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Universidade Católica – Porto – 2007 1 Apontamentos de Direito Penal – Parte Geral (questões Fundamentais) Professor – Dra. Conceição Cunha Resumo elaborado por Sousa Gomes Direito Penal - Ramo do Direito Público, formado pelo conjunto de normas (regras e princípios) que visam coercivamente a protecção de bens jurídicos fundamentais. Complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia de 1 forma geral e abstracta, os factos ou condutas humanas susceptíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa dada comunidade, e estabelece as sanções que lhe correspondem. Deve atentar-se que o Direito penal, por ser o mais gravoso meio de controlo social, deve ser usado sempre em último caso (ultima ratio) e visando sempre o interesse social. O sentido fundamental actual da designação "ciência global do DP" § 1 - A designação "ciência global do DP" foi criada em fins do séc. XIX, pelo penalista Franz v. Liszt. 2.º este autor, o DP não se podia reduzir a 1 tarefa meramente técnica, dogmática ou sistemática, de aplicação do DP penal legislado ao caso concreto. Ao lado do DP em sentido estrito ou dogmática jurídico-penal, deviam colocar-se a política criminal e a criminologia . À política criminal cabia a função de propor ao legislador, numa perspectiva de eficácia, as estratégias e os meios da luta contra a criminalidade, e as consequentes reformas legislativas do DP positivado. Mas a eficácia da política criminal, no combate à criminalidade, não podia prescindir do conhecimento empírico da realidade dos factores sociais e psicológicos associados aos comportamentos criminosos. Assim, era considerada como parte integrante da ciência penal em sentido amplo, a criminologia, dado que só esta ciência empírica permitia o conhecimento da realidade social criminal, conhecimento este, indispensável à eficácia da política criminal. Todavia, na construção de v. Liszt, a "ciência global do DP", embora abrangesse a política criminal e a criminologia, o certo é que estas 2 ciências criminais não passavam do estatuto de ciências auxiliares do DP ou dogmática jurídico-penal, cabendo a esta o topo da hierarquia das ciências criminais afirmando que «o DP [a dogmática jurídico-penal] constitui a barreira intransponível da política criminal». i.é, o DP seria, dentro da "ciência global do DP", o depositário dos princípios normativos que garantiam os dtos individuais fundamentais do delinquente, entre os quais se destacam os ppios da legalidade e da culpa. Estes ppios jurídico-penais, é que decidiam sobre a legitimidade ou ilegitimidade das estratégias e dos meios propostos pela política criminal para a redução ou controlo eficazes da criminalidade. Em síntese: o DP ou operava 2º critérios de legitimidade normativa; a política criminal operava apenas 2.º critérios pragmáticos de eficácia; a criminologia, como ciência empírica neutra, fornecia o conhecimento da realidade criminal, conhecimento necessário para a eficácia da política criminal que, por sua vez, não podia deixar de estar limitada pelas exigências e ppios normativos, sedeados na dogmática penal. § 2 - Com a afirmação e consagração do Estado de Direito Material a partir do termo da 2.ª Grande Guerra 1 alteração na relação de subordinação da política criminal à dogmática jurídico-penal. A política criminal deixou o seu estatuto de mera ciência auxiliar do DP para passar a ciência autónoma, face ao DP, passando mesmo a ser tida como motor dinamizador da dogmática penal e, portanto, a ocupar 1 posição de supremacia face ao DP em sentido estrito. Verificou-se, assim, 1 troca de posições entre a política criminal e a dogmática penal , passando a caber à política criminal não só a fixação dos objectivos a serem realizados através da dogmática penal, mas tb nos princípios normativos fundamentais, ético-individuais e ético-sociais, que devem orientar a construção dogmático-sistemática do DP e a interpretação e a aplicação, deste aos casos concretos a decidir. § 3 - C. Roxin e H. Zipf , nos anos 70 do séc. XX, não concordam e reelaboraram 1 novo alinho, dentro desta ciência da política criminal face à dogmática jurídico-penal. Começou, a falar-se, relativamente ao DP stricto sensu, em "sistema penal aberto", aberto às directrizes da política criminal.

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Page 1: Direito Penal - I

Universidade Católica – Porto – 2007 1Apontamentos de Direito Penal – Parte Geral (questões Fundamentais)

Professor – Dra. Conceição Cunha Resumo elaborado por Sousa Gomes

Direito Penal - Ramo do Direito Público, formado pelo conjunto de normas (regras e princípios) que visam coercivamente a protecção de bens jurídicos fundamentais. Complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia de 1 forma geral e abstracta, os factos ou condutas humanas susceptíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa dada comunidade, e estabelece as sanções que lhe correspondem. Deve atentar-se que o Direito penal, por ser o mais gravoso meio de controlo social, deve ser usado sempre em último caso (ultima ratio) e visando sempre o interesse social.

O sentido fundamental actual da designação "ciência global do DP" § 1 - A designação "ciência global do DP" foi criada em fins do séc. XIX, pelo penalista

Franz v. Liszt. 2.º este autor, o DP não se podia reduzir a 1 tarefa meramente técnica, dogmática ou sistemática, de aplicação do DP penal legislado ao caso concreto.

Ao lado do DP em sentido estrito ou dogmática jurídico-penal, deviam colocar-se a política criminal e a criminologia. À política criminal cabia a função de propor ao legislador, numa perspectiva de eficácia, as estratégias e os meios da luta contra a criminalidade, e as consequentes reformas legislativas do DP positivado. Mas a eficácia da política criminal, no combate à criminalidade, não podia prescindir do conhecimento empírico da realidade dos factores sociais e psicológicos associados aos comportamentos criminosos. Assim, era considerada como parte integrante da ciência penal em sentido amplo, a criminologia, dado que só esta ciência empírica permitia o conhecimento da realidade social criminal, conhecimento este, indispensável à eficácia da política criminal. Todavia, na construção de v. Liszt, a "ciência global do DP", embora abrangesse a política criminal e a criminologia, o certo é que estas 2 ciências criminais não passavam do estatuto de ciências auxiliares do DP ou dogmática jurídico-penal, cabendo a esta o topo da hierarquia das ciências criminais afirmando que «o DP [a dogmática jurídico-penal] constitui a barreira intransponível da política criminal». i.é, o DP seria, dentro da "ciência global do DP", o depositário dos princípios normativos que garantiam os dtos individuais fundamentais do delinquente, entre os quais se destacam os ppios da legalidade e da culpa. Estes ppios jurídico-penais, é que decidiam sobre a legitimidade ou ilegitimidade das estratégias e dos meios propostos pela política criminal para a redução ou controlo eficazes da criminalidade. Em síntese: o DP ou operava 2º critérios de legitimidade normativa; a política criminal operava apenas 2.º critérios pragmáticos de eficácia; a criminologia, como ciência empírica neutra, fornecia o conhecimento da realidade criminal, conhecimento necessário para a eficácia da política criminal que, por sua vez, não podia deixar de estar limitada pelas exigências e ppios normativos, sedeados na dogmática penal.

§ 2 - Com a afirmação e consagração do Estado de Direito Material a partir do termo da 2.ª Grande Guerra 1 alteração na relação de subordinação da política criminal à dogmática jurídico-penal. A política criminal deixou o seu estatuto de mera ciência auxiliar do DP para passar a ciência autónoma, face ao DP, passando mesmo a ser tida como motor dinamizador da dogmática penal e, portanto, a ocupar 1 posição de supremacia face ao DP em sentido estrito. Verificou-se, assim, 1 troca de posições entre a política criminal e a dogmática penal, passando a caber à política criminal não só a fixação dos objectivos a serem realizados através da dogmática penal, mas tb nos princípios normativos fundamentais, ético-individuais e ético-sociais, que devem orientar a construção dogmático-sistemática do DP e a interpretação e a aplicação, deste aos casos concretos a decidir.

§ 3 - C. Roxin e H. Zipf, nos anos 70 do séc. XX, não concordam e reelaboraram 1 novo alinho, dentro desta ciência da política criminal face à dogmática jurídico-penal. Começou, a falar-se, relativamente ao DP stricto sensu, em "sistema penal aberto", aberto às directrizes da política criminal.

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Professor – Dra. Conceição Cunha Resumo elaborado por Sousa Gomes

Agora a política criminal não é vista como 1 mera "ciência" técnica, preocupada apenas

com a eficácia da luta contra o crime, mas tb como ciência normativa, preocupada com a legitimidade dos meios a utilizar no combate à criminalidade, compreendendo-se que esta nova concepção da política criminal (cujo objectivo é a eficácia da luta contra a criminalidade, eficácia limitada pela legitimidade dos meios que utiliza) tenha sido assumida pelas actuais Constituições do Estado de Dto Democrático e Social. Hoje, os ppios fundamentais da política criminal estão expressamente consagrados na Constituição: ppios da legalidade, da máxima restrição da pena, da presunção de inocência. Conclusão, a chamada "ciência global do DP” compreende a política criminal, a dogmática Jurídico-penal e a criminologia, e estas ciências, embora autónomas entre si (cada 1 tem 1 objecto imediato e 1 método específicos), são complementares e interdependentes, pois, todas elas têm por objecto último e comum o crime, sendo indispensáveis para 1 abordagem, que se queira eficaz e justa, da delinquência. E, pq complementares e interdependentes, é correcta a designação "ciência global do DP" como conjunto da política criminal, da dogmática penal e da criminologia.

II. Política criminal, direito penal e criminologia

§ 4 - A política criminal pode definir-se como o conjunto dos ppios ético-individuais e ético-sociais que devem promover, orientar e controlar a luta contra a criminalidade. O objectivo/função da política criminal é a prevenção do crime e a confiança da comunidade social na ordem jurídico-penal, na afirmação e vigência efectiva dos valores sociais indispensáveis à livre realização da pessoa devendo realizar-se no respeito dos próprios valores e ppios que visa defender. São, portanto, 2 as coordenadas da política criminal: eficácia, quanto aos fins; legitimidade (ético-jurídica), quanto aos meios. Assim, entre os princípios da política criminal de 1 Estado de Direito Democrático e Social, podem referir-se: o ppio da legalidade, garante contra a arbitrariedade judicial e administrativa; o ppio da culpa, que recusa qualquer forma de responsabilidade penal objectiva; o ppio da humanidade na definição legal das penas (a proibição da pena de morte e das penas degradantes da dignidade humana na pessoa do recluso) e na sua execução (recusa da prisão perpétua e das consequências jurídicas de duração indeterminada); o ppio da recuperação social do recluso, que obriga à criação de estabelecimentos "penitenciários" adequados, e modelação da execução da pena de prisão de forma a possibilitar tal recuperação. § 5 - O direito penal em sentido estrito ou dogmática jurídico-penal pode definir-se como a teorização das diferentes categorias ou elementos constitutivos da infracção criminal, e das diferentes espécies de consequências jurídicas do crime. Teorização, que se traduz numa desconstrução-construção analítico-conceitual e sistemática do comportamento criminal, devendo ser orientada e dinamizada pelos ppios da política criminal e apoiada nos resultados empíricos da investigação criminológica, daqui resultando a correcção da actual consideração do DP ou dogmática penal como "sistema penal aberto", sendo portanto, de recusar, quer a dicotomia normativista, que autonomiza, de forma radical e antagónica, o "ser" e o "dever ser". § 6 - A criminologia é o ramo da ciência criminal que, baseado na observação e experimentação, estabelece a relação entre determinados factores (bio-psicológicos e sociais) e as diferentes espécies de delinquência. Será pois, objecto da criminologia a investigação das ligações entre o desemprego, a perda da auto-estima, a marginalização, a toxicodependência e a criminalidade patrimonial, nomeadamente, o furto e roubo, bem como, caberá à investigação criminológica a influência criminogénea das políticas urbanísticas que remetam certos grupos étnico-culturais para os subúrbios das grandes cidades - guetização.

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São 2 os ramos da criminologia: a biologia criminal e a sociologia criminal. A

biologia criminal, centra-se, fundamentalmente, nos factores bio-psicológicos favoráveis à delinquência; (Lombroso advogava que as causas do crime eram biológicas, donde através dos traços biológicos se verificava se o indivíduo tinha ou não tendência para o crime – ideia de evitar a perigosidade, radical); a sociologia criminal tem por objecto 1.º a investigação dos factores sociais (económicos, culturais, religiosos,) causadores de condutas desviantes, (Ferri que pôs em prática as influências sociológicas, dizia que as causas genéticas eram negativas mas se o indivíduo vivesse num bom ambiente…). É tb de assinalar a importância da criminologia nova ou criminologia crítica, surgida na década 60-70 do séc. XX, que veio reagir contra o tradicional estatuto de subordinação total da criminologia ao DP, afirmando a sua autonomia na determinação do seu próprio objecto, reivindicando 1 função crítica da organização e funcionamento das chamadas "instâncias formais de controlo do crime" (legislador, magistraturas, administração prisional).

§ 7 - Uma vez que a política criminal e, portanto, o DP não pode ser 1 instrumento ao serviço de 1 qualquer sistema social, então é indispensável o conhecimento da realidade individual e social em que a justiça penal intervém. Por outras palavras: Para o DP 1 política criminal, para ser justa e eficaz, não pode esquecer as informações dadas pela criminologia. O próprio ppio da culpa material jurídico-penal não pode deixar de ter em conta as condições em que se realizou a socialização primária (a fase infantil, que é aquela em que se estrutura a personalidade) não podendo desprezar, no juízo da "culpa da personalidade", as condições familiares e sociais, i.é, a inexistência das mais elementares regras axiológicas de relacionamento com o outro. Esquecer este condicionalismo é transformar a "culpa da personalidade" num mero juízo formal, o que levaria a lançar contra esta a mesma crítica que, maioritária e justificadamente, se lançou contra a tese da "culpa da vontade", alicerçada no livre-arbítrio. A sociedade e o estado já sabem, ou deveriam saber, que não é somente com o aumento das polícias e com o agravamento das penas que a criminalidade diminuirá; mas é indispensável 1 atenção às políticas sociais da família, da infância, da escola, da juventude e do trabalho. Ao lado de 1 ética da responsabilidade individual, há tb 1 ética da corresponsabilidade social.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL - 1 - A importância da história do DP § 8 - A análise de evolução das instituições jurídico-penais, ao longo da história dos

povos com características sociais e culturais próximas, tem 1 dupla importância: político-social e jurídico-criminal.

Político-social - sendo o DP 1 dos barómetros do modo de relacionamento entre o poder político, as pessoas e os grupos sociais a ele sujeito, bem como o melhor indicador dos valores dominantes em cada época, a história da evolução do DP é essencial para a caracterização política e social da respectiva época histórica. É na configuração do DP de cada época que podemos descobrir quais os seus valores estruturantes, a sua estratificação social, como se exerce o poder político, etc.

Jurídico-criminal - a história da evolução do DP exibe a historicidade e a relatividade do próprio DP, quando nos comprova que o DP é a expressão das condições económicas, sociais, culturais, religiosas e políticas, que caracterizam cada época e as alterações profundas que as instituições jurídico-penais sofrem com o decurso da evolução sócio-cultural dos povos.

§ 9 - A história do DP só terá utilidade e só não se transformará num trabalho árido e estéril, se a inserir-mos no contexto sócio-cultural da respectiva época, acentuando a necessidade da inserção sócio-cultural da história do dto que tem 1 importância acrescida, quando está em causa o DP.

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II. O direito penal na alta Idade Média ou Reconquista Cristã (sécs. VIII-XII)

§ 10 - A distinção entre alta IMédia e baixa IMédia fundamenta-se num conjunto de fenómenos sociais que, ocorridos a partir da 2.ª metade do séc. XI, vieram dar aos últimos séculos da IMédia 1 configuração específica e muito diferente da que caracterizou os 1.ºs 6 séculos da IMédia.

§ 11 - Quanto à associação entre a alta Idade Média e a Reconquista Cristã, não esquecemos que a alta IMédia, enquanto 1.ª fase da IMédia, começa com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.

§ 12 - O período situado entre o séc. VIII e o séc. XII (alta IMédia) caracterizou-se por 1 profunda instabilidade social, económica, jurídica e política. A prioridade conferida à defesa militar das terras e populações recuperadas e a reconquista de novos territórios provocou 1 clima geral de insegurança na vida comunitária dos povos peninsulares. À fraqueza do poder central segue-se a pulverização das instituições sociais, políticas e jurídicas ficando as populações entregues a si mesmas e com as suas próprias forças para se oporem aos seus inimigos externos e internos. § 13 - Esta insegurança e isolamento, consequência da inexistência de autoridade pública forte e organizada e da perda do sentimento comunitário nacional, teve, foi compensada pela solidariedade entre os membros das micro-sociedades. Duas instituições assumiram 1 papel vital nesta sociedade politicamente desestruturada, que o dto haveria de reconhecer. 1º, a família; posteriormente, o município. A solidariedade, o «1 por todos e todos por 1», que só se pode manter e frutificar na base do sentimento e dever de fidelidade, lealdade e confiança entre os membros do respectivo grupo social. Assim, o valor da fidelidade, é assumido como vital pelos referidos grupos sociais. § 14 - A consciência, individual e social, da essencialidade, para a sobrevivência pessoal e comunitária, dos valores da solidariedade e da lealdade teve a sua projecção no DP da alta IMédia. Solidariedade familiar, ofensa cometida sobre 1 membro da comunidade doméstica era considerado ofensa a toda a família em que, a obrigação de reparar as ofensas sofridas recaía não apenas sobre o directamente ofendido mas tb sobre toda a colectividade familiar - solidariedade penal activa, o ofendido e a sua família tinha o "dto de vingança" e os efeitos do exercício desta vindicta recaíam não só sobre o agressor como também sobre os seus familiares - solidariedade penal passiva. A partir do séc. XI, os municípios desempenham 1 papel vital na defesa e melhoria das respectivas populações. A grandeza do concelho enraizava na unidade dos seus habitantes, sendo a unidade dinamizada pela solidariedade municipal, de forma similar, com a solidariedade familiar. Tb, no cenário jurídico municipal, se verifica, ao lado de 1 solidariedade activa, 1 solidariedade passiva. Quanto à 1.ª, consagravam o dever de auxílio mútuo dos convizinhos e referem a proibição de advogar causas de estranhos (ao município) contra os conterrâneos. Mas havia, tb, 1 certa responsabilidade colectiva, embora subsidiária, dos concelhos pelos delitos praticados por 1 dos seus membros. § 15 - Sendo esta 1 época de ausência de poder político forte e protector, de tumultos e guerras contra o inimigo mouro e dos povos peninsulares entre si (Portugal, Leão, Castela), a paz entre os membros da mesma comunidade foi tida como o bem mais preciso e a melhor garantia da subsistência individual e colectiva, que sente e tem consciência de que a paz só existe através da solidariedade entre os seus membros e que esta solidariedade, só pode converter-se em realidade na medida em que for dinamizada pela lealdade e fidelidade mútuas. Solidariedade, fidelidade e paz são assumidas pela consciência ético-jurídica de então como valores fundamentais. E, pq assim era, tb natural foi que, numa perspectiva retribucionista, a pena aplicável aos violadores da fidelidade e da paz tenha consistido, na perda da paz jurídica.

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O mais grave de todos os delitos era a traição. Consistia este crime dos crimes na

violação de 1 especial relação de fidelidade, existente entre o criminoso e a vítima, mediante a prática do homicídio. Traidor era, 1 homicida qualificado pela cisão do vínculo 1 de fidelidade e lealdade que ligava o infractor à vítima. Esta relação pessoal de fidelidade e solidariedade tinha por fontes o parentesco próximo ("comunidade de sangue"), a interdependência económica ("comunidade de vida" entre o senhor ou amo e quem lhe prestava serviços domésticos ou agrícolas), as relações de confiança geradas, espontaneamente, entre determinadas pessoas (o "companheiro de viagem", o convidado para um "colóquio a sós") ou, ainda, relações de lealdade impostas pela ordem jurídica, em função da defesa e promoção de interesses económicos muito relevantes para a época (a "paz do mercado"). A pena aplicada ao traidor era a mais grave de todas: a perda absoluta da paz, com as seguintes consequências: o traidor ficava destituído da sua personalidade jurídica e, assim, qualquer membro da comunidade (concelho ou reino) o podia, impunemente, matar; a sua casa era "derribada" (a casa, nesse período de insegurança generalizada, representava o melhor refúgio de protecção); e todos os seus bens eram confiscados. § 16 - Numa escala de gravidade decrescente, seguiam-se como crimes muito graves e homicídio simples, o rapto e a violação de mulheres. A pena aplicada a estes crimes era chamada inimicitia (o condenado era declarado "inimigo") ou perda relativa da paz, com as seguintes consequências: o criminoso tinha de pagar 1 determinada coima (pecuniária), calúnia ou multa (sendo uma parte para a vítima ou sua família e a outra para o erário público); tinha de sair do concelho dentro de 1 prazo fixado; não saindo, podia ser morto pelo ofendido ou seus familiares.

§ 17 - Para crimes menos graves, havia a pena chamada composição pecuniária, que se traduzia no pagamento de 1 certa importância ao ofendido. Esta pena, com o passar dos anos, começou tb a ser utilizada como pena substitutiva da perda relativa da paz, no intuito de se evitarem as sangrentas lutas entre as famílias do criminoso e da vítima, em que, muitas vezes, redundava a execução da perda relativa da paz. § 18 - A pena da composição corporal ou "entrar às varas", existente em alguns foros de Bragança, era aplicada a crimes de ofensas corporais e tinha a curiosidade de consistir em aplicar ao agressor 1 ferimento ou golpe igual ao que ele tinha causado na vítima, (retribuição taliónica pura). § 19 - A conclusão geral é a de que o DP da alta Idade Média é 1 DP de justiça privada. O crime era considerado como ofensa individual (excepção à traição), cabendo aos particulares a efectivação da justiça penal, de formas bárbaras e cruéis. Por outro lado, a relevância ético-jurídica concedida aos valores da paz, da solidariedade e da fidelidade não significa senão a consciência da sua imprescindibilidade face a 1 período histórico marcado por 1 profunda insegurança individual e colectiva.

O DP na baixa Idade Média (sécs. XIII-XV) e na Idade Moderna (sécs. XV-XVIII) § 20 - A associação destes 2 períodos, que vão do séc. XV ao séc. XVIII não só não

apresentam qualquer ruptura face ao período da baixa IMédia como, até, pode ser visto, em muitos aspectos, como prolongamento natural do processo histórico iniciado nos sécs. XII-XIII. As características económicas, sociais, culturais, políticas e jurídicas da chamada IModerna, começam a esboçar-se e a desenvolver-se, quer a nível europeu em geral quer no palco peninsular em especial, a partir da baixa IMédia, acabando por se revigorar e consolidar na Idade Moderna. Relativamente ao DP, pode afirmar-se que a fisionomia de que se revestiu, no absolutismo monárquico, não foi mais do que 1 evolução na continuidade dos princípios e características fundamentais do DP, afirmados a partir dos sécs. XII-XIII.

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§ 21 - A partir dos fins do séc. XI, processa-se 1 profunda transformação na vida

económico-social. Entre as suas principais causas há que referir: o crescimento do comércio e do artesanato que, através dos mercadores (burgueses) e das corporações de artes e ofícios (artesãos), contribuiu para a formação dos centros urbanos (partes históricas das actuais cidades) e para o fortalecimento do municipalismo medieval; o aumento demográfico e a emigração do campo para a cidade e as cruzadas, possibilitaram a descoberta de novas rotas e entrepostos comerciais mediterrânicos, para além de promoverem o intercâmbio e a aproximação de diferentes povos cujas nacionalidades estavam em formação. Ao lado destas transformações económico-sociais, inicia-se, em Bolonha, a redescoberta do direito romano-justinianeu, que, reorientado, mais tarde (séc. XIV), por Bártolo, irá ter influência decisiva na formação dos novos Estados europeus e na criação da unidade cultural europeia. A relevância do intercâmbio cultural que, desde os sécs. XII-XIII, impele então estudiosos de vários países da Europa em torno das ciências do direito romano e do direito canónico. No plano cultural, não pode esquecer-se ou menosprezar-se a transcendente importância do reencontro com a filosofia e o pensamento helénicos, tarefa a que a Igreja Católica prestou um contributo fundamental.

§ 22 - No campo estritamente político-jurídico, o poder central vai, progressiva e firmemente, consolidar-se, acabando os monarcas por reivindicar para si os mesmos poderes que os imperadores romanos detinham. O Rei, vai chamar a si a primordial tarefa de legislar para todo o território nacional, reduzindo, simultânea e consequentemente, o papel dos dtos consuetudinário e municipal. Este fenómeno de centralização e fortalecimento do poder político, inspirado no lema «unum imperium unum ius», tornara-se patente, na Península, a partir do séc. XIII. § 23 - O DP, sensível às alterações sociais, culturais e políticas, não podia deixar de espelhar os efeitos das transformações feitas a partir dos sécs. XII-XIII. De facto, o processo de centralização política, consolidado na IModerna, determinou, 1 progressiva publicização dos ius puniendi. A baixa IMédia constitui como que a charneira entre 1 DP de justiça privada (alta IMédia) e 1 DP público (IModerna). O DP, vigente no período que vai do séc. XIII ao séc. XV, revela-se como 1 sistema misto: ao lado de 1 DP público (oficial), que atribui à autoridade real o ius puniendi, passa a considerar o crime como ofensa a toda a comunidade nacional, recorrendo, frequentemente, à pena de morte e evoluindo para o processo inquisitório, sobrevive, até cerca do séc. XV, o tradicional dto de autotutela, pois não seria fácil que as populações abandonassem hábitos seculares, fazendo com que os reis, apesar de se considerarem absolutos, terem de condescender com certas práticas de justiça privada. § 24 - A nova teorização política (iniciada nos sécs. XI-XIII, desenvolvida no séc. XlV, e sistematizada nos sécs. XV-XVI), convertendo o rei em senhor absoluto, detentor directo de 1 poder divino, só responsável perante Deus, titular exclusivo do poder legiferante, colocado acima das suas próprias leis, administrador e juiz único e supremo, ao mesmo tempo ao ferir de morte as instituições político-sociais intermédias (municipais, senhoriais, corporativas), retira à solidariedade e à lealdade o conteúdo psicossociológico e ético-pessoal que elas possuíam na alta IMédia. O conceito alto medieval da fidelidade ou lealdade entra em crise, pois, ao passar o monarca a considerar-se como senhor absoluto e a deter 1 efectivo poder absoluto sobre o seu reino e os seus súbditos, estes já não careciam, para a sua segurança frente aos inimigos externos e internos, de fazer apelo à lealdade recíproca dos membros do mesmo grupo a que pertenciam. Essa segurança, devem eles procurá-la no poder soberano absoluto do rei. Deixa, pois, a relação entre o monarca e os governados de ser 1 relação de coordenação, de reciprocidade, mas de subordinação e de sujeição. A noção e o sentimento de fidelidade pessoal, é substituída pelo conceito e pelo dever jurídico de sujeição ao rei.

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Posto em causa o valor da lealdade nas suas características de espontaneidade e

pessoalidade do vínculo e de reciprocidade dos deveres, em causa ficou o crime de traição, que na infracção daquele valor pessoal tinha a sua essência. A crise do conceito Alto Medieval de traição passa a reduzir-se à traição régia e esta a ser sinónimo de crime de lesa-majestade. Daí em diante e até finais do séc. XVIII, o delito de traição converte-se num meio de protecção do poder político personificado no rei e na sua majestade.

§ 25 - O DP da baixa IM e Idade Moderna caracteriza-se pela sua desumanidade, crueldade, desigualdade social, arbitrariedade e, pela sua natureza exacerbadamente repressiva e intimidativa. A pena deixa de ter como objectivo principal o restabelecimento da ordem social e jurídica perturbada pelo delito, mediante a aplicação, ao infractor, de 1 castigo (mal) equivalente ao mal (dano) que ele causou - retribucionismo objectivo. E passa a ter 1 finalidade de intimidação, muitas vezes de verdadeiro terror - prevenção geral de intimidação. O terror intimidatório era potenciado, para além da gravidade da pena, pela barbaridade do modo de execução desta e pela publicidade do local, onde as mais graves penas eram aplicadas (junto ao pelourinho, no centro das vilas ou cidades), ou da condenação (marcas de ferro quente na testa ou no rosto). § 26 - Havia as seguintes espécies de penas: penas capitais (morte simples e cruel - precedidas de tormentos); penas corporais (flagelação, mutilação, castração); penas contra a liberdade (degredo, desterro, galés); e penas pecuniárias (confisco e multa). No crimes mais graves, (de "lesa majestade divina" - sacrilégio, blasfémia, heresia; e de "lesa majestade humana", i.e., crimes contra o rei, a corte ou o reino), havia, ainda, a pena da infâmia do condenado, a qual se transmitia aos seus descendentes, implicando, para estes, uma série de incapacidades sociais, profissionais e jurídicas (incapacidade de herdar). § 27 - A partir da baixa IMédia, o rei, detentor da plenitude do poder soberano (judicial, legislativo e executivo), chama a si o direito de perdoar. Se só o rei podia fazer as leis e se só ele estava acima das suas leis, então tb só a ele pertencia o dto de agraciar, exercendo-o quando, como e a quem quisesse. Era a arbitrariedade e a voluntariedade real que caracterizavam o dto de conceder perdão. Seguindo 1 tradição, que remontava ao dto imperial romano, as medidas de clemência podiam consistir na amnistia (por motivos religiosos ou políticos), no indulto e comutação (usada, muitas vezes, com objectivos económicos - ex., substituição de penas corporais ou mesmo de morte pelas penas de permanência nas colónias ultramarinas ou das galés).

DP na Idade Contemporânea (2.ª metade do séc. XVIII - séc. XX) e o Estado de Dto § 28 - Chegamos ao período histórico, designado por Idade Contemporânea, apesar do propalado pós-modernismo como caracterizador e diferenciador dos tempos actuais face aos tempos anteriores dos fins do séc. XVIII até mais ou menos à década de oitenta do séc. XX. Sobre a eventual génese actual de 1 hipotético novo ciclo da evolução histórica da humanidade, digamos que, apesar dos sinais de crise, os tempos actuais se podem considerar abrangidos pela ainda chamada idade Contemporânea. Com efeito, a estrutura social, cultural e politica do tempo, em que nos é dado viver, ainda é a que foi gerada pela pluralidade e antagonismo das ideias e das teorias que irromperam entre os sécs. XVIII e XX. No campo político e jurídico, a consagração do Estado de Direito, a partir da 2.ª metade do séc. XVIII, foi a matriz essencial da Idade Contemporânea, ao estabelecer 1 corte radical com a teoria e a prática política e jurídica do absolutismo monárquico da chamada Idade Moderna (sécs. XV-XVIII).

A ideologia da ilustração e o direito penal - o Iluminismo Criminal § 29 - O séc. XVIII assinala 1 profunda viragem na história do pensamento, da cultura, da sociedade em geral.. Factores como os Descobrimentos, o Renascimento, a Reforma Protestante, o Renascimento Italiano, a Revolução Científica já se desenvolviam há muito, nomeadamente a partir dos sécs. XV-XVI.

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É, contudo, no séc. XVIII, que se sistematiza todo 1 conjunto de ppios que vão

consagrar, no campo social, 1 nova filosofia política, que se caracteriza pela substituição do teocentrismo (Deus é centro de tudo) pelo antropocentrismo (baseado no homem), e pela substituição do Estado Absoluto monárquico pelo Estado de Dto, i.é, pelo facto de ser-mos todos iluminados e cada 1 de nós poder-mos governar (contrato social, delegação de poderes), sendo pessoas temos dtos, dtos esses que só serão quartados em função dos crimes cometidos. Deixa de criminalizar-se por analogia. § 30 - O novo ideário filosófico-político-jurídico caracteriza-se pelo: - Individualismo, ao afirmar-se o ppio da prioridade do indivíduo face ao Estado; o indivíduo, passa de sujeito a cidadão, i.e., do estado de sujeição ao Estado para o estatuto de autonomia. - Jusnaturalismo, proclamação de 1 leque de dtos que, por natureza, pertencem a todo o indivíduo e que ao Estado apenas cabe o dever de os reconhecer, legal e praticamente. - Racionalismo, passa-se a considerar a razão humana como fonte e critério da verdade e da justiça. Da heteronomia e transcendência da fundamentação na lei divina passa-se para a autonomia e imanência do critério da verdade teórica e prática na razão humana. § 31 - Esta nova filosofia política não podia deixar de se reflectir profundamente no DP. Critica-se, frontal e globalmente o DP então ainda vigente. O alvo dos ataques situou-se na arbitrariedade da justiça criminal, na instrumentalização política do "jus puniendi", na inexistência de garantias de defesa do arguido, no casuísmo, classicismo e crueldade das penas propondo-se 1 novo DP, 1 nova política criminal que assenta nos seguintes princípios: contratualismo, utilitarismo, secularização e legalismo. § 32 - Recusando a estratificação social do Ancien Régime e o carácter autónomo e absoluto do poder real, o pensamento iluminista proclama, na linha da teoria de Rousseau (separação de poderes), a igualdade de todos os indivíduos e estabelece, como fundamento do direito de punir, o "contrato social", mediante o qual os cidadãos, detentores originários do poder, delegam no Estado. - Contratualismo: dto de definir os crimes e de determinar as penas correspondentes, dto este que deve ser exercido e limitado pelo critério da necessidade ou utilidade social. - Utilitarismo (necessidade social): pena justa é a pena útil, (a pena que é necessária para prevenir a prática do crime). Só existem penas pq é útil à sociedade. Só devemos punir pq é necessário. Crítica: Altamente contraditório face ao ppio da proporcionalidade, do legalismo, i.é, prevenir o crime através da intimidação. A pena não é útil, é justa, sem aplicar a pena como meio de prevenção em que nenhum homem pode ser 1 meio mas sim 1 fim § 33 - Legalismo/garantismo - A defesa da liberdade e da igualdade de todos os cidadão exigiu que os crimes e as penas respectivas estivessem prévia e claramente, descritos na lei e que o juiz estivesse sujeito a uma rígida interpretação literal. § 34 - Secularização - A afirmação da autonomia da razão humana e do poder político face à lei divina e ao poder religioso conduziu à exclusão dos crimes religiosos e à negação da influência do direito canónico na legislação criminal. § 35 - Como conclusão pode dizer-se que vários dos ppios fundamentais do DP actual nasceram com o iluminismo criminal. Entre eles, destacam-se os princípios da legalidade, da celeridade processual (em conexão com o fim preventivo-geral da pena) e o princípio da humanidade das penas e da sua aplicação, que iria levar à substituição das penas corporais pela pena de prisão. Os iluministas exageravam ao ponto de levar a extrema o ppio da tipificidade (legalidade) § 36 - Cesare Beccaria é considerado 1 dos 1.ºs e mais importantes dinamizadores e difusores do novo ideário político-criminal do Iluminismo. O livro (Sobre os Delitos e as Penas), de 1764, constitui 1 marco na evolução do DP, que, no caso, assumiu o carácter de 1 verdadeira revolução ou ruptura como o DP cruel e repressivo no seu tempo ainda em vigor.

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Os ppios fundamentais defendidos por Beccaria foram: a fundamentação da pena na necessidade social de prevenir o crime; a proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do crime; o ppio da legalidade dos delitos e das penas; o humanitarismo das reacções ao crime, propondo a abolição, salvo casos excepcionais da pena de morte e a substituição das penas corporais pela pena de prisão; e o ppio da celeridade processual, considerando que a eficácia preventiva da pena depende mais da rapidez na sua aplicação do que da sua severidade. Ppio da proporcionalidade (legalismo, garantismo, humanização) – gravidade da pena e gravidade do crime. Mantêm-se até hoje. Vai limitar a pena pq esta não pode ser superior ao grau de crime. Conceito de humanização das penas – reacção à severidade das penas § 37 - Anselm von Feuerbach, considerado pai da moderna ciência do DP alemão e tendo sido o principal autor do CP da Baviera de 1813, criou a chamada teoria da coacção psicológica da pena. Esta teoria parte do princípio hedonístico (prazer como bem supremo) de que o sentido e o fim da acção humana é a busca de prazer (crime) e, em correlação negativa, a fuga ao desprazer (sofrimento). O crime reconduzir-se-ia, a 1 acção que, desencadeada pelo infractor para a satisfação do seu "ego", vai, ilegitimamente, causar sofrimento a outra pessoa, sendo esta, 2.º Feuerbach, a explicação "científica" do crime. Cabia pois, ao legislador evitar o delito através da ameaça de aplicação de 1 sofrimento (pena sempre superior), a quem praticasse a acção prevista na lei penal. Nesta lógica psicológica prazer/desprazer (prazer, ligado à prática da infracção; desprazer, contido na pena), naturalmente que a sanção penal, se quer ser eficaz, há-de implicar 1 "quantum" de sofrimento superior ao prazer que o indivíduo (potencial delinquente) retiraria da conduta proibida. Eis a teoria da prevenção geral de intimidação através do mecanismo da coacção psicológica. O momento fundamental desta intimidação-coacção reside na ameaça contida na lei penal, que não surtindo efeito dissuasor, então a execução efectiva da pena reforçará o efeito inibitório da ameaça legal, acabando esta por se tornar eficaz mesmo face aos mais renitentes (insensíveis). Para Feuerbach, o princípio da legalidade era o resultado da conjugação de 1 dupla exigência: a necessidade da defesa do indivíduo face ao poder punitivo do Estado (garantia política) e a exigência de prevenção geral (garantia de eficácia). O efeito dissuasor da pena só se alcançaria na medida em que os factos prejudiciais à sociedade (os crimes) e os sofrimentos que lhe forem associados (as penas) estiverem, prévia e claramente, descritos e estabelecidos na lei: nullum crimen, nulla poena sine lege. (Feuerbach). § 38 – Em Portugal, 1 dos maiores arautos do iluminismo Criminal foi Pascoal José de Melo Freire, que seguiu directamente, o pensamento de Beccaria, destacando-se a elaboração de 1 projecto de Código de Dto Criminal (1789) e de 1 lições de DP, intituladas: institutiones iuris Criminalis Lusitani. § 39 Os ppios garantísticos do Iluminismo Criminal tiveram a sua consagração constitucional na 1ª Constituição Portuguesa de 1822. O art.º 10 desta 1ª lei fundamental portuguesa declarava: «nenhuma lei, muito menos a penal (utilitarista) será estabelecida sem absoluta necessidade»; e o art.º 11 estabelecia que «toda a pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. Ficam abolidas a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, e todas as penas cruéis e infamantes». Quanto à lei ordinária, depois da elaboração de vários projectos de Código (não chegaram a ser aprovados), entre os quais o já referido de Melo Freire e o de José da Veiga de 1837, foi, finalmente, publicado em 1852, o 1.º CP Português. Este Código que revogou, definitivamente, o livro V das Ordenações Filipinas e que se inspirou nos C P francês de 1810, brasileiro de 1831, e espanhol de 1848, deu corpo a várias das propostas do Iluminismo Criminal.

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Assim, consagrou: o princípio da legalidade, imputou à pena 1 finalidade preventivo-geral de intimidação, embora esta finalidade de intimidação fosse limitada pela proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do crime; proibiu a aplicação analógica e a interpretação extensiva no âmbito da incriminação.

A filosofia idealista e a Escola Clássica (1ª metade do séc. XIX) § 40 - Afirma-se 1 nova concepção do DP, concepção que vem contrapor à visão pragmática e utilitária dos autores do Iluminismo Criminal 1 perspectiva filosófico-metafísica do DP. Esta concepção, ficou conhecida por Escola Clássica e inspirou-se na filosofia idealista alemã, nomeadamente no pensamento de Kant, expresso na sua obra Metafísica dos Costumes 1785, e tb no de Hegel, contido na obra Fundamentos da Filosofia do Direito, 1821. Estes filósofos, procuraram refundamentar, ético-filosóficamente, o direito penal. Para eles, o ser é livre, e, se pratica o crime, então tem culpa e deve ser responsabilizado (pena), (princípio da culpa) § 41 - Os postulados do chamado humanismo idealista, proposto por estes autores, eram: a dignidade da pessoa humana deve sempre ser considerada como 1 fim em si mesma, como 1 valor absoluto - «Age sempre de modo que a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, seja sempre considerada como fim, nunca como meio» (Kant); a característica essencial desta dignidade é o livre-arbítrio, a capacidade de 1 decisão absolutamente livre e incondicionada; a esta liberdade ontológica e radical corresponde 1 responsabilidade ética individual autónoma e absoluta; esta liberdade deve ser exercida no respeito da norma fundamental da acção humana, norma que está inscrita na consciência moral de cada 1 e que é racionalmente apreendida § 42 - Esta antropologia tão racionalista e idealista pouco tinha que ver com a concepção utilitária e hedonística da ideologia da "Ilustração". Ao homem dos sentidos e dominado pela busca do prazer sensível de Feuerbach contrapõe-se a visão sublime e exaltante do homem kantiano, iluminada apenas pela razão e norteado pela transcendente realização da Justiça. Estes pressupostos racionalistas e idealistas provocaram 1 profunda alteração da concepção do DP, nos problemas da legitimação do ius puniendi e da finalidade da pena. A Escola Clássica enfrentou a e sempre recorrente questão da legitimidade da pena, num momento histórico caracterizado pelos excessos de terror cometidos durante a Revolução Francesa. Esta questão foi resolvida através do princípio da retribuição ética: a pena justa é a pena retributiva, i.e., retribuição da culpa em função da culpa (proporcionalismo), aquela que corresponde à gravidade do ilícito e da culpa do infractor. Esta retribuição ética, imputada à pena, é 1 exigência ontológica para o mau exercício do livre-arbítrio, é 1 imperativo categórico da justiça. Para a Escola Clássica, a retribuição ético-jurídica é o único e absoluto critério da aplicação e determinação da pena criminal. Para os autores desta Escola, o «se», o «quando» e o «como» da pena não podem ser influenciados por considerações heterónimas de utilidade social. Pois que tal dependência dos critérios pragmáticos da necessidade de defesa da sociedade conduziria à instrumentalização política da pessoa humana e à relativização do Dto. Instrumentalização e relativização que, 2.º os autores da Escola Clássica, é fomentada pelas teorias da prevenção geral (pena como meio de intimidar a comunidade) e da prevenção especial (pena como intimidação do delinquente para que não reincida). Assim, escreveu Kant: «A pena judicial [...] não pode nunca ser aplicada como meio para obter 1 outro bem, seja no interesse do delinquente ou da sociedade civil, mas deve ser sempre e só aplicada ao réu porque ele delinquiu; com efeito, nunca o homem pode ser tratado como simples meio para a realização das intenções de outro e ser incluído entre os objectos do dto das coisas, do que o protege a sua personalidade inata». E Hegel, criticando os «superficiais pontos de vista» das teorias da «prevenção, intimidação, ameaça, correcção», afirma, contra a teoria da coacção psicológica de Feuerbach que «o Dto e a Justiça têm que ter o seu fundamento na liberdade e na vontade, e não na falta de liberdade à qual se dirige a

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ameaça. Quando se fundamenta a pena desta maneira é como se se ameaçasse 1 cão com 1 pau, não sendo o homem tratado 2.º a sua honra e liberdade, mas como 1 cão». Hegel, elevando o Dto a 1 ordem absolutamente perfeita e como que transcendente, acrescenta: «O facto do delito não é 1 quid originário e positivo a que sobrevenha a pena como negação, mas é, sim, 1 quid negativo de modo que a pena é só a negação da negação» - teoria da retribuição jurídica da pena: a pena como reafirmação do Direito. § 43 - Como apreciação crítica da Escola Clássica. O seu mérito esteve em ter elevado o princípio da culpa individual a princípio fundamental do dto. O seu demérito esteve em ter a partir de 1 pretenso humanismo que tem tanto de idealista como de irreal, absolutizando a liberdade (livre-arbítrio), a culpa, o direito, o crime e a pena, negando ou, pelo menos, menosprezando a historicidade e consequente relatividade de todas estas categorias. Obs.: Não pode, e contra o que radicalmente proclamava a Escola Clássica, conceber-se a punição criminal, a pena, como 1 imperativo ético categórico, mas, pelo contrário, tem que ser, prática e humildemente, vista como 1 necessidade de prevenção, geral e individual, da prática de futuros crimes, i.é, a razão de ser da pena não olha ao passado, mas sim ao futuro: pune-se como prevenção de novos crimes, embora a punição pressuponha a culpa do que infringiu, não deva ultrapassar o "grau" da culpa do infractor. Concepção Biunívoca (escola clássica) – não há culpa sem pena, nem pena sem culpa Concepção Unívoca (actualistas) – a culpa é limite máximo (herda pois, só parte da escola clássica), bastando para a socialização da sociedade a ressocialização do criminoso, bastando para tal a culpa como limite máximo e nunca como limite mínimo.

A Escola Correccionalista e o humanitarismo penal (a partir do meio do séc. XIX) § 44 - Inspirada no pensamento de Krause, RODER veio defender, contra a Escola Clássica, 1 concepção mais pragmática e realista do homem e do DP. Os ppios fundamentais do correccionalismo foram: ao lado de 1 responsabilidade individual, há 1 corresponsabilidade social; esta, obriga o estado a criar as condições para o delinquente poder corrigir as suas tendências para o crime e, assim, exercer a sua liberdade no respeito do dto; a pena é o meio para a correcção do delinquente - fim de prevenção especial; enquanto não forem esgotadas todas as possibilidades de recuperação social, todo o delinquente deve ser considerado corrigível.

Os Correccionalistas teorizavam que a sociedade poderia ser responsável pelo comportamento criminoso do indivíduo, devido aos vários e eventuais condicionalismos. Sendo esta corrente de muita importância pq até então ninguém tinha atentado a essas circunstâncias, nomeadamente à ressocialização do indivíduo, contrariamente à prevenção geral. Deixa então de haver prevenção geral para haver prevenção especial em sentido positivo (integração), contrariamente ao sentido negativo (intimidação). Criações do pensamento Correccionalista – Pena suspensa (não cumpre pena efectiva no sentido da sua ressocialização - Liberdade condicional (o sujeito cumpre mas a fase final da pena é cumprida em liberdade condicional (vigiada)) § 45 - O ideário Correccionalista teve profunda influência na península ibérica e noutros países católicos (Bélgica e Polónia). Levy Maria Jordão foi o grande divulgador, em Portugal, das ideias correccionalistas. Elaborou 2 Projectos de CP (1861-64), que assumiam os princípios correccionalistas, e que visavam a substituição do CP de 1852 (influência iluminista). Não tendo sido aprovados, as suas ideias tiveram grande influência em várias e importantes leis penais, aprovadas na 2.ª metade do séc. XIX. Foram elas: Lei de 1 de Julho de 1867, que aboliu a pena de morte (para os crimes comuns, pois que para os crimes políticos, já tinha sido abolida, pelo acto adicional de 1852) e a pena de trabalhos forçados, que, no capítulo da execução da pena de prisão, acolheu o chamado "modelo penitenciário de Filadélfia"; e Lei de 6 de Julho de 1893, que criou os institutos da suspensão condicional da pena e da liberdade condicional.

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§ 46 - Enquanto o CP de 1886 (2.º), (que assumiu a Reforma Penal de 1884, e que

substituiu o CP de 1852) reflectiu 1 misto do retribucionismo clássico e do humanitarismo correccionalista, já as reformas penitenciárias foram sempre no sentido de 1 aprofundamento da execução da pena de prisão como meio de correcção do delinquente. Assim: a lei de 29/1 de 1913 substituiu o "modelo penitenciário de Filadélfia" (isolamento celular, nocturno e diurno (para reflectir)) pelo "modelo penitenciário de Auburn", caracterizado pelo trabalho diurno em comum e apenas isolamento nocturno; o Decreto 26643 de 28/5 de 1936 (projecto da autoria de Beleza dos Santos) adoptou o chamado "modelo progressivo ou Irlandês", em que a execução da prisão ia desde 1 fase inicial de isolamento até à fase em que o preso podia conviver com os outros presos, e desempenhar cargos de confiança; finalmente, o DL 265/79 de 1 de Agosto (da autoria de Eduardo Correia) vai no sentido de que a execução da pena de prisão não pode ignorar os DF’s do recluso, e deve ser orientada para a criação do sentido de responsabilidade do preso e para a sua preparação para a vida em liberdade. Este DL tb consagrou a jurisdicionalização da execução das reacções criminais privativas da liberdade, através da criação dos Tribunais de Execução das Penas. O Cientismo oitocentista e a Escola Positiva (últimas décadas do séc. XIX – 1ªs décadas do

séc. XX) § 47 - A Escola Positiva recusou, frontal e globalmente, todos os postulados filosófico-

metafísicos da Escola Clássica, apresentando 1 política criminal nova e radicalmente oposta a esta. § 48 - O positivismo jurídico-criminal foi o resultado da transposição, para a ciência penal, da mentalidade positivista da 2.ª metade do séc. XIX: substituição da razão ("deusa razão") pela experimentação científica ("deusa ciência"). Assim, o comportamento humano, individual e colectivo, e, portanto, o comportamento criminoso passou a ser tratado como um puro fenómeno natural, explicável pelo único (para eles) critério válido de conhecimento, que era o da investigação experimental. Conclusão: contra o abstraccionismo e o dedutivismo metafísicos da Escola Clássica, passa-se para 1 reducionismo positivista-naturalista: redução do real ao empírico (positivismo ontológico), e redução do método de conhecimento à investigação experimental (positivismo epistemológico). § 49 - Comte, Darwin, Marx e Freud são símbolos destacados e influentes na afirmação deste clima cientista, respectivamente nos campos, sociológicos, biológicos, económico-social-cultural, e psicanalítico. § 50 - A Escola Positiva proclamou, contra a trilogia da Escola Clássica "liberdade, culpa, pena", a trilogia positivista "determinismo, perigosidade, medidas de segurança” + radical, e que se acredita no que está provado empiricamente. Toda a política criminal passa a dever centrar-se na perigosidade do delinquente, pois que, afirmado o determinismo da conduta humana (não sendo a liberdade senão a ignorância da relação causal entre factores bio-psicológicos e/ou sociais e o comportamento delinquente, a perigosidade do infractor é o único pressuposto e critério justificativo da intervenção da sociedade, através do Estado. Assim, em vez da preocupação com as tipologias dos factos (pois que estes são apenas sintomas de determinada perigosidade), a preocupação e a investigação das diferentes espécies de perigosidade, i.e., das tipologias de delinquentes. E, consequentemente, em vez de penas (que são castigo e pressupõem 1 liberdade inexistente), medidas de segurança: segurança da sociedade, e, se possível, tratamento da perigosidade do delinquente. O critério da definição dos crimes (reduzidos a meros fenómenos humanos socialmente danosos) e da determinação das suas consequências jurídicas dependeria apenas das concepções sociais do legislador: confluência do positivismo naturalista com o positivismo jurídico.

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Donde, a conclusão: nada de retribuição (que pressupõe a culpa), nada de prevenção geral (que pressupõe a intimidabilidade dos potenciais delinquentes), mas só prevenção especial de tratamento da perigosidade, ou de inocuização (inofensivo) do delinquente, no caso dos delinquentes incorrigíveis.

§ 51 - Foram 2, as perspectivas e ramos da Escola Positiva: biologia criminal e sociologia criminal. A biologia criminal: Lombroso, defende, inicialmente, 1 explicação meramente biológica do crime (o atavismo do "delinquente nato" – os criminosos ainda estavam em estado evolutivo mto atrasado). Posteriormente, acolhe, ao lado da explicação biológica do criminoso-nato, propenso à criminalidade violenta, a explicação bio-psicológica. Esta perspectiva, que se reconduz à aceitação de 1 categoria de delinquentes com 1 carácter incapaz de resistir às influências perniciosas da sociedade, explicaria a chamada “criminalidade evolutiva”, caracterizada pelo recurso à fraude e à burla. A sociologia criminal: Ferri, acentuou os factores sociais como principais causas do crime. Para este, todos os criminosos eram inimputáveis, i.é, os corrigíveis eram corrigidos e aos inimputáveis eram reservados os hospitais psiquiátricos (ala radical do positivismo – Alemanha, URSS), ou seja, a substituição da tipologia de crimes por tipologia de delinquentes, no fundo saber o tipo de personalidade do delinquente. § 52 - Apreciação crítica da Escola Positiva: o grande contributo, para o DP, foi ter chamado a atenção para a necessidade da consideração da personalidade concreta do delinquente, o ter interpelado a doutrina e o legislador para a adopção de medidas alternativas à prisão, investigar o aparecimento do crime e ter elevado a criminologia à categoria de verdadeira ciência; - Aspectos negativos foram a secundarização (e negação) das garantias legais e jurisdicionais do delinquente, negar as situações de imputáveis e inimputáveis, aproveitamento político e a negação de qualquer dimensão ética do DP, correndo o risco de redução do DP a 1 conjunto de técnicas de 1 qualquer defensismo social.

As Correntes Mistas do DP (desde fins do séc. XIX até à década de 70 do séc. XX) § 53 - Razão de ordem: O iluminismo criminal em sentido estrito, a escola clássica e a escola positiva apresentaram-se como teorias estruturadas radicalmente demarcadas, e consequentemente e coerentemente, conduziram a concepções globais do DP, claras e radicais. Cada 1 destas correntes/escolas consagrou aspectos positivos fundamentais do DP: o iluminismo criminal afirmou a necessidade da defesa dos dtos fundamentais individuais frente ao poder punitivo do Estado; a escola clássica consagrou o ppio da culpa como condição irrenunciável da aplicação da pena; a escola positiva radicou a justificação do DP na necessidade da defesa da sociedade contra a perigosidade dos delinquentes, elevando a prevenção especial à categoria de fim principal da pena. § 54 - As correntes mistas ou "terceiras-vias" resultaram destes contributos positivos, e da articulação conciliadora destes contributos: garantias individuais, princípio da culpa, retribuição e prevenção geral e especial, sem que estas pudessem lograr êxito completo. Pois que: ou se aceitava o livre-arbítrio (a absoluta liberdade de decisão no momento do facto), e, então, a decisão e a determinação da medida concreta da pena deveria fazer-se em função da gravidade da culpa, imputando-se à pena 1 natureza e 1 função primordialmente ético-retributiva (pena e medida de segurança, i.é, verificando-se o grau de culpa – ex.:culpa menor = pena menor), e, assim, ficando reservada para a prevenção (geral e especial) 1 papel secundário ou complementar; ou, pelo contrário, se optava pela prevenção (especial e gera!), e, então, tinha-se de subalternizar o princípio da culpa, em matéria de fundamentação e determinação da pena.

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§ 55 - A 1.ª posição foi defendida pelas teorias ético-retributivas ou neoclássicas (Bettiol), que conferiam à culpa o papel fundamental na determinação da pena, ao mesmo tempo que afirmavam que a pena justa (a pena correspondente à culpa) era aquela que melhor cumpria as funções de prevenção, geral e especial. Mas estas teorias, em face existência da categoria dos imputáveis perigosos, ou tinham que juntar, ao lado da pena referida à culpa, a medida de segurança para fazer face à perigosidade (sistema dualista), ou, então, tiveram que recorrer à chamada "culpa pela (não) formação da personalidade" (Mezger, Eduardo Correia), considerando que a perigosidade dos imputáveis era também culposa, e, portanto, aos imputáveis perigosos só deviam ser aplicadas penas (sistema monista).

§ 56 - Outros autores, não afastando o ppio da culpa, optaram pela fundamentação e consideração da pena como 1 necessidade social, imputarando à prevenção especial (e à prevenção geral) o fim da pena. Quanto à questão da liberdade, suporte do juízo de culpa, recusavam-na enquanto livre-arbítrio ou "liberdade de indiferença", defendendo-a como concepção psicológica da liberdade, da culpa e da responsabilidade individual e social. Marc Ancel, fundador da chamada "Nova Defesa Social", escreveu: a liberdade é «sentimento íntimo e natural da responsabilidade pessoal». Este quadro de pensamento jurídico-penal tb já tinha sido proposto pela "Escola Moderna ou Sociológica" alemã (fundada por Franz von Liszt, em finais do séc. XIX) e pela" Terza Scuola" italiana (fundada por Carnevale e por Alimena, nos princípios do séc. XX). Uma vez que estas doutrinas vinham na linha da escola correccionalista e da escola positiva (embora sem o radicalismo desta), é correcto designá-las por correntes neopositivas. Concepções da actualidade – mistas, pq não seguem as concepções da escola clássica. Todas aceitam a culpa, (i.é, não há pena sem culpa), o ppio da legalidade, as finalidades preventiva geral e especial – geral dirigida à sociedade – especial dirigida ao delinquente. O fim último do DP é a defesa da sociedade, havendo uns que defendem mais a culpa (correntes neoclássicas) em que acentuam mais o papel da culpa (limite máximo e limite mínimo – biunívoca), e outras (escola neopositiva) que defendem o não à pena sem culpa (limite máximo), assim, a razão da pena é prevenir o crime da prevenção geral e especial (unívoca), ressocialização, não sendo só limite máximo mas sem limite mínimo – não é necessário punir tudo. O DP só é aplicado na medida do necessário.

AS PRINCIPAIS QUESTÕES PENAIS NA ACTUALIDADE A Procura do equilíbrio entre a garantia dos DF’s e a necessidade da defesa da

sociedade e dos bens jurídicos pessoais e comunitários § 57 - A complexidade das sociedades actuais e as novas, complexas e graves formas de criminalidade organizada, a nível nacional e transnacional (terrorismo, tráfico de pessoas, de órgãos humanos, pedofilia, tráfico de droga, armas e criminalidade económica), obrigam a repensar os tradicionais limites da investigação criminal (figuras do agente infiltrado e do agente provocador) e a acolher, como meios legítimos de investigação, formas que, até ao presente, eram consideradas ilícitas, i.é, insusceptíveis de alicerçar 1 prova processual-penal (p. ex., das figuras dos "arrependidos"). § 58 - Sendo certo que as sociedades actuais, quer a nível nacional quer no plano internacional, não podem deixar de se defender contra estas novas e graves formas de criminalidade, a verdade, é que, mesmo neste novo contexto, continua a ter de se afirmar, firme e claramente, que os fins não justificam os meios, e que a paz jurídica e os bens jurídicos fundamentais (pessoais, comunitários e universais) não serão, a médio e a longo prazo, efectivamente protegidos através de meios preventivos e repressivos intrinsecamente ilícitos e manifestamente violadores dos mais elementares princípios emanados da dignidade da pessoa humana - dignidade que tem que se reconhecer mesmo na pessoa do mais perigoso criminoso. § 59 - Como exemplo, não pode aceitar-se a figura do "agente provocador", e deve a figura do "arrependido" ser objecto de 1 tratamento jurídico-processual e penal cuidadoso, sob pena de correr riscos insuportáveis o ppio da investigação da verdade material processual, e a

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justiça da decisão judicial condenatória. Ainda, como exemplo tremendamente preocupante da violação dos direitos humanos fundamentais (do suspeito, do arguido ou do recluso, que não deixa de ser pessoa), temos o caso actual dos EUA relativamente aos talibãs e aos membros da Al-Qaeda. Segundo o que tem sido referido pelos média teremos 1 tribunal ad hoc, cujo figurino se aproximará do seguinte: o juiz será nomeado por Bush, o acusador público será designado pelo Secretário de Estado da Defesa, cabendo ao Secretário de Estado da Justiça (para que, pelo menos a palavra Justiça apareça na constituição do tribunal...) a escolha do defensor oficioso. Se isto se vier a confirmar, teremos a mais flagrante e grave violação dos direitos humanos, protegidos pelos mais elementares princípios jurídico-penais processuais, consagrados nas mais importantes Declarações Universais e Europeias, corno a "DUDH" (ONU, 1948), a "Convenção Europeia dos Direitos da Pessoa Humana" (Roma, 1950) e o "Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos" (Nova Iorque, 1976).

A DEFINIÇÃO DOS BENS JURÍDICO-PENAIS E O CONCEITO MATERIAL DE CRIME § 60 - O DP tem a positiva função de tutela dos bens jurídicos fundamentais, i.é, dos valores individuais e comunitários essenciais à realização pessoal e à convivência social; por sua vez, as consequências jurídicas do crime (as penas e as medidas de segurança) traduzem-se na privação ou restrição também de DF’s, nomeadamente, a liberdade, daqui resultando a importância fundamental da definição do conceito de bem jurídico-penal, e da determinação aproximada dos valores susceptíveis da qualificação de bens jurídico-penais sendo decisivo o conceito de bem jurídico para as questões da (in) imputabilidade penal e da censurabilidade, ou não, do erro sobre a ilicitude. § 61 - Tendo em conta o carácter gravoso das consequências jurídicas do crime, a definição do bem jurídico-penal desempenha tb o papel de critério da decisão legislativa criminalizadora e de fundamento da apreciação crítica do DP constituído, e de orientação do DP constituendo.

1. Recusa das concepções positivistas, jusnaturalistas, moralistas e sistémico-funcionalistas

§ 62 - Conceito positivista-Iegalista de bem jurídico (de recusar). Reconduziria o conceito de bem jurídico à vontade do legislador ordinário: bem jurídico-penal seria todo e qualquer interesse a que o legislador decidisse atribuir protecção penal. Numa tal perspectiva, o bem jurídico não possuía qualquer conteúdo material próprio, e seria não 1 prius condicionante da decisão criminalizadora, mas 1 mero posterius ou resultado desta autocrática e, portanto, insindicável decisão legislativa. Conduziria à afirmação de 1 conceito formal e positivista-Iegalista do crime só compatível com 1 Estado de Dto formalista, que mais não seria que 1 ditadura de 1 qualquer conjuntural maioria. § 63 - Mas tb é de recusar a perspectiva jusnaturalista, que reconduziria o universo dos bens jurídico-penais a 1 pré-existente conjunto de valores imutáveis e como que transcendentes à realidade histórica humana. A recusa da ultrapassada dicotomia radical ser e dever-ser, realidade histórica e valores, implica a recusa dos conceitos jusnaturalistas de bem jurídico e de crime que, embora possa ter 1 objectivo salutar, que pode ser o de impedir a visão positivista-legalista (que, confere ao Estado 1 poder incontrolável), tem ainda contra si o facto de impedir a participação e o diálogo democráticos, inerentes ao Estado de Dto pluralista. § 64 - Num Estado de Dto Democrático e Pluralista, tb é de recusar 1 perspectiva e concepção moralista do bem jurídico. Sendo as sociedades diversamente plurais nas mundividências religioso-morais (ou na recusa de qualquer concepção religiosa da moral, com a adesão a 1 simples moral humana), não pode 1 Estado de Dto pluralista assumir e impor a todos os seus cidadãos 1 conjunto de valores inspirados ou extraídos de 1 determinada religião, por mais dominante (maioritária) que seja esta religião. Mal irá o Estado que pretenda impor aos seus cidadãos 1 quadro de valores inspirados numa determinada religião como acontece infelizmente em muitos países de "religião oficial", como em países islâmicos, subvertendo os valores democráticos e o respeito pelo pluralismo moral-religioso.

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§ 65 - Nas últimas décadas, tem sido defendida, por alguns autores (Jakobs), 1 concepção sociológica sistémico-funcionalista do bem jurídico-penal. 2.º esta perspectiva, a principal função do DP é a de garantir a funcionalidade do sistema social. Dada a complexidade das sociedades actuais, o funcionamento eficaz do sistema social (relações ou interacções entre pessoas, entre a pessoa e os grupos sociais, entre aquela, e estes, e o estado) constituiria a razão de ser do DP: garantir as condições mínimas da convivência social. As normas jurídico-penais visariam, garantir as expectativas de cada 1 na sua inter-acção social, i.é, a reacção que cada 1 pode, legítima e confiadamente, esperar do outro. Assim, os bens jurídico-penais reconduzir-se-iam às expectativas sociais de acção, juridico-penalmente garantidas, ou seja, às condições da funcionalidade do sistema social. O que é de criticar, e recusar, pois seria a negação (ou não afirmação) da autonomia do DP para definir e decidir quais são os valores ou bens jurídicos a qualificar como bens jurídico-penais, i.é, quais os valores cuja lesão pode desencadear a aplicação de sanções que vão até à privação da liberdade. Critica-se o esvaziamento ético-axiológico do bem jurídico-penal, e a acentuação quase exclusiva da dimensão eficácia ou funcionalidade do sistema social. - O que deve ou não ser considerado crime? – Problema do legislador, havendo correntes (positivistas) que defendem que crime é o que é considerado na lei. - Quais os critérios que devem orientar o Legislador? – os positivistas não indicam critérios de resolução, os jusnaturalistas que acreditam no dto universal entendem que há 1 conceito natural de crime, donde há factos que sempre foram assim considerados e deverão continuar a sê-lo. Garáfolo procurou definição mas não a encontrou. O DP não deve condenar tudo o que é imoral O DP só deve proteger os dtos mais fundamentais

A concepção ético-social do bem jurídico-penal, mediatizada pela Constituição Democrática

Critério ético-social: pessoa humana, sistema social e consciência ético-social § 66 - Recusados os critérios positivista-Iegalista, ontológico-jusnaturalista e moralista

como critérios válidos, não parece haver outro critério válido para a definição do bem jurídico-penal e, consequentemente, para a definição do conceito material de crime, senão o critério ético-social, critério que significa que é na consciência ético-social de 1 comunidade historicamente situada num determinado tempo e espaço (consciência se possa manifestar-se livremente) que se há-de buscar a referência para a definição do bem jurídico-penal e para a determinação das condutas criminalizáveis. § 67 - Assim, só deverão ser assumidos e qualificados como bens jurídico-penais os valores considerados, pelo ethos social comunitário, como essenciais ou indispensáveis para a realização pessoal de cada 1 dos membros da sociedade, que implica, não só a protecção pelos dtos intimamente inerentes à pessoa humana individual, mas tb a garantia tutelada das condições sociais indispensáveis a essa realização (condições sociais que são protegidas pelo DP secundário, administrativo ou económico-social). Este critério da fundamentalidade ou essencialidade do valor ou bem jurídico constitui o pressuposto irrenunciável, e mínimo, da qualificação do bem jurídico como bem jurídico-penal, cuja razão está relacionada com a gravidade das consequências jurídicas do crime: traduzindo-se as penas e as medidas de segurança na privação ou restrição de bens jurídicos fundamentais, nomeadamente a liberdade, tal só aparece, ético-social e ético-juridicamente justificado, quando tenham sido postos em causa os bens ou condições fundamentais da vida em sociedade, constituindo a dimensão axiológica/dignidade penal fundamental do bem jurídico-penal. § 68 - Não é suficiente, para a qualificação de 1 bem como bem jurídico-penal, que ele seja assumido pela consciência ético-social como fundamental, isto é, que tenha "dignidade

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penal". É, tb necessário que o recurso às penas criminais seja considerado indispensável e adequado à protecção desses bens jurídicos fundamentais, i.é, que a sua tutela penal só possa ser conseguida através do recurso às penas criminais; ou seja: quaisquer outras sanções jurídicas (civis, disciplinares, contra-ordenacionais, etc.) seriam ineficazes ou insuficientes para 1 protecção, mais ou menos eficaz, desses bens. E quer, ainda, dizer que, mesmo que as outras sanções jurídicas não penais sejam ineficazes para a tutela desses bens fundamentais, mesmo nesta hipótese, não será legítimo recorrer às sanções penais, se estas se revelarem, inequivocamente, como inteiramente ineficazes para tutelar tais bens traduzindo-se esta exigência de necessidade penal ou dimensão pragmática, complementar mas tb inabdicável e essencial para a qualificação de 1 bem como bem jurídico-penal. Este pressuposto da "necessidade penal" resulta e fundamenta-se no ppio político-criminal da pena como ultima ratio da política social e da política jurídica, ppio designado por ppio da intervenção mínima do DP ou da máxima restrição do DP, ou, por, princípio da subsidiariedade do DP. Este princípio-pressuposto da "necessidade penal" tb vai na linha da função preventiva imputada, actualmente à pena, sendo que, numa concepção ético-retributiva da pena, esta apareceria como 1 exigência necessária de punição da lesão de 1 bem jurídico fundamental para a pessoa e para a sociedade, em que aquela se insere e de que depende na sua realização pessoal. Numa tal concepção, sempre a pena deveria ser efectivamente aplicada ao agente censurável pela lesão de 1 bem jurídico, independentemente da necessidade e eficácia preventivas da punição.

Critério jurídico-constitucional do conceito material do bem jurídico-penal e do crime § 69 - A assunção deste critério ético-social para a definição do bem jurídico-penal e,

consequentemente, para a definição do conceito material de crime, corresponde à perspectiva racional-teleológica do DP, que é aquela que melhor se enquadra no actual Estado-de-Direito democrático, social e pluralista. Tal critério ético-social é bastante vago e difuso, donde ser necessário procurar 1 certa materialização ou concretização deste critério. Ora, sendo a Constituição Democrática a projecção e expressão jurídica fundamental da concepção ético-social da comunidade sobre os princípios que devem estruturar o sistema social, é nela que devemos procurar a expressão e fundamento jurídico-constitucionais da definição do bem jurídico-penal (e, portanto, do conceito material de crime), e o critério material da determinação das condutas susceptíveis de serem objecto de 1 decisão legislativa ordinária de criminalização-penalização. A CRP proclama, logo no seu art. 1,º, que «Portugal é 1 República [...] baseada na dignidade da pessoa humana [...] e empenhada na construção de 1 sociedade livre, justa e solidária». Daqui resulta que a pessoa humana (com os dtos individuais que são inerentes à sua dignidade) é a pedra fundamental e angular do sistema social e, portanto, do sistema jurídico; e resulta, ainda, a afirmação de que o sistema social (na multiplicidade dos seus subsistemas económico, ambiental, etc.) é essencial e codeterminante da realização pessoal de cada 1 dos membros do corpo social.

As "Constituições Democráticas e Sociais" do pós 2.ª grande guerra consideram,

diferentemente das "Constituições Liberais" de fins do séc. XVIII até meados do séc. XX, que o Estado e o Dto não podem ficar indiferentes à conformação do sistema social, 1 vez que este é condicionante da efectivação dos dtos humanos pessoais. E, assim e por isto, as Constituições Sociais, como a nossa, contêm, para além das partes dedicadas aos tradicionais DLG individuais (CRP, I.ª parte, título II) e à organização do Poder Político (CRP, 3ª parte), 1 parte dedicada à organização económica e social e aos dtos e deveres económicos e sociais (CRP, 1.ª parte - título III, e 2.ª parte). A partir deste art. 1.º da CRP já se obtém 1 ponto de referência para a definição do bem jurídico-penal. Assim, só poderão ser considerados bens jurídico-penais os dtos inerentes à dignidade da pessoa humana, e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social.

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Eis o critério jurídico-constitucional a respeitar pelo legislador ordinário na concretização

legal dos bens susceptíveis de tutela penal. Estes 2 pilares fundamentais da CRP, a pessoa humana e o sistema social, desenvolvem-se e concretizam-se nos dtos-deveres individuais consagrados no título II da 1.ª parte, e nos dtos-deveres sociais, explícita ou implicitamente, previstos no título III da 1.ª parte e na 2.ª parte da CRP. Como refere FIGUEIREDO DIAS, não tem que existir entre os bens ou valores (a que correspondem direitos-deveres) consagrados na Constituição e os bens jurídicos dignos de tutela penal e, portanto, susceptíveis de fundamentarem a criminalização das condutas que os lesem ou ponham em perigo, não tem que existir, 1 "relação de identidade", bastando, sim, que entre a "ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos" exista 1 "relação de analogia material". Isto é, o quadro de valores constitucionais constitui, para o legislador ordinário, o quadro referencial dos valores susceptíveis de terem protecção penal. Os arts. 17.° e 18/2 da CRP estabelecem os pressupostos da qualificação legal de 1 bem como bem jurídico-penal. O art.º 17 afirma que o regime dos DLG’s se aplica, não só a estes dtos pessoais mas tb aos DF’s de natureza análoga. Ou seja: o regime previsto no art.º 18/2 aplica-se quer aos direitos-deveres pessoais, previstos pelo título Il da 1.ª parte da CRP e protegidos pelo DP tradicional, clássico ou primário (contido globalmente no CP), quer aos direitos-deveres sociais, previstos no título III da 1.ª parte e na 2.ª parte da CRP e protegidos pelo chamado direito penal administrativo, social ou secundário (contido, geralmente, em leis extravagantes, como o DP do ambiente, fiscal, societário, etc.). Partindo do pressuposto exacto de que não cabe ao DP (dada a gravidade das sanções que aplica) promover a consciencialização ético-social e ético-jurídica da importância fundamental de certos bens para a existência social humana, no presente e no futuro, mas, sim e ao contrário, o DP pressupõe essa consciencialização, não há 1 distinção substancial entre os bens jurídicos protegidos pelo tradicional dto clássico e os bens jurídicos tutelados pelo DP social ou secundário.

§ 70 - Mas a não existência de 1 distinção material não significa que não haja 1 ≠ quanto ao grau de consciencialização da relevância dessas 2 categorias de bens jurídicos dignos de tutela penal. Esta ≠ existe, pois que está mais profundamente interiorizada a consciência da gravidade da lesão dos bens jurídicos pessoais do que a dos bens jurídicos sociais, desde logo, pq esta consciência ético-social dos bens jurídicos sociais é recente e está relacionada com a crescente complexidade do sistema social. E acrescente-se que esta diferença, quanto ao grau de consciencialização, pode ter consequências no plano da dogmática jurídico-penal, por exemplo, em matéria de erro sobre a ilicitude. § 71 – O regime jurídico estabelecido pelo n.º 2 do art.º 18 da CRP contém o critério jurídico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal. Este critério vincula, o legislador ordinário na sua tarefa de determinação concreta dos bens jurídicos-penais, através da criminalização de determinadas condutas. O art.º 18/2, ao estabelecer que a restrição dos DLGs só é legítima quando tiver por objectivo salvaguardar outros dtos ou interesses constitucionalmente protegidos, está a consagrar o pressuposto da dignidade penal (dimensão axiológica) do bem jurídico, pq, traduzindo-se as sanções penais na restrição de DF’s (a liberdade, a propriedade, o exercício de profissões ou actividades), então tais sanções pressupõem que as condutas, a que se apliquem, lesem dtos pessoais ou interesses sociais com dignidade constitucional não bastando a dignidade constitucional-penal de 1 bem jurídico para que este possa transformar-se, por decisão legislativa ordinária, num bem jurídico-penal, sendo que, por força da referida disposição constitucional, exige-se adicionalmente, que tais restrições dos DLGs sejam consideradas necessárias para salvaguardar os referidos bens com dignidade penal. Esta exigência pragmática da necessidade penal desdobra-se em 3 dimensões: inexistência ou insuficiência de outros meios sociais ou jurídicos (civis, disciplinares ou contraordenacionais) para 1 protecção eficaz destes bens jurídicos com dignidade penal; adequação das sanções criminais-penais a 1 tutela relativamente eficaz desses bens; proporcionalidade entre a gravidade das sanções penais e a relevância pessoal

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e/ou social dos bens jurídicos lesados (ou postos em perigo) pelas condutas ilícitas - o que significa, por outras palavras, proibição de excesso punitivo. Figueiredo Dias defende 1 analogia entre bens jurídico-penais (plasmados na CRP. A Bem-Jurídico-Penal corresponde bem-jurídico (tem de ter a dimensão da dignidade plural (dimensão valorativa do bem jurídico-penal), e a necessidade penal (dimensão da eficácia (pragmática)) - Ppio da subsidiariedade - Ppio da adequação Ppios orientadores - Comparação entre vantagens e desvantagens da intervenção penal Necessidade penal - Ppio da proporcionalidade

- Dignidade penal Dimensão valorativa

Bem jurídico-penal - Necessidade penal – carência de tutela penal (dimensão pragmática) - Subsidiariedade

1 - O DP só age subsidiariamente, se houver outro dto que o faça, só se realmente necessário. 2 – Só actua se for adequado § 72 – Do pressuposto da "necessidade penal" deriva que, teoricamente e em abstracto, seja de recusar a existência das chamadas injunções constitucionais implícitas de criminalização. Estas injunções significariam que, dada a essencialidade ou "dignidade penal" de certos valores consagrados na CRP, teria o legislador ordinário de necessariamente criminalizar as condutas que os lesassem ou pusessem em perigo. A recusa destas imposições constitucionais assenta no facto de, não bastar, para a criminalização, a dignidade penal ou dimensão axiológica dos bens, exigindo-se, ainda, que, no plano pragmático, a protecção desses bens encontre no recurso ao DP a forma adequada e única de protecção. Pelo menos em teoria (alguns casos, na prática), tem de aceitar-se a hipótese de existirem valores que, apesar do seu carácter fundamental, possam ser mais eficazmente protegidos através de medidas jurídicas não penais ou medidas sociais do que através de sanções penais (consumo de estupefacientes). Em tais casos, não se justificaria a criminalização das condutas lesivas de tais valores, pois que, apesar da dignidade constitucional desses valores ou bens, não se verificava o pressuposto da "necessidade da pena". Isto não significa que não haja bens jurídicos, consagrados na CRP, que não tenham, forçosamente, de ser tutelados penalmente. É evidente que os há (a vida, a integridade física e a liberdade) e, em relação a estes bens, recai sobre o legislador ordinário o dever de criminalizar as condutas que os lesem, pois, se é o próprio legislador constitucional que expressamente prevê a existência de crimes e de penas (CRP, art.º 29), é pq há algumas condutas que, não podem deixar de ser criminalizadas pelo legislador ordinário. Conclusão: o que se pretende dizer, quando se nega a existência de injunções constitucionais implícitas de criminalização, é que não é pelo facto de determinado valor ter 1 essencial dignidade constitucional ("dignidade penal") que, necessariamente, terá de ser criminalizada a sua lesão daí a exigência de "necessidade penal" no sentido acabado de referir. Defender o contrário, parece-me que só será aceitável para quem entenda que o DP, para além de 1 função de eficaz protecção dos bens jurídicos, 1 função simbólica. Prof. Taipa não partilha de 1 concepção simbólica do DP por 2 razões: por 1 lado, acha que o mundo do simbólico está num plano de apelo cultural-espiritual muito acima do plano do mínimo exigível pelo DP; por outro lado, atribuir ao DP 1 papel simbólico é abrir as portas à aceitação de "bodes expiatórios", o que o dto em geral, e o DP em especial, deve evitar a todo o custo.

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O Problema da relação entre a culpa e a prevenção na determinação (legal e judicial) da

pena. A adopção de 1 concepção preventivo-ética do DP e da pena 1. Breve referência à história da questão sobre os "fins da pena"

§ 73 - Desde sempre, isto é desde que o poder político existe, sempre se discutiu sobre qual o fim da pena: com que fim se pune quem cometeu 1 infracção criminal? Se remontarmos ao Antigo Testamento, veremos que, então, vigorou 1 retribucionismo objectivo, traduzido pelo aforismo taliónico "olho por olho, dente por dente". Ou seja: tal a ofensa, tal a punição; donde a designação talião. § 74 - Na Antiga Grécia, como na Antiga Roma clássica, tb, os filósofos, os pensadores políticos e os juristas se debruçaram sobre o fundamento do dto de punir e sobre os fins da punição criminal, i.é, da pena. Uns atribuíram à pena 1 função ou finalidade preventiva, (olha no futuro), já outros imputaram à pena 1 finalidade retributiva, (olhava ao passado, era castigo expiatório). § 75 - No DP da alta IMédia, verificamos que a pena assumiu 1 finalidade acentuadamente retributiva, evidente e inevitavelmente, tivesse 1 efeito dissuasor ou intimidatório. Penas da perda absoluta da paz e da perda relativa da paz: aquele que infringisse, por actos objectivamente muito graves (homicídio), os valores da paz e da solidariedade, dessas ficava privado, logo, poderia ser morto. Demonstrativo, ainda, desde retribucionismo objectivo era a figura, da "composição corporal". § 76 - Na baixa IMédia e na Idade Moderna, a tónica do fim das penas foi a de 1 exacerbada prevenção geral de intimidação, por vezes, de verdadeiro terror penal (publicitação do crime e da pena, e a humilhação pública do condenado, bem como a chamada "pena de morte cruel", em que a execução mortal do condenado era precedida da aplicação de públicos tormentos). § 77 - Em fins do séc. XVIII, com a queda dos absolutismos monárquicos e o aparecimento do Estado de Dto liberal, alterou-se a perspectivação do DP na questão do fim da pena. A fundamentação e legitimação do DP passa a radicar na necessidade social de, garantir os dtos individuais e a vida em sociedade; e a pena passa a ser vista como 1 mal, embora socialmente necessário, cuja finalidade é a de prevenção geral de intimidação ou dissuasão da prática do crime, mas devendo estar a sua aplicação subordinada aos princípios da legalidade e da proporcionalidade. § 78 - Com a filosofia idealista alemã (fins do séc. XVIII e princípios do séc. XIX) e a Escola Clássica do DP, operou-se, em matéria dos fins das penas, 1 viragem de quase 180 graus. Com efeito, a Escola Clássica veio contestar, vivamente, o então doutrinalmente dominante fim de prevenção de intimidação, advogando, ao invés, 1 finalidade retributiva para a pena. Kant, na "Metafísica dos Costumes", defendeu 1 teoria ético-retributiva da pena: esta tinha por finalidade a retribuição ética do crime praticado e, portanto, a gravidade da pena devia corresponder, por imperativo categórico, à gravidade do facto ilícito praticado e à gravidade da culpa do respectivo agente. Hegel, nos "Fundamentos da Filosofia do Dto", defendeu 1 retribuição jurídica da pena. A pena visava, assim, repor a vigência da norma jurídica violada, visava, a reafirmação da intangibilidade do Dto.

§ 79 - A Escola Correccionalista veio, a partir de meados do séc. XIX, contrapor-se à concepção ético-retributiva da pena da Escola Clássica, acentuando a finalidade de prevenção especial positiva da pena. Tinha por objectivo actuar sobre o próprio delinquente, contribuindo para a correcção das tendências criminosas do infractor. Procurava-se, a recuperação e integração social do delinquente.

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§ 80 - A Escola Positiva, a partir do fim do séc. XIX, partia de 1 concepção determinista do comportamento humano e da conduta delinquente, e, consequentemente, defendia que a pena tinha 1 finalidade preventivo-especial de neutralização do delinquente. E, nesta lógica, propunha que a categoria das penas fosse substituída pela categoria das medidas de segurança da sociedade. § 81 - Ás visões radicais da Escola Clássica (finalidade ético-retributiva) e da Escola Positiva (finalidade exclusivamente preventiva) seguiram-se as correntes neoclássicas e neopositivas, que procuraram conciliar as categorias da culpa e da prevenção na determinação da pena. As 1.ªs acentuaram, a finalidade retributiva; as neopositivas acentuaram a finalidade preventiva.

2. As teorias da "pena exacta", do "valor de emprego" e da "margem de liberdade" § 82 - Na 2.ª metade do séc. XX, como na actualidade, permaneceu e permanece vivo o

debate sobre a relação entre a culpa e a prevenção geral e especial (positiva e negativa, isto é, de integração social e de intimidação) na escolha da pena e na determinação da sua medida concreta, § 83 – 2.º alguns autores, a determinação da pena concreta, dentro dos limites mínimo e máximo da moldura penal legal, dependeria exclusivamente da gravidade da culpa do infractor: tal quanto de culpa, tal quanto de pena - teoria da pena exacta (concepção ético-retributiva – biunívoca). As considerações preventivas, gerais e especiais, interviriam apenas, na eventual substituição da pena de prisão por multa, ou na suspensão condicional da pena, quando tal fosse legalmente possível, e na fase de execução da pena. Crítica: não prevê (esquece) a prevenção geral e especial na determinação judicial da pena, também a culpa não é 1 grandeza matemática. De rejeitar. § 84 – Outros autores defendem que a culpa e a prevenção intervêm em momentos diferentes: Para a determinação da pena concreta apenas importa e é valorizada a culpa, por outro lado, para a hipótese de substituição da pena por pena não privativa de liberdade ((multas, trabalho comunitário (art.º 58), pena suspensa (arts 43 e ss), há a prevenção especial (ressocialização) e geral)) sem qualquer intervenção da culpa - teoria do valor de emprego – concepção neoclássica (biunívoca). De rejeitar § 85 - A teoria da margem de liberdade – Concepção ético-preventiva - biunívoca, apresenta para a relação entre a culpa e a prevenção na determinação da pena: dentro da amplitude penal legal, i.é, dentro dos limites mínimo e máximo da pena estabelecida pelo legislador para cada crime, o juiz estabelecerá, num 1.º momento e apenas em função da gravidade da culpa, 1 nova amplitude mais estreita da pena a aplicar ao infractor (nova moldura penal); e, dentro destes novos limites mínimo e máximo, que terão de respeitar os limites legais, serão as necessidades de prevenção, geral e especial, que determinarão a exacta medida da pena. De rejeitar § 86 - Conclusão crítica, devem rejeitar-se estas 3 teorias sobre a relação entre a culpa e a prevenção na determinação da pena. Esta rejeição assenta, fundamentalmente, no facto de todas elas atribuírem 1 papel decisivo à culpa na determinação da pena, reservando para as finalidades preventivas 1 papel complementar e relativamente secundário. São teorias penais essencialmente ético-retributivas, quando a função do DP e da pena não pode deixar de ser essencialmente preventiva e, portanto, as necessidades de prevenção geral e especial devem assumir a prioridade na determinação da medida da pena e na escolha da espécie de pena, não significando, de forma alguma, esquecer ou menosprezar o papel da culpa nesta questão, pois ela há-de constituir sempre, por exigência imperativo-constitucional da dignidade da pessoa humana, 1 limite, quer para o legislador quer para o juiz, na determinação (legal e judicial) da pena.

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3. Concepção ético-retributiva, concepção ético-preventiva e concepção preventivo-ética

da pena, na história recente do direito penal português 3.1. Da concepção ético-retributiva à concepção preventivo-ética da pena

§ - 89 - O CP de 1886, revisto em 1954 (DL n.º 39688, de 5/6), proclamava no art.º 54: e no art.º 84 do mesmo diploma, também por força da redacção introduzida em 1954, consagrava 1 concepção ético-retributiva da pena. Embora a pena visasse a prevenção dos crimes, não deixava o legislador de afirmar que a pena, tb tinha por objectivo reprimir (retribuir) o crime praticado, e, sobretudo, estabelecer que a medida da pena dependia da medida da culpa do infractor. § 90 - O CP de 1982, cujo anteprojecto foi da autoria de Eduardo Correia, estabeleceu, no art.º 72/1, 1 concepção ético-preventiva da pena. Parece clara 1 evolução legislativa, embora continue a atribuir-se à culpa o papel fundamental na determinação concreta da pena, não deixa de se acrescentar que o juiz deve atender também às exigências de prevenção. § 91 - A Revisão de 1995 do CP de 1982 (DL n.º 48/ /95, de 15/3) terminou a evolução legislativa sobre o fundamento e as finalidades da pena, consagrando a concepção preventivo-ética da pena: preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa. Segundo o art.º 40, as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena. Resulta do actual art.º 40, nºs 1 e 2, que o fundamento legitimador da aplicação de 1 pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto e de limite máximo da pena a aplicar, por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.

O meu entendimento sobre a relação entre a culpa e a prevenção § 93 – TC, sobre a relação entre a culpa e a prevenção, defende a eliminação da prevenção geral, até pq já existe 1 pena mínima, devendo ter-se só em conta a necessidade da prevenção especial, positiva/negativa pois esta influencia suficientemente a melhor adequação da pena. Ainda 2.º TC, a teoria dos "fins das penas" pressupõe, como exigências metodológicas indispensáveis, que, se defina, com rigor, o fim do dto criminal-penal e os "fins" da pena, e, ainda, que se determine qual o verdadeiro sentido da recente categoria "fim de prevenção geral de integração" (ou prevenção geral positiva).

§ 94 – Para TC, o fim do dto criminal-penal (ou, pura e simplesmente, DP) é o de protecção dos bens jurídico-penais. As penas (tal como as medidas de segurança) são os meios indispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos daí resultando que, quando se fala dos "fins da pena", se está a falar de "fins" meios, e não do verdadeiro fim ou fim-último. Ou seja: o problema, quando se fala dos fins da pena, que são "fins-meios" ou fins imediatos, é o de saber como é que a pena há-de ser escolhida (pelo legislador e, depois, dentro do permitido pela lei, pelo juiz) e determinada, em ordem a realizar-se aquela função ou finalidade (última) de protecção, no futuro, dos bens jurídicos lesados, não se esquecendo, obviamente, o imperativo constitucional da máxima restrição possível da pena, consagrado no art.º 18/2 da CRP, considerando que o n.º 1 do art.º 40 é incoerente, na medida em que associa e parifica, fim-último e fim-meio): com efeito, a reinserção social do delinquente não é senão 1 dos meios de realizar o fim do DP que é a protecção dos bens jurídicos (ao contribuir esta reinserção social para evitar a reincidência - prevenção especial positiva). § 95 - Os critérios, impostos pelo ppio constitucional da máxima restrição possível da pena (CRP, art.º 18/2), hão-de orientar; quer o legislador quer o tribunal, na escolha e determinação da medida da pena. Em 1.º lugar, é de recusar a pena ético-retributiva, rejeitar que a pena deva, sempre e necessariamente, ser determinada pela gravidade da culpa do agente no caso concreto. Sendo a pena 1 função-meio de prevenir a prática de crimes, ela há-de atender ao presente olhando o futuro. No caso de infractores primários ou ocasionais, podem não se verificar nem a necessidade de prevenção geral, nem a de prevenção especial,

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e, portanto, não ser legítima a aplicação de qualquer pena. Isto leva-nos a acolher a teoria da concepção unilateral da culpa: a chamada implicação unívoca da culpa - toda a pena implica culpa, mas nem sempre a culpa implica pena. § 96 - Estabelecido que a legitimidade ético-jurídica (e constitucional - CRP, art.º 18/2) da pena está na necessidade de prevenção de futuros crimes. A prevenção dirige-se em 2 sentidos/destinatários: o próprio infractor condenado e todos os outros membros da comunidade. Em relação ao condenado, a função ("fim", na terminologia tradicional e corrente) preventiva da pena designa-se por prevenção especial ou individual. E qual o sentido desta prevenção especial? - É duplo: ressocialização do delinquente, traduzida pela designação prevenção especial positiva, e dissuasão da prática de futuros crimes, traduzida pela designação prevenção especial negativa. § 97 - A função de ressocialização significa 1 tentativa de interpelação e auto-adesão do delinquente à necessidade social dos valores essenciais (bens jurídico-penais) para a possibilitação da realização pessoal de todos e de cada 1 dos membros da sociedade. Significa prevenção da reincidência. Esta função da pena implica profundas alterações das condições físicas e pessoais (como a estrutura arquitectónica dos estabelecimentos prisionais, e a ocupação do tempo em actividades profissionais e culturais) em que, geralmente, é cumprida a pena de prisão; caso contrário, esta finalidade, que, nomeadamente no caso português, tem sido considerada essencial para que a pena seja verdadeiramente 1 meio de protecção dos bens jurídicos, não se cumprirá, tornando-se, pelo contrário, a prisão em meio de dessocialização ou de agravamento da desintegração social do delinquente. § 98 - Por sua vez, a dissuasão ("intimidação") do condenado é conatural à pena, e constitui tb 1 função da pena, nada incompatível com a referida função positiva de ressocialização. Não se trata de intimidar por intimidar, mas sim de 1 dissuasão (através do sofrimento que a pena naturalmente contém) humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, i.e., de não reincidir. E, no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada 1 pena, é esta mensagem punitiva dissuasora, o único sentido da prevenção especial. § 99 - Este sentido ou finalidade preventivo-especial, positiva e negativa, da pena é tida em conta pelo legislador penal e deve ser tb concretizada pelo juiz. Quanto ao legislador penal, basta pensar na ideia-força da 2.ª parte do n.º 1 do art.º 40, no art.º 43/1, nos arts. 44.º , 45.º e 46.º (substituição das penas curtas de prisão por multa, por "dias livres" ou pelo "regime de semidetenção", dada a constatação criminológica de que as penas curtas de prisão continuada são criminógenas), bem como no art.º 70 (preferência pela pena de multa em relação à pena de prisão) e nos arts. 71/2, c) e 72/2, c) (atenuação da pena, quando o infractor, posteriormente ao crime, tenha praticado actos reveladores do seu arrependimento, e, portanto, de que não carece de ressocialização). § 100 - Se toda a gama de disposições demonstra que o legislador penal estabelece critérios (a respeitar pelo juiz nas decisões dos casos concretos) reveladores de que a pena tem 1 função de prevenção especial positiva de reintegração social, tb é nítido que o mesmo legislador reconhece à pena 1 sentido de prevenção especial negativa, isto é, de dissuasão, p. ex., no art.º 44, o legislador acautela a hipótese de a substituição da pena curta de prisão por pena de multa ou por outra pena não detentiva não constituir suficiente prevenção da prática de futuros crimes, hipótese em que, apesar do reconhecimento de que as penas curtas de prisão não contribuem para a recuperação social do condenado, mesmo assim o juiz deverá condenar na pena de prisão. Não é a prevenção geral que, nesta hipótese, determina tal solução, mas sim a prevenção especial negativa ou de dissuasão individual. A mesma ideia de prevenção especial negativa está subjacente ao disposto no art.º 49/1 (conversão da multa não paga em prisão subsidiária); e tb me parece manifesta no art.º 75/1, quando o juiz, no caso de reincidência, é obrigado à agravação da pena, se considerar que «a condenação ou as condenações anteriores não lhe [serviram] de suficiente advertência contra o crime».

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§ 101 - O outro sentido da prevenção tem por destinatário toda a comunidade social e cada 1 dos seus membros, os cidadãos em geral, sendo portanto, 1 sentido e objectivo de prevenção geral, com dupla dinâmica, desdobrando-se e desenvolvendo-se num duplo sentido: prevenção geral positiva ou de integração e prevenção geral negativa ou de dissuasão. § 102 - Prevenção geral positiva ou de integração significa que a pena é 1 meio de interpelar, a sociedade e cada 1 dos seus membros, para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente, i.é, a pena serve a função positiva de interiorização ou aprofundamento dessa interiorização dos bens jurídico-penais. Esta função da pena começa por se realizar com a criação da lei criminal-penal (interpelação legal) e consuma-se com a aplicação judicial da pena e sua execução (interpelação judicial e fáctica). Óbvio que quanto mais importante for o bem jurídico, mais intensa deve ser a interpelação. E, por isto, necessariamente que quanto mais grave for o crime (mais valioso o bem jurídico a proteger) mais grave terá de ser a pena legal, e, no geral, também maior a pena judicial. Esta dimensão de interiorização torna-se mais necessária relativamente às condutas lesivas de bens jurídicos que, embora merecedores da tutela penal, a consciencialização da sua importância, para a vida da sociedade e das pessoas, ainda não é suficientemente profunda e generalizada.

Tal é o caso de muitos dos bens jurídicos protegidos pelo DP secundário ou económico-social (DP do ambiente, fiscal, da segurança social). Mas a prevenção geral positiva tem, ainda, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual, dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado. § 103 - A pena tb tem 1 função de prevenção geral negativa ou de dissuasão.

§ 104 - Consideremos, agora, como intervêm e como se relacionam a prevenção especial (positiva e negativa) e a prevenção geral (positiva e negativa) na determinação, legal e judicial, da pena, e na escolha da espécie de pena. O critério orientador, quer do legislador quer do tribunal deverá ser o seguinte: o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão).. Assim, quanto ao legislador, ele deve apresentar e, efectivamente, apresenta quer molduras penais suficientemente amplas, quer 1 ampla gama de espécies de penas. E, quanto ao juiz, deve este seguir o critério estabelecido no art.º 40/1,2.ª parte, e nos arts 43/1, 44º, 45º,46º, 49º, 70º, 71/2, al. c) 75/1, etc. Por conseguinte, a determinação da medida da pena e a escolha da espécie de pena, quando legalmente permitida, reger-se-á pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o "fim" é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes. § 105 - O critério da prevenção especial não é absoluto, mas duplamente condicionado e limitado: Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à "medida" da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais. I.é: mesmo que a perigosidade criminal do delinquente exigisse 1 pena maior do que a gravidade da culpa, em ordem a 1 adequada recuperação social do delinquente e/ou a 1 socialmente necessária dissuasão do mesmo delinquente, nunca a pena pode ser superior à culpa, i.é, a culpa constitui o limite máximo da pena determinada pelo critério da prevenção especial.

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Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para criar nos potenciais infractores 1 dissuasão mínima. Prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial. § 106 - Este limite mínimo da pena, imposto pelo fim ou necessidade da prevenção geral, coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral, mas tb, para o caso concreto, o legislador estabeleceu 1 limite mínimo, em nome do mínimo da prevenção geral indispensável, limite que deverá ser respeitado pelo tribunal. São precisamente os casos em que a pena concreta a aplicar seja superior a 3 anos de prisão, casos em que, mesmo que não haja nenhumas necessidades preventivo-especiais de recuperação social e de dissuasão individual (pq não há qualquer fundado receio de reincidência), o tribunal não pode deixar de condenar na respectiva pena de prisão superior a 3 anos, 1 vez que não é possível a suspensão da execução da pena (art.º 50/1), nem a sua substituição por 1 outra pena (art.º 43 e ss.). Isto será a regra nos casos de crimes muito graves, embora possa haver excepções, quando houver razões para a atenuação especial (art.º 72), e desta atenuação resulte a aplicação de 1 pena concreta não superior a 3 anos de prisão. § 107 - Este discurso sobre a prevenção geral (positiva e negativa) como constitutiva do limite mínimo, abaixo do qual não pode descer a pena, mesmo que não se verifique a necessidade preventivo-social, positiva e/ou negativa, não é contraditado pela figura da dispensa de pena, prevista no art.º 74/1, Com efeito, além de se exigir, como pressuposto da dispensa de pena (prisão não superior a 6 meses, ou multa não superior a 120 dias), que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas, e que não haja necessidade preventivo-especial (desnecessidade que se infere da circunstância do dano ter sido reparado), exige se, ainda, que a tal dispensa da pena não se oponham razões de prevenção. Ou seja: é (também) pressuposto da não aplicação da pena a não existência da necessidade de prevenção geral (positiva e/ou negativa). Daqui resulta a conclusão de que as razões de prevenção geral podem impedir a dispensa da pena, isto é, a pura e simples isenção ou não aplicação da pena, apesar de não se afirmar, no caso concreto, qualquer necessidade preventivo-social. Conclusão: não havendo necessidade de prevenção geral, e uma vez que também não existe necessidade preventivo-especial, logicamente que não deverá ser aplicada qualquer pena.

As MEDIDAS DE SEGURANÇA Génese histórica e progressiva inclusão das medidas de segurança nos CP

§ 108 - A Escola Positiva reagiu, frontal e radicalmente, contra o pensamento jurídico-criminal da Escola Clássica, propondo a trilogia determinismo – perigosidade – medidas de segurança em vez da trilogia liberdade - culpa - pena. i.é, a sociedade, através do poder estatal, só podia defender-se dos factos anti-sociais, (crimes), através de medidas de segurança, e não mediante a aplicação de penas, pois que estas, além de constituírem, para o delinquente, 1 castigo injusto (1 vez que ele não tinha culpa pelo facto que praticou), seriam também ineficazes para a defesa da sociedade (pois que as penas abstraíam das causas, endógenas e exógenas, da perigosidade criminal do infractor).

Nesta linha positivístico-criminal, a Escola Positiva defendeu que, em vez das tipologias dos factos, o dto criminal devia preocupar-se e caracterizar as tipologias dos delinquentes e respectivas perigosidades criminais, 1 vez que os factos criminais praticados eram mero sintoma ou indício da perigosidade; por outro lado, e numa sequência coerente, as consequências jurídicas do crime, i.é, a forma de o Estado se proteger contra o delinquente, só poderiam ser medidas de segurança.

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Estas tinham por objectivo principal a defesa da sociedade, e por objectivo complementar o tratamento, médico-psiquiátrico ou psicológico-social, das causas da perigosidade criminal do infractor, a não ser que estivesse em causa 1 delinquente incorrigível - caso em que a medida de segurança apenas cumpria a sua função principal, neutralizando ou inocuizando o delinquente incorrigível através do internamento que poderia vir a ser perpétuo, 1 vez que as medidas de segurança (da sociedade) tb deviam, em ppio, procurar o tratamento científico do delinquente, passaram a ser designadas, tb, por medidas de segurança (estão sujeitas ao ppio da jurisdicionalidade, proporcionalidade e legalidade) e tratamento. § 109 - Apesar da rejeição dos pressupostos deterministas (do comportamento humano em geral, e da conduta criminosa em especial) da Escola Positiva, e das consequências político-criminais que esta deles retirou, a verdade é que a figura das medidas de segurança não mais deixou de interessar à doutrina jurídico-penal, acabando por, progressivamente, vir a ser acolhida pelos legisladores, nos respectivos CP, ao lado das penas. Dado o seu carácter pioneiro, é legítimo referir CARLOS STOSS, autor que, pela primeira vez, em 1893, formulou, no seu Projecto de CP suíço, 1 verdadeiro sistema de medidas de segurança, ao lado do tradicional sistema de penas.

O sistema monista e o sistema dualista das reacções criminais § 110 - Apesar da introdução da categoria das medidas de segurança no direito criminal, foi, desde os fins do séc. XIX - princípios do séc. XX, entendimento dominante que aos imputáveis "normais" só deviam ser aplicadas penas, pois que, tratando-se de infractores com capacidade de avaliação da ilicitude dos seus actos e de livre decisão, utilização do crime como produto do mau exercício da sua liberdade de opção e decisão (pelo ilícito) eles eram culpados e, consequentemente, sendo legítima a sua punição com 1 pena ("castigo"); já, quanto aos inimputáveis, a sociedade só tinha legitimidade para se defender deles através de medidas de segurança, que não de penas, pois que estas pressupõem a culpabilidade que, nos inimputáveis, não existe. O Estado só tinha legitimidade para se defender, a si e à sociedade, através de medidas não punitivas, mas sim de medidas administrativas de segurança que visavam a neutralização (pelo internamento) e eventual tratamento das causas (anomalias psíquicas ou graves perturbações da personalidade) da perigosidade criminal.

§ 111 - A partir dos ppios do séc. XX, constatou-se que havia 1 categoria intermédia de delinquentes os quais, no momento da prática do facto criminoso, não eram plenamente imputáveis nem plenamente inimputáveis, pq, diferentemente dos infractores comuns ou "normais", eram afectados por determinadas tendências para a prática de crimes, o que lhes reduzia a capacidade de avaliação e/ou de decisão, pois que, apesar de diminuída a referida capacidade, esta existia. Esta categoria de delinquentes passou a ser designada por imputáveis perigosos ou delinquentes por tendência. É em relação a esta categoria intermédia de delinquentes que, até à actualidade, se levantou a discussão polémica sobre o monismo ou dualismo das reacções criminais: aos "imputáveis perigosos" devem aplicar-se só penas ou penas mais medidas de segurança?

§ 112 - Os defensores do sistema dualista diziam e dizem, em síntese: sendo a medida da pena limitada pela medida da culpa, a pena do imputável perigoso tem de ser menor do que a que seria aplicável ao imputável "normal", pois que as suas tendências para o crime, congénitas ou adquiridas, lhe diminuem a liberdade de decisão e, consequentemente, a culpa; mas a defesa da sociedade e dos bens jurídicos não fica posta em causa, na medida em que à pena, em função da culpa, há que adicionar a medida de segurança, em função da perigosidade criminal do infractor. § 113 - Os defensores do sistema monista dizem que, mesmo aos imputáveis perigosos ou por tendência, só devem ser aplicadas penas. Porém, 1 vez que estes autores também defendem 1 concepção ético-jurídica da pena, no sentido de que não há pena sem culpa e de que a medida ou gravidade desta constitui o limite máximo da pena, foram e são confrontados com a seguinte objecção político-criminal: se a pena dos imputáveis perigosos tem de ser menor, por força da sua menor censurabilidade ou culpa, em virtude das suas

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tendências para o crime, então, vai ser precisamente em relação à categoria dos delinquentes mais perigosos para a sociedade e para os seus bens jurídico-penais que a sociedade menos se pode proteger?!... Exposta a esta fundamentada e evidente contradição político-criminal, os defensores da teoria ético-monista procuram contorná-la através da criação e construção da culpa referida à personalidade, ao lado e a acrescer à tradicional figura da culpa referida e aferida no momento do facto. O art.º 83 e ss, actualmente aplicam-se a delinquentes por tendência – misto de pena (em função da culpa), e medida de segurança (em função da perigosidade)

§ 114 - Os 1.ºs autores (Mezger, Bockelmann, Eduardo Correia) apelam à culpa da vontade referida à personalidade, considerando que o imputável perigoso é culpado pelas suas tendências para o crime, 1 vez que estas são o resultado de 1 reiterado exercício do livre-arbítrio pelo ilícito criminal, i.e., a personalidade perigosa do imputável com tendências para o crime seria o resultado de múltiplas decisões da vontade do delinquente. Ou seja: a personalidade perigosa do imputável com tendências para o crime é o produto da soma de múltiplas "culpas da vontade" do delinquente. Assim, o imputável perigoso é objecto de 1 juízo de culpa pela não formação da personalidade adequada ao respeito pelos valores fundamentais da vida em sociedade. Por esta via, os defensores do sistema monista pensaram ter resolvido a objecção político-criminal que os dualistas lhe assacavam ao contra-argumentarem: a defesa social não fica comprometida com a via monista da exclusiva aplicação de penas, mesmo no caso de imputáveis perigosos, dado que, sendo que a culpa referida no momento da prática do facto ilícito é menor e, assim, menor é a pena, não se pode esquecer que a esta menor pena há que somar a pena pela culpa pela não formação da personalidade, acabando o tribunal por ter de aplicar ao infractor imputável perigoso pena não é inferior à que caberia a 1 imputável não perigoso. § 115 – Numa 2.ª fase, outros autores (Gallas, Figueiredo Dias), inspirando-se nas diversas correntes da filosofia existencialista (MarceI, Sartre, Baptista Machado), defenderam 1 nova concepção da culpa referida à personalidade, concretamente: uma culpa da personalidade. Partindo de 1 "abertura originária existencial", isto é, de 1 plasticidade antropológica, a cuja modelação o homem, cada homem, não pode furtar-se, cada 1 se vai tomando responsável, ao longo da existência, pelo "eu", pela personalidade que vai, necessariamente, construindo. Neste contexto antropológico filosófico-existencial, muitas das tendências delinquentes dos imputáveis perigosos são o resultado censurável do não cumprimento do dever existencial de "edificação" de 1 personalidade consciente e respeitadora dos valores essenciais em que assenta a vivência comunitária. Excluídas deste círculo da culpa da personalidade ficariam apenas as tendências criminosas congénitas e incorrigíveis. § 116 - Pese embora o bom fundamento antropológico desta culpa da personalidade, nem esta nem a culpa pela não formação da personalidade conseguem resolver o problema da categoria dos imputáveis perigosos ou por tendência, no quadro do sistema monista. Quer a teoria da culpa (da vontade) pela não formação da personalidade quer a teoria da culpa (existencial) da personalidade não dão resposta suficiente ao problema dos imputáveis perigosos. Se é certo que a vida em sociedade, habitat natural do homem, faz recair sobre este o dever de educar a sua personalidade no respeito do "mínimo ético-jurídico fundamental", não é menos certo que a pedagogia e a psicossociologia nos demonstram que o homem, no seu modo-ser, é, em grande medida, o fruto das suas "circunstâncias", e que estas, nas 1.ªs e decisivas fases da existência de cada 1, não são escolhidas por ele, mas, sim, impostas do exterior. Em resumo: não nascemos determinados para o "bem" ou para o "mal", mas sim "abertos" à modelação da personalidade num sentido ou noutro; só que a modelação ou estruturação axiológico-existencial se realiza nas fases iniciais da infância, e, portanto, num tempo em que o ser humano, ainda em formação da personalidade, não decidide, mas sim os que o circundam, a sociedade em geral, a família e a escola em especial. Transpondo este pensamento para as consequências jurídicas aplicáveis aos imputáveis perigosos ou por tendência, concluímos que

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a culpa referida à personalidade não resolve o problema, pois esta culpa, em muitos casos de tendências congénitas ou adquiridas, não passa de 1 ficção. A conclusão é de que o sistema monista (só penas) deixa a sociedade, e os seus bens jurídicos, parcialmente desprotegida diante dos imputáveis perigosos ou por tendência. A pena tem, de ser menor que a aplicável ao imputável "normal"; e este défice de pena não pode, em muitos casos de imputáveis perigosos, ser compensado por 1 acréscimo de pena em função de 1 perigosidade culposa, precisamente porque esta perigosidade não pode ser censurável ao delinquente.

3. A positivação do sistema dualista no Código Penal de 1982 § 117 - O CP de 1982, arts. 83.° a 90.°, consagra a pena relativamente indeterminada para os delinquentes por tendência, isto é, para os delinquentes imputáveis especialmente perigosos, adoptou o sistema dualista - aplicação de pena mais medida de segurança, o sistema monista, persiste na aplicação exclusiva de penas, fundamenta-se em 2 razões ou argumentos: por 1 lado, o que separa o sistema dualista do sistema monista é, o modo como cada 1 enfrenta a questão dos "imputáveis perigosos ou por tendência". Por outro lado, a nossa pena relativamente indeterminada é, real e materialmente 1 misto de pena mais medida de segurança; a partir de 1982, o nosso CP passou a ser dualista. Na verdade, na "pena" relativamente indeterminada, a parte da privação da liberdade correspondente aos 2/3 da pena que concretamente caberia ao crime cometido (arts. 83/2, 84/2 e 86/2) é, realmente, 1 pena determinada pela culpa do facto. Só que, por força da tendência para o crime, esta culpa é considerada menor do que a que existiria e se afirmaria, se o crime tivesse sido praticado por 1 imputável "normal" ou ocasional e, por consequência, tb a pena tem que ser menor, i.é, igual aos referidos 2/3. Já o acréscimo de privação da liberdade, que pode ir até 6, 4 ou 2 anos (arts. 83/2, 84/2 e 86/2), é 1 autêntica medida de segurança, assente e justificada (justificada quanto à sua existência e aplicação, mas, injustificada, por exagerada, quanto à sua possível duração) pela perigosidade criminal do infractor, demonstrada pela reiteração criminosa anterior (arts. 83/1, 84/1 e 86/1).

O fim e as funções das medidas de segurança § 118 - O fim, no sentido de verdadeiro objectivo ou "fim-último", das medidas de

segurança é a protecção dos bens jurídico-criminais, como refere a 1.ª parte do n.º 1 do art. 40.º. Tal refª era desnecessária, pois é evidente que, pressupondo as medidas de segurança a perigosidade criminal (que não apenas a perigosidade social) e traduzindo-se as verdadeiras e genuínas medidas de segurança na privação ou restrição do dto fundamental e constitucionalizado da liberdade, elas só se justificam como meio ao serviço do fim de protecção de outros bens jurídicos fundamentais. Ou seja: o princípio constitucional da proporcionalidade (CRP, art. 18/2) tanto se aplica às restrições da liberdade do infractor imputável (seja este perigoso ou ocasional) como às restrições da liberdade do inimputável, pois que este não deixa de ser titular dos dtos fundamentais por ter a infelicidade de ser inimputável. § 119 - As funções, objectivos imediatos ou "fins-meios", das medidas de segurança são de prevenção especial de recuperação social do inimputável perigoso, através do tratamento da anomalia psíquica (caso dos inimputáveis) ou da correcção da tendência criminosa (caso dos imputáveis perigosos por tendência) e, ainda, de inocuização ou neutralização da perigosidade criminal do infractor, através do internamento, enquanto aquela perigosidade persistir. § 120 – Quanto à função de prevenção geral, há que distinguir o caso dos inimputáveis do caso dos imputáveis perigosos ou por tendência. § 121 - No caso dos inimputáveis, a única função que a medida de segurança desempenha é a de prevenção geral positiva de pacificação social, prevista no art. 91/2: Diga-se que não deixamos de considerar excessiva essa duração, bastando, para a comprovação desta crítica, pensar que podem estar em causa ilícitos criminais cujos limites mínimos da pena aplicável são claramente inferiores aos 3 anos (arts. 272/2, 273/c), 277/1,

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280/a)). Embora a medida de segurança aplicada a inimputáveis tenha por principal função a prevenção especial de socialização (recuperação social) do inimputável e de neutralização da sua perigosidade criminal, ela tb desempenha 1 função secundária de prevenção geral de pacificação social, só se afirmando nos casos de ilícitos criminais mto graves, donde, nos casos em que há necessidade social de pacificação, a respectiva dimensão da prevenção geral constitui o limite mínimo da medida de segurança privativa da liberdade. TC não concorda que a medida de segurança aplicada a inimputáveis desempenhe a função de prevenção geral de integração no sentido de protecção da confiança comunitária nas normas, como rejeita que esta função esteja, patente ou latentemente, contida na disposição do n.º 2 do art.º 91, quando se refere à "defesa da ordem jurídica". A medida de segurança aplicada a inimputáveis não tem a função ou objectivo de prevenção geral de integração - seja no sentido de interiorização da relevância dos bens jurídicos violados, seja no sentido de tutela ou reforço da confiança da comunidade na vigência efectiva das normas penais -, precisamente porque nem 1, nem a outra destas dimensões da prevenção geral de integração são postas em causa ou abaladas pelo ilícito criminal praticado pelo inimputável. A comuniidade dos imputáveis sabe bem que o inimputável não é ético-juridicamente motivável pelas normas penais. Logo, não se sente afectada, na sua consciência dos valores lesados pelo inimputável e na sua confiança na vigência efectiva das normas penais, pelo ilícito praticado pelo inimputável. A única coisa que a comunidade sente, com o ilícito grave cometido pelo inimputável, é o medo, a perturbação, o abalo social. E, por isto, é que poderá ter de haver um mínimo de duração da medida de segurança de internamento, para a respectiva pacificação social. § 125 – No caso dos imputáveis perigosos ou por tendência (CP, arts. 83.º a 90.º), pode reconhecer-se que a parte de privação da liberdade correspondente à medida de segurança, desempenha, para além da função primária de prevenção especial (na dimensão de recuperação social, mas também no vector de neutralização da perigosidade criminal), a função secundária de prevenção geral, quer no sentido de pacificação social, quer no sentido de revigoramento da confiança jurídica da comunidade na eficácia da tutela estatal dos bens jurídico-criminais. É que, embora nestes casos, a medida de segurança pressuponha a perigosidade criminal visando actuar sobre esta perigosidade, não é de esquecer que estamos perante delinquentes imputáveis. Assim, apesar de se poder e, quiçá, dever considerar que tais delinquentes não são culpados dessa perigosidade, não deixarão eles de "sentir" a razão do acréscimo da medida de segurança à pena em que (em nome da culpa do facto) tb são condenados, como tb a sociedade verá reforçada a sua confiança na eficaz protecção dos bens jurídicos-criminais.

O DIREITO PENITENCIÁRIO O direito penal e o direito penitenciário (implícito no Correccionalismo)

§ 172 – A política criminal, que orienta e estrutura o nosso DP, é 1 política criminal humanista. Humanista, no sentido e na medida em que atribui ao DP a função positiva de protecção dos valores fundamentais da pessoa humana e das condições sociais indispensáveis à realização destes valores; humanista, pois que assume a pena exclusivamente como 1 mal que só se legitima, qd indispensável para prevenir a prática dos crimes, humanista, quando assinala à pena, nomeadamente de prisão, e à medida de segurança privativa da liberdade, o objectivo primordial de recuperação social do delinquente. § 173 – No entanto tudo não passará de hipocrisia prática, se o sistema penitenciário continuar ignorado e imune às implicações práticas decorrentes destas exigências político-criminais. Infelizmente, a realidade dos estabelecimentos penitenciários tem demonstrado esta hipocrisia ao ponto de estes serem considerados, em muitos casos, verdadeiras "escolas do crime". § 174 - O direito penitenciário, enquanto modo de execução da pena de prisão e da medida de segurança privativa da liberdade, não pode ser visto como 1 apêndice secundário e estranho ao DP. Bem pelo contrário, é nele que se realiza, ou não, o sucesso ou o fracasso da política criminal, especialmente quando esta acentua a função ressocializadora da pena.

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2. Breve referência à história do direito penitenciário: da sua concepção meramente administrativa à actual autonomia e integração normativa no âmbito da política criminal § 175 - Até meados do séc. XIX, o infractor foi visto como 1 inimigo da sociedade e à pena foi atribuída 1 finalidade de retribuição-expiação ou de intimidação. O recluso não passou de 1 objecto da execução punitiva, não lhe sendo legalmente reconhecida a titularidade dos DF’s, encontrando-se num como que estado de sujeição, visto como um banido da sociedade, pelo menos durante o tempo da prisão, a administração penitenciária podia decidir discricionariamente, ou mesmo arbitrariamente, sobre o modo ou regime da execução da pena, situação que veio a ser alterada a partir da 2.ª metade do séc. XIX, com a Escola Correccionalista, e a afirmação do ppio da corrigibilidade do delinquente, ao atribuir à pena de prisão 1 sentido de recuperação social que salientou a necessidade de a execução da pena ser modelada em ordem à preparação do recluso para a vida em sociedade. § 177 - Em Portugal, esta preocupação com a regulamentação da execução da pena de prisão, adequada à correcção e à reinserção social do delinquente, foi 1 constante, desde meados do séc. XIX até à actualidade. Em 1/8/1979, foi publicado o DL n.º 265/79, " projecto da autoria de Eduardo Correia, que se caracterizou pela consagração expressa dos princípios fundamentais penitenciários. O 1.º ppio é o de que o recluso (seja imputável ou inimputável) mantém a titularidade e o exercício de todos os seus DF’s, só sendo legítimas as restrições inerentes à própria condição de preso ou internado, e aquelas que sejam indispensáveis à ordem interna penitenciária e à necessidade de evitar a fuga. Um 2.º ppio é o de que a execução da prisão deve ser orientada para a socialização do recluso. O 3.º ppio é o da jurisdicionalização da execução da prisão e da medida de segurança de internamento. Esta função cabe aos tribunais de execução, que constituem o garante dos direitos dos reclusos.

3. O sentido da evolução do dto penitenciário português actual § 178 – Está actualmente, em curso 1 processo de revisão do sistema de execução

das penas de prisão e das outras medidas privativas da liberdade (medidas de segurança, prisão preventiva, etc.). O projecto de proposta de lei, elaborado por 1 comissão presidida por Anabela Rodrigues, propõe 1 reformulação do regime penitenciário actual, que consta do DL n.º 265/79. As linhas de força do projecto são as seguintes: reforço do estatuto jurídico do recluso, concretizando, pormenorizadamente, os seus DF’s, quer individuais (liberdade de consciência, liberdade religiosa, recusa do tratamento coercivo, etc.), quer sociais (dto à assistência médica, dto às condições de educação intelectual e de aprendizagem profissional, etc.); Reafirmação do objectivo da socialização, considerando, que o 1.º objectivo é evitar a dessocialização, que é algo de congénito a 1 pena que separa o condenado da sociedade, embora se devam criar as condições prisionais que possibilitem a recuperação social do delinquente (neste sentido, propõe-se a criação de 1 "conselho de socialização"); clarificação das competências do tribunal de execução e da direcção do estabelecimento prisional; reformulação física dos estabelecimentos prisionais, em ordem a 1 necessária separação das diferentes categorias de reclusos (comuns, jovens adultos, preventivos, reclusos com perturbações psíquicas, etc.); abertura, na medida do possível, da prisão à sociedade e da sociedade à prisão, a fim de se eliminar a imagem e o estigma social de que o estabelecimento prisional é um mundo de banidos. A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E OUTROS RAMOS DO DIREITO AFINS

A natureza pública do DP e a natureza privada do Dto Civil 1. A natureza pública e autónoma do direito penal

§ 180 - O DP constitui 1 ramo do dto público sendo aceite por quase toda a ciência jurídica, nomeadamente pela doutrina penalista. O dto criminal-penal é dto público por excelência, seja qual for o critério que se eleja para fixar a fronteira entre o dto público e o dto

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privado (critérios da natureza dos interesses, da força imperativa das normas ou da posição dos sujeitos na relação processual). § 181 - O DP tem por função proteger os valores ou bens jurídicos assumidos pela consciência ético-social como indispensáveis à realização pessoal e à convivência comunitária, possibilitadora daquela realização pessoal-individual, i.é., cabe ao DP defender e promover a estrutura axiológica fundamental da interacção social, condição necessária (e mesmo constitutiva) da sua existência cultural. Deste modo, a violação desse núcleo fundamental de valores protegido pelo DP constitui 1 ofensa a toda a comuniidade social, e não apenas em relação à pessoa em que se tenha concretizado a lesão do bem jurídico, cabendo ao Estado, enquanto representante da sociedade politicamente organizada, a tutela dos valores comunitários, tornando-se, face a qualquer crime, o titular único do ius puniendi, função que vincula o Estado à efectivação da justiça criminal, mesmo contra a vontade expressa do particular ofendido, que por via do Ministério Público, em regra, não pode deixar de exercer a acção penal (CPP, art. 48.º), mesmo quando a promoção da acção está condicionada (em razão da menor gravidade do crime ou de razoáveis interesses pessoais da vítima) à prévia apresentação de queixa (CPP, art. 49.º) ou à acusação particular (CPP, art. 50.º), cabendo-lhe a titularidade da acção penal.

Distinção entre o direito penal e o direito civil § 186 - Distinção entre o DP e o dto civil, manifesta-se em vários aspectos dos

respectivos regimes jurídicos, os quais se fundamentam e arrancam da diferença entre a natureza eminentemente pública dos bens jurídicos tutelados pelo DP em contraposição à dimensão fundamentalmente privada dos interesses protegidos pelo direito civil. Em síntese: enquanto os valores ou bens jurídico-penais são reconhecidos como suporte axiológico de toda a comunidade social, já os bens ou interesses jurídico-civis são assumidos como particulares, i.é, como interesses do respectivo titular individual.

§ 187 – Diferentes também são as sanções penais e as "sanções" civis: aquelas olham ao presente (momento da prática do crime e do respectivo julgamento) e ao futuro, isto é, têm 1 finalidade exclusivamente preventiva do crime; já as "sanções" civis, olham ao passado (momento da prática do facto ilícito civil) e ao presente (momento da efectiva reparação do dano causado), i.é, têm 1 finalidade reparadora dos danos causados. Assim, a medida da pena deve reduzir-se ao indispensável à prevenção, geral e especial, de futuros crimes, mas já a medida ou o quanto da "sanção" civil (deve, em regra, corresponder ao dano ou prejuízo causado (CC, art.º 483/1).

O DP e o Dto. De Mera Ordenação Social § 217 - Discutida e difícil a distinção entre o DP e o dto de ordenação social. Difícil, no campo teórico ou dos ppios, pelo facto de, tanto num como no outro destes ramos do dto, estarem em causa valores ou bens jurídicos sociais; e difícil, tb no campo prático dos respectivos regimes jurídicos materiais e processuais, 1 vez que a realidade da evolução legislativa recente tem ido no sentido oposto à ideia histórica inicial da quase total autonomia e separação entre estes 2 sectores do dto público sancionatório. Se já o diploma fundador do dto de mera ordenação social português, o DL n.º 232/79, de 24/7 (substituído, pela sua inconstitucionalidade orgânica, pelo DL n.º 433/82, de 27/10, que manteve praticamente o conteúdo normativo daquele), não continha 1 regime jurídico geral claramente distinto do regime geral do DP, então a revisão do regime geral das contra-ordenações, operada pelo DL n.º 244/95, de 14/9, aproximou, ainda mais, do DP o regime geral do dto de mera ordenação social. Exemplos desta, indesejável aproximação são: os casos da punição do Concurso de contra-ordenações (art. 19.º), em que, em vez da razoável adopção do critério da acumulação material, se optou pelo cúmulo jurídico; a gravidade das sanções acessórias contra-ordenacionais (art.º 21), que não ficam a dever nada à gravidade das penas criminais acessórias, tal como no processo penal.

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1. Antecedente remoto do direito de ordenação social: as contravenções § 218 - No séc. XVIII, o Estado-Polícia, correspondente ao despotismo iluminado e à

última fase do absolutismo monárquico, caracterizou-se por 1 acentuado intervencionismo na economia e na sociedade, daí resultando a criação de 1 ampla gama de normas jurídicas regulamentadoras dos mais variados aspectos da vida económica e social. Dada a ausência de qualquer preocupação com os dtos individuais, o sancionamento das transgressões às normas regulamentadoras administrativas cabia às diversas autoridades policiais. § 219 - Com o aparecimento do Estado-de-Direito, em fins do séc. XVIII - princípios do séc. XIX, e as correspondentes consagrações constitucionais dos DLG’s individuais, e do ppio da legalidade da AP, as sanções contra os transgressores das normas regulamentadoras administrativas passou a ser da competência dos tribunais. Surge, então, a figura das contravenções, ao lado do crime. Embora consideradas menos graves que este, tb passaram a ser tidas como infracção penal. E pq o objecto e o objectivo era a protecção dos interesses da AP e, por outro lado, as sanções aplicáveis eram penas (de multa ou pena de prisão curta), a doutrina passou a qualificá-las como ilícito penal administrativo por contraposição ao crime que era designado por ilícito penal de justiça. § 222 - Figueiredo Dias, afirma que a distinção material entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social está no facto de a conduta, configurada pelo legislador como contra-ordenação, ser axiológico-socialmente neutra, enquanto que a conduta, qualificada legalmente como ilícito penal, ser em si mesma ilícita. Taipa de Carvalho discorda destes termos de distinção, pois, apesar de, incorrectamente, se ter aposto o adjectivo "mera", não se pode dizer que as condutas qualificadas como ilícito de mera ordenação social são em si mesmas axiologicamente irrelevantes. Mais: se fosse exacto que as condutas, qualificadas como contra-ordenações, são em si mesmas axiológico-socialmente neutras ou irrelevantes, concluir-se-ia que as decisões legislativas de qualificação como ilícitos de mera ordenação eram inteiramente desvinculadas, inteiramente discricionárias, ou até arbitrárias. § 223 - No mesmo sentido de que a figura jurídico-penal da contravenção é o antecedente remoto (antecedente que, hoje, é 1 parte do grande universo das contra-ordenações) do actual ilícito de mera ordenação social, vai o art.º 3 do 1.º CP de 1852 (artigo intocado no CP de 1886 e que, tendo em conta o art.º 6 do DL n.º 400/82, que aprovou o CP de 1982, ainda se mantém em vigor). § 224 - Conclusão: o ilícito penal administrativo ou contravencional (contravenções) gerou-se para proteger os interesses da AP na ordenação da sociedade. Hoje, estes interesses, cuja violação constituía a infracção penal chamada contravenção, são protegidos pelo dto de ordenação social, cuja infracção configura 1 contra-ordenação.

Factores político-sociais e político-criminais da criação do direito de ordenação social § 225 - O dto de ordenação social resultou dos efeitos convergentes de 2 fenómenos de diferente natureza: por 1 lado, a consagração e efectivação do Estado de Direito Social; por outro lado, a afirmação de 1 nova política criminal que procurou reconduzir o DP a 1 verdadeiro último recurso da política social e da política jurídica.

Factores político-sociais: o Estado de Direito Social § 226 - Durante o séc. XIX e 1.ªs décadas do séc. XX, vigorou o Estado de Direito Liberal. Os pilares filosófico-políticos deste Estado foram os dogmas do individualismo e do naturalismo, ou seja: preocupe-se o Estado apenas com a defesa externa e com a ordem interna, pois que o indivíduo, entregue a si mesmo e relacionando-se livremente com os outros, será o motor do progresso económico e social. A realidade, porém, veio a contradizer este optimismo liberal e individualista. Com efeito, as consequências económicas e sociais foram desastrosas: em vez da livre concorrência, assistiu-se à criação de oligopólios e de cartéis; em vez da satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores, assistiu-se à exploração do trabalhador e a 1 injustiça social clamorosa.

§ 227 - Progressivamente, a consciência social e política, evolui no sentido de que a simples proclamação dos dtos individuais não é suficiente para a promoção de 1 ordem social

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minimamente justa. A democracia política não é 1 fim, mas 1 meio para a progressiva democratização económica, social e cultural, cabendo a este promover 1 tal democratização. Neste contexto, o social é assumido como 1 pilar fundamental da organização política; a partir da II Grande Guerra, as Constituições passam a ter 1 estrutura e 1 conteúdo tripolar - indivíduo, sociedade e estado, que consagram os traços característicos do Estado de Dto Social: "igualdade de oportunidades", que implicam 1 complementação da igualdade perante a lei com a igualdade material; a afirmação dos "DF’s positivos" (dto à educação, à assistência social), ao lado dos tradicionais "DF’s negativos" (os DLG’s individuais); a consagração da função (direito-dever) estadual de intervenção reguladora e promotora do processo económico e do processo social global, qual condição da realização da referida igualdade de oportunidades e dos mencionados DF’s positivos. § 228 - Esta nova concepção da sociedade e do Estado levou, à criação de 1 multiplicidade de normas jurídicas nos mais diversos sectores do social: normas económicas (societárias, fiscais, etc.); normas sobre as subvenções sociais; normas urbanísticas; normas sobre o ambiente; pois que, em meados do séc. XX, começa a tomar-se consciência dos graves riscos, para as gerações presentes e vindouras, da industrialização desordenada e da hiper concentração urbana. Diante desta enorme produção legislativa, levanta-se, à doutrina e ao legislador, a questão: que tipo de sanções aplicar aos infractores? A quem deve ser atribuída a competência para julgar as respectivas infracções? Em que ramo do dto incluir estas normas? A resposta foi: incluí-las no dto civil, não!, pois que estas normas protegem interesses sociais; incluí-las no dto administrativo, tb não, pois que, embora caiba à AP promover e fiscalizar o cumprimento destas normas, estas protegem interesses sociais que não coincidem com os interesses tradicionalmente tutelados pelo dto administrativo, para além de à infracção destas novas normas deverem corresponder sanções punitivas, que exorbitam do quadro sancionatório específico do dto administrativo; incluí-las no DP? - De forma alguma, pois tal implicaria 1 criminalização que asfixiaria os tribunais penais, para além de muitas destas normas e correspondentes infracções não terem a dignidade penal exigível para a sua criminalização. Restou como alternativa adequada a criação de 1 nova figura - a "contra-ordenação" - a ser incluída num novo ramo do dto, chamado "direito de ordenação social", com 1 regime jurídico material e processual próprio.

Factores político-criminais § 229 - A estes factores político-sociais vieram somar-se novos factores político-

criminais. Quase em simultâneo com esta intervenção estadual normativo-conformadora da ordenação social, surgiram razões político-criminais que convergiam na mesma conclusão da necessidade, teórica e prática, da criação de 1 novo sector jurídico público e sancionatório. Referimo-nos aos fenómenos seguintes: o aparecimento, nos anos 60/70, das novas, complexas e graves formas de criminalidade organizada, como o terrorismo (Itália e na Alemanha) e o narcotráfico; a criminalidade económica grave, resultante da consciencialização social e política de que o chamado "crime do colarinho branco" é gravemente corrosivo do sistema social e político, e muito mais danoso do que muitas das infracções criminais individuais contra o património alheio (furto, abuso de confiança); finalmente, o movimento político-criminal da descriminalização, baseado numa reforçada consciência de que o DP deve, realmente, ser assumido como o último recurso da política social e jurídica. O movimento da descriminalização opunha-se a que estas novas infracções à ordenação social fossem incluídas no DP. É que este movimento, baseado no princípio da intervenção mínima do DP, só podia aceitar a criminalização das condutas, que fossem, por 1 lado, ético-socialmente muito graves (tivessem a chamada "dignidade penal") e que, por outro lado e além disso, não houvesse outros meios sancionatórios, além das penas, susceptíveis de proteger tais valores sociais (em relação aos quais se afirmasse a chamada "necessidade penal"). Ora, em relação à generalidade destas novas infracções sociais, não se verificavam estes pressupostos da criminalização. Logo, deveriam ficar fora do DP.

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Por sua vez, as novas formas de criminalidade grave e organizada (terrorismo, narcotráfico, etc.) não podiam deixar de ser incluídas no DP, tendo em conta a grande complexidade desta nova criminalidade, daí, a investigação e o julgamento destes novos crimes passarem a exigir dos órgãos de justiça criminal 1 atenção e 1 tempo redobrados. Portanto, também este foi um factor impeditivo da inclusão dos referidos ilícitos de ordenação social no direito penal. Caso contrário, os órgãos de investigação criminal e os tribunais ficariam saturados e bloqueados no seu funcionamento.

Conclusão: a inevitabilidade da criação de 1 novo e específico ramo do dto público sancionatório: O direito de ordenação social

§ 230 - A conjugação dos vários fenómenos, levou à criação de 1 novo ramo do dto, que se veio a chamar, com propriedade, dto de ordenação social. Pois: por 1 lado, estes novos interesses da ordenação social precisavam, para serem eficazmente protegidos, de 1 tutela jurídica punitiva; e, por outro lado, embora estes novos interesses começassem a ser assumidos como socialmente relevantes, a verdade é que, relativamente a 1 parte deles, entendia-se, e entende-se, que a sua lesão não põe directamente em causa a estrutura axiológica fundamental da sociedade, indispensável: 1 realização pessoal individual, e/ou ainda não tinham adquirido a suficiente ressonância ético-social que justificasse a criminalização das respectivas infracções. § 231 - Ao decidir-se o legislador, por influência da doutrina, pela criação do dto de ordenação social, como ramo jurídico punitivo específico e autónomo do DP, foi natural que o antigo ilícito penal administrativo, i.e., as contravenções fossem incluídas neste novo ramo do dto. É que, paralelamente à tendência descriminalizadora, ia a consciência de que a maior parte das contravenções não possuíam a suficiente "dignidade penal" para que fossem consideradas infracções penais, ao lado dos crimes.

A autonomia do direito de ordenação social face ao direito penal

§ 232 - O DL n.º 433/82, que contém o regime geral das contra-ordenações, dá, no art. 1.º, a seguinte definição de ilícito de ordenação social: «constitui contra-ordenação todo o facto ilícito […] que preencha 1 tipo legal no qual se comine 1 coima». Trata-se, de 1 definição formal, consequencial: define-se o ilícito (que, tal como o crime, tem que estar tipificado) pela sanção. Logo, positivo-formalmente, a contra-ordenação distingue-se do crime pq aquela corresponde 1 coima enquanto que a este se aplica 1 pena.

A autonomia material do ilícito contraordenacional § 233 - Uma vez que pena e coima são sanções punitivas de diferente natureza, e,

eventualmente, com finalidades não coincidentes, é natural que tb os respectivos ilícitos (criminal e contraordenacional) sejam diferentes. Tem-se discutido se entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal existe 1 distinção qualitativa (material) ou somente uma distinção quantitativa (formal). Entre nós, o entendimento largamente maioritário vai no sentido da distinção qualitativa. Assim, p. ex., Eduardo Correia - o grande impulsionador da criação legislativa do dto de "mera" ordenação social e autor do respectivo projecto legislativo - afirma que o ilícito de ordenação social é 1 aliud e não 1 mínus, em relação ao ilícito penal; isto é, a contra-ordenação é 1 ilícito de natureza substancialmente diferente do crime acrescentando à designação "dto de ordenação social" o adjectivo mera, passando a denominar-se este novo ramo jurídico por "direito de mera ordenação social". § 234 - Tb Figueiredo Dias vai nesta mesma linha da autonomia material e consequente distinção qualitativa. Segundo este autor, «É este o critério decisivo que está na base do princípio normativo fundamentador da distinção material entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social».

§ 235 - TC tb vai no sentido de 1 diferença qualitativa entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional, e, portanto, entre o DP e o dto de ordenação social, recusando no entanto o critério que contrapõe condutas "axiológico-socialmente ou ético-socialmente

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relevantes" (aquelas que poderão ser configuradas como crime) a condutas "axiológico-socialmente” ou ético-socialmente irrelevantes" ou neutras (aquelas que nunca poderão ser configuradas como crime, mas somente como "mera" contra-ordenação). Com efeito, não é verdade que a contra-ordenação ou ilícito de ordenação social tenha por substrato 1 conduta axiológica-socialmente ou ético-socialmente irrelevante ou neutra, dando como exemplo qualquer categoria de contra-ordenações (sejam fiscais, ambientais, urbanísticas, rodoviárias, etc.), aflorando que as respectivas condutas não são proibidas por proibir, mas, sim, que se trata de condutas que são, em si mesmas, socialmente desvaliosas e censuráveis, considerando incorrecto o termo “mera” de Eduardo Correia bem como do argumento apresentado por Figueiredo Dias § 238 - A realidade é que o dto de "mera" ordenação social não protege 1 qualquer ordenação social, mas sim tutela valores sociais. Valores que, por 1 lado, é função do Estado proteger e, através das respectivas sanções punitivas contra-ordenacionais, levar a que os cidadãos e as PC se consciencializem da sua relevância social; mas valores sociais ou individuais, que não são considerados, num dado momento como fundamentais ou indispensáveis às exigências mínimas da vida comunitária e/ou da realização pessoal individual; ou, então, valores sociais ou individuais que, embora tidos por fundamentais, o legislador entenda como suficiente e adequada a sua inclusão no âmbito da tutela do dto de ordenação social, e, assim, qualifique a sua infracção como contra-ordenação, tendo em conta o princípio basilar da subsidiariedade do DP. Conclusão: o dto de ordenação social protege valores ou interesses sociais; e tb as condutas qualificadas como contra-ordenações, em si mesmas, axiológico-socialmente e ético-socialmente, relevantes e censuráveis. Só que, diferentemente do DP, 1 grande parte dos valores ou bens jurídicos, protegidos pelo dto de ordenação social, não pertencem à estrutura axiológica fundamental da vida comunitária e da realização pessoal (não atingem a categoria da chamada "dignidade penal"), estrutura que é o objecto próprio do DP. E é nisto, e só nisto, que eu vejo e defendo a distinção material ou qualitativa entre o dto de ordenação social e o DP, entre a contra-ordenação e o crime. Mas dissemos que esta diferença qualitativa se verificava em relação a 1 grande parte do direito de ordenação social; portanto, não vale para a totalidade das contra-ordenações, o que, por outras palavras, significa que o critério qualitativo ou da distinção material é apenas tendencialmente verdadeiro, E isto porque, como o já referimos, por força do ppio da subsidiariedade do DP, pode haver condutas que, apesar de lesarem ou porem em perigo os tais valores fundamentais, i.e., apesar de terem "dignidade penal" (poderem ser criminalizadas), não são qualificadas como crime, mas sim como contra-ordenação, pelo facto de o legislador entender como suficiente e adequada a sua punição contraordenacional. Logo, nestes casos, olhando para as condutas em si mesmas, estas até podiam ser qualificadas como crime, em vez de contra-ordenação. - E este aspecto pode ser relevante para efeitos da consideração como censurável de 1 eventual falta de consciência da ilicitude contraordenacional, mesmo que haja um desconhecimento da proibição legal.

As sanções contraordenacionais As finalidades

§ 240 - Vários autores (ex" Figueiredo Dias), concluem, que as sanções contraordenacionais têm 1 função de mera advertência ou reprimenda pela não observância das proibições ou imposições legislativas. Ou seja, só têm 1 finalidade preventiva negativa: geral, no sentido de dissuadirem a generalidade dos destinatários das respectivas normas; especial, na medida em que dissuadem o infractor da prática reincidente. § 241 - A minha posição é diferente. E esta diferença resulta e está conexionada com a minha posição quanto à relevância axiológico-social e ético-social das condutas que constituem o objecto da valoração-proibição contida nas normas do direito de ordenação social. Em 1.º lugar, não cabem nas finalidades das sanções contraordenacionais as ideias de retribuição. Em 2.º lugar, há que afirmar que as funções principais destas sanções são de dissuasão geral (prevenção geral negativa) e de dissuasão individual (prevenção especial negativa):

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dissuasão de todos os destinatários das respectivas normas; dissuasão do infractor condenado em relação à reincidência. Logo: funções de prevenção negativa. Mas, tendo em conta a relevância social dos interesses, valores ou bens jurídicos tutelados pelo dto de ordenação social, as sanções contraordenacionais desempenham, adicionalmente, a função de promoção ou aprofundamento da consciencialização social da importância comunitária e/ou individual daqueles valores (e, correlativamente, da negatividade e reprovabilidade das condutas que lesam ou põem em perigo estes valores), e a função de consciencialização do próprio infractor condenado. Isto é, embora adicionalmente e de forma menos intensa do que as sanções criminais, as sanções contraordenacionais também desempenham funções positivas de prevenção.

As categorias de sanções/A sanção principal: coima § 242 - Tal como no DP, tb o dto de ordenação social estabelece 2 categorias de

sanções: a coima e as sanções acessórias. A coima é a sanção principal. Segundo o DL n.º 433/82, art.º 17, os limites máximos das coimas são diferentes, consoante o infractor seja 1 pessoa singular ou 1 pessoa colectiva, sendo, porém, igual o limite mínimo. Este mesmo artigo ressalva a hipótese de 1 qualquer lei estabelecer, para determinada contra-ordenação, 1 limite máximo superior aos estabelecidos neste DL n.º 433/82, que contém o regime geral das contra-ordenações. Todavia, há que não esquecer que este regime geral está constitucionalmente incluído nas matérias de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (CRP art.º 165/1/d); donde resulta que um decreto-lei só poderá estabelecer 1 limite máximo superior ao previsto no referido art.º 17, desde que esteja suportado por 1 lei de autorização legislativa, sob pena de inconstitucionalidade formal-orgânica. § 243 - É necessário comparar e distinguir a coima e a multa. Sendo ambas sanções pecuniárias, elas têm, porém, uma natureza e um regime jurídico diferente. Enquanto a pena tem natureza penal, a coima, embora tenha 1 natureza punitiva, não tem essa natureza penal. Daqui resulta que a gravidade da culpa desempenha 1 papel maior na determinação da pena-multa do que na sanção-coima. Tanto na determinação concreta da multa como na da coima, o legislador manda atentar na situação económica do infractor (CP, art.º 47/2; DL 433/82, art.º 18/1), todavia, a pena de multa, diferentemente da coima, é, primeiramente, determinada em dias de multa e, só depois, estabelecido o quantitativo correspondente a cada dia de multa. Os critérios para a determinação dos dias de multa são os mesmos que os da determinação da pena de prisão; o que significa que a gravidade da culpa do agente é factor importante na determinação da multa final (CP, art.º 47/1). Diferença prática muito importante é também a do regime jurídico, no caso do não pagamento: estando em causa a multa, se esta não for paga, voluntária ou coercivamente, pode ser convertida em prisão (CP, art.º 49); já a coima nunca pode ser substituída por prisão, mas apenas, no caso do não pagamento voluntário, ser objecto de execução (DL 433/82, art.º 89).

As sanções acessórias § 244 - O elenco das sanções acessórias aplicáveis às contra-ordenações vem no art.º

21 do DL n.º 433/82. Ele é tão amplo e prevê sanções tão graves que deixa a dúvida se a contra-ordenação é um ilícito menos grave que o ilícito criminal. Estas sanções acessórias podem ir da perda de objectos até ao encerramento de estabelecimento, passando pela interdição do exercício de profissões, privação do direito a subsídio, etc.

Competência para o julgamento § 245 – 2.º o art.º 33 do DL n.º 433/82, a competência para o processamento das contra-

ordenações, aplicação das coimas e das sanções acessórias é das autoridades administrativas. Esta atribuição da competência às autoridades administrativas é o corolário lógico da necessidade de "libertar" os tribunais para o julgamento das infracções mais graves, que são os crimes.

§ 246 - Mas, 1 vez que as sanções aplicáveis às contra-ordenações podem ser muito gravosas, a necessidade de acautelar os dtos e as liberdades fundamentais (ex., dto de propriedade, liberdade profissional, etc.) implicou que a decisão administrativa possa ser

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objecto de impugnação judicial junto do tribunal de 1.ª instância (arts. 59.º e 61.º), podendo, ainda, haver recurso da decisão judicial do tribunal de 1.ª instância para o tribunal da relação (art.º 73) quando a coima aplicada é elevada e se além da coima for aplicada 1 sanção acessória. Em princípio, a competência da Relação está limitada à matéria de direito (art.º 75). Das decisões da Relação não há recurso.

§ 246 - Existe a possibilidade da impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas. Por 2 razões: por 1 lado, não só as coimas podem atingir montantes muito elevados, como as sanções acessórias se traduzem na afectação de dtos e liberdades fundamentais; por outro lado, as autoridades administrativas, embora estejam sujeitas, nas suas decisões, ao princípio da legalidade, não deixam, contudo, de estarem integradas na estrutura orgânica da administração pública, faltando-lhes, portanto, o de independência que caracteriza a função judicial.

Competência legislativa § 247 - Segundo a CRP, art. 165/1/d), a definição do regime geral, material e

processual, das contra-ordenações é da competência exclusiva da AR, embora esta possa autorizar o Governo a legislar sobre esta matéria - reserva relativa. Já, relativamente à qualificação legal de determinadas condutas como ilícitos de ordenação social, a competência tanto pertence à AR como ao Governo - competência legislativa concorrente. Mas esta competência legislativa do Governo não lhe permite que ele converta 1 crime em contra-ordenação, i.e., o Governo não pode qualificar como contra-ordenação 1 conduta que esteja qualificada como crime, quer esta qualificação tivesse sido feita por 1 lei, quer tivesse sido feita por 1 DL, baseado numa lei de autorização da AR. É assim, porque a conversão de crime em contra-ordenação é 1 descriminalização da conduta respectiva; Só tem competência para descriminalizar quem tem competência para criminalizar. E esta competência é da AR (CRP, art. 165/1, c). Logo, só com base numa lei de autorização, é que o Governo pode "fazer passar" 1 conduta de crime a contra-ordenação. E é óbvio que, por maioria de razão, não pode converter 1 contra-ordenação em 1 crime.

DP Comum, Direitos Penais Especiais e Direito de Ordenação Social § 260 – Podemos começar por afirmar que há 1 nota ou denominador comum ao DP

comum, aos dtos penais especiais e ao dto de ordenação social: todos protegem valores sociais, i.e., interesses com relevância social. Se, relativamente ao DP (comum ou especial), tal relevância comunitária é unanimemente aceite, já, quanto ao dto de ordenação social, também o dto de ordenação social tutela, inequivocamente, valores ou interesses sociais; por outras palavras, as condutas, objecto de proibição legal contraordenacional, também são axiológico-social e ético-socialmente relevantes. § 261 - A diferença qualitativa entre o DP (comum ou especial) e o dto de ordenação social está, como tb já o referimos, no facto de os bens ou valores tutelados pelo 1.º serem, num dado momento histórico-cultural, assumidos pela consciência ético-social como fundamentais ou indispensáveis às exigências mínimas da vida comunitária e à realização pessoal individual, enquanto que os interesses protegidos pelo dto de ordenação social, embora sejam socialmente relevantes, não se revestem, no geral, desta característica de fundamentalidade ou essencialidade.

§ 262 - Diferença entre o DP comum e os DP especiais ou, pura e simplesmente, DP especial. Aquele sector do DP, a que chamamos DP comum, é por vários autores designado por DP tradicional, clássico, primário ou de justiça; e o sector, a que chamamos DP especial (ou dtos penais especiais) é pelos mesmos autores designado, em contraposição ao 1.º (DP tradicional, etc.), por DP secundário, administrativo ou extravagante. Estes autores consideram que, diferentemente do que acontece entre o DP em geral e o dto de ordenação social, não existe 1 diferença qualitativa ou substancial entre o DP comum e o DP especial: tanto 1 como outro tutelam valores ou bens jurídicos considerados fundamentais para a vida social e para a realização ético-pessoal individual. A diferente designação, ou, bipartição penal em DP primário ou comum e DP secundário ou especial, é a de que, embora ambos os sectores

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protejam bens jurídico-penais (valores com a chamada "dignidade penal" e que carecem da protecção penal, i.e., em relação aos quais se afirma a denominada "necessidade penal"), o DP clássico ou comum tem por objecto de protecção os tradicionais DLG’s individuais, enquanto o DP secundário ou especial tutela os valores sociais que, num dado momento histórico-cultural e social, são considerados indispensáveis a 1 ordenação social, condicionante da ordenação justa da sociedade e, condicionante da realização individual e social de cada pessoa. Isto é, o DP clássico ou comum tem a sua referência e objecto no quadro axiológico já consagrado pela 1.ª geração de Constituições já o DP secundário ou especial tem a sua referência no quadro axiológico-social consagrado pela 2.ª geração de Constituições Políticas Sociais, aprovadas a partir da 2.ª Grande Guerra, que passaram a ter 1 estrutura tripolar, o indivíduo, a sociedade e o Estado. § 264 - Afirmados, constitucionalmente, ao lado dos tradicionais DF’s individuais, os novos dtos sociais (dto à educação, à assistência na doença, à segurança social, etc.), cuja realização é função do Estado promover, necessariamente que sobre os cidadãos recai, simultaneamente, os deveres económicos e sociais (deveres fiscais, deveres de fidelidade ou verdade nas declarações determinantes da concessão de subvenções, etc.), que possibilitem o cumprimento das funções sociais que cabem ao Estado. Olhando para a nossa Constituição, poder-se-á dizer que o quadro de bens protegidos pelo DP tradicional ou comum, encontra-se, globalmente, no título II da 1.ª parte da Constituição (dto à vida, integridade física, honra, etc.); e que o quadro de bens tutelados pelo DP secundário ou especial se encontra referenciado no título III da 1.ª parte (valores relacionados com o trabalho, o consumo, a segurança social, a saúde, o ambiente, a educação) e na 2.a parte (valores a promover pelo Estado, nos campos económico, fiscal, cultural, etc.) da Constituição.

Estes interesses ou valores sociais correspondem, tal como os tradicionais dtos individuais, a dtos (e correspondentes deveres) tb fundamentais. E é assim que o legislador constitucional os reconhece, quando, no art.º 17, os qualifica como "DF’s de natureza análoga" (aos DLG’s individuais) e declara que a restrição destes dtos está submetida ao mesmo regime que se aplica às restrições dos dtos individuais, ou seja, o regime da indispensabilidade e da proporcionalidade das suas limitações. Conclusão: não há 1 ≠ qualitativa ou substancial entre o DP tradicional ou comum e o DP secundário ou especial: tanto são bens jurídico-penais os valores tutelados pelo 1ª como os protegidos pelo 2.º. § 265 - A ≠ entre 1 e outro destes sectores do DP é meramente de grau de ressonância ético-social, de grau de durabilidade das normas jurídico-penais que os protegem, e de ordem sistemática. De facto, a ressonância, i.e., a sedimentação, na consciência ético-individual e ético-social, da relevância axiológica dos bens tutelados pelo DP tradicional ou comum é, globalmente, mais profunda do que a ressonância dos bens protegidos pelo DP secundário ou especial. § 266 - Mas observe-se que esta maior ressonância ético-social dos bens protegidos pelo chamado DP tradicional ou comum não significa, necessariamente, que todos os bens abrangidos por este sector do DP são, objectivamente, mais valiosos que os protegidos pelo DP secundário ou especial. Basta pensar num furto simples (CP, art.º 203) e num crime de abuso de confiança fiscal de montante superior a 25.000 euros (DL 20-A90, art.º 24/5), para vermos que é mais grave esta infracção do que 1 simples furto. O critério do grau de "ressonância ético-social" só, tendencialmente, é sinónimo de 1 maior grau de gravidade objectiva dos crimes abrangidos pelo DP tradicional ou comum. E esta é a razão por que eu não acho muito adequada a designação "DP secundário". Pensemos nos crimes contra o ambiente, Se fosse válido como critério decisivo da distinção entre DP primário e DP secundário a circunstância de a norma penal protectora do respectivo bem jurídico estar incluída no CP ou numa lei extravagante, então nós portugueses teríamos de considerar que os crimes ambientais pertencem ao DP primário, clássico ou de justiça, 1 vez que, actualmente, os crimes de "danos contra a natureza" e de "poluição" estão inseridos no CP

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(arts. 278.° e 279.°). A verdade é que os crimes ambientais ou ecológicos são considerados como constituindo 1 ramo especial do DP - DP do ambiente. § 267 - Isto conduz à consideração de 1 outro factor de distinção: a maior ou menor durabilidade das normas jurídico-penais. 2.º este critério - que não coincide, necessariamente, com a maior gravidade das condutas, isto é, com a maior relevância dos bens jurídicos protegidos -, deverão ser incluídas no CP as normas penais que protegem interesses ou valores que são dotados de 1 relativa perenidade ou intemporalidade. Ou seja: as normas que revistam estas duas características: que protejam bens jurídicos que se mantenham merecedores e carecidos de tutela penal, independentemente das naturais mutações sócio-culturais; e cuja estrutura típica resista a essas alterações sócio-económico-culturais. Já as normas jurídico-penais, mais sensíveis às referidas alterações, devem constar de leis extravagantes. Deve ser este o critério da sistematização, i.e., da inclusão, ou não, no CP. Por estas razões não considero adequada a designação "DP primário" em contraposição a "DP secundário", É que tal distinção pode dar a ideia de que os crimes que constam de leis extravagantes são, necessariamente, menos graves, O que, como vimos, nem sempre é verdade. § 268 - Tb não partilho das designações "DP de justiça" em contraponto a "DP administrativo", Por 2 razões: em 1.º lugar, pq tal parece sugerir que o chamado "DP administrativo" (DP societário, fiscal, ambiental), diferentemente do DP tradicional (aqui, designado por "DP de justiça"), é estranho a critérios de justiça, e apenas protege interesses avaliados por meros critérios (discricionários) da AP; em 2.º lugar, pq tais designações e contraposição podem sugerir a reposição do critério, já ultrapassado, da distinção entre "ilícito criminal de justiça" "ilícito penal administrativo", ilícito este que, como vimos, é 1 antecedente histórico, não do que, hoje, é chamado, por muitos, de DP secundário - e que eu designo por DP especial - mas sim do actual dto de ordenação social. § 269 - Restam, em minha opinião, como mais correctas e adequadas as designações "DP clássico ou DP comum" por contraposição às designações DP económico-social ou DP especial. E dentro deste dto especial, há diferentes ramos, como o DP económico, o DP fiscal, o DP do ambiente, etc. Estes DP especiais, tendencialmente contidos em leis extravagantes ou avulsas, estão sujeitos à generalidade dos princípios, das regras e dos métodos do DP clássico ou comum. Acrescente-se apenas que, dada a especialidade de muitos dos destinatários (nomeadamente, empresas) destes DP especiais, estes são os sectores do DP onde mais aplicação tem a responsabilidade penal das pessoas colectivas.

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL Génese histórico-política: a passagem do Estado Absoluto ao Estado de Direito

§ 284 - O DP do absolutismo monárquico (Ancien Régime) caracterizou-se por 1 verdadeira sujeição do indivíduo ao poder absoluto do Estado. Neste período das monarquias absolutas, período que atingiu o seu clímax com o despotismo iluminado do chamado Estado-Polícia, aos indivíduos não eram reconhecidos quaisquer dtos e liberdades naturais fundamentais, e a lei penal era tida como instrumento da efectivação do poder absoluto do rei. Por sua vez, os poderes de soberania (legislativo, executivo e judicial) eram considerados prerrogativas do monarca e, concentrados na pessoa deste.

Numa tal concepção política totalitária, o DP foi caracterizado pela arbitrariedade, pelo terror punitivo ao serviço da manutenção do poder político real e pela inexistência de quaisquer garantias individuais. Paralelamente ao crescendo da absolutização do poder monárquico, desenvolve-se 1 nova consciência e teorização política caracterizada pelo individualismo (afirmação de 1 conjunto de dtos e liberdades que, por natureza, são inerentes a todo o cidadão), pelo contratualismo (o poder de soberania radica nos cidadãos que, por razões de praticabilidade, o delegam nos seus representantes políticos), pelo racionalismo e pelo legalismo (o exercício dos órgãos de soberania está subordinado à lei, sendo a generalidade e a abstracção desta a garantia da igualdade de tratamento dos cidadãos). Esta

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nova teoria política está na origem do Estado de Direito, que se afirma, em substituição do Estado Absoluto, a partir da Revolução Francesa (1789). Sendo o DP o ramo do dto cujas sanções, as penas, mais directa e gravemente afectam os dtos e as liberdades individuais, foi e continua a ser compreensível que o ppio da legalidade tivesse assumido, relativamente ao DP, 1 importância acrescida e radical, e que tivesse obtido dignidade constitucional, logo nas 1.ªs Constituições Liberais (do Estado de Virgínia, em 1776, da Constituição Francesa, em 1791, da nossa Constituição, em 1822). Assim, para prevenir qualquer risco de arbitrariedade judicial, a lei penal devia ser exaustiva na enumeração e descrição do facto criminal e estabelecer 1 pena fixa para cada tipo de crime, ficando para o juiz o mero papel de aplicador automático da lei ao caso concreto: na expressão de Montesquieu (1748), o juiz é apenas «a boca da lei», e na de Beccaria (1764), o juiz é 1 «autómato da subsunção» do caso concreto à lei.

Fundamentos do Princípio § 287 – Os fundamentos originários do ppio da legalidade penal foram jurídico-

políticos cujo objectivo principal era e é o da garantia do cidadão frente ao poder punitivo do Estado. Esta garantia política foi reforçada com a consagração constitucional do ppio da separação dos poderes, ao atribuir aos representantes directos do povo (parlamento) a competência exclusiva para definir os crimes e estabelecer as penas. A estas razões de natureza jurídico-política vieram somar-se fundamentos político-criminais. O iluminismo criminal, ao atribuir à pena 1 função pragmática de prevenção geral de dissuasão, veio reforçar a exigência de que a lei penal fosse clara e anterior ao facto. Se a lei penal tem a função de levar os cidadãos a que não pratiquem factos criminosos, então ela deverá indicar com precisão o que é crime e qual a pena que a este é aplicável, bem como tem que ser anterior à prática do facto. Portanto, o ppio da legalidade penal é exigência lógica da função de orientação e de dissuasão geral imputada à pena. Feuerbach, autor do ppio da legalidade - nullum crimen, nulla poena sine lege - viu este ppio, como garantia política do cidadão e como condição da eficácia da sua teoria da coacção psicológica.

Dimensões ou exigências do princípio da legalidade § 289 - A ratio de garantia jurídico-política do indivíduo contra as eventuais arbitrariedades punitivas por parte dos tribunais ou dos governos determinou e continua a determinar a consagração constitucional do ppio da legalidade penal. A CRP, art.º 29/1, estabelece que «Ninguém pode ser sentenciado (…) em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»; e os n.ºs 3 e 4 esclarecem que «Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» e que não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos. Estas disposições constitucionais (conteúdo idêntico ao do CP, art.º 1/1 e 2, e art.º 2/1) consagram, o ppio nullum crimen, nulla poena sine lege prévia e a conexão entre a pena e o crime correspondente.

A exigência de lei em sentido formal - nullum crimen sine lege scripta § 290 - Desde as origens do Estado de Dto, tanto a doutrina constitucional como a penal entenderam que a separação dos poderes de soberania era 1 meio de garantir os dtos e as liberdades individuais fundamentais. Esteve (e está) sempre presente que a definição dos crimes e a estatuição das penas deviam ser da competência exclusiva do Parlamento. Este, como órgão directamente emanado da "vontade geral" da comunidade social, e enquanto órgão do debate político plural e órgão não comprometido directamente com a eficácia da acção governativa. Assim o entende a nossa Constituição, que estabelece na CRP, art.º 165/1, c): «É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos...». Daqui resulta que a única fonte do dto criminal-penal é a lei em sentido formal ou orgânico, embora a AR possa, mediante 1 lei de autorização, delegar no

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Governo esta competência, desde que o objecto, o sentido e a extensão da autorização estejam definidos na respectiva lei de autorização. É a chamada reserva relativa de competência legislativa da AR, prevista no referido art. 165.°-1- c) e 2. Do que acaba de dizer-se resulta que o corolário do ppio da legalidade do nullum crimen, nulla poena sine lege scripta significa que a única fonte de DP é a lei formal, ou seja a lei da AR, sempre a fonte última: directa, quando é este órgão político-legislativo a definir os crimes e a estatuir as correspondentes penas; indirecta, quando, através de 1 lei de autorização, delega no Governo esta competência. § 292 - Tendo sido este o objectivo principal da exigência de lei escrita, natural foi que, 1 vez consagrada a separação dos poderes, se visse no poder legislativo o órgão mais adequado à garantia dos cidadãos frente ao dto punitivo estatal, e, assim, lhe fosse atribuído, desde os primórdios do Estado de Dto, a competência exclusiva para a criminalização das condutas e para a responsabilização penal dos respectivos agentes. Sendo, portanto, razões de garantia que estão na base da atribuição da competência legislativa à AR, poder-se-á perguntar se o Governo não tem competência concorrente (com a AR) para a descriminalização e para a redução das penas e das medidas de segurança, 1 vez que, nestes casos, o cidadão infractor não ficaria prejudicado, mas, pelo contrário, beneficiado. Taipa de Carvalho defende que o Governo não tem competência para descriminalizar ou reduzir as sanções criminais (penas ou medidas de segurança) definidas e estabelecidas quer por lei formal quer por DL sob autorização legislativa invocando 2 fundamentos constitucionais para recusar 1 tal competência negativa: descriminalizar ou reduzir a pena ou medida de segurança. Um, que é estritamente constitucional e parece de meridiana evidência, é o de que o ppio da separação de poderes seria afectado, e mesmo violado, se, atribuída a competência legislativa exclusiva em determinada matéria à AR, pudesse o Governo vir legislar negativamente, i.e., pudesse "desdizer" o que a AR “disse”. Na verdade, 1 tal poder o Governo só o tem em matérias de competência legislativa concorrente, que são aquelas que não constam dos arts. 164.° e 165.° da CRP. Um 2.º argumento já é de natureza jurídico-constitucional penal, e consiste no seguinte: sendo, como já o referimos, matéria da exclusiva competência da AR a definição dos bens jurídico-penais (CRP, arts. 17.°, 18,° e 165-1 c), competência esta que não deve ser vista como 1 poder ou faculdade arbitrária, mas sim como 1 função (legislativa) na determinação dos bens que ela (AR) considera essenciais à vida individual e social e carecidos de 1 determinada tutela penal, então não teria qualquer razoabilidade atribuir ao Governo competência para vir "dizer" que tais bens não têm "dignidade penal" ou, se a têm, não devem ter 1 protecção penal tão intensa como a que a AR lhe confere.

§ 293 - Problema complexo e de difícil resolução, quanto à sua compatibilidade ou não com o ppio da legalidade na sua exigência de lei formal, é o das normas penais em branco. A extensão do DP a novas e tecnicamente complexas áreas, como o ambiente, o urbanismo, etc., obrigaram o legislador penal a recorrer à técnica da lei penal em branco. Terão sido, fundamentalmente, 2 as razões que "obrigaram" a esta técnica: por 1 lado, a complexidade técnica da regulamentação de certas actividades, regulamentação cujo não cumprimento pode lesar ou pôr em perigo bens jurídico-penais, como a vida, a saúde, a confiança em actividades financeiras, etc., e cuja complexidade só pode ser tida devidamente em conta pelo poder executivo ou até pelas organizações profissionais, que não pelo poder político-legislativo; por outro lado, a mutabilidade desta regulamentação, resultante das inovações tecnológicas ou das conjunturas económico-sociais, aconselhava a que as respectivas normas regulamentadoras constassem de instrumentos normativos, que pudessem ser alterados por 1 processo mais expedito que o processo parlamentar, Por estas razões, tem-se vindo a assistir a 1 crescendo de normas penais em branco, sobretudo nos DP especiais, também designados globalmente por DP secundário ou administrativo,

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§ 294 - A resposta à questão da constitucionalidade, ou não, das normas penais em branco exige que, se defina o que se entende por norma penal em branco: 1 norma que contém a sanção penal e que, quanto ao facto típico, remete, total ou parcialmente, para a descrição feita por 1 outra norma extrapenal do ordenamento jurídico. Portanto, a norma penal em branco determina, directa e expressamente, a pena, e define, indirectamente ou por remissão, a matéria da proibição penal, isto é, a conduta a que é aplicável a sanção estabelecida pela dita norma penal em branco. O problema da (in)constitucionalidade coloca-se, em relação à norma extrapenal complementar, implementadora ou integradora da norma penal em branco, 1 vez que esta tem, necessariamente, de constar de lei ou de decreto-lei autorizado pela AR. Desde que a norma complementar extrapenal respeite as exigências de determinabilidade ou tipicidade, tb decorrentes do ppio da legalidade penal, não há razões para considerar inconstitucional a norma penal em branco, pois que é o próprio legislador penal a definir, embora por remissão, a matéria da proibição penal e, portanto, a norma para que remete também assume, por força da remissão legal penal, natureza penal. O que se exige é que a remissão-conexão entre a norma penal e a extrapenal seja clara e inequívoca e que esta seja precisa na descrição da conduta. E, por outro lado, é claro que a alteração do conteúdo normativo da norma extrapenal determinará a revogação tácita da norma penal em branco. Ex, se a norma penal em branco estabelece que é punível com determinada pena de prisão ou de multa quem praticar o facto descrito na norma extrapenal x, é evidente que a alteração da hipótese legal desta norma, implicará a ineficácia da norma penal em branco. § 296 - Uma breve referência deve ser feita à relação entre a legislação comunitária e o DP de cada 1 dos Estados da UE. E sobre isto há que dizer que os actos normativos da Comunidade Europeia não são fonte de DP. Não são, nem nunca o poderão ser enquanto o PE for, na prática, 1 mero órgão decorativo e de mera consulta, sem poderes legislativos. O que pode acontecer - e está acontecendo - é que a UE obrigue os Estados membros a criar normas penais para tutelar determinados bens jurídicos ou determinados interesses da CE, mediante directivas vinculativas de cada 1 dos seus Estados. Uma tal situação é evidente que, sob o ponto de vista formal, não belisca o ppio da legalidade, pois que continua a lei formal estadual a ser a fonte directa da criminalização ou agravação da responsabilidade penal; mas, 1 vez que tais directivas não são da competência do PE (único órgão cujos membros são directamente eleitos pelos povos da União), tb ter-se-á de reconhecer que, sob o ponto de vista material, o ppio da legalidade é, de alguma forma, afectado na sua exigência de que fonte do DP só pode ser o poder legislativo, directamente representativo dos cidadãos. Problema diferente é o da exclusão da ilicitude. Pois que, estando em causa não a fundamentação da responsabilidade penal, mas o inverso, e 1 vez que os regulamentos comunitários fazem parte do dto de cada EM, eventuais condutas permitidas por tais regulamentos, terão de considerar-se justificadas, mesmo que formalmente previstas por 1 lei penal estadual. § 297 - As Convenções e os Pactos Internacionais sobre os direitos humanos (Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis, Políticos e Sociais, de 1966, etc.) tb não são fonte de DP, mesmo após a sua ratificação e publicação no DR porque, embora possam prever ilícitos, não estabelecem penas.

A exigência de determinabilidade ou tipicidade - nullum crimen sine lege certa § 298 - Postulado ou corolário nuclear da função de garantia jurídico-política do cidadão frente ao poder punitivo estadual é a exigência feita ao legislador penal de que, na criação da lei penal, descreva o facto punível da forma o mais possível precisa. É necessário e constitucionalmente imposto que a conduta qualificada como crime seja objectivamente determinável pelos destinatários da norma penal, os cidadãos, em 1.º lugar, e o julgador, no 2.º momento da aplicação da lei penal. Na verdade, sendo importantes a exigência de que a criminalização conste de lei formal e a proibição da aplicação analógica desfavorável, é ainda mais decisiva, no sentido do cumprimento ou efectivação da garantia do cidadão, a exigência de determinabilidade da conduta punível, bem como a proibição da aplicação retroactiva da

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lei penal. Acresce a esta fundamental razão jurídico-política a razão político-criminal da função preventiva e de orientação e motivação das condutas. Visando a lei penal prevenir a prática de condutas lesivas ou susceptíveis de lesar os valores fundamentais para a vida pessoal e comunitária, através da motivação e dissuasão da prática de tais condutas, então a lei penal deve caracterizar estas condutas de modo a que não haja dúvidas sobre a "matéria da proibição", i.e., sobre os factos que constituem crime. § 299 - Ao serviço desta exigência de determinabilidade está precisamente a específica e adequada categoria jurídico-penal do tipo legal. É que, diferentemente dos outros ramos do dto, no DP o legislador tem que descrever as características do facto, que é pressuposto da aplicação da pena, da forma o mais completa possível. Assim, é natural que a hipótese legal (previsão normativa ou preceito primário) assuma, no DP, 1 maior complexidade do que noutros sectores do ordenamento jurídico.

Esta exigência e correspondente técnica legislativa de tipificação ou precisão implica a recusa da utilização de cláusulas gerais na definição das condutas proibidas. Seria o caso, por exemplo, de 1 norma penal que estabelecesse 1 determinada pena para quem "praticasse 1 acção gravemente lesiva da economia nacional" ou "do ambiente", ou, ainda, "quem praticasse actos terroristas". § 300 - Já, relativamente aos elementos normativos ou indeterminados, o desejável e exigível é que a sua inclusão, no tipo legal ou factualidade típica, seja reduzida ao mínimo indispensável, pois que eles afectam, em maior ou menor escala, o objectivo ideal da plena transparência legal das condutas que o tipo legal abrange. Na realidade, é inevitável, em muitos tipos legais, a utilização de elementos normativos ou indeterminados plasmados no CP onde são frequentes tais elementos onde vemos a indispensabilidade da sua utilização. Exemplos de elementos normativos: "dever jurídico que pessoalmente obrigue" a evitar o resultado (art.º 10/2), "bons costumes" (art.º 38/1), "censurável" (art.º 154/3, a); e como exemplos de elementos normativos indeterminados, mas determináveis 2º critérios objectivos, jurídicos ou extra-jurídicos: "estado dos conhecimentos e da experiência da medicina" (art. 150.°), "valor elevado" e "valor consideravelmente elevado" (art.º 204/1, a) e 2, a).

A proibição da aplicação analógica – nullum crimen sine lege stricta § 301 - Além das 2 exigências de lei formal e precisa - exigências feitas ao legislador

e, portanto referidas à "criação" da lei penal, o ppio da legalidade tem, ainda, uma 3.ª exigência feita ao legislador, que é a da proibição de este atribuir eficácia retroactiva à lei criminalizadora ou agravante da responsabilidade penal, exigência que se verte na fórmula latina nullum crimen sine lege praevia. Assim, passamos, agora, à consideração da quarta exigência do ppio da legalidade, exigência que tem por destinatário o aplicador da lei penal e que se traduz na proibição da aplicação analógica da lei penal. § 302 - Os autores do Iluminismo Criminal, procuraram configurar o ppio da legalidade penal de forma que este constituísse 1 obstáculo intransponível pelas eventuais, e sempre possíveis, arbitrariedades não só do poder legislativo como tb do poder judicial. Relativamente ao poder judicial, pensaram que o meio de impedir qualquer arbitrariedade ou discricionariedade judicial, em matéria penal, era a vinculação do juiz a 1 estrita interpretação literal, ou seja reduzir o aplicador da lei penal a 1 mero instrumento mecânico de aplicação da lei. Neste sentido iam as célebres expressões de Montesquieu e de Beccaria: o juiz é apenas a "boca da lei"; o juiz é somente 1 "autómato da subsunção" do caso concreto à lei penal. Pese embora a boa intenção destes defensores de 1 rigorosa interpretação literal da lei penal, a verdade é que, desde logo, se entendeu que 1 tal posição era irrealista. O texto da lei penal, como o de qualquer lei, é constituído por 1 conjunto de palavras. E cada 1 destas palavras não tem 1 único significado, mas 1 pluralidade de significados. E, se cada palavra é em si mesma polissémica, saber qual o significado que lhe deve ser atribuído depende do próprio contexto literal em que ela se insere como pedra de 1 edifício, como elemento de 1 todo unitário. Determinar qual a finalidade e quais as condutas que são abrangidas pela norma é precisamente o objectivo e o objecto da interpretação jurídica. Esta determinação da

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finalidade e do âmbito normativo do texto legal não é 1 operação abstracta, intuitiva ou desvinculada de critérios, directrizes ou factores concretos. § 304 - No sentido de evitar interpretações judiciais discricionárias ou mesmo arbitrárias, o nosso CC, art.º 9, indica os critérios ou factores de interpretação, cujas disposições são válidas não apenas para o dto civil mas para todos os ramos do dto, o intérprete-aplicador deve procurar descobrir qual é "o pensamento legislativo", i.é, qual é a finalidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos concretos abrangidos pela norma jurídica. Para conseguir este objectivo, o intérprete deve atender às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, às circunstâncias actuais em que a lei é chamada a ser aplicada, bem como à ratio ou teleologia da norma. Mas há 1 outro factor da interpretação que não pode ser esquecido: o texto legal ou enunciado linguístico, pois que é este o meio de comunicação entre o legislador e os destinatários da norma jurídica. O art.º 9, atribui, correctamente, ao texto legal ou teor literal 2 funções essenciais: por 1 lado, e logicamente, o texto legal é o ponto de partida da interpretação (art.º 9/1); por outro lado, o texto legal impede 1 interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art.º 9/2). Quando, porém, o intérprete conclua de que o caso concreto a decidir não é abrangido por nenhuma das interpretações que o texto legal comporta, então estamos diante de 1 "lacuna da lei" ou eventualmente de 1 "lacuna do dto", consoante exista, ou não, norma jurídica que se aplique a 1 caso análogo (CC, art.º 10). No 1.º caso, a lacuna será preenchida pela aplicação analógica (analogia legis); no 2.º caso, será preenchida pelo apelo aos ppios jurídicos fundamentais subjacentes às normas que regulam o sector jurídico em que a questão concreta se insere (analogia iuris). Concluimos que a distinção prática entre analogia e interpretação está no facto de, na 1.ª, se aplicar 1 norma jurídica a 1 situação ou conduta que não se encontra abrangida por nenhum dos possíveis sentidos do texto legal, enquanto que, na interpretação, por mais extensiva que o seja, a decisão jurídica é ainda a concretização de 1 sentido normativo que o teor literário comporta. § 309 - A proibição da aplicação analógica fundamenta-se na razão de garantia política do cidadão frente ao ius puniendi estatal. E foi esta razão que levou o legislador constitucional a consagrar implicitamente, no art.º 29/1 da CRP (<<lei que declare punível a acção ou omissão»), a proibição da analogia, proibição que o legislador ordinário explicitou no C P, art.º 1/3: «Não é permitido o recurso à analogia para qualificar […], a pena ou medida de segurança que lhes corresponde». Desta finalidade fundamentadora da proibição da analogia resulta claro que a proibição abrange só a analogia in malam partem, i.é, a analogia desfavorável ao agente, e não a analogia in bonam partem, ou seja, a favorável ao agente. Deste modo, é proibida a analogia incriminatória e a agravante da responsabilidade penal, quer estejam em causa normas da parte especial do CP ou normas constantes de leis penais extravagantes, que descrevam tipos legais de crime, quer se trate de normas da parte geral do CP, quando a sua aplicação analógica se traduza em fundamentação ou agravamento da punibilidade. Esta proibição tb abrange as normas extrapenais complementares das leis penais em branco. Estas normas extrapenais, para as quais as leis penais em branco remetem, assumem, por força de tal remissão, natureza penal enquanto integradoras da lei penal em branco. § 310 - Vejamos alguns exemplos de analogia desfavorável ou contra reum e, portanto, proibida. Partindo da hipótese de que o art.º 132 do CP continha 1 enumeração taxativa (o que não é o caso) das circunstâncias qualificativas do homicídio, a aplicação da circunstância "adoptado" (art.º 132/2 a)) a 1 adolescente morto por 1 pessoa que o tinha facticamente acolhido como filho, desde os 1.ºs meses de vida, constituiria 1 aplicação analógica proibida, 1 vez que, por real que seja a identidade material entre esta situação de "adopção" fáctica e a situação de adopção jurídica, aquela exorbita do conceito desta. Um outro exemplo, que foi objecto de decisão pela jurisprudência portuguesa e pela jurisprudência alemã, foi o caso de saber se, para efeitos do crime de furto, a energia eléctrica devia considerar-se "coisa móvel". A resposta

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dada pelos tribunais portugueses foi, no geral, afirmativa, enquanto a dos tribunais alemães foi negativa. Ora, tendo em conta que o conceito de coisa móvel (e o contexto literário do tipo legal de furto) implica 1 corporalidade ou materialidade, isto é, algo que pode ser objecto de 1 apreensão manual, parece que a razão esteve com a jurisprudência alemã.

A EFICÁCIA TEMPORAL DA LEI PENAL O ppio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável (art.º 2 CP e art.º 29

CRP) § 311 - A exigência jurídico-política de garantia do cidadão frente ao poder punitivo do

Estado, e a função preventivo-geral de dissuasão atribuída à pena determinaram, desde fins do séc. XVIII, a consagração constitucional da proibição da aplicação retroactiva da lei penal desfavorável. Assim, quer a lei criminalizadora, quer a lei que viesse estabelecer 1 pena mais grave do que a prevista pela lei em vigor no momento da prática do facto, só poderia ser aplicada aos factos cometidos depois da sua entrega em vigor. Esta proibição da retroactividade da lei penal desfavorável foi acolhida pela nossa 1 Constituição Política de 23/11/1822, arts. 9.º, 10.º e 11.º) como 1 ppio constitucional e fundamental bem como na actual CRP no seu, art.º 29. Disposições constitucionais, incorporadas no CP art.º 1/1 e 2 e art.º 2/1. Foram e continuam a ser, essencialmente, 2 os fundamentos da proibição da eficácia retroactiva da lei penal: a razão jurídico-política de garantia do cidadão face ao ius puniendi estatal e a função preventivo-geral de intimidação ou dissuasão imputada à pena. Foi e continuará a ser a perenidade do fundamento jurídico-político de necessidade de garantia e segurança do cidadão a segurança firme e inamovível da proibição da retroactividade penal desfavorável.

A determinação do tempus delicti § 314 - A funcionalidade e o pleno cumprimento das exigências éticas jurídico-política e

político-criminal, que fundamentam a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, estão dependentes da determinação do chamado tempus delicti, i.é, do momento em que se deve considerar cometido o crime, pois, o crime é 1 realidade complexa, que se decompõe em vários elementos, nomeadamente a acção e o resultado, e por vezes, estes elementos ocorrem em tempos muito distantes entre si, sendo indispensável determinar o elemento que constitui o critério decisivo para averiguar da anterioridade ou posterioridade da lei penal em causa. É, hoje, entendimento unânime, na doutrina e na jurisprudência, que o momento de referência é o da conduta, sendo irrelevante o momento em que se produz o resultado em conformidade com o disposto no CP art.º 3, que o consagra como critério exclusivo do "tempo do crime" sendo a razão jurídico-política de garantia do cidadão a razão essencial da fixação do tempus delicti no momento da conduta (acção ou omissão)

Conclusão: a proibição da aplicação retroactiva da lei criminalizadora e da lei agravante da responsabilidade penal significa que estas leis não podem aplicar-se ao agente de urna conduta praticada antes do seu início de vigência, mesmo que o resultado dessa conduta (p. ex., a morte) venha a produzir-se quando essa lei já está em vigor. § 316 - Acrescem ainda razões suplementares em favor deste critério unilateral da conduta. São 3: a função de orientação das condutas que cabe à norma penal, a concepção subjectiva do ilícito penal e o fim preventivo-geral de dissuasão que a pena realiza. Relativamente à função de orientação da lei penal, há que dizer que, pressupondo a norma penal 1 valoração de determinados bens jurídicos, ela visa, naturalmente, determinar os seus destinatários, os cidadãos, a não praticarem (norma de proibição) ou a praticarem (norma de imposição) determinadas acções. Daqui a conclusão de que a violação da norma se concretiza na conduta e não no resultado, embora seja evidente que a razão da proibição ou da imposição é a de prevenir os resultados, i.e., a lesão dos bens jurídicos. Quanto ao argumento extraído da concepção subjectiva do ilícito penal, pretende-se acentuar 1 ideia próxima da retirada da norma penal como norma de determinação das condutas, que é a de que a essencialidade da infracção penal radica no desvalor da acção (ou omissão) e não no desvalor do resultado. Quanto ao fundamento político-criminal da fixação do tempus delicti no

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momento da conduta, fundamento derivado da função de prevenção geral da pena, há que dizer que a ameaça penal contida na norma, visa demover o cidadão da prática de certas condutas, pois que estas é que dependem do destinatário da norma, enquanto que os resultados, 1 vez praticadas aquelas, são muitas vezes inevitáveis.

§ 317 - Estabelecido que o momento decisivo é o da conduta, não ficam, resolvidos os problemas. É que, se em grande n.º de casos, a conduta tipificada na lei se realiza num determinado momento, há casos em que a conduta se prolonga por 1 tempo mais ou menos longo: dias, meses ou até anos (tipos legais de crime duradouros, dos tipos de crime habituais, nos crimes de omissão e, ainda, nos casos de crime continuado, de comparticipação e da adio libera in causa). Em tais hipóteses, pode, entre o início da conduta e o seu termo, surgir 1 lei criminalizadora ou 1 nova lei que venha "simplesmente" alterar a pena (ou a medida de segurança). Apesar da diversidade de crimes, há 1 denominador comum e relevante em todos eles: a inevitável ou possível «distribuição pelo tempo» da conduta ou condutas que são assumidas, jurídico-penalmente, como 1 só unidade (ou continuação) criminosa.

§ 318 - Tratando-se de lei criminalizadora, só podem ser consideradas as acções que foram praticadas depois do seu início de vigência; as anteriores (ou o tempo de duração da acção, anterior à entrada em vigor da lei) são, irrelevantes sob o aspecto jurídico-penal, já que o contrário constituiria 1 violação da proibição constitucional da retroactividade da lei criminalizadora. Problema tb não há, quando a lei nova é favorável, quer porque descriminaliza quer porque diminui a responsabilidade penal (lex mitior). Nestes 2 casos, há claramente, lugar à aplicação retroactiva da lei, porque mais favorável. Dificuldades só existem quando a alteração legislativa se traduz numa agravação da pena. A solução mais conforme com as razões da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, sem menosprezar a função preventivo-geral da lei nova, é a seguinte: deve aplicar-se a lei antiga, excepto quando a totalidade dos pressupostos da lei nova se tenham verificado na vigência desta. Assim põe ex., no caso do furto continuado, o tribunal não poderá aplicar a lei nova mais grave, se, na continuação criminosa de furtos simples (art.º 203) e de furtos qualificados (art.º 204), nenhum furto qualificado tiver sido cometido durante a vigência da LN, que agravou a pena do furto qualificado. O mesmo se diga para a hipótese de a LN, que vem agravar a responsabilidade penal pelo crime, p. ex., de usura habitual (art. 226/4, a)), ter entrado em vigor quando, tendo já sido feitos vários empréstimos usurários antes do seu início de vigência, apenas tiver sido feito 1 depois deste momento. Nos crimes de omissão, decisivo é o último momento em que o omitente ainda tinha podido praticar eficazmente (com probabilidades de impedir o resultado) a acção imposta. Assim, a LN só se aplicará, quando entrar em vigor antes de esgotada a última possibilidade de 1 intervenção adequada a impedir o resultado (trate-se de crimes de mera omissão ou de crimes de comissão por omissão). Nos casos de comparticipação (autoria mediata, co-autoria, instigação e cumplicidade), decisivo será o momento de cada 1 das condutas consideradas autonomamente. Assim, p. ex., se, posteriormente ao momento da "promessa" feita por A a B, mas antes da prática, por este, do crime X (para o qual tinha sido "determinado" por A), entrar em vigor 1 lei que agrave a pena do crime X; esta lex severior só se aplicará a B. Finalmente, no caso da chamada actio libera in causa (art. 20/4), determinante é o momento em que o agente se coloca no estado de inimputabilidade, e não o momento (posterior) em que ele (já transitoriamente inimputável) pratica o facto tipificado na lei penal.

A imposição da aplicação retroactiva da lei penal favorável § 320 - A razão fundamental histórica da aplicação retroactiva da lei penal favorável foi a atribuição, à pena, de 1 função essencialmente preventiva geral e/ou especial. É que, se o legislador entende que o facto não deve continuar a ser considerado crime ou que, embora o deva continuar a ser, todavia entende que é suficiente, para serem satisfeitas as necessidades

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sociais da prevenção geral e especial, 1 pena menos grave, então deixa de ter sentido a aplicação da lei antiga, devendo, sim, aplicar-se retroactivamente a nova lei. § 321 - Este fundamento político-criminal (i.é, relacionado com a finalidade preventiva da pena) da aplicação retroactiva favorável foi, com a passagem do Estado-de-Dto "formal" ao Estado-de-Dto "material", fortalecido com o ppio constitucional da restrição mínima dos DF’s da pessoa. Este ppio conduziu, no plano jurídico-penal, ao ppio da indispensabilidade ou da máxima limitação possível da pena: a pena e o seu quanto só se justificam, juridico-constitucionalmente, na medida do indispensável à protecção dos «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (CRP art.º 18/2). Tal ppio constitucional, projectado na «aplicação da lei penal no tempo», vincula à retroactividade da lei favorável. Os ppios político-criminais e jurídico-constitucionais referiridos encontraram adequada e expressa consagração na CRP de 1976. Com efeito, se a CRP no art.º 18, consagra o ppio da restrição mínima da liberdade e dos outros DF’s, o art.º 29/4, 2ª parte, visando directamente a sucessão de leis penais, faz a concretização deste ppio geral, estabelecendo a retroactividade das «leis penais de conteúdo mais favorável». Por sua vez, o CP, art.º 2/2 e 4, 1ª parte, assume estes ppios.

O princípio da aplicação da lei penal favorável § 322 – Conclui-se que, em matéria de sucessão de leis penais ou, de aplicação da lei

penal no tempo, vigora o ppio da aplicação da lei penal favorável, sendo incorrecta a classificação da proibição da retroactividade como ppio geral e da retroactividade da lei mais favorável como excepção.

Consequências do ppio da aplicação da lei mais favorável Sucessão de leis penais em sentido amplo e em sentido estrito

§ 323 - Distinção entre sucessão de leis penais em sentido amplo e sucessão de leis penais em sentido estrito. Tomada em sentido amplo, a designação tanto abrange 1 sequência de 2 ou mais leis penais (criminais) como 1 sequência de 1 lei penal e de 1 lei contraordenacional, ou de 1 lei contraordenacional e de 1 lei penal. Tomada em sentido estrito ou correcto, a designação «sucessão de leis penais» implica que todas as leis que se sucederam, desde o momento da prática do facto até à completa extinção da responsabilidade penal, eram leis penais. § 324 - Lei penal é sinónimo de lei criminal, existindo 1 só categoria de infracção penal, que é o crime, infracção que é punível - única que é punível com 1 pena (ou medida de segurança criminal). Daqui resulta que o termo despenalização coincide rigorosamente com o termo descriminalização: despenalizar é o mesmo que descriminalizar. Pena, em sentido exacto, pressupõe, lógica e materialmente, o crime, e só a este pode ser aplicada. § 325 - É certo que há outras categorias de ilícitos (não criminais-penais) que tb são puníveis com diferentes sanções. É o caso do ilícito disciplinar, punível com sanções disciplinares; do ilícito contraordenacional, punível com coimas; ou ainda de 1 simples ilícito contratual, que pode ser punível com base na chamada "cláusula penal". - Mas, em nenhum destes casos, é correcto falar-se em penas, sendo incorrecto dizer-se que determinada conduta, que era considerada contra-ordenação, e que, por força de uma determinada lei, deixou de o ser, foi despenalizada. Não!; não foi despenalizada, mas sim despunibilizada, i.é, deixou de ser punível. E não foi despenalizada, pela simples razão de que só pode ser despenalizada 1 conduta que, antes, era punida com 1 pena, ou seja, que, até então, era considerada crime. Mas tb é evidente que não é correcto chamar-se à despunibilização de 1 conduta, que deixou de ser considerada como contra-ordenação, despenalização, visto que 1 coima não é 1 pena. Dizer-se, quando o consumo de droga passou de crime a contra-ordenação, que esta conduta foi descriminalizada, mas não foi despenalizada, é incorrecto. Pois, se foi descriminalizada, necessariamente (dado que, hoje, infracção criminal é igual a infracção penal) que foi despenalizada. Despenalizada, pois que deixou de ser punível com 1 pena; embora não despunibilizada, pois continua a ser punível, só que com 1 sanção de natureza diferente da pena, que é a coima.

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§ 326 - Hoje, só teria, sentido distinguir despenalização e descriminalização, se se considerasse que o ilícito de mera ordenação social é tb 1 infracção penal, ao lado do crime, à semelhança do nosso sistema antigo em que havia 2 categorias de infracções penais, o crime e a contravenção. Mas é evidente e sabido que não é esta a nossa actual realidade jurídico-positiva. Pois, quer a história da criação legislativa da figura das contra-ordenações, quer o entendimento quase unânime da doutrina, quer, sobretudo, a distinção jurídico-material entre a pena e a coima, e a distinção entre as respectivas entidades com competência julgadora (para as contra-ordenações, autoridades administrativas; para os crimes, os tribunais - nulla poena sine judicio), demonstram que o ilícito contraordenacional não é 1 minus, mas, sim, 1 aliud, relativamente ao ilícito penal. A eficácia temporal da lei que converte uma conduta de contra-ordenação em crime ou,

inversamente, de crime em contra-ordenação § 327 - É evidente que estas 2 hipóteses não configuram 1 verdadeira sucessão de leis penais. Pois o que temos, nestes 2 casos, são 2 leis de natureza jurídica diversa: 1 lei penal (ou lei criminalizadora) e 1 lei contraordenacional (que, obviamente, não é 1 lei penal ou criminalizadora). Logo, não funciona, nestas situações, o ppio da aplicação da lei penal mais favorável (CRP, art.º 29/4; CP art.º 2/4) e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objectiva das sanções contraordenacionais e das sanções penais (p. ex., dos montantes pecuniários da coima e da multa). § 328 - Na hipótese de a LN passar a qualificar a conduta contraordenacional como crime, i.é., como infracção penal, estamos diante de 1 lei criminalizadora (penalizadora). Como tal, por força do ppio Constitucional (CRP, art.º 29/1 e 3) e jurídico-penal (CP, arts. 1/1 e 2/1), da proibição da retroactividade da lei criminalizadora, tal lei só pode aplicar-se aos factos praticados depois da sua entrada em vigor. Mas, relativamente aos factos praticados durante a vigência da LA (que os considerava como contra-ordenações) e que ainda não tenham sido julgados ou, se julgados e condenados, as respectivas sanções contraordenacionais (coimas e eventuais sanções acessórias) ainda não tenham sido cumpridas, perguntar-se-á: deverão ser julgados segundo a lei em vigor no momento do seu cometimento, apesar de, agora, tal lei já estar revogada?; e, se já foram julgados, mas as respectivas sanções contraordenacionais ainda não foram inteiramente cumpridas, deverão estas, apesar da revogação da respectiva lei, ser efectivamente executadas?

- Não sendo esta 1 questão jurídico-penal, a resposta não cabe ao DP, mas sim ao dto de ordenação social. Então, o que nos diz o Regime Geral das Contra-Ordenações (DL n.º 433/82) O art. 2.° estabelece que «Só será punida como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática». Ora, na hipótese configurada e em análise, efectivamente existia lei anterior contraordenacional. Porém, há que ter em conta o art.º 3/2 do referido Dec.-Lei 433/ /82, após alteração do Dec.-Lei 244/95, que determina que «Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitado em julgado e já executada». A realidade é esta: a lei contraordenacional em vigor, no momento da prática, não foi modificada, mas, pura e simplesmente, revogada. Assim, 1 vez que o disposto, no referido n.º 2 do art.º 3, directamente apenas se refere às hipóteses de sucessão de leis contraordenacionais, parece que ficamos sem solução legal para estes casos de 1 lei que converte 1 conduta de contra-ordenação em crime. Mas, na realidade, não ficamos sem solução legal, pois que a lei, que passa a qualificar o facto como crime e que revoga, expressa ou tacitamente, a lei anterior que o qualificava como contra-ordenação, é, relativamente ao dto de ordenação social, lei descontraordenacionalizadora e, como tal, favorável ao autor da contra-ordenação. Donde resulta a sua aplicação retroactiva, deixando o respectivo agente, ainda não condenado ou, se condenado, ainda não executadas as respectivas sanções, de poder ser condenado contraordenacionalmente ou de contra ele poderem ser executadas as

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respectivas sanções. Na verdade, tendo, por força do art.º 2/3, de se aplicar retroactivamente 1 nova lei contraordenacional, que estabeleça sanções contraordenacionais mais leves, então, por maioria de razão se terá de aplicar retroactivamente uma lei nova que descontraordenacionaliza a respectiva conduta. § 330 - Objectar-se-á que, precisamente quando o legislador quer agravar a responsabilidade jurídica por determinadas condutas, passando a qualificar estas como crime e, portanto, substituindo a responsabilidade contraordenacional por responsabilidade penal, vão precisamente ser irresponsabilizados juridicamente (nem por crime, nem por contra-ordenação) muitas pessoas que praticaram tais factos. - A resposta é esta: é verdade, é isso mesmo que se passa. Mas passa-se ou poder-se-á passar por 2 razões, e ambas da responsabilidade do legislador. São elas: o facto de o legislador, no Regime Geral das Contra-Ordenações, não ter previsto esta hipótese (o que revela negligência quase grosseira, pois a experiência destes, político-juridicamente, indesejáveis "hiatos" não é nova), estabelecendo que os factos anteriores à lei que converteu o facto de contra-ordenação em crime permanecem puníveis como tais, isto é, como contra-ordenações (ultra-actividade da lei contraordenacional). A 2.ª razão destes "hiatos" está no facto de o legislador que cria a lei que muda o facto de contra-ordenação em crime, não incluir 1 norma transitória que estabelecesse que as contra-ordenações, anteriormente cometidas, permaneciam puníveis como contra-ordenações. Uma tal norma, 1 vez que as sanções contraordenacionais são (e desde que, efectivamente, o sejam) menos graves que as sanções penais, não padeceria de inconstitucionalidade material. Mas teria, sob pena de inconstitucional formal-orgânica, de se apoiar numa lei de autorização (no caso de constar de um decreto-lei), visto que implicava uma alteração, para aquela conduta, do Regime Geral das Contra-ordenações, especificamente consagrado no n.º 2 do art.º 3. § 331 - A outra situação é aquela em que a lei nova converte o facto de crime em contra-ordenação. Nesta hipótese, a lei nova é 1 lei descriminalizadora ou despenalizadora, o que, significa o mesmo. Sendo descriminalizadora, então todos os factos, praticados durante a sua vigência, deixam de ser puníveis penalmente, por força da imposição da aplicação retroactiva da lei nova despenalizadora (CRP, art.º 29/4, 2ª parte; CP, art.º 2/2). Portanto, se ainda não se iniciou o procedimento criminal, jamais se poderá iniciar; se já está em curso, extinguir-se-á, com a entrada em vigor da lei nova; mesmo que já tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, «cessam a execução e os seus efeitos penais» (CP, art.º 2/2). E, perguntar-se-á: sendo certo que os factos praticados durante a vigência da lei antiga foram descriminalizados e, portanto, não podem ser punidos penalmente, todavia não poderão ser punidos contraordenacionalmente, com base na lei nova, 1 vez que as novas sanções (contraordenacionais) serão menos gravosas que as sanções penais estabelecidas pela lei antiga? A resposta passa pelas seguintes considerações: em 1.º lugar, há que reafirmar que estamos diante de 1 sucessão de leis de diferente natureza jurídica, sendo a lei antiga 1 lei criminal-penal e a lei nova 1 lei contraordenacional; em 2.º lugar, o CP, art.º 2/4, refere-se apenas às verdadeiras sucessões de leis penais, enquanto que o Dec.-Lei 433/82, art.º 3/2 se refere exclusivamente a 1 sucessão de leis contraordenacionais; donde a conclusão de que a questão nem pode ser resolvida pelo CP, art.º 2/4, nem pelo art.º 3/2 do Regime Geral das Contra-Ordenações. A lei nova é, simultaneamente, 1 lei descriminalizadora e 1 lei contraordenacionalizadora. Os factos anteriormente praticados deixam de poder ser tratados como crimes, mas tb não podem, por força do Dec.-Lei 433/82, art.º 3/1, ser, retroactivamente, tratados e punidos como contra-ordenação, pois que é ppio da aplicação no tempo da lei contraordenacional que esta só vale para o futuro, i.e., só se pode aplicar aos factos praticados depois do seu início de vigência. § 333 - A única hipótese de evitar que os respectivos agentes não sejam puníveis contraordenacionalmente é a inclusão, na LN que vem qualificar o facto como contra-ordenação, de 1 norma transitória que estabeleça a punição como contra-ordenação dos

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factos praticados na vigência da lei antiga penal. Uma tal solução, desde que apoiada numa lei de autorização da AR (1 vez que contraria o regime geral das contra-ordenações), não seria inconstitucional, 1 vez que, e na medida em que as sanções contraordenacionais fossem, realmente, menos graves que as sanções penais da lei antiga. Cumprido este pressuposto (pois, caso contrário, havia inconstitucionalidade material, na medida em que a atribuição de eficácia retroactiva materializava 1 verdadeira fraude à norma constitucional do art.º 29/4, 1ª parte), parece que não haveria inconstitucionalidade na atribuição de eficácia retroactiva; 1 lei nova que passa a qualificar como contra-ordenação uma conduta então qualificada como crime. E parece não ser inconstitucional, pq, formalmente, tal retroactividade não cai no âmbito da proibição da CRP art.º 29/1 e 3, e porque, materialmente, não havia qualquer afectação retroactiva dos DLG’s individuais. E acrescente-se que uma norma deste tipo podia ser incluída no Regime Geral das Contra-Ordenações. Como conclusão final, temos que, a não existir 1 tal norma transitória (ou incluída, no futuro, no Regime Geral das Contra-Ordenações), os factos anteriores têm, necessariamente, que ser tratados como factos descriminalizados, e tb não podem ser tratados como contra-ordenações. Numa palavra: perderam, com a entrada em vigor da lei, relevância penal e relevância contraordenacional. Esclareça-se, por último, que isto, que acabámos de referir, quanto à possibilidade de atribuição de eficácia retroactiva à lei que converte 1 conduta de crime em contra-ordenação não se aplica, de forma alguma, a 1 lei que, ex novo, viesse qualificar e punir como contra-ordenação uma conduta que, antes, não era considerada crime. Uma tal atribuição de eficácia retroactiva seria claramente inconstitucional.

Lei penal intermédia § 335 - Lei intermédia é a lei penal cujo início de vigência é posterior ao momento da prática do facto e cujo termo de vigência ocorre antes do julgamento, rectius, antes do momento em que transita em julgado a sentença. Tratando-se de 1 lei que não está em vigor em nenhum dos momentos referenciais - o momento da conduta e o momento do transito em julgado da sentença -, o problema da sua aplicabilidade só se levanta, quando a lei intermédia é mais favorável que as duas outras leis penais em confronto: a lei do tempus delicti e a lei do momento em que se forma o caso julgado. Sendo mais favorável, aplicar-se-á. Ora, porque se aplica a 1 conduta praticada antes da sua entrada em vigor, é retroactiva; e pq é aplicada já depois de ter cessado a sua vigência geral, é ultraactiva. § 336 - Hoje, é inquestionada, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, a aplicabilidade da lei penal intermédia mais favorável, bastando indicar as razões que fundamentam a sua aplicação. Tal entendimento tem projecção legal na expressão “leis posteriores” do art. 2º, nº4. Reconduzem-se elas aos princípios jurídico-político da segurança individual e político-criminal da máxima restrição da pena, intervindo, ainda e de forma decisiva, o ppio da justiça relativa ou igualdade de tratamento de casos idênticos.

Determinação da lei penal mais favorável § 338 - Verificando-se 1 verdadeira sucessão de leis penais, há que determinar qual das

leis sucessivas é mais favorável ao infractor. Levantam-se, aqui, dois problemas: ponderação abstracta ou concreta?; ponderação unitária ou diferenciada?

§ 339 - Quanto à 1ª questão, pode afirmar-se que, desde há muito, a opção vai, razoavelmente, para a ponderação concreta: é relativamente ao caso sub iudice que se deve determinar qual das leis mais favorece o infractor. Tal decisão pressupõe que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta (art.º 71), 2º cada 1 das leis, a não ser, que seja evidente, numa simples consideração abstracta, que 1 das leis é claramente mais favorável que a outra. Assim, se a L.A. estabelecia 1 pena de 8 a 16 anos de prisão, enquanto a L.N. se limitou a alterar esta pena para 5 a 12 anos de prisão, é evidente que a L.N. é mais favorável. Dificuldades já podem surgir, quando a pena estabelecida pela L.A. e a estatuída pela L.N. são heterogéneas (prisão - multa ou o inverso), e mesmo, quando embora homogéneas, 1

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tem o limite mínimo da pena superior ao limite mínimo da pena prevista na outra lei, mas o limite máximo inferior, ou o inverso: p. ex., a L.A. estabelece pena de 1 a 10 anos de prisão, enquanto a L.N. estabelece a pena de 3 a 8 anos de prisão. Ora, nestas hipóteses, há que proceder à determinação concreta da pena, pois, só depois desta operação judicial, se pode saber qual das leis é mais favorável ao arguido, qual, portanto, é a lei que tem de ser aplicada. § 340 - Há, ainda, 1 outro aspecto que não deve ser descurado: a possibilidade, que deve ser concedida ao arguido, de, nos casos de dúvida sobre qual das penas concretas é a mais favorável ao arguido, ser este a dizer qual a pena que prefere lhe seja aplicada. Permanecendo a decisão como decisão do tribunal, compreende-se e é justo que, nos casos duvidosos, deva ser atendida a opção do mais interessado na aplicação da lex mitior. Uma tal situação, que não será frequente, poderá ocorrer numa hipótese em que 1 das leis estabeleça pena de prisão até 1 ano, pena esta não substituível por pena de multa, e a outra lei estatua pena de multa até 100 dias. Suponhamos que, nesta hipótese, o tribunal determina, segundo a 1ª lei, a pena concreta de 2 meses de prisão, e, pela 2ª lei, a pena de 30 dias-multa a 50 euros. Sucede, porém, que, embora para a quase totalidade das pessoas fosse preferível a pena de multa, já o concreto arguido prefere ser condenado na pena de 2 meses de prisão; e prefere-o pelo facto de, embora sendo proprietário de 1 pequena casa térrea que habita, se encontrar desempregado. Não se vê qualquer razão válida para, num tal caso, o tribunal não aceitar a opção do arguido. Assim, deveria ser aplicada a lei que estabelece a pena de prisão e não a que prevê a pena de multa. Donde que o arguido deveria ser condenado em prisão por 2 meses, e não em multa. § 341 - Discutida é a questão de se a ponderação deve ser unitária ou diferenciada. Esclareçamos, o que se entende por ponderação unitária ou global e por ponderação diferenciada ou discriminada. A ponderação concreta significa que a lei deve ser aplicada na totalidade das suas disposições sobre a pena principal, sobre as penas acessórias e sobre os pressupostos processuais; a ponderação diferenciada defende que deve proceder-se ao confronto de cada 1 das disposições das leis em causa, devendo aplicar-se as disposições, contidas nas 2 leis, que sejam mais favoráveis. Embora a generalidade da doutrina e da jurisprudência tenha optado pela ponderação unitária ou global, entendo que a ponderação deve ser diferenciada aplicando (conjugando) a melhor das duas.

A inconstitucionalidade do limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (art.º 2/4,- parte final)

§ 344 - Breve referência à história do caso julgado penal como limite ou obstáculo à aplicação retroactiva da lei penal favorável. O ppio do caso julgado penal, na sua dimensão negativa do ne bis in idem, afirmou-se, constitucionalmente, nos fins do séc. XVIII, na consagração do Estado-de-Dto, como instrumento da garantia política do cidadão contra a arbitrariedade da perseguição criminal. A preocupação com esta garantia levou, nesta 1ª fase, a 1 então absolutização do caso julgado penal que levou à proibição da retroactividade da lei penal, mesmo que esta fosse descriminalizadora. Numa 2ª fase, correspondente ao crescendo, no séc. XIX, das correntes penais que atribuíam à pena 1 finalidade preventivo-geral e especial (Correccionalismo e Escola Positiva), inicia-se o processo de relativização do caso julgado penal, a partir da consideração da verdadeira função de garantia deste instituto. A partir desta reposição do caso julgado na sua ratio de garantia individual, passou a discutir-se e a pôr-se em causa a referida absolutização: se a razão de ser do caso julgado penal é a de impedir decisões legislativas e judiciais desfavoráveis ao infractor, então não tem sido utilizada a figura do caso julgado, quando a lei nova, mesmo que posterior ao caso julgado, não agrava mas favorece o cidadão infractor. Em meados do séc. XIX, alguns CP extraíram todas as consequências lógicas e político-criminais desta relativização do caso julgado penal, i.é, da perspectivação desta figura como meio ou instrumento ao serviço da protecção do cidadão infractor, e não como 1 valor absoluto que valesse por si mesmo.

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§ 347 - É certo que a generalidade dos países, desde meados do séc. XIX, não extraíram todas as consequências jurídico-constitucionais e político-criminais do ppio da máxima restrição possível da pena e da função preventiva desta. Entre eles, esteve o CP português que, desde 1852, manteve o caso julgado como obstáculo à retroactividade da lex mitior, só o afastando, no caso de lei nova descriminalizadora, sendo que, esta manutenção sempre teve a oposição, baseada em sólidos argumentos, de muitos e destacados cultores da ciência jurídico-penal (Jordão, Beleza dos Santos, Cavaleiro de Ferreira), e, na actualidade, são clarissimamente maioritários os autores que defendem a eliminação, por inconstitucional, do limite do caso julgado previsto no CP, art.º 2/4 - parte final.

§ 349 - Vejamos, resumidamente, os ppios constitucionais que determinam a conclusão de que o limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (lex mitior), estabelecido na parte final do art.º 2/4 do Código Penal, é inconstitucional. Este limite viola o ppio constitucional da igualdade perante a lei (CRP art. 13/1, 2ª parte), sendo fonte de injustiças materiais relativas e de desigualdades evitáveis na aplicação da lei penal mais favorável. É, ainda e por outro lado, inconstitucional na medida em que, sem quaisquer válidas razões jurídico-penais materiais, restringe o âmbito de 1 norma constitucional protectora dos DF’s, máxime da liberdade (CRP, art. 29/4 – 2ª parte), norma esta que é a projecção directa e coerente, na questão da sucessão de leis penais, de 1 outro ppio constitucional fundamental de que «as restrições dos DF’s» devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros dtos ou interesses constitucionalmente protegidos» (CRP, art. 18/2 – 2ª parte).

Impor 1 obstáculo à aplicação retroactiva de 1 lei que considera como necessária e suficiente, para a tutela dos bens jurídico-penais, 1 pena mais leve significa restringir, desnecessariamente, 1 DF. Logo, é irrefutável a afirmação da inconstitucionalidade deste limite do caso julgado.

§ 350 - Por último, façamos 1 breve referência à posição que, pelo menos até há alguns anos atrás, era defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça. Tendo sido breve a referência à argumentação do STJ em favor do limite do caso julgado, tb será breve a crítica à inconsistência jurídico-penal e jurídico-constitucional destes argumentos do STJ. § 352 - Quanto ao argumento da intangibilidade do caso julgado, intangibilidade que teria dignidade constitucional, 1 vez que a CRP art. 29/5, consagra o ppio ne bis in idem, i.e., a proibição de duplo julgamento pela prática do mesmo crime, há que dizer que a proibição Constitucional do duplo julgamento (o chamado princípio ne bis in idem) constitui, como sempre, desde a consagração do Estado-Direito, 1 garantia individual contra 1 (eventual e arbitrária) dupla punição pelo mesmo crime. Assim, nunca pode funcionar contra o cidadão infractor, mas sim a seu favor. Logo, esta pretendida, pelo STJ, absolutização do caso julgado penal é, constitucionalmente, inaceitável. A proibição de duplo julgamento significa proibição de dupla punição e, portanto, em nada afecta a exigência político-criminal, constitucionalmente assumida (CRP, art. 18/2, art. 29/4 – 2ª parte), da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, mesmo que já haja caso julgado. Aliás, hoje, nem sequer no direito de ordenação social (onde, a elevação do caso julgado, pelo menos em relação às coimas, à categoria de obstáculo à aplicação retroactiva não seria inconstitucional) o caso julgado é obstáculo à retroactividade da lei mais favorável (DL 433/82, art. 3/2 - parte final).

§ 353 - Tomemos, o argumento da segurança, estabilidade social e certeza jurídica. Sobre este pretenso argumento, façamos apenas 2 observações: não tem o menor sentido falar de «insegurança, anarquia e inquietação» a propósito da reforma de 1 sentença, posto que transitada em julgado, quando o que está em causa é somente a re-determinação da pena concreta por força da entrada em vigor de 1 lei penal mais favorável; o STJ, no Acórdão em recensão, incorre numa recusável e acrítica perspectiva pancivilística do caso julgado, esquecendo que há entre o caso julgado penal e o caso julgado civil 1 autonomia e distinção material, distinção que resulta da especificidade dos pressupostos, da natureza e dos fins das "sanções" civis e das sanções penais.

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§ 354 - Relativamente ao argumento de que casos de desigualdade de tratamento sempre os haverá, basta retorquir, dizendo que este Acórdão serve-se da impossibilidade de 1 realização absoluta da justiça relativa para concluir pela irrelevância da justiça relativa possível. Ou seja: é 1 raciocínio, humana e juridicamente, absurdo afirmar a irrelevância da efectivação da justiça relativa ou igualdade de tratamento, nos casos em que tal é possível, com fundamento na impossibilidade de uma realização da justiça em todos os casos. Pois é evidente que o princípio constitucional da justiça relativa ou da igualdade de tratamento pressupõe e, portanto, só é violado, quando as situações de injustiça podem ser evitadas. Em relação ao que é inevitável (no nosso caso, porque a sentença penal condenatória já foi inteiramente cumprida) não há qualquer injustiça relativa ou tratamento desigual. Ressalvado todo o respeito que o STJ merece, era caso para dizer que esta afirmação do acórdão tem tão pouco sentido como aquele capitalista que raciocinasse assim: uma vez que Jesus Cristo disse que «pobres sempre os tereis entre vós», então porquê preocupar-nos em diminuir o número deles?!

Alteração das causas de justificação § 365 - O tipo-de-ilícito é constituído pelo tipo legal em sentido estrito e pela inexistência de 1 causa de justificação. Significa que a punibilidade depende, desde logo, tb das causas de justificação ou causas de exclusão da ilicitude. Assim, as razões jurídico-políticas de certeza e garantia do cidadão, frente às possíveis alterações legais tb não podem deixar de se repercutir na sucessão de leis (penais ou não penais) que se refiram às causas de justificação. Acrescente-se que o mesmo vale para as alterações jurisprudenciais, que tenham força vinculativa das futuras decisões dos tribunais, o que se verifica quando constam de "acórdão de fixação de jurisprudência" (CPP, art. 437.° ss.). Ora, na medida em que as alterações das causas de justificação se traduzem em alterações da punibilidade dos factos descritos nos tipos legais de crime, necessariamente que tais alterações têm de ser regidas, quanto à sua eficácia temporal, pelo princípio da aplicação da lei mais favorável: proibição da retroactividade da alteração desfavorável e aplicação retroactiva da alteração favorável. § 366 - As causas de justificação operam, numa situação de conflito de interesses, cabendo precisamente à norma de autorização, i.e., de justificação dizer qual é o interesse juridicamente preponderante. E é ao dizer qual o interesse juridicamente assumido como mais valioso, que a respectiva norma desempenha 1 função de orientação da conduta na concreta situação de conflito. § 367 - A criação ou alargamento do âmbito de 1 causa de justificação implica, simultaneamente, 1 efeito (imediato) "descriminalizador" de 1 conduta que, antes, não só era formalmente típica como ainda materialmente ilícita, mas tb 1 efeito (mediato) de "criminalização" de 1 conduta que, antes, embora formalmente típica, não era materialmente ilícita, i.é, não constituía 1 ilícito penal. Inversamente, a eliminação ou redução do âmbito de 1 causa de justificação implica, simultaneamente, 1 efeito (imediato) "criminalizador" de 1 conduta que, antes, apesar de formalmente típica, era justificada, e tb (em muitas situações) 1 efeito (mediato) de "descriminalização" de 1 conduta que, antes, era considerada ilícito penal e, agora, passou a ser considerada justificada. § 368 - Do exposto resultam as seguintes conclusões: A LA, criadora ou ampliadora de 1 causa de justificação, aplica-se, retroactivamente, ao agente cuja conduta concretamente típica, apesar de considerada ilícita pela lei do tempus delicti (L.A.) , passou a ser considerada justificada (foi, portanto, "descriminalizada" e, assim, deixou de ser punível); mas o (eventual) efeito mediato "criminalizador" da conduta ("contra-acção") típica, que pela L.A. estava justificada mas pela L.N. passa a ser considerada ilícita, só pode afirmar-se em relação às condutas praticadas a partir da entrada em vigor da L.N. - A L.N. eliminadora ou redutora do âmbito de uma causa de justificação não se aplica às condutas anteriormente praticadas, que, apesar de típicas, estavam justificadas pela LA (proibição de retroactividade desfavorável), continuando estas a ser tidas como justificadas; mas já se aplica, retroactivamente, às condutas típiicas que, sendo pela L.A. consideradas

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ilícitas, passaram com a posterior L.N. a ser consideradas justificadas (imposição da retroactividade favorável).

8. Medidas de segurança § 369 - A CRP de 1976 e, na sequência desta, o CP de 1982 estabeleceram que, tal como as penas, também as medidas de segurança estão sujeitas aos princípios da legalidade e da jurisdicionalidade. Não só os pressupostos da declaração judicial da perigosidade criminal (os factos criminalmente ilícitos) como tb as correspondentes medidas de segurança têm de ser posteriores ao início de vigência da lei (CRP, art. 29/1 e 4, CP, art. 1/2 e art. 2/1). - Eis a proibição da retroactividade desfavorável. Já, se a lei, que entre em vigor posteriormente à prática dos factos-pressuposto da aplicação da medida de segurança ou mesmo à decisão judicial de aplicação da medida de segurança, descriminalizar tais factos ou estabelecer 1 medida de segurança mais favorável (quer reduzindo a duração do internamento, quer substituindo por 1 medida de segurança menos gravosa), aplicar-se-á retroactivamente. Pois que, embora a CRP, art. 29/4, e o CP art. 2/2 e 4, não mencionem, expressamente, as medidas de segurança, é evidente que tais disposições legais abrangem as medidas de segurança e os seus pressupostos. Com efeito, tendo as medidas de segurança uma exclusiva função de defesa social e de tratamento do delinquente (no caso das verdadeiras medidas de segurança, que são as aplicáveis a não imputáveis), necessariamente que, se a L.N. é mais favorável, ter-se-á de aplicar retroactivamente. § 370 - A razão da proibição da retroactividade desfavorável das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis é exclusivamente jurídico-política. É que, o facto destas medidas de segurança não terem 1 fundamentação ética, nada retira à sua gravidade e ao perigo da sua utilização abusiva ou mesmo persecutória. Daqui resultou a consciência jurídico-política, ligada ao aprofundamento do Estado-de-Direito, da necessidade da sujeição das medidas de segurança ao mesmo regime das penas. § 371 - Embora discordando da aplicação a imputáveis de medidas de segurança não privativas da liberdade, é evidente que também a estas se aplica o princípio da lei mais favorável.

LEIS TEMPORÁRIAS § 372 - O n.º 3 do art. 2.° do CP estabelece que, «Quando a lei valer para […], continua

a ser punível o facto praticado durante esse período». É 1 facto que, prima facie, as leis penais temporárias colocam problemas de compatibilização com o ppio constitucional e político-criminal da retroactividade da lei mais favorável. Necessário se torna, portanto, proceder com o máximo de ordem e rigor possível. § 373 - Definição material de lei penal temporária (art.º 2/3 CP): é a lei penal que, visando prevenir a prática de determinadas condutas numa situação de emergência ou de anormalidade social, se destina a vigorar apenas durante essa situação, pré-determinando ela própria a data da cessação da sua vigência. A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da sua aplicabilidade a todas as condutas nela previstas e praticadas durante a sua vigência, independentemente de, no momento do julgamento, a lei temporária já não estar em vigor. § 374 - São 2 os pressupostos da legitimidade constitucional e político-criminal do regime especial das leis temporárias: 1 pressuposto material e outro formal. Pressuposto material é a situação de emergência ou de anormalidade, condição necessária da legitimidade material político-criminal da lei temporária. A inexistência deste pressuposto, feria de inconstitucionalidade a lei temporária, dado violar o ppio da retroactividade favorável, ao manter 1 ultra-actividade desfavorável. Significa tb que não depende do arbítrio do legislador a criação de leis temporárias. Pressuposto formal: é necessário que, em nome da certeza jurídica e da segurança dos cidadãos, a própria lei - que visa impedir a prática de actos que, na excepcional situação de emergência, adquirem 1 gravidade acrescida para determinados bens jurídicos - estabeleça, formal e inequivocamente, o seu termo de vigência. E se, atingida a data que a lei temporária

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tinha estabelecido como limite da sua vigência, ainda se verificar a situação de anormalidade, o legislador deverá aprovar 1 nova lei que fixe nova data para a cessação da vigência da lei temporária.

§ 375 - Nem sempre será possível calendarizar o termo de vigência de 1 lei penal temporária. Mas o seu termo de vigência tem de ser formal e inequívoco. Tal impossibilidade de fixar 1 determinado dia para a cessação de vigência da lei temporária nem sempre será possível, nomeadamente no caso das leis penais em branco.

§ 376 - O regime especial da lei temporária não pode considerar-se 1 excepção ao ppio da retroactividade da lei despenalizadora. Na verdade, se de verdadeira excepção se tratasse, tal seria, no ordenamento jurídico português, inconstitucional, por violação da CRP art. 29/4 – 2ª parte, há sim 1 alteração da situação fáctica e não 1 alteração da valoração político-criminal. Em conclusão: não se afirmando a razão de ser da retroactividade da lei despenalizadora, não se afirma a eficácia retroactiva da caducidade (auto-revogação) da lei temporária. Eis o verdadeiro e único fundamento da compatibilidade do regime especial da lei temporária com o princípio constitucional da eficácia retroactiva da despenalização de uma conduta. § 377 - A lei temporária pode ser 1 lei que, por força da situação de anormalidade, se limita a agravar, temporariamente, a responsabilidade penal pela prática de 1 facto que já é, na situação normal, considerado crime. § 378 - Tb pode haver 1 verdadeira sucessão de leis penais temporárias. Pode o legislador, com o objectivo de tentar expurgar, rapidamente, a situação de anormalidade, aprovar 1 lei que, depois de entrada em vigor, verificou que era excessivamente dura, mesmo tendo-se em conta a gravidade da anormalidade da situação. E, então, decide aprovar 1 nova lei temporária que reduz a pena estabelecida na lei anterior. Numa tal situação, é evidente que estamos perante 1 verdadeira sucessão de leis penais temporárias, pois que há identidade da situação fáctica (anormal) assumida por ambas as leis e determinante do regime especial destas. Numa hipótese destas, ter-se-ia de aplicar, retroactivamente (em relação aos crimes cometidos na vigência da 1ª lei temporária), a 2ª lei temporária, por ser mais favorável (art.º 2/4). Deve ainda estabelecer-se a ponderação diferenciada e 2º Taipa de Carvalho, aplicar, conjugar em concreto a melhor das duas. Aqui, na relação entre a 1ª e a 2ª lei temporária, houve 1 alteração da valoração político-criminal da mesma situação fáctica de anormalidade social.

EFICÁCIA ESPACIAL DA LEI PENAL A designação "direito penal internacional"

§ 379 - Tradicionalmente, contrapõem-se as designações "direito penal internacional" e "direito internacional penal". A expressão DP internacional compreendia, quase exclusivamente, as disposições jurídico-penais de cada Estado sobre o âmbito da aplicação das suas normas penais aos crimes praticados no seu próprio território e aos cometidos num Estado estrangeiro. Relativamente ao dto português, o DP internacional (português) reduzia-se, praticamente, às disposições constantes do art. 53.° do CP de 1886. § 380 - A designação DI penal compreendia e compreende o conjunto de normas jurídico-penais (materiais e processuais) constantes de tratados ou convenções internacionais a que 1 Estado tenha aderido (como parte outorgante ou como. posterior aderente). Pertencem a este chamado DI penal, por ex., as Convenções de Genebra sobre os Crimes de Guerra, de 1949, a Convenção Internacional para a Repressão da Falsificação de Moeda, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovado em 17 de Julho de 1998, e entrado em vigor em l de Julho de 2002 (aprovado, para ratificação, pela Resolução da AR n.° 3/2002, e publicado no DR, em 18 de Janeiro de 2002). § 381 - DP internacional português actual, disposições jurídico-penais portuguesas sobre a aplicabilidade, no espaço, da nossa lei penal, sobre a eventual aplicabilidade, pelos tribunais portugueses, da lei penal estrangeira e, ainda, sobre a cooperação judiciária internacional penal das autoridades portuguesas com as estrangeiras.

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A partir do termo da 2ª Grande Guerra e, especialmente, a partir dos anos 60/70 do séc. XX, os povos e os seus respectivos Estados tiveram a consciência de que era indispensável 1 cooperação entre eles nos mais variados domínios, desde o económico ao da luta contra certas formas de criminalidade grave, complexa e, sobretudo, transnacional, passando pela protecção do ambiente, etc...

Esta consciencialização política da interdependência dos Estados, em múltiplos domínios, e da consequente indispensabilidade da cooperação entre eles, foi reforçada com o aparecimento, a partir da década de sessenta, de organizações criminosas transnacionais, altamente perigosas e sofisticadamente complexas, dedicadas ao tráfico de pessoas, de droga, de armas, ao terrorismo, etc...

Acresceram a esta como que progressiva globalização do crime grave 2 outros fenómenos sociais mundiais, que, embora positivos em si mesmos, não deixavam, contudo, de obrigar os listados a cooperarem entre si: 1 destes foi, e é, o fenómeno das emigrações, em massa, de pessoas em busca de emprego e de melhores condições de vida; o outro foi, e continua a ser, o fenómeno do turismo. Ambos, como é óbvio, determinaram uma grande mobilidade inter-estadual das pessoas, passando cada pessoa a ser, ou poder ser, cidadão de dois mundos: cidadão do seu Estado e cidadão do mundo.

Esta progressiva globalização, que faz com que o mundo se transforme numa aldeia comum, aprofundou-se na última década com a globalização da informação e da comunica-ção, através da Internet, e com a transnacionalização do capital e das empresas. § 382 - Esta real interdependência dos Estados e a consciência política, que neles provocou, sobre a inevitabilidade da cooperação entre si, não podia deixar de se repercutir na reformulação do conceito de soberania estadual e do exercício do ius puniendi. E, assim, é que, até há poucas décadas, a generalidade das legislações penais recusavam-se a aceitar a aplicação, pelos seus tribunais, da lei penal do Estado estrangeiro, onde o crime tivesse sido praticado e, a fortiori, recusavam a execução de sentenças penais proferidas por tribunais estrangeiros. Porém, com a relativização do conceito de soberania estadual, também passou a relativizar-se o poder punitivo estatal, passando-se de 1 isolacionismo penal a 1 progressiva cooperação judiciária dos Estados em matéria penal. Esta nova atitude dos Estados teve repercussões, não apenas a nível do incremento da celebração de convenções e tratados internacionais (bilaterais e multilaterais) sobre questões penais (cujo último exemplo, foi a criação do "Tribunal Penal Internacional" permanente, sedeado em Haia), mas também nas próprias legislações penais nacionais relativamente ao âmbito espacial da lei penal estadual, e à cooperação judiciária internacional em matéria penal. É a estas normas jurídico-penais portuguesas ("DP internacional") que vamos dedicar os §§ seguintes.

Princípios sobre o âmbito de aplicabilidade no espaço da lei penal portuguesa O princípio fundamental da territorialidade

§ 383 - A generalidade dos Estados, desde há muito, optou pelo ppio da territorialidade como ppio fundamental. Há razões materiais e razões processuais decisivas em favor do ppio da territorialidade: As razões materiais são de natureza político-criminal e estão relacionadas com os fundamentos e as finalidades preventivas da punição penal. É no território do Estado, onde foi praticado o crime, que mais se fazem sentir as necessidades de prevenção geral positiva de pacificação social e de reafirmação da ordem jurídico-penal e da importância dos bens jurídicos por esta protegidos, e de prevenção geral negativa de dissuasão dos potenciais infractores. Se 1 chinês pratica 1 crime grave em Portugal, é cá, e não na China, que haverá o "alarme social" e que se torna necessário "advertir" os potenciais infractores. Também são determinantes as razões processuais: pois é no território, onde o crime foi praticado, que a investigação e a prova do crime é mais fácil de realizar e, portanto, são maiores as garantias de 1 decisão justa.

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Assim, o nosso CP, art. 4.°, a), estabelece que, «Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente». § 385 - Mas, tendo em conta que o crime é 1 realidade complexa onde se destacam os elementos estruturais conduta e resultado, há que determinar se ambos, ou só 1 deles, devem ser considerados decisivos para a fixação do locus delicti, i.é, do Estado onde o crime deve ser considerado praticado, para este efeito do ppio da territorialidade. A ratio, que deve presidir à determinação do locus delicti, é a de evitar conflitos negativos de competência, evitando-se, assim, a impunidade do infractor. Ora, para evitar esta impunidade, o critério mais adequado é o critério bilateral alternativo, considerando-se o crime praticado em Portugal, quando a conduta ou o resultado cá se verifica.

Com este critério alternativo e 1 vez que ele é adoptado pela generalidade dos Estados, se gerarão conflitos positivos de competência. A resposta a esta eventual objecção é a de que assim é, mas que tais conflitos positivos (mais de 1 Estado a considerar o crime cometido no seu território e, portanto, a afirmar a sua competência para o julgar) não têm qualquer relevância prática, 1 vez que o que cada Estado concorrente pretende é que o crime não fique impune. Que seja o Estado ou o B a julgá-lo, é secundário, é relativamente indiferente. E é este o critério que o nosso CP, art.º 7/1, consagra ao estabelecer que «O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ler actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido». E o mesmo art.º 7 alarga, no seu n.º 2, o âmbito do local do delito, dizendo que, «No caso de tentativa, o facto considera -se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido». Portanto, consideram-se praticados em Portugal e, portanto, puníveis pela lei penal portuguesa, com base no ppio da territorialidade, os crimes em que a conduta (acção ou omissão) foi, total ou parcialmente, praticada (quer sob a forma de autoria ou de cumplicidade) em Portugal, ou cujo resultado (típico ou não) cá se tenha produzido. São, ainda, consideradas cometidas em Portugal as tentativas de crime, praticadas no estrangeiro, desde que o resultado intencionado pelo agente tivesse como local de ocorrência o nosso país. Trata-se, de 1 conceito muito amplo do locus delicti. Mas diga-se que tal amplitude parece justificada, pois está de acordo com a teleologia do critério do locus delicti, que é, a de evitar situações de impunidade.

Evolução do dto português nesta matéria do locus delicti. O CP de 1886 não continha nenhuma disposição sobre esta questão, tendo a doutrina defendido, com base na necessidade de evitar situações de impunidade, a posição correcta do critério da conduta ou do resultado. O CP de 1982 estabeleceu, no art. 7.°, o critério da conduta ou do "resultado típico". Ora, ao exigir que o resultado fosse típico (i.e., constituísse 1 elemento do tipo legal de crime), excluía a aplicabilidade da lei penal portuguesa aos crimes formais (aqueles em que o resultado não é elemento constitutivo do tipo legal) cuja conduta tivesse ocorrido no estrangeiro, embora o resultado se tivesse produzido em Portugal. A profunda Revisão de 1995 não alterou a redacção originária do CP de 1982. Foi a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, que conferiu ao art. 7.° a sua redacção actual. Esta lei não só alargou o locus delicti aos crimes cujo resultado, mesmo que não típico, se tenha produzido em Portugal, como ainda ficcionou como locus delicti o lugar onde, no caso de tentativa cometida no estrangeiro, o agente queria que o resultado se produzisse em Portugal. A alínea b) do art. 4.º estabelece que, para além dos crimes praticados em território português (alínea. a)), a lei penal portuguesa é também aplicável a crimes cometidos «A bordo de navios ou aeronaves portugueses». Uma vez que esta disposição não distingue entre navios ou aeronaves de guerra, isto é, militares, e navios ou aeronaves comerciais, a conclusão parece dever ser a de que abrange as 2 categorias.

§ 389 - A outra questão, que se levanta, é a de saber se a disposição tb abrange os casos dos navios ou aeronaves portugueses que se encontrem em portos ou aeroportos

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estrangeiros, ou nas águas territoriais ou espaços aéreos estrangeiros, ou se, diferentemente, apenas se refere às águas e aos espaços aéreos internacionais. A solução mais razoável deveria ser, relativamente aos navios ou aeronaves comerciais, considerar a lei penal portuguesa aplicável, com base no alargamento do ppio da territorialidade, somente aos crimes cometidos nas águas ou espaços aéreos internacionais, excluindo os praticados a bordo de navios ou aeronaves comerciais, quando circulem em águas territoriais ou sobrevoem espaços aéreos estrangeiros, e quando se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. Porém, a verdade é que o art.º 4, al. b), não distingue e, assim, parece que a solução que se impõe é a de considerar aplicável a lei penal portuguesa também nestas hipóteses de crimes praticados a bordo de navios ou aeronaves comerciais portugueses, mesmo que se encontrem em espaço marítimo ou aéreo estrangeiro ou em portos ou aeroportos estrangeiros. Mas, assim sendo, então parece que, por 1 questão de reciprocidade, tb deverá considerar-se aplicável a lei penal do estado estrangeiro, a que pertence o navio ou aeronave comercial, quando o crime fosse cometido a bordo de navio ou aeronave que se encontrasse em águas ou espaço aéreo portugueses, ou se encontrasse num porto ou aeroporto português. § 390 - Do exposto retiro a conclusão de que a al. b) do art.º 4 abrange os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves portugueses (militares e comerciais) quer se encontrem em águas ou espaço aéreo internacionais, quer se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. Esta solução, estabelecida pelo nosso dto positivo, não cria dificuldades práticas indesejáveis político-criminalmente. Com efeito, também aqui o que pode acontecer é que a lei penal do país, em cujas águas ou espaço aéreo seja praticado o crime, ou em cujo porto ou aeroporto se encontre o navio ou a aeronave portuguesa, se considere tb aplicável. Mas, o que interessa, fundamentalmente, é evitar a impunidade, evitando, com tal objectivo, os conflitos negativos de competência. Que, havendo 1 conflito positivo de competências, dois Estados se considerem competentes, é questão secundária.

§ 391 - Nestas considerações, não me referi às águas territoriais ou ao espaço aéreo portugueses, pois que tanto 1 quanto o outro são, 2º o DI público, território português. Assim, os crimes cometidos a bordo de navio ou aeronave comerciais estrangeiros, quando em águas ou espaço aéreo portugueses, ou em portos ou aeroportos portugueses, são considerados praticados em território português e, portanto, são abrangidos pela al. a) do art. 4.°. § 392 - Já, 1 vez que, 2º o DI público, os navios ou aeronaves de guerra são considerados espaços onde o Estado, a que pertencem, exerce 1 jurisdição penal especial (análoga à que exerce no seu próprio território), então a lei penal portuguesa não pode ser aplicada aos crimes praticados no interior de navios ou aeronaves de guerra estrangeiros, quando se encontrem nas águas ou espaço aéreos portugueses ou em portos ou aeroportos portugueses. Pois esta situação nem é abrangida pela al. a) (1 vez que os navios ou aeronaves de guerra estrangeiros não são território português), nem é abrangida pela al. b), pois que tais navios ou aeronaves não são portugueses.

Os princípios complementares ou subsidiários § 393 - O CP, art.º 5, consagra vários ppios que tornam a lei penal portuguesa aplicável

a crimes cometidos no estrangeiro. O conjunto destes pios pode englobar-se na designação comum de "ppios complementares ou subsidiários". Complementares, na medida em que vêm acrescentar às situações abrangidas pela eficácia positiva absoluta do ppio da territorialidade (a lei penal portuguesa é aplicável a todos os crimes praticados em território português, a não ser que haja convenção ou tratado em contrário) novas situações de crimes cometidos no estrangeiro. Subsidiários, 1 vez que tais ppios só funcionam em relação a situações que, mesmo que afectem os interesses por eles protegidos, não ocorram em Portugal. Logo, subsidiários em relação ao ppio da territorialidade.

§ 394 - Como nota final desta breve introdução, cabe dizer que a ordenação destes ppios não é arbitrária, mas parece-me ter obedecido a 2 razões: a relevância dos bens

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jurídicos e a ordem histórica da sua consagração. Deste modo, quando a 1 determinado crime praticado no estrangeiro for abstractamente aplicável mais que 1 destes ppios, a solução correcta é fundamentar a aplicação da lei penal portuguesa no ppio que tem precedência na ordenação estabelecida pelo art. 5.º.

Princípio da protecção de interesses nacionais (art.º 5/1 - a)) § 395 - O 1º ppio complementar, previsto na al. a) do n.° 1, é o ppio da tutela dos mais relevantes interesses do Estado Português. Neste ppio, é indiferente a nacionalidade do infractor. A referida alínea contém 1 enumeração taxativa dos arts da parte especial do CP, onde vêm descritos os respectivos crimes. Pela leitura destes artigos (221.°, 262.° a 271.°, 300.°, 301.°, 308.° a 321.°, 325.° a 345.°) vê-se, claramente, que o critério do legislador para delimitar o âmbito deste ppio foi o da natureza fundamental, para o Estado e para a sociedade no seu conjunto, dos bens jurídicos a proteger. Com efeito, os bens jurídico-penais, protegidos pelos diversos artigos referidos, reconduzem-se a 4 categorias: os alicerces e o funcionamento do Estado-de-Direito Democrático (arts. 325.° a 345.° e 300); os interesses do Estado na confiança da circulação fiduciária (arts. 262.° a 271.°); os interesses da independência e da integridade nacionais (arts. 308.° a 321.°); e os interesses da segurança da sociedade e das comunicações (arts. 221.°, 300.°-2 - parte final, 301º-1)

§ 396 - Tendo em conta a relevância nacional e estadual dos bens jurídicos em causa, compreende-se que a aplicação deste ppio não dependa da presença do agente em Portugal, tal como é razoável que, nestes casos, seja sempre aplicada a lei penal portuguesa, mesmo que a lei do país onde o crime foi praticado seja mais favorável. E é isto que, precisamente, o n.° 3 do art. 6.° estabelece.

Ppio da Universalidade (art.º 5/1, al. c) § 397 - 0 2º ppio complementar é o da universalidade ou da protecção dos bens jurídicos considerados como valores éticos comuns a toda a humanidade. Tb, neste ppio, é irrelevante a nacionalidade do infractor. A alínea c) faz 1 enumeração taxativa dos crimes que o legislador português considerou porem em causa os valores fundamentais da comunidade internacional. Assim, determinam a aplicabilidade da lei penal portuguesa, com base neste ppio da universalidade, os crimes de "escravidão" (art. 159.°), de "rapto" (art. l61.°), de "abuso sexual de crianças" e de "menores dependentes" (arts. 172.° e 173.°).

§ 398 - São pressupostos da aplicação da lei penal portuguesa que o infractor seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado. O 1º pressuposto é claramente razoável, pois tendo o crime sido cometido no estrangeiro, seria inútil (e, se o infractor fosse 1 estrangeiro, quase que não teria sentido) iniciar em Portugal 1 procedimento criminal, encontrando-se o infractor noutro Estado. Contrariamente ao que tradicionalmente se afirmava, este pressuposto não é 1 condição objectiva de punibilidade, mas sim 1 condição ou pressuposto de procedibilidade. Relativamente ao 2.º pressuposto: em 1.º lugar, em regra todos os crimes são susceptíveis de fundamentar a extradição, excepto quando esta, embora o extraditando tenha praticado 1 crime, é pedida com 1 motivação política (o Estado requerente visa, principalmente, a perseguição política do infractor - CRP, art.º 33/6 - 1ª parte); em 2º lugar, tendo em conta que estão em causa bens jurídicos universais, deve interpretar-se a expressão «não possa ser extraditado» como abrangendo não só a hipótese em que a extradição foi solicitada e negada, como tb aquela em que a extradição não foi pedida.

2.3. Princípio da nacionalidade activa (art.º 5/1, alínea e), 1ª parte) § 402 - O 3.º ppio complementar é o ppio da nacionalidade activa. Está previsto na 1ª

parte da alínea e), do n.º 1 do art. 5.º. O critério é, pois, o da nacionalidade portuguesa do infractor. E o fundamento, já tradicional, é o de que, em ppio, 1 Estado não extradita os seus cidadãos. Donde, recai sobre o Estado, que não extradita 1 seu nacional, o dever internacional de o julgar. São 3 os pressupostos da aplicação deste ppio: que o infractor se encontre em Portugal; que o facto seja também considerado crime pela lei do país onde foi praticado; e que o crime admita extradição mas esta não possa ser concedida. Relativamente à exigência de

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que o português infractor se encontre em Portugal, é razoável. Quanto ao pressuposto da punibilidade do facto também pela lei do Estado onde foi praticado, tb é perfeitamente compreensível, quer por razões político-criminais relacionadas com as finalidades preventivas da pena (que se fazem sentir sobretudo no lugar onde o crime é praticado), quer porque tal exigência é 1 decorrência lógica de a lei penal portuguesa reconhecer o ppio da territorialidade como ppio fundamental nesta matéria. Mas, relativamente a este pressuposto, o CP acautela a hipótese de haver 1 (porventura pouco provável, mas possível) lugar onde tenha sido cometido o crime, mas onde não se exerça o poder punitivo. Numa tal hipótese, a lei penal portuguesa é também aplicável. O 3º pressuposto é que se trate de «crime que admita extradição e esta não possa ser concedida». Até à Revisão Constitucional de 1997, a CRP, no então n.º 1 do art. 33º, proibia, em absoluto, a extradição de cidadãos portugueses. Porém, com esta Revisão, embora a regra continue a ser a da proibição da extradição de cidadãos nacionais, passou a admitir-se, em casos restritos, a extradição de portugueses, desde que se verifiquem os pressupostos estabelecidos na CRP, art.º 33/3. Em relação a esta condição, também se poderá levantar a seguinte questão: é necessário que haja 1 pedido de extradição e a correspondente recusa, ou não é necessário que haja tal pedido? § 405 - Em favor da posição que não exige 1 pedido de extradição, está o facto de o legislador, ao referir-se ao pressuposto da punibilidade 2º a lei do lugar onde o facto foi praticado, dizer que a lei penal portuguesa se aplica, mesmo que, no lugar do crime, não funcione a justiça penal. Ora, se não funciona a justiça penal, como poderá pensar-se num pedido de extradição?! Acresce 1 outro argumento, que é o seguinte: confrontando este n.° III da al. e) com a al. f), vemos que, enquanto na 1ª disposição se lê: «crime que admite extradição e esta não possa ser concedida», já na al. f) lê-se: «cuja extradição haja sido requerida [...] e esta não possa ser concedida». Logo, parece que, diferentemente da situação prevista na al. e), no caso do ppio da nacionalidade activa, não se exige que tenha sido pedida a extradição para que o infractor possa ser julgado em Portugal. - Digamos que este argumento era decisivo, se o legislador não ziguezaguiasse na utilização de expressões diferentes, quando, se calhar, até está a querer dizer a mesma coisa. Na verdade, vejamos a causa da perplexidade ou dúvidas do intérprete e do julgador: na al. c) escreveu: «não possa ser extraditado»; na al. e) disse: «admita extradição e esta não possa ser concedida»; e na al. f) remata: «cuja extradição haja sido requerida [...] e esta não possa ser concedida»!... Mas há, ainda, 1 3.º e forte argumento em favor da tese da não exigência de 1 pedido de extradição. Vejamo-lo. Esta al. e) contém 2 ppios e torna a sua aplicação dependente dos mesmos pressupostos. São eles o ppio da nacionalidade activa, que estamos a analisar, e o ppio da nacionalidade passiva, que analisaremos em breve. Ora, considerando o ppio da nacionalidade passiva (crime cometido, num Estado estrangeiro, por 1 cidadão estrangeiro contra 1 cidadão português), não tem sentido fazer depender o julgamento, em Portugal, do cidadão estrangeiro de 1 pedido de extradição formulado pelo Estado onde 1 seu nacional (ou 1 nacional de 1 qualquer outro Estado, que não o português) cometeu 1 crime contra 1 português. Sendo, a razão de ser do ppio da nacionalidade passiva a protecção dos interesses dos cidadãos portugueses, seria inteiramente ilógico que a efectivação desta protecção penal ficasse dependente da vontade do Estado estrangeiro. Do exposto resulta a conclusão, lógica e teleologicamente cogente, de que a aplicação da lei penal portuguesa (ou da lei penal estrangeira, se mais favorável - art.º 6/2) não depende da formulação de 1 pedido de extradição. Ex: 1 sul-africano mata (ou viola, etc.), na África do Sul (ou, p. ex., em Moçambique), 1 português; passados vários meses ou anos, sem que tenha sido julgado no seu país, é encontrado e detido em Portugal; a África do Sul não formula qualquer pedido de extradição. Pergunta-se: 1 vez que não é pedida a extradição, ficam os tribunais portugueses impedidos de julgar o criminoso? — É evidente que não ficam impedidos; é mesmo seu dever julgá-lo. Conclui-se, pois, que também o ppio da nacionalidade activa não pressupõe que tenha sido formulado 1 pedido de extradição.

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Ainda, e por hiperabundância, se pode invocar um 4º argumento, sob a forma de pergunta: abrangendo o ppio da nacionalidade activa também a hipótese dos crimes cometidos no estrangeiro (excluídos os referidos nas als. a) e c) do n.° l do art. 5° em análise, por portugueses contra portugueses, que sentido teria o ter de esperar por 1 pedido de extradição (que até, na generalidade, se não sempre, seria recusado) para se poder julgar em Portugal o infractor português, que cá se encontra? — A resposta é, obviamente, não tinha qualquer sentido.

§ 406 - Diante desta panóplia de argumentos, o único argumento em favor da exigência do pedido de extradição torna-se inofensivo. E este inócuo argumento segue este raciocínio: 1 vez que a al. f) tem como pressuposto da aplicabilidade da lei penal portuguesa a 1 estrangeiro que, no estrangeiro, cometeu 1 crime contra outro estrangeiro, a existência de 1 pedido de extradição, então também, em relação a 1 português que, no estrangeiro, comete 1 crime contra 1 estrangeiro, deveria exigir-se 1 pedido de extradição. — Diante da força dos argumentos em favor da não exigência do pedido da extradição, este argumento não é suficiente para os abalar.

§ 407 - A conclusão final é a de que o pedido de extradição, quer estando em causa o ppio da nacionalidade activa ou o da nacionalidade passiva, não é pressuposto da aplicabilidade da lei penal portuguesa (se mais favorável que a do Estado do locus delicti – art.º 6/2. § 408 - E sendo esta a única conclusão, lógica e político-criminalmente, razoável, não se vê o porquê e o para quê deste n.º III da al. e): a lei penal portuguesa é aplicável, quando, além dos pressupostos dos n.ºs I e II, os factos «Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida». Quero dizer que este (aparente) pressuposto é inútil e, sendo-o, gera dúvidas cuja resolução faz o intérprete e o aplicador perder tempo (embora, ao ter de se desconstruir 1 inutilidade legislativa se ganhe sempre algo com o esforço argumentativo…). E é inútil porque o art.º 5/1, não diz que a lei se aplica, mas sim que é aplicável, isto é, que pode ser aplicada, se se verificarem os pressupostos que o próprio art. 5.° refere, para além dos que, obviamente dizem respeito à extradição. Ora, quanto a esta, rege a CRP, art. 33/3/4 e 5, e a lei ordinária sobre a extradição (Lei n.° 144/99). Portanto, parece-me que o art. 5.° do CP só devia referir a extradição, quando entendesse que o pedido de extradição e consequente recusa devia ser considerado como 1 pressuposto da aplicabilidade da lei penal portuguesa, como o faz na al. f).

§ 409 - Em resumo: para a lei portuguesa poder ser aplicada a crimes cometidos no estrangeiro, é necessário que se verifiquem os pressupostos especiais estabelecidos no art.º 5 e que o infractor em causa não seja extraditado. Mas os pressupostos da extradição estão fixados na legislação, constitucional e ordinária, sobre a extradição. Se há pedido e estes pressupostos se verificam, é extraditado e, logicamente, não será julgado em Portugal. Se não há pedido ou, havendo-o, os respectivos pressupostos se não verificam, será julgado em Portugal, se os pressupostos específicos da aplicação da lei penal portuguesa a crimes cometidos no estrangeiro se verificam. Portanto, a alternativa que o legislador devia utilizar seria: mesmo que não haja pedido de extradição ou, havendo, seja recusado, no caso de não querer tornar a aplicabilidade da lei penal portuguesa (i.e., o procedimento criminal nos tribunais portugueses) dependente do pedido de extradição ou desde que haja pedido de extradição e tenha sido recusado, no caso de querer tornar a aplicabilidade da lei penal portuguesa dependente da existência de um pedido de extradição que foi recusado.

2.4. Princípio da nacionalidade passiva (art. 5/1, al. e), 2.ª parte) § 410 - O quarto princípio complementar é o ppio da nacionalidade passiva. Está

consagrado na 2.a parte da al. e) do n.º1 do art. 5.°: «crimes cometidos por estrangeiros contra portugueses». Este princípio foi introduzido, pela 1ª vez, no nosso dto, com o CP de 1982.

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A sua finalidade foi, e é, proteger os interesses dos portugueses relativamente a crimes cometidos, no estrangeiro, por estrangeiros contra portugueses. A consagração, em 1982, deste princípio terá sido motivada pela massiva emigração de portugueses, nomeadamente para França e Alemanha. Como a tutela dos bens jurídicos dos cidadãos portugueses, no estrangeiro, não era totalmente conseguida pelo ppio da nacionalidade activa (até então, compreensivelmente chamado, pura e simplesmente, ppio da nacionalidade), na medida em que este pressupõe a nacionalidade portuguesa do infractor, surgiu, então, este princípio da nacionalidade passiva.

§ 411 - Do exposto resulta que o critério desde ppio é, simultaneamente, a nacionalidade estrangeira do infractor e a nacionalidade portuguesa da vítima. Além destes dois pressupostos-critério, a aplicabilidade da lei penal portuguesa, com base neste ppio, depende dos mesmos pressupostos do ppio da nacionalidade activa (cf. § 403 ss): que o infractor estrangeiro se encontre em Portugal; que o facto seja também punível pela lei do Estado onde foi praticado; e que o infractor não seja extraditado, seja porque nem sequer houve pedido de extradição, ou porque, embora tenha sido formulado tal pedido, este tenha sido indeferido.

Princípio da nacionalidade activa e passiva (art.º 5/1, alínea b) § 412 - O 5º ppio complementar do ppio da territorialidade é o ppio da nacionalidade activa e passiva, estabelecido na al. b) do art.º 5/1 e assim designado por assentar no critério da nacionalidade portuguesa, quer do agente quer da vítima. A especificidade deste ppio está na circunstância de o facto em causa não ser considerado crime pela lei do Estado onde foi praticado, pois se o fosse, tal ppio não tinha razão de ser, 1 vez que o facto caía no âmbito do ppio da nacionalidade activa, que abrange os crimes cometidos, no estrangeiro, por portugueses contra estrangeiros, como por portugueses contra portugueses.

§ 413 - A justificação e a finalidade deste ppio é a de evitar a "fraude" à lei penal portuguesa, isto é, dissuadir que 1 cidadão português se desloque a território de um Estado estrangeiro para aí praticar, contra 1 outro português, 1 facto que, sendo crime segundo a lei penal portuguesa, não o é pela lei desse Estado estrangeiro. Exemplo da aplicação da lei penal portuguesa, com fundamento neste ppio — que foi introduzido pelo CP de 1982 —, temos o caso da mulher portuguesa que se dirija a 1 clínica estrangeira para aí realizar o aborto, em condições que, segundo a lei portuguesa, é crime (CP, art.º l40/3 e 142/1), mas não o é 2º a lei do referido Estado, e o do português, que se deslocasse a 1 país estrangeiro, para ter relações homossexuais com 1 adolescente português de 15 anos (CP, art.º 175), país onde tais actos não fossem puníveis criminalmente.

§ 414 - Para além dos óbvios e já referidos pressupostos da nacionalidade portuguesa do infractor e da vítima e da não punibilidade do facto 2º a lei do locus delicti, são ainda pressupostos da aplicabilidade da lei penal portuguesa: a residência habitual do infractor em Portugal; que este seja encontrado em Portugal; e que haja "fraude" à lei penal portuguesa.

§ 415 - Embora só os dois 1ºs estejam expressamente referidos na disposição (em análise) do CP, entendemos que a fraude à lei penal portuguesa é 1 pressuposto implícito, com 1 significado próprio e com consequências jurídico-penais práticas. Na verdade, o que, como já foi referido, o legislador quis evitar foi a impunidade do português que, para fugir à eficácia ou aplicabilidade da lei penal nacional, se desloca, propositadamente, ao estrangeiro para aí, impunemente, praticar o facto. Assim, se compreende a exigência da residência habitual em Portugal. - Se a teleologia deste princípio fosse apenas a de proteger a vítima portuguesa contra actos praticados no estrangeiro (qualificados como crime pela lei portuguesa, mas não pela lei estrangeira) por portugueses, então não teria sentido o pressuposto da residência habitual em Portugal. Ao mencionar e considerar a residência habitual em Portugal como pressuposto da aplicabilidade deste ppio, o legislador está a exigir, implicitamente, que o português se desloque ao estrangeiro com o objectivo principal de aí praticar o facto. É esta pré-ordenação

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("criminosa") da deslocação ao estrangeiro, que configura 1 fraude ou forma de contornar a lei penal nacional, o que constitui a ratio e determina o âmbito da eficácia normativa deste ppio.

Princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesa a crimes cometidos por estrangeiros contra estrangeiros (art. 5/1, alínea f))

§ 4l6 - Este ppio foi introduzido pela Lei n.° 65/98, de 2 Setembro e procura evitar a im-punidade em situações não abrangidas por nenhum dos anteriores ppios complementares, o que seria profundamente criticável, sob o aspecto político-criminal, e que poderia afectar o saudável relacionamento entre Portugal e os outros Estados. Exemplos de crimes graves praticados, no estrangeiro, por estrangeiros contra estrangeiros, e que poderiam ficar impunes: homicídio (art. 131.°), sequestro (art. 158.°), violação (art. 164.°). Bastava que o infractor fugisse para Portugal e que, apesar de ter sido pedida a extradição, esta não pudesse ser judicialmente autorizada, por obstáculos (constitucionais ou legais) à extradição. Se pode justificar-se que, mesmo se tratando de 1 crime grave, a extradição seja recusada, já, não seria razoável, nem político-criminalmente nem internacionalmente, que o Estado português não só negasse a extradição como ainda se recusasse a julgar em Portugal o referido crime. Assim, com base neste ppio, já pode ser julgado em Portugal 1, p. ex., chinês ou americano que tenha cometido, na China ou nos Estados Unidos, 1 homicídio qualificado na pessoa de 1 chinês, americano ou de 1 qualquer estrangeiro (em relação a Portugal). Compreende-se que o CP estabeleça, como pressupostos deste princípio, que o infractor seja encontrado em Portugal, e que a extradição tenha sido requerida e recusada.

Princípio da aplicação convencional da lei penal portuguesa (art. 5/2) § 418 - Sobre este ppio há que dizer apenas o seguinte: é evidente que o Estado Português se pode vincular, por tratado ou convenção internacional, a aplicar a lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro, que não estejam abrangidos pelos princípios complementares anteriores. Do mesmo modo que, como refere o corpo do art.º 4, o Estado Português pode, por tratado ou convenção internacional, vincular-se a aceitar a aplicação da lei penal estrangeira a factos praticados em Portugal.

Restrições à aplicação da lei penal portuguesa a crimes cometidos no estrangeiro (art. 6.°)

§ 420 - O n.º 1 do art. 6 acolhe o ppio constitucional (CRP, art. 29/5) ne bis in idem, 2º o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime (cf. § 352), ao estabelecer que: «A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação». Daqui resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal no caso de o agente (português ou estrangeiro) ter sido absolvido pelo tribunal do Estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena. Deve observar-se que não pode haver novo julgamento em Portugal, mesmo na hipótese de o agente ter sido julgado e ter ficado absolvido ou condenado (tendo cumprido toda a pena) por um tribunal de um país que também tenha, segundo a lei portuguesa, competência jurisdicional subsidiária. Exemplo: um alemão que, na Itália, cometa um crime contra um português, tendo sido detido e julgado na Alemanha. § 421 - No caso de o agente não ter sido julgado no país do locus delicti (ou noutro país que tenha, segundo a lei portuguesa, competência jurisdicional subsidiária), então poderá ser julgado em Portugal. E, de acordo com a primeira parte do n.° 2 do art. 6.°, ser-lhe-á aplicada a lei penal portuguesa, a não ser que a lei do locus delicti seja concretamente mais favorável, caso em que será esta aplicada — princípio da aplicação da lei penal concretamente mais favorável. Só na hipótese de estarem em causa os crimes referidos na al. a) do art.º 5/1. crimes estes abrangidos pelo ppio da protecção de interesses nacionais é que será sempre aplicada a lei penal portuguesa, por força do art. 6/3. § 423 - A 2.ª parte do n.º 2 estabelece que, na hipótese de o tribunal português dever aplicar a lei penal estrangeira, por ser mais favorável, a pena prevista pela lei estrangeira deve ser convertida naquela que lhe corresponder no sistema português; e que, no caso de não haver

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correspondência entre as 2 penas, (multa em quantia fixa e dias-multa), será aplicada a pena prevista na lei portuguesa. Nesta segunda hipótese, embora se aplique a pena da lei portuguesa, o tribunal não deixará de a reduzir em termos proporcionais à eventual menor gravidade material da pena estabelecida na lei penal estrangeira. § 424 - Finalmente, consideremos a hipótese em que o agente, que cometeu 1 crime no estrangeiro, foi julgado e condenado por 1 tribunal estrangeiro, mas subtraiu-se ao cumpri-mento total ou parcial da condenação, hipótese prevista na 2.ª parte do n.° l do art. 6.°. Nesta hipótese, são possíveis três situações. § 425 - Uma situação é aquela em que o Estado, cujo tribunal proferiu a condenação, nem pede a extradição para efeito de execução da pena no seu território, nem pede ao Estado Português a execução, em Portugal, da pena aplicada pelo tribunal estrangeiro. Neste caso, funcionará a 2.ª parte do n.° l do art. 6.°. O que significa que, verificando-se os pressupostos de algum dos princípios complementares ou subsidiários estabelecidos no art. 5.°, será um tribunal português a julgar, novamente, o infractor. De acordo com o CP, art. 82.° e a Lei n.° 144/99, art. 13.°, é descontado na pena, que vier a ser aplicada, o tempo de privação da liberdade (prisão-pena ou prisão preventiva) que o agente já tiver sofrido no estrangeiro, ou, no caso de pena de multa, a importância que haja pago — é o chamado princípio da imputação ou desconto, fundamentado no princípio ne bis in idem. § 426 - Outra situação é aquela em que o Estado, cujo tribunal proferiu a sentença condenatória, pede a extradição para efeitos do cumprimento, total ou parcial, da pena no seu território. Neste caso, se se verificarem os pressupostos da concessão da extradição, para efeitos da execução da pena já aplicada, o infractor será extraditado, cumprindo a pena, ou a parte desta que falta cumprir, no Estado requerente. Na hipótese de recusa da extradição, então, de acordo com a Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto, art. 32.°-5, «é instaurado [em Portugal] procedimento penal pelos factos que fundamentam o pedido, sendo solicitados ao Estado requerente os elementos necessários». Todavia, por força da Lei n.° 144/99, art. 31.°-2 e 4, nem poderá haver extradição nem novo julgamento em Portugal, quando ao crime, que fundamenta o pedido de extradição, for aplicável pena de prisão de limite máximo inferior a um ano, e quando a pena que falta cumprir for inferior a 4 meses. § 427 - Refira-se que, embora a partir da 4.a Revisão Constitucional, em 1997, seja possível a extradição de cidadãos portugueses (com base em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada — CRP, art. 33.°-3), tal, segundo o art. 32.°-2 e 3 da Lei n.° 144/99, só é permitida para fins de procedimento penal. Logo, na situação, que estamos a tratar, não é possível a extradição do condenado por tribunal estrangeiro, se for cidadão português. § 428 Estando em causa 1 cidadão estrangeiro ou apátrida, a extradição pode ser concedida, desde que se verifiquem os pressupostos referidos nos arts. 31-°-1 e 33-° da Lei n.° 144/99, e não se verifiquem os impedimentos à extradição descritos nos arts. 6.° a 8.° e 32.°-1 — a) da referida Lei 144/99 (p. ex.: pedido de extradição com motivações políticas, étnicas, etc.; falta de garantias de um processo justo; crime punível com pena de morte ou prisão perpétua, ou, inversamente, crime (leve) punível com pena cujo limite máximo seja inferior a l ano de prisão; tempo de prisão por cumprir inferior a 4 meses). § 429 - Há 2 categorias de extradição: extradição activa e extradição passiva. A extradição activa consiste no pedido formulado por um Estado a outro Estado, para que este lhe entregue determinado cidadão, a fim de ser julgado por um seu tribunal ou de cumprir a pena em que já tenha sido condenado no seu Estado. A esta extradição activa, com o respectivo processo administrativo, se refere o art. 69.° da Lei n.° 144/99- A extradição passiva corre no Estado a que é feito o pedido de entrega de um determinado cidadão. Esta extradição passiva e os correspondentes processos (administrativo e judicial)

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estão regulamentados na Lei n.° 144/99, art. 31.° ss. É nesta extradição passiva (dita passiva apenas pelo facto de o Estado, onde se encontra o cidadão, ser o Estado requerido) que se coloca a necessidade de acautelar os direitos, as liberdades e as garantias individuais do cidadão reclamado por um outro Estado. Desta necessidade de acautelar os direitos e as liberdades individuais do cidadão resultou a garantia jurisdicional da CRP, art. 33-°-6, segundo a qual «A extradição só pode ser determinada por autoridade judicial». § 430 - Na extradição passiva, há duas fases: a primeira é administrativa, a segunda é judicial (Lei n.° 144/99, art. 46.°). Nos termos do n.° 2 do referido art. 46.°, a fase administrativa «é destinada à apreciação do pedido de extradição pelo Ministro da Justiça para o efeito de decidir, tendo, nomeadamente, em conta as garantias a que haja lugar, se ele pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência». Se a decisão do Ministro da Justiça for de indeferimento do pedido de extradição, o processo termina aqui, sendo arquivado (Lein.° 144/99, art. 48.°-3). Se a decisão do Ministro da Justiça for de aceitação (deferimento administrativo), o processo de extradição passa à fase judicial. Como é referido pela Lei n.° 144/99, art. 24.°-1, é óbvio que «a decisão do Ministro da Justiça que declara admissível o pedido não vincula a autoridade judiciária». A competência para o processo judicial de extradição é do tribunal da Relação «em cujo distrito judicial residir ou se encontrar a pessoa reclamada ao tempo do pedido». Da decisão final é possível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (Lei n.° 144/99, art. 49.°). § 431 - Retomando as situações possíveis (referidas no § 424), no caso do agente que cometeu um crime no estrangeiro e, aí, foi condenado, tendo, porém, se subtraído ao cumprimento total ou parcial da pena, vejamos a situação em que o Estado, cujo tribunal proferiu a condenação, pede a Portugal a execução, cá, da sentença penal. Neste caso, a sentença penal estrangeira pode ser executada em Portugal desde que se verifiquem as condições estabelecidas no art. 96.° da Lei n.° 144/99. Destaco, de entre as várias condições, as previstas nas ais. i) e j) do n.° l, e no n.° 6. São as seguintes: que a duração da pena ou da medida de segurança, impostas pela sentença estrangeira, não seja inferior a 1 ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual; que, tratando-se de pena ou medida de segurança privativa da liberdade, o condenado dê o seu consentimento; sendo o condenado pelo tribunal estrangeiro 1 português, há lugar à execução da sentença, independentemente do seu consentimento, se, previamente, tiver sido concedida a extradição (para efeitos de procedimento penal, 1 vez que como já o referimos, não pode haver extradição de portugueses, para efeitos de execução de sentença penal estrangeira). § 432 - Como é natural «a força executiva da sentença estrangeira depende de prévia revisão e confirmação, 2º o disposto no Código de Processo Penal e o previsto nas alíneas a) e c) do n.° 2 do art. 6.° do presente diploma» (Lei n.º 144/99 art. 100.°-1). Segundo o CPP, art. 235.°, a competência para a revisão e confirmação cabe ao Tribunal da Relação do último domicilio ou na falta deste, do lugar onde for encontrado o infractor. Caso não seja possível determinar os referidos domicílio ou lugar, a competência é do Tribunal da Relação de Lisboa.

TESTES

- Ao crime de traição alto-medieval era aplicada a pena de "perda relativa da paz", falso - A pena de infâmia era aplicada nos crimes de "lesa majestade divina". Verdadeiro - O livro Dei Delitti e delle Pene foi escrito por BECCARIA e foi publicado em 1764, Verdadeiro - Para a Escola Positiva eram mais importantes as tipologias de delinqüentes do que as tipologias de crimes. Verdadeiro - A teoria,da "coacção psicológica" defendia que a função principal da pena era a prevenção especial. Falso (geral) - A "necessidade penal" refere-se à dimensão axiológica do bem jurídico. Verdadeiro

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- O nosso Código Penal acolhe o sistema dualista de reacções criminais, o que significa que aos "imputáveis perigosos" devem ser aplicadas penas e medidas de segurança. Verdadeiro - A conversão de um crime em contra-ordenação também é da competência do Governo, Falso - Norma penal em branco é uma norma em que o legislador remete para outra norma a determinação da conduta punível. Falso - No Direito Penal não é permitido o recurso à analogia in bonam partem, Falso - O crime de traição consistia num homicídio qualificado pela especial relação que intercedia entre agente e vítima. Verdadeiro - Feuerbach defendia uma concepção retributíva de pena. Verdadeiro - O sistema monista de reacções criminais considera que aos imputáveis perigosos só se devem aplicar penas, pois que tal categoria de delinqüentes tem culpa das suas tendências criminosas. Verdadeiro - E unânime a doutrina de que a distinção entre as contra-ordenacões e os crimes é qualitativa, com o argumento de que tanto as coimas como as multas são sanções pecuniárias, Verdadeiro - O art 40° acolhe uma concepção étíco-preventiva da pena. Falso (preventivo-ética - No Direito Penal não é permitido o recurso à analogia ín bonam partem. Falso (art.º 227) - O crime de traição consistia num homicídio qualificado pela especial relação que intercedia entre agente e vítima. Verdadeiro - Para Kant não há pena sem culpa, mas pode haver culpa sem pena. Falso - Lombroso foi o criador da criminalidade biológica. Verdadeiro - Para Beccaria, mais importante do que a celeridade da decisão era a severidade das penas. Falso - O sistema dualista das reacções criminais considera que aos imputáveis perigosos se devem aplicar penas e medidas de segurança. Verdadeiro - Um bem jurídico-penal deve revestir as características da dignidade e da necessidade penal. Verdadeiro - Ao Crime de Lesa-Majestade era aplicada a pena de composição corporal. Falso - A Alta Idade Média constituiu 1 período de charneira entre a Baixa Idade Média e a Idade Moderna. Verdadeiro - Para a Escola clássica a culpa é fundamento da pena. Verdadeiro - Para a Escola Positiva a conduta humana é causalmente determinada por factores bio-psicológicos e / ou sociais. Verdadeiro - Entre os valores constitucionais e os bens jurídico-penais deve interceder 1 "relação de analogia material", Verdadeiro - A prevenção geral em sentido positivo refere-se à intimidação da comunidade, Falso - A multa constitui a sanção principal do Direito de mera ordenação social. Falso - A transformação de 1 crime em contra-ordenação é da competência concorrente do Governo. Falso - Ao crime Lesa Majestade era aplicada a perda absoluta da paz. Falso - O primeiro Código Penal Português foi publicado em 1870. Falso - O princípio da legalidade foi defendido pelos pensadores iluministas. Verdadeiro - Para a Escola clássica o fundamento da pena encontrava-se na necessidade social. Falso - Lombroso foi o "pai" da biologia criminal. Verdadeiro - O nosso Código Penal (actual) aderiu a uma concepção ético-retributiva da pena. Falso - As coimas têm de ser aplicadas pelos Tribunais. Falso - As normas penais em branco são sempre inconstitucionais. Falso - No Direito penal é proibida a analogia in inalam partem. Verdadeiro