, se quisesse,voc inda tinha muito pra dar...JOANA Se tivesseo que dar, Jaso, voc no ia perdera ocasio de me sugar at o bagaoJASO Ai, meu saco, cacete, p... Presta atenoao que diz! No me venha com provocaoJOANA Eu sei muito bem o que voc , e faoquesto de dizer e repetir...JASO , mulher,no fala assim, no admito, porra...JOANA O qu?JASO Respeita a minha condio...

XUL Tambm no crime, Jaso mudar de classe mudar de time... Ele dono do seu passeGaranto que voc, Caceto, se passassepro lado de l, lembrava aqui do pessoalCACETO Aqui, ! Fodido, quando d uma cagada,Progride.

EGEU Pois eu vou te dizer: se s voc no pagavoc um marginal, definitivamenteMas imagine s se, um dia, de repenteningum pagar a casa, o apartamento, a vagaComo que fica a coisa? Fica diferenteFica provado que demais a prestaoEnto o seu Creonte no tem soluoOu fica quieto ou manda embora toda a genteCachorro, papagaio, velho, viva, filha...Creonte vai dizer que tudo vagabundo?E vai escorraar, sozinho, todo mundo?Pra isso precisava ter outra virilhaNo ?...

AMORIM Tem boa lgica...EGEU Falei?...AMORIM Sei no

ESTELA Ento pode deixar que eu lavo a roupa delaZARA Tambm pode deixar que eu fao a arrumaoNEN Eu frito um ovo, inda tenho arroz na panelaMARIA Falo com Xulprele falar com Jaso?CORINA No, isso eu falo com Egeu. Pode deixarFoi ele quem comprou o leite dos pequenosESTELA Ento vai l, diz que ns vamos ajudarAssim quem sabe se ela desespera menosCORINA Eu vou...

EGEU Oi, Boca...BOCA Mestre Egeu...EGEU Boca, vem cBOCA Faz uns dezoito anos que eu passo na suaporta e mestre Egeu est sempre trabalhandoEGEU Eu no nasci feito voc, coo cu pra luaBOCA (Ri.) Ento vamos tomar um trago, estou pagandoEGEU No, hoje no d...BOCA Que isso, vamos...EGEU D noBOCA D sim. Vamos beber sorte de JasoAquele sim, nasceu coo cu pra lua. Estpra se casar coa filha do rei. Vamos lEGEU No d...BOCA T bem... (Faz meno de sair.)EGEU Boca Pequena, eu te chameiporque o pessoal passou aqui... bem... eu no sei...Como que t a grana este ms?...BOCA Tou levandoEGEU Sabe o que ? Todo mundo aqui ta reclamando...BOCA Mas eu j dei o dinheiro da AssociaoEGEU Isso eu sei... Ningum tem grana pra prestaoBOCA , tem que se virar...EGEU Pois , Boca Pequena J pagou a casa esta vez?...BOCA J separeiporque sagrado. Como santo em procissoNo precisa pedir pra fazer o que seique meu dever...EGEU Pelo contrrio: pague noBOCA Que que isso, mestre, eu sou madeira de leiEGEU Pois oua, Boca, no pague nem um tostoSe ningum paga, que no tem de onde tirar

Boca Pequena fica um tempo coando a cabea; depois de hesitarum pouco, aperta a mo de Egeu e parte para o set do botequim;mestre Egeu retoma seu trabalho, consertando o rdio; primeiroplano para o set das vizinhas, onde Corina est chegando.

CORINA No certo... no pode...ESTELA Que que deu?CORINA Ela nem quer ajuda... ensandeceuZARA Qu?...MARIA Pirou...NEN Como?...

JOANA Pois bem, vocvai escutar as contas que eu vou lhe fazer:te conheci moleque, frouxo, perna bamba,barba rala, cala larga, bolso sem fundoNo sabia nada de mulher nem de sambae tinha um puto dum medo de olhar pro mundoAs marcas do homem, uma a uma, Jaso,tu tirou todas de mim. Te dei cada sinal do teu temperamentoTe dei matria-prima para o teu tutanoE mesmo essa ambio que, neste momento,se volta contra mim, eu te dei, por enganoFui eu, Jaso, voc no se encontrou na ruaVoc andava tonto quando eu te encontreiFabriquei energia que no era tuapra iluminar uma estrada que eu te aponteiE foi assim, enfim, que eu vi nascer do nadauma alma ansiosa, faminta, buliosa,uma alma de homem. Assim que bateu o primeiro p-de-vento,l se foi meu homem-orgulho, minha obracompleta, l se foi pro acervo de Creonte...Certo, o que eu no tenho, Creonte tem de sobraPrestgio, posio... Teu samba vai tocarem tudo quanto programa. Em troca pela gentilezavais engolir a filha, aquela mosca morta,como engoliu meus dez anos. Esse o teu preo,dez anos. At que aparea uma outra portaque te leve direto pro inferno. Conheoa vida, rapaz. S de ambio, sem amor,tua alma vai ficar torta, desgrenhada,aleijada, pestilenta... Aproveitador!Aproveitador!...JASO Chega, n. Fica calada...JOANA Digo e repito: aproveitador!...JASO Mulher, pra...JOANA Digo porque verdade...JASO No fala besteira...JOANA Seu aproveitador!...JASO Eu lhe quebro essa cara!JOANA O qu? Quebra no!...JASO Eu lhe quebro a cara inteira,porra...JOANA Pra mim, Caceto, que ao menos no nega,tem muito mais valor...JASO No diz isso de mim,mulher...JOANA No digo? Digo sim: gigol!...JASO Chega!JOANA Gigol!...(Jaso d um murro em Joana, que cai.)JASO Voc merda... Voc fimde noite , cu, molambo, coisa largada...Venho aqui, fico te ouvindo, porra, me humilho,pra qu? J disse que de ti no quero nadaMas todo pai tem direito de ver seu filho...JOANA Meus filhos! Eles no so filhos de Jaso!No tm pai, sobrenome, no tm importnciaFilhos do vento, filhos de masturbaode pobre, so filhos da puta mas no so filhos teus,seu gigol!...JASO Sua puta, merda, pereba!Agora voc vai me ouvir, juro por Deus,bosta, balaio, eu te deixei sabe por qu?Doena, estupor, eu te deixei porque no gosto de vocNo gosto, porra, e no quero viver contigoNo tem idade nem ambio, me do co,s isso, no quero, no gosto mais de tiJOANA No vai, Jaso. Fica mais um pouco, JasoNo vai. Pelo amor de Deus, Jaso, volta aqui,gigol, quero dizer mais, no vai embora,sacaninha, aproveitador, volta, Jaso!No, Jaso, por favor, Jaso, no vai agora(Falou isso chorosa; de repente, para e retoma o controle.)Mas vou me vingar, isso no fica assim, no...CORINA Aquele boatoFoi num desembalo, a cavalo, a jatoO fato que Joana j recebeunotcia da tal comemoraoSabe cada detalhe mais do que euO talhe do terno azul de Jaso,o samba, a noiva, as risadas que deu,que nem visse pela televisoDa, ah, meu Deus...ZARA Que que aconteceu?CORINA A comadre... de cortar corao...MARIA Fala, mulher...CORINA Disse que agradecia,mas de faxina ela no carecia,nem de comida e roupa, nem de dE que de mim queria um favor sBotou aquele olho em cima de mim,tragou o cuspe e perguntou assim:Corina, se eu morrer, voc e Egeuolham meus filhos?NEN Voc respondeuque sim? ela ficasse descansada?CORINA Mas como, Nen, eu dizer: Queridacomadre, morra em paz, no pense em nadaTome tranqilamente o formicida,calmamente meta a faca no umbigoe d simplesmente um basta na vidaque as crianas vo ficar bem comigo?ESTELA Se eu pego quem contou a safadezapra Joana... comigo era um cara mortoEnfiava-lhe a fua no meio-fio,abria-lhe as pernas com chave inglesa,afundava-lhe uma vela no lordo,depois tocava fogo no pavioCORINA Tem mais: agora vieram me mostrarJaso saiu coa cara no jornaldizendo: ficou noivo e vai casarZARA Hoje?...CORINA Hoje nas bancas, o maioralMARIA Melhor ela no ver...NEN Se j no viuCORINA Viu no...ESTELA No falta quem queira entregarCORINA O jornal esgotou nem bem saiu...Deviam ter pudor e nem olhara cara do descarado estampadadeste tamanho, assim, mandando brasa,enquanto ela... no certo, coitadaMARIA Eu no quero ver. E na minha casaesse jornal no entra...ZARA Eu digo mais:uma amiga de Joana, na batata,que puser as mos num desses jornais,eu quero que lhe d uma catarata,gota serena nos olhos...NEN Mulherno tem amiga...CORINA Eu trouxe um. Quem quer ver?ESTELA Hein?...ZARA Qu?...MARIA Mostra...NEN O que diz...CORINA (Tira um jornal de baixo da saia.) Pra quem quiserAchei mesmo que algum ia querer.

JASO Algum problema?...CREONTE No, s que ningumpode mais ser amvel, bonacho,no mundo atual, cheio de rancor,desamor, desafeto, desestima...CREONTE , doutor JasoJASO Algum problema?...CREONTE Que que voc acha?JASO O caso do mestre Egeu...CREONTE Isso no,agora no, seno meu saco rachaJASO Quer ficar sozinho, eu posso sair...CREONTE Espere um poucoEu preciso de algum pra refletircomigo se eu estou caduco, louco,ou o mundo est ficando esquisito...JASO Quem s trs da manh t de olho aberto,se espreme pra chegar no emprego s sete,l passa o dia todo, volta s onzeda noite pra acordar a canivetede novo s trs, tinha que ser de bronzepra fazer isso sempre, todo dialevando na marmita arroz, feijoe humilhao...CREONTE Ora, sociologia.JASO O que que ?...CREONTE Sociologia, Jaso...JASO No...CREONTE Da pior, beira de cu, barata...JASO O cara j t por aqui. T pertode explodir, um trem que atrasa, ele mata,quebra mesmo, a gota dgua...CREONTE T certo,muito bem. E uma nao no pode prosperarenquanto um povo fica impacientes porque uma merda de trem atrasaJASO Impaciente pra chegar atseu trabalho...CREONTE No, pra voltar pra casaJASO Eu no sei onde que o senhor quer chegar...CREONTE Eu chego, eu sei...Vou lhe dizer o que que o brasileiro,alma de marginal, fora-da-lei, beira-mar deitado, biscateiro,malandro incurvel, folgado paca,v uma placa assim: No cuspa no cho,brasileiro pega e cospe na placaIsso que brasileiro, seu Jaso...JASO No, ele no isso, seu CreonteO que tem a de pedra e cimento,estrada de asfalto, automvel, ponte,viaduto, prdio de apartamento,foi ele quem fez, ficando coa sobraE enquanto fazia, estava calado,paciente. Agora, quando ele cobra porque j est mais do que esfoladode tanto esperar o trem. Que no vem...Brasileiro...CREONTE mais um debochado...JASO Hein?CREONTE E ingrato...JASO No, cansado...CREONTE No,abusado.JASO no...CREONTE sim, seu JasoNo pra entrar no campo pessoalmas j vou lhe dar o exemplo final:essa mulher com quem voc viveu...JASO Isso eu no vou discutir...CREONTE Vai sim...JASO Esse assunto eu no quero discutir,seu Creonte...CREONTE Pois vai ter que quererporque eu j no posso mais conceberque essa mulher fique abrindo o berreirocontra mim, nas esquinas, no terreiro,me esculhambando. Em tudo quanto beco,boteco, bilhar, eu escuto o ecoda voz dela me chamando ladro,explorador, capitalista, co,botando os santos dela contra mim...Eu vou deixar que ela me trate assim? justo que o crente tenha o seu culto,mas que reze orao e no insultoNo, religio religio,isso pra mim se chama agitaoAgora, voc veja, tem noventaapartamentos ali. Mais de oitentaesto atrasados. A maioria,, quase todos, ningum paga em diaE eu fecho os olhos, relevo, compreendoEste ms no pode? Fique devendoEssa mulher que est destratandotambm no paga sabe desde quando?E sai rua pra me esculhambarOutros se juntam pra no me pagar...So ou no so ingratos, meu rapaz?So ingratos, sim senhor, e tem mais:este teu povo porco, relaxadoAquilo l imundo, malcuidadoFuram parede, tapam a janela,dependuram roupa, feito favelaNingum l faz banfeitoria,s fazem filhos e feitiariaEnto, Jaso, que que voc me diz?

JOANA Ah, meus filhos, me abraa aqui, me abraa...Mame estava cuidando da vida...Me abraa, vai, assim, coisa querida...Mas isso no coisa que se faa,mestre Egeu, ora, eu mesma ia l veros meninos...EGEU Como que foi o dia?Conseguiu alguma coisa?...JOANA Eu no viaa hora de ver os dois. Mas trazeros dois at aqui no carecia...Eu j estava indo mesmo pra oficinaComo ? Deram trabalho pra Corina?Muita baguna?...EGEU S do alegriaEu trouxe eles porque preciso teruma conversa. Pra te prevenir...JOANA ? Por qu?...EGEU Eles podem ir dormir?JOANA Aqui?...EGEU , aqui...JOANA No vai mais querer?(Tempo.)Correndo... Vumbora fazer xixipra ir pra cama... Vumbora... Vumbora

CREONTE Pois bem. Eu no quero ela aqui mais noJASO Eu...JASO Seu Creonte...CREONTE No adianta,rapaz. Da outra vez eu transigiAgora, atravessou minha gargantaJASO Olhe... Escute...CREONTE Eu bem que lhe advertiVoc me pedia, eu ia deixando,mas agora no tem mais cabimento!JASO Posso falar?...CREONTE Se quiser v falando,mas pra mim como se fosse ventoJASO Ento o senhor...CREONTE Vou botar pra foraJASO Assim, de uma hora pra outra?...CREONTE Agora!Vou coa polcia e boto ela na ruaE tem mais, seu Jaso, dentro da leiSabe que eu posso, no sabe?...JASO , eu seiCREONTE Pois muito bem... (Levanta-se para sair.)JASO Mas se o senhor acuaa fera pior...CREONTE Sei...JASO Ento precisaparar pra ouvir uma ponderao...CREONTE Se sobre ela, pra mim como brisa...JASO No, sobre voc...CREONTE O senhor...JASO No.Voc!...

JOANA Pronto, compadre, o que que deu errado?EGEU Joana, pode contar sempre comigopro que precisar. Sabe que afilhadomeu no passa fome. No tem perigoMas o lugar dos guris aquiJOANA Mas, mestre, eu no posso ficar cuidando...EGEU Eles no vo se desligar de tiEnquanto voc t l se ajeitandoCorina vem, d banho, faz comida,com prazer, mas voc, onde estiver,na mquina, na fbrica, na vida,lembre que eles to em casa, mulher,precisando de voc pra viverJOANA No estou entendendo, mestre Egeu...EGEU Joana, voc tem que me prometer...JOANA Mas, mestre, o que que foi que aconteceu?EGEU Vai me prometer, tem que me jurarque de hoje em diante vai ficarquietinha, bico calado...JOANA Essa no...EGEU Vai parar de fazer provocaoa Creonte, que isso no d em nadaJOANA No tem quem me faa ficar caladaEGEU Ento no conte mais comigo, JoanaJOANA Mas, mestre, Creonte rouba, me engana,me destri, me carrega at meu machoe eu fico de bico calado? Baixoa cabea? o que o senhor vem pedir,mestre Egeu? Pra ficar quieta e engolira desfeita?...EGEU Se quer brigar, perfeito,s vim lhe pedir pra brigar direitoO que Creonte quer...JOANA O que ele quer me ver longe, num canto qualquerdo mundo, calada, pra mais ningumaqui lembrar que ele esbulhou algum,pra filha casar feliz e contenteEGEU isso o que ele quer. ExatamenteEnto, se voc fica prevenida,fingindo que esqueceu, levando a vidacomo se nada fosse, sem qualquerprovocao, ento se ele quiserte despejar na rua e ele pode no vai poder porque vai dar um bode,todo mundo vai ficar do seu lado,Mas se em vez disso, no, voc se pea agredir, xingar, abrir o berreiroem tudo que esquina, bar e terreiro,voc se isola, perde a aprovaodos seus vizinhos, fica sem razoA gente avana s quando mais fortedo que o nosso inimigo. A sua sorte ligada sorte de todo mundona vila. Trabalhador, vagabundo,humilhado, ofendido,quem paga com suoras prestaes da vida seu amigoCreonte te esmaga sem dor nem dCompreendeu, comadre Joana? (Silncio.) Entendeu?Entendeu?...JOANA Me responda, mestre Egeu,o senhor alguma vez j sentiua clara impresso de que algum lhe abriua carne e puxou os nervos pra forade uma tal maneira que, muito emboraa cabea inda fique atrs do rosto,quem pensa por voc o nervo exposto? assim, mestre, que eu estou feridaE s o que ainda me liga vida meu dio.

CORINA No certo...ESTELA Que que foi?...ZARA O que que h?CORINA No certo...MARIA Ela no melhorou no?CORINA No falei com Joana...NEN Que foi, ento?CORINA No sei, no d, certo que no estE olhe bem que Egeu falou coa coitada,foi ontem l, pediu serenidade,a pobre garantiu, com humildade,que ia ficar num canto sossegadaDa eles vo fazer isso agora...ESTELA Fazer o qu?...ZARA Quem?...CORINA S se fala nisso,ora...MARIA Nisso o qu?...NEN D logo o servioCORINA Creonte quer botar Joana pra fora!

JOANA O que que vocs querem nesta casa?...Um tempo; aparece a figura de Creonte.CREONTE Eu vimaqui, sa dos meus cuidados, pra falarque aqui nesta vila voc no vai ficarnem mais um minuto, pode ir andando, sim?Pega teus troos, teus filhos e p na estrada...JOANA Mas como?...CREONTE Chega de dio, de ourio e feitioJOANA Esse lugar meu...CREONTE ? J vamos ver isso(Para os guardas:)Quebra esta merda!... (Os guardas preparam-separa quebrar; tempo; Joana apavorada.)Espera... (Faz um gesto.)Vou ser camaradamais uma vez. Apanhe a esse dinheiroSai sem chiar, calma, sou capaz de darmais um pouco...JOANA Voc no pode me botarpra fora...CREONTE Se voc no sair por bem, ligeiro,sai no pau...JOANA Este aqui meu lugar...CREONTE Papel,documento... Escritura, onde que est?Fim de papo. No tem perdo nem alvarOu sai na maciota ou no sarapatel,escolhe... (Faz sinal para os guardas.)Pessoal...JOANA Onde que eu vou morar?CREONTE Sei l... Onde quiser. Mas sai da minha frenteJOANA Creonte... Por que um homem onipotenteassim, poderoso assim, precisa jogartoda a sua fora em cima duma mulhersozinha... por qu?...CREONTE Voc quer saber?...JOANA Por qu?CREONTE Por medo...JOANA Medo de mim?...CREONTE Medo de vocsim, porque voc pode investir a qualquerhora. T calibrada de dio, a arma na moE a vida te botou em posio de tiroS falta a vtima, mais nada. Ento prefirovirar prum outro lado a boca do canhoNo gosto de guerra nem vou facilitardiante de quem est se achando injustiadaJOANA Mas o que que eu posso lhe fazer? Posso nadaEstou de mos atadas, tenho que cuidarde dois filhos...CREONTE Sinto, mas no posso fazercoisa alguma. Prefiro ouvir voc agorame esculhambando, xingando a me, indo emboraaos berros, que ficar aqui pra cometerum desatino, me dar aborrecimentoVumbora, vumbora, mulher, vumbora, vai...JOANA Escute s, seu Creonte, o senhor pai,tem uma filha e capaz de ter sentimento por causa dos meus filhos que eu lhe suplico,deixa eu ficar...CREONTE Exatamente por amor minha filha que no d mais...JOANA Por favor...CREONTE Eu j transigi demais...JOANA Eu juro que ficoquieta, seu Creonte...CREONTE No, vumbora...JOANA No faa...CREONTE Pra j...JOANA Meu Ganga, fecharam por todo lado...Mas no pode, de algum lugar um aliadotem que vir...CREONTE Qu? Vai comear com ameaa?(Para a polcia:)Bota essa tralha na rua...JOANA No! Pelo menosme d um dia... Um dia s, que para eu saberpra onde que eu posso ir...CREONTE No d...JOANA No vou podersair sem destino com dois filhos pequenosEu ia embora mesmo. No quero ficarnesta desgraa de lugar. S quero um diapra me orientar, se no no d...CREONTE Eu no devianem ouvir...JOANA Um dia...CREONTE Nem devia levarem considerao, porque tenho certezade estar fazendo besteira quando te atendo...Certeza que, sendo humano, saio perdendoAgora, eu vou lhe falar com toda a clareza:se amanh noite voc ainda estiveraqui, eu acabo de vez coessa novelaNo vai sobrar cama, nem porta, nem janela,sabe? Eu quebro esta merda. Eu quebro tudo, ouviu?JOANA Ouvi sim, Creonte, um dia. Um dia, precisomais do que isso? Por qu? Pra qu? Quem te parius precisou de um dia. O que se construiuem sculos se destri num dia. O JuzoFinal vai caber inteirinho num s diaQuando me deu um dia, voc se traiu,Creonte, voc no passa de um imbecil,porque hoje me deu muito mais do que devia

JASO Pronto, mulher, que foi?...JOANA Nada, Jaso,quer dizer... eu queria te pedirperdo...JASO Qu?...JOANA Vem, menino, pode virtranqilo...JASO No entendi... essa no...JOANA Sente aqui comigo, fique vontadedeixe eu ver seus olhos, Jaso, sorria,como se fosse uma fotografiapra eu levar comigo e matar saudade...JASO Joana, o que que te deu, quer me explicar?JOANA No tenha medo, Jaso, eu... no sei...JASO Fala pra mim, Joana...JOANA Sabe, eu pensei,no parei um minuto de pensar...Me diga, quanto vale a lealdade?JASO No sei... Mulher, onde voc escondeua fria? Onde e por qu? Diz...JOANA que meuressentimento ofuscava a verdadeEu j pensei muito e isso que eu achoVai, Jaso, fazer tua vida, inventateu destino que eu j fico contenteem saber que um pouco de mim vai terno peito do homem que voc vai serPor isso que eu te chamei. Vai em frente,Jaso, aqui voc tem uma amigaque quer ver voc feliz...JASO (Abraando Joana com efuso:)Eu sabiaque ia ouvir voc dizer isso um diaEu sabia porque no com briga,Joana, que um amor como o de ns doispode acabar...JOANA Creonte veio aquiVoc sabe, no ?...JASO (Envergonhado:) Sei... e da?JOANA Foi bom comigo. Muito bom. Depoisde tudo o que eu disse dele, ele agorainda deu um dia pra eu me mudarQuando voc sair, vou arrumartudo pra ir embora. Mas no horapra falar nisso. Eu quero s te olhar,s isso...JASO Joana, no fala assim no...Olha... Creonte tem bom coraoSe voc quiser eu posso falarcom ele, que ele entende... falo simSe ele v mo estendida, amoleceJOANA No d, Jaso... Precisa no... esqueceJASO Pelo menos voc no sai assim...JOANA Mas Creonte est com toda a razoporque, se eu ficar aqui ruimpra vocs, muito pior pra mimNo. Eu vou embora. Fao questo,t?... (Jaso em silncio.)No fica assim, menino, alegriaEu s no quero ir expulsa, corridaQuero sair normal, com despedida,coa calma de quem foi porque queriaPode ser assim? Posso lhe pediresse favor?...JASO claro, Joana, claro...Falo com Creonte...JOANA Diz que eu preparotudo at amanh. Mas quero sairdireita, sem barulho, sem polcia,sem dizer que me escorraou no medo,Jaso, porque eu acho que muito cedopros nossos filhos virarem notcia,certo?...

JOANA (Vendo que elas no entregaram o pacote:)Que foi?...CORINA Creonte no quis receberJOANA No...CORINA Pensou que era feitio, mulher...JOANA No...CORINA Creonte no quis nem acolheras crianas...JOANA No...CORINA , nem quis saberMal os coitados botaram os psna porta, ele expulsou... Mas o Jaso...No sei como ele agentou isso, noBotam seus filhos na rua e ao invsde chiar, o desgraado ficousem se mexer. Sem se mexer, mulher...JOANA No conta mais, Corina. Voc querme deixar sozinha um pouco? Eu estoumeio tonta...CORINA Comadre, olha o que faz...JOANA T bem, mas me deixa comigo um poucoque t fazendo um barulho de loucona minha cabea e eu preciso pazCORINA (Saindo:)Vou, comadre, mas se voc quiser...JOANA T bem... (Corina sai; Joana apanha opacote de bolo e comea a abrir; tempo; voltaCorina:)CORINA Joana, se quiser dormir, vsossegada que eu fico l e c,olhando as crianas...JOANA T bem, mulher...T bem... Mas agora me deixa s...Meu senhor, olhe pra mim, tenha d,Pai, por qu, meu Pai? Voc no deixou?Como foi que Creonte farejou,meu Ganga? Responde, aponta uma estradaFoi s um momentode alvio que eu pedi. No pode ser? justo conservar esse homem vivo?No, no pode fazer isso comigo,meu Ganga. No, no pode ser. Vocquer eles vivos para qu? Por qu? (Grita:) No, Senhor... isso? Afastade mim essa idia, meu Pai... Mas no,meu Ganga, pior... Pior, tem razoEsse o caminho que o Senhor me apontaA em cima voc toma contadas crianas?... (Grita:) No!...JOANA Temcomida, vem... Isso o que o Senhor quer?(Abraa os filhos profundamente um tempo.)Meus filhos, mame queria dizeruma coisa a vocs. Chegou a horade descansar. Fiquem perto de mimque ns trs, juntinhos, vamos emboraprum lugar que parece que assim: um campo muito macio e suave,tem jogo de bola e confeitariaTem circo, msica, tem muita avee tem aniversrio todo diaL ningum briga, l ningum espera,ningum empurra ningum, meus amoresNo chove nunca, sempre primaveraA gente deita em beliche de floresmas no dorme, fica olhando as estrelasNingum fica sozinho. L no di,l ningum vai nunca embora. As janelasvivem cheias de gente dizendo oiNo tem susto, tudo bem devagarE a gente fica l tomando solTem sempre um cheirinho de ter no ar,a infncia perpetuada em formol(D um bolinho e pe guaran na boca dos filhos.)A Creonte, filha, a Jaso e companhiavou deixar esse presente de casamentoEu transfiro pra vocs a nossa agoniaporque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimentode conviver com a tragdia todo dia pior que a morte por envenenamentoJoana come um bolo; agarra-se aos filhos; cai com eles no cho; aluz desce em seu set; sobem, brilhantes, luz e orquestra da festaonde todos, com a maior alegria, cantam Gota dgua; vai subindode intensidade at o clmax, quando se ouve um grito lancinante...

J lhe dei meu corpo, minha alegriaJ estanquei meu sangue quando ferviaOlha a voz que me restaOlha a veia que saltaOlha a gota que faltaPro desfecho da festaPor favorDeixe em paz meu coraoQue ele um pote at aqui de mgoaE qualquer desateno, faa noPode ser a gota d'gua

Corina que grita; ao mesmo tempo Creonte bate palmas e a msicapra.

CREONTE Ateno, pessoal, vou falar rapidamenteJaso... vem c... Meus caros amigos, agora,aproveitando a ocasio e aqui na frentede todo mundo, quero anunciar que de oraem diante a casa tem novo dono. A cadeiraque foi de meu pai e foi minha vai passarpra quem tem condies, e que de minha inteiraconfiana, para poder continuara minha obra, acrescentando sangue novoPortanto, sentando Jaso a eu provo:no uso preconceitos ou discriminaoQuem vem de baixo, tem valor e quer vencertem condies de colaborar pra fazernossa sociedade melhor... Senta, JasoJaso senta; um tempo; ouve-se um burburinho de vozes; entraEgeu carregando o corpo de Joana no colo e Corina carregando oscorpos dos filhos; pem os corpos na frente de Creonte e Jaso; umtempo; imobilidade geral; uma a uma, as vozes comeam a cantarGota dgua; reverso de luz; os atores que fazem Joana e filhoslevantam-se e passam a cantar tambm; ao fundo, projeo de umamanchete sensacionalista noticiando uma tragdia.

2