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de tal forma que abra novas dimensões de luta e possa evitar osperigos da centralização; para conseguir a complementariedade eo conflito criativo entre diferentes correntes, em vez da imposiçãoda unidade; e para reformular nossa atividade como a reconquistada vida (com todos os conhecimentos concretos e concepções desobrevivência que isso acarreta) em vez da produção ou negaçãode abstrações (difusão, recrutamento, pureza ideológica, ...).

Que estas palavras sirvam para debater e afiar nossas práticas.

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Traduzido do espanhol colaborativamente por Editora Subta.Publicado originalmente na Espanha em 2015.

CopyleftPublicação livre de direitos autorais. POR FAVOR COPIE E REDISTRIBUA.

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dogmáticas, desde as populistas até uma parte das anarquistas an-tissociais, não fazem mais que fortalecer.

Para torná-la concreta, essa superação, essa síntese, poderiatomar a forma de uma rede entre companheiras sociais e compa-nheiras antissociais, artísticas e teóricas, com predisposição para ocuidado e com predisposição para o ataque, que admiram os co-nhecimentos e capacidades das demais, que não se insultam entreelas pelas costas, que utilizam seus próprios conhecimentos nãopara fortalecer seus egos nem em busca de sucesso individual maspara o benefício de todas, que se concebem como uma comunida-de de luta e que buscam uma complementariedade em suas ações,não concordando sempre, mas sim mantendo um sentimento bási-co de solidariedade, apoio mútuo e respeito.

Os projetos que aumentam nossas capacidades de luta po-deriam tomar a forma de um grupo de terapias alternativas ou deautogestão da saúde, que oferece seus conhecimentos a pessoasferidas nas manifestações ou a companheiras que saem da prisão;de projetos rurais (que frequentemente ficam isolados) que servemcomo espaços para jornadas, para descanso e também para o tra-balho físico para as assembleias urbanas que têm um ritmo impra-ticável; de companheiras combativas que arriscam seus corpos esua liberdade não ao apontar inimigos muitas vezes simbólicos(atividade também necessária, mesmo que limitada) mas defen-dendo uma horta, uma clínica, uma casa ou um centro social con-tra um despejo; de um grupo especializado em propaganda e difu-são ajudando a espalhar ideias mais radicais, provocativas e mar-ginalizadas; de redes de pessoas que conseguem cada vez maisabastecer suas necessidades sem recorrer às relações mediadaspelo dinheiro e comerciais, sem fugir do conflito com o capitalis-mo, mas buscando-o e convidando mais pessoas para fazê-lo jun-tas.

Como disse um companheiro mapuche, explicando umprojeto de autogeração de eletricidade numa comunidade em re-sistência: “não queremos gerar nossa própria eletricidade simples-

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espaço anarquista que não participam nas federações, e que ne-nhuma pretenda abarcar ou aglutinar toda a atividade anarquista.

Próximos Passos

Para que haja qualquer possibilidade de destruir esta socie-dade-prisão ou de mudar o destino horroroso que está sobre nós,será imprescindível: deixar de conceber nossa debilidade em ter-mos de difusão; abandonar as práticas de recrutamento e os delíri-os de organização de massas que ele representa; criticar energica-mente as correntes que recorrem ao marketing e ao populismo.Porém, muito mais que atacar nossos erros, temos que encontraroutros caminhos, com ações mais que com palavras.

Para começar, não poderá haver apenas um caminho. Ne-nhuma prática é capaz de abarcar todas as atividades necessáriaspara uma revolução. É preciso imaginar a revolta como um ecos-sistema. Se pretendemos ser a única espécie, matamos a revolu-ção.

Mas, seja como for, todas e todos deveríamos dar atenção àsobrevivência. Isso significa que nossos projetos e as atividadesque fomentamos e ampliamos mediante a organização devem sepreocupar com a autogestão da vida; devem ser úteis tanto paranós como para outras pessoas; devem apoiar e aumentar nossascapacidades de luta, entendendo a luta como um aspecto básico dasobrevivência para as pessoas que almejam pela liberdade; tendoperspectivas das possíveis mudanças no sistema capitalista, desdeo colapso até uma transformação profunda na arquitetura do sis-tema-mundo.

Também deveríamos buscar iniciativas de síntese, as queconfundem as categorias de alienação capitalista e as que juntamforças distintas para superar as visões típicas que as anarquistas

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CONTEÚDO

Os sucessos e as deficiências do Anarquismo......................1O Estado Islâmico................................................................3A Crise..................................................................................11O Espaço Sideral..................................................................12A Imaginação........................................................................14Colapso ou Tecnossocialismo...............................................15O fascismo............................................................................17Sobre Classes e Tecnocratas.................................................19As Promessas da Esquerda...................................................23As Propostas Anarquistas.....................................................24Populismo e Suicídio Revolucionário..................................30Organização Anarquista........................................................40Próximos Passos...................................................................50Concluindo...........................................................................52

auto-organização, mas outra parte foi espontânea, enquanto os lí-deres da CNT freavam as expropriações e as coletivizações nãofavorecidas pelo governo. Só a CNT foi capaz de restaurar a auto-ridade estatal nas zonas livres (ou de impedir uma insurreiçãoquando os comunistas e republicanos esmagaram-nas) através dapolítica antifascista da Frente Popular.

A diferença entre essas duas confederações, a que teve êxi-to e a que fracassou, é que os grupos locais dos Haudenosauneeeram povos ou casas comunais que tinham um alto grau de autos-suficiência, que a importância e a força residiam no que no Oci-dente poderia ser chamado de nível “baixo” da federação, enquan-to na CNT foi o contrário: foram nos congressos e comitês estataisonde se exercia o poder. Entre as Haudenosaunee, ninguém ocupaum posto no nível central e as assembleias com a totalidade daconfederação ocorrem de forma irregular, em casos de necessida-de. Quer dizer, normalmente não existe o nível central ou “superi-or” da federação. Outra diferença é que as sociedades quecompõem as Haudenosaunee são mais ou menos antipatriarcais(com diferenças entre uma nação e outra) enquanto que a CNT foiclaramente uma organização de homens, mesmo que as mulherestenham tido um papel imprescindível nas lutas contemporâneas.

Se em algum lugar considera-se – com lucidez e uma estu-dada familiaridade de nossa história – como proveitoso ou neces-sário o grau de coordenação estreita possibilitado por uma federa-ção, tudo bem, vamos em frente. Mas é imprescindível que nuncase pretenda ser uma organização aglutinadora, que sempre se man-tenha uma certa igualdade e solidariedade com as revolucionárias(anarquistas e outras) que estejam fora da organização. Uma fede-ração pode ser poderosa, mas é a forma organizativa mais perigo-sa, de uma perspectiva anarquista.

Na Grécia, provavelmente o país com a maior densidadeanarquista, atualmente existem duas confederações em processode construção. Parece um bom sinal o fato de que ambas colo-quem a questão de como se relacionar com os extensos setores do

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Se traçamos o esquema organizativo de uma federação,produzimos um triângulo. A linha horizontal são todos os gruposlocais; no meio estão os níveis de organização intermediários,cada vez mais estreitos; e o ponto seria o espaço central que unetoda a federação: a assembleia superior com seu comitê ou secre-tariado, se houver. É imprescindível, de uma perspectiva anarquis-ta, que o ponto deste triângulo esteja embaixo e não em cima, por-que o triângulo com o ponto em cima também é o esquema orga-nizativo de Estado.

O que significa isso, para além do clichê? Que o nível or-ganizativo mais importante e a concentração da força teriam queestar entre os grupos locais, e que a assembleia central deveria teruma importância e um uso limitados. Por exemplo: que grandeparte das iniciativas surja dos grupos locais, cheguem aos níveisintermediários e daí sejam adotadas por outros grupos locais; queos grupos locais sejam autossuficientes em grande parte de suaatividade e que somente recorram aos níveis mais altos para bus-car recursos ou ampliar seus efeitos, em vez de estar à espera dascampanhas e diretrizes marcadas pelo nível central.

Podemos comparar duas federações importantes para asanarquistas. Os Haudenosaunee ou “Seis Nações” são uma confe-deração de seis nações indígenas norte-americanas, entre elas osMohawk e os Oneida. Sua confederação conta com mais de 700anos de história e serviu para resistir a várias tentativas de imporuma autoridade estatal, tanto vindas de líderes internos como me-diante invasão e colonização.

A CNT é a confederação mais poderosa e eficaz que osanarquistas no Ocidente construíram em sua História. Após 26anos de sua fundação, converteu-se em uma organização hierár-quica, impondo a autoridade governamental à grande parte dasclasses baixas na Espanha, onde o Estado fora negado na insurrei-ção de julho de 1936. Num amplo território, o poder estatal haviadesaparecido, substituído pela auto-organização. A CNT, sobretu-do seus grupos locais de níveis inferiores, iniciou uma parte dessa

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Os sucessos e as deficiências

do Anarquismo

Num momento em que o anarquismo está crescendo pelomundo, também encontramos, curiosamente, uma sensação cadavez maior de cinismo, perda e crise existencial vividas tanto indi-vidualmente quanto coletivamente. E, ao que parece, é maior queo ciclo geracional de esgotamento típico das últimas décadas.Muitas das táticas anarquistas de destruição e confrontamento (porexemplo, as formas de atacar e gerar distúrbios com os rostos co-bertos) foram adotadas por muitas pessoas de fora do círculo anar-quista. E em lugares como Egito, Grécia, EUA, Brasil ou Espanhasabemos que a passagem destas táticas foram em parte diretas. Osilêncio no qual a sociedade tentou enterrar o anarquismo durantedécadas acabou sendo definitivamente quebrado. Em diferentespaíses como Grécia, Chile ou EUA, anarquistas tornaram-se umaforça política, capaz de influenciar os discursos sociais e desmas-carar, pelo menos, algumas das defesas discursivas que os Estadosdemocráticos usam para alcançar seus objetivos. E aqui, na Espa-nha, vimos o fenômeno do #yotambiensoyanarquista [#eutambém-souanarquista], através do qual milhares de pessoas se posiciona-ram no lado dos anarquistas que não apenas foram reprimidoscomo também rotulados pelo Estado como “terroristas”.

Entretanto, as ideias e práticas positivas do anarquismo nãoseguiram adiante. E não foi por desconhecimento. Pelo contrário,em vários movimentos sociais que criaram experiências e confli-tos importantes, as práticas de tomar decisões em assembleia, oconsenso e a rejeição de partidos políticos e representantes forammomentaneamente generalizadas, para logo em seguida seremabandonadas. E a autogestão espalha-se cada vez mais, porém dis-tanciando-se de um horizonte revolucionário, reivindicando ao in-

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vés disso rentabilidade, produtividade, o dinheiro e outras ferra-mentas capitalistas, disfarçando este caminho cego com uma falsasofisticação, como podemos observar no setor mais dogmático daCooperativa Integral Catalana (que, para sermos sinceros, tambéminclui muitos projetos importantes e radicais).

Cada vez mais companheiras em cada vez mais países pas-saram por conflitos surpreendentes nos quais todas as mentiras sa-gradas foram questionadas. Novas cumplicidades e amplas rela-ções de solidariedade se abriram e as forças da ordem perderam ocontrole; mas, depois, tudo voltou a ser como antes, talvez com al-guma diferença na configuração ou nos disfarces do poder.

É verdade que as lutas, como tudo na natureza, são cíclicase precisamos aprender agir de acordo com essa ciclicidade. Nessesentido, companheiras do CrimethInc fizeram uma compilação detextos sobre o que fazer “Depois da Crista”, recentemente traduzi-dos para o castelhano. Mas a inquietação atual vai muito mais lon-ge, pois acreditamos que estamos na beira de perder nossa chancede intervir nos conflitos em andamento e frustrar as tentativas docapitalismo de adaptar-se a novas crises, que vêm relampejandopelo mundo e são transtemáticas, entrelaçando as arenas da ecolo-gia, economia, ideologia, política, tecnologia e cultura.

Precisamos analisar com urgência as deficiências do anar-

quismo que está no auge nos últimos anos. Por que existe tão

pouca cumplicidade com as práticas positivas anarquistas?

Não podemos culpar a falta de disseminação, embora maispropaganda sempre ajude. Os mecanismos da propaganda anar-quista melhoraram muito na última década. E de uma forma alheiaa nossa própria atividade, tendo em vista as reações da sociedadeoficial à nossa presença, muitos acadêmicos e celebridades acaba-ram mencionando e até aderindo às ideias anarquistas. Hoje, livrosradicais podem se tornar bestsellers, como “A Insurreição queVem", do Comitê Invisível, provou. Não digo isso para celebrá-lo,

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Em uma coordenação é possível organizar debates entreseus participantes, mas não é o mais comum, dado que não se estábuscando uma unidade maior, como em uma federação, nem umaprofundamento dos vínculos, como em um encontro, mas umcontato pragmático para atividades concretas.

A federação é formal e centralizada. Para conformar umafederação de verdade é necessário, ao menos, três níveis organiza-tivos: o dos grupos locais, um nível intermediário para os gruposde uma mesma zona e o nível mais alto para todos os grupos. Po-rém, algumas federações muito reduzidas só têm o primeiro e oterceiro nível7. Paralelamente às assembleias ou às plenárias decada nível, pode existir um secretariado ou um comitê. Isso au-menta bastante a burocracia e o perigo da conversão em uma orga-nização autoritária (como foi em grande parte o trajeto da CNT, amaior federação anarquista da história), mas pode ser necessáriopara dar constância e agilidade à obra da organização. É claro, sese trata de uma federação anarquista, os postos no secretariado eno comitê serão rotativos e revogáveis.

Para funcionar como federação, todos os grupos locais ougrupos integrantes devem ser simétricos (por exemplo, todos têmque ser assembleias de bairro, ou sindicatos, ou escolas livres,etc.). Se não o são, a federação é ilusória. Esses grupos não sãoautônomos, o que buscam é uma certa unidade; e seus contatosnão são flexíveis, mas pretendem ser de longa duração.

Diferente de uma coordenação, a federação pode criar no-vos grupos integrantes e mudar a forma na qual os grupos inte-grantes relacionam-se entre si. Funciona por delegação. Mesmoque as plenárias sejam abertas a todos os membros para fomentara transparência, cada grupo integrante tem que falar com uma voz(imposição artificial e com tendências autoritárias, já que nenhumgrupo humano é verdadeiramente homogêneo).

7 Também existem vários grupos de afinidade, assembleias ou coordenaçõesque se chamam “federação” graças à fetichização organizativa.

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O encontro é a opção mais informal. Funciona como umaassembleia ou um conjunto de espaços diversos para potencializaros vínculos entre as pessoas e os projetos que elas compõem. Estáestruturado para facilitar a auto-organização entre os participantes,vários dos quais podem iniciar uma estrutura conjunta sem quetodo mundo participe. Quer dizer, funciona por adesão. Pode serum espaço de debate, mas não de consenso (para além do consen-so sobre certos mínimos). Pode-se lançar propostas no encontro,mas para buscar cumplicidades e não para conseguir uma decisãounitária entre todos. É a estrutura descentralizada por excelência.

Suas vantagens são que não apresenta o perigo da centrali-zação nem da burocratização. É uma organização muito fluida eleve onde se potencializa a vontade das participantes e que morreno momento em que se deixa de dedicar-lhe energias. Suas des-vantagens são que não possibilita a ação unitária ou a preparação eo planejamento de campanhas e atividades entre todas, nos mo-mentos em que venha a ser necessário. Nesse tipo de eventualida-de, teríamos que trabalhar como assembleias, que poderiam ounão funcionar segundo o número de participantes e o grau de dife-rença entre elas.

A coordenação é formal, mas também põe muita ênfase naautonomia de seus integrantes. Pode servir para dispor recursos elançar propostas em comum – por adesão ou de forma descentrali-zada – e também para planejar ações e campanhas unitárias. Asparticipantes podem ser indivíduos e coletivos, ou só coletivos,mas é diferente de uma assembleia ou de um coletivo porque sesupõe que é um ponto de convergência de forças, forças disponí-veis que superam as dos indivíduos presentes na gestão do espaço.Também se supõe que seus participantes têm suas próprias lutas,recursos e redes. O planejamento pode ser gerido em grupos detrabalho, na própria assembleia, se não for muito grande, ou os co-letivos podem trazer propostas já elaboradas. Em qualquer caso,existe um processo de delegação que serve para comunicar as pro-postas entre a assembleia central da coordenação e os coletivosque a compõem.

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mas para evidenciar que, em muitos países pelo menos, qualquerpessoa que queira conhecer as ideias anarquistas pode fazê-lo.

O Estado Islâmico

Não podemos, tampouco, culpar a distorção midiática porespalhar uma ideia errada do que é o anarquismo. A mídia fabricasuas difamações e suas narrativas policiais constantemente, e elasdevem ser levadas em consideração, mas seria vitimismo jogarnela a responsabilidade pelo nosso isolamento. Podemos usar umacomparação para colocar o problema em perspectiva: na mídia,ninguém recebe pior cobertura que os fundamentalistas islâmicos.Eles são descritos como terroristas dos mais extremados e mons-truosos. Mesmo assim, uma grande porcentagem da juventudemarginalizada na Europa simpatiza ou mesmo apoia diretamenteos movimentos jihadistas. É claro que eles tendem a ser imigran-tes de países muçulmanos, mas muitos deles nasceram aqui [naEuropa] e a “Europa democrática” não os convenceu. E tambémencontramos uma importante porcentagem de europeus converti-dos ao islã fundamentalista. Na verdade, é um fenômeno muitosignificativo para o nosso tempo que o movimento antissistêmicomais atrativo seja o jihadismo. Ou sendo mais preciso: atrativopara alguns e totalmente repulsivo e horripilante para outros.

Como os jihadistas fazem seu recrutamento? Majoritaria-mente através de meios como o Twitter e fóruns de internet, ferra-mentas que anarquistas vêm usando por anos, sem alcançar resul-tados similares.

Se uma comparação entre a propaganda do Estado Islâmicoe a do anarquismo parece absurda ou mórbida, ou se ela lembra asoperações pseudo-intelectuais de jornalistas e acadêmicos da di-reita tentando ligar diferentes tipos de subversão, é porque o seupropósito é satírico. Hoje, o sistema composto pela polícia e a mí-

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dia novamente obriga anarquistas a interpretar o papel de terroris-tas, pelo menos em certos países. Mas esse é um elenco que ridi-culariza o próprio diretor, porque no espetáculo do terrorismo nósanarquistas não temos nem como competir: não estamos à alturadas jihadistas. É como se o Chuck Noris, depois de derrotar umainvasão alienígena de insetos com três metros de altura, armadoscom lasers e motosserras, tivesse que dar conta de um entregadorde pizza mal-encarado. Não produz uma boa sequência.

O fantasma do terrorismo anarquista também ridicularizaaqueles camaradas que colocam muita importância na prática dosatentados (ataques que funcionam como “propaganda pela ação”)- numa era em que o Estado está cada vez mais capacitado em ab-sorver e tirar vantagem dos choques causados pelos atentados deforma muito mais devastadora do que nós mesmos - e aqueles queimaginam-se como os inimigos inquebráveis do Estado - numa eraem que a guerra é cada vez mais unilateral. Talvez os nossos ata-ques precisem assumir um novo sentido simbólico e uma nova re-lação com os conflitos sociais. Eles não são as investidas mais im-portantes numa guerra dramática,1 mas um tipo de antimáquina

que introduzimos nas brechas dos conflitos sociais, para que elasgeneralizem-se e sabotem a materialização das relações de poder.

Entretanto, a sátira é acima de tudo direcionada àquelascompanheiras populistas que tentam reproduzir os sucessos dapropaganda de qualquer entidade, não importa o quão distante doanarquismo, como acontece com os partidos de esquerda e as em-presas de marketing. Eles nunca ousariam copiar a fórmula de re-crutamento do Estado Islâmico, não por uma crítica de incompati-

1 Na verdade, é preciso enfatizar o fato de que desde a II Guerra Mundial, asguerras não consistem mais de batalhas entre exércitos, mas da produção demetamáquinas que mobilizam forças destrutivas e organizacionais. O seucampo é apenas o da estatística. Para aqueles leitores que pensam que issoé papo furado, recomendo uma análise das contribuições metodológicas deRobert McNamara, que trabalhava antes na Ford e depois no Escritório deControle Estatístico e no Departamento de Defesa dos EUA; ou o tratamen-to do Serviço Secreto Britânico (MI6) da produção intelectual dos matemá-ticos do Projeto Ultra.

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limitações antes insuperáveis com a organização, abrindo novasdimensões de lutas. Ou podem centralizar-se, abandonar seus ter-renos prévios de luta e cair imobilizados pela unidade.

Um texto da recente iniciativa da “La Trobada de Infraes-

tructures Libertàries” (Encontro de Infraestruturas Libertárias)oferece um exemplo do que significa abrir uma nova dimensão de

luta. Na Catalunha, existem muitos projetos construtivos (comohortas, oficinas, gráficas...) Individualmente, cada um tem que sevirar por conta própria, normalmente buscando a sobrevivênciadentro da legalidade democrática e do mercado capitalista, e àsvezes caindo em suas ideologias, quando começam a apostar noalternativismo ou a reivindicar o uso do dinheiro e a produção demercadorias “de consciência”. Mas coordenando-se, teriam a pos-sibilidade de desenvolver uma economia de dádiva, colocar emprática relações anárquicas e tornar-se parte mais integral das lu-tas.

Outro exemplo, hipotético mas baseado em experiênciasreais, seria o de um país onde existissem vários grupos de apoio apresos. Organizando-se conjuntamente, seria possível comparti-lhar recursos e experiências, evitar a duplicação de esforços e ga-rantir que nenhum preso fique sem apoio e que todos os aspectosdo apoio estejam bem elaborados. O fato de que as iniciativas decoordenação sejam posteriores à existência dos projetos individu-ais é de grande ajuda, pois demonstra que cada grupo já tem umaprática real e capacidade de auto-organização. Tendo aberto seupróprio caminho, cada grupo terá perspectivas diversas e autôno-mas. Ao contrário, iniciativas e projetos que surgem de uma gran-de organização são como casas construídas a partir do telhado.Não terão uma experiência e uma atividade já desenvolvidas. Omais provável é que sejam fantasmas.

Se acontece de haver a densidade necessária para iniciar ameta-organização, que forma deveria tomar?

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contramos diante de um exemplo de informalidade, mas de umexemplo de fracasso da formalidade.

Para além dos projetos individuais, existe a questão dameta-organização – a organização de organizações –e a pretensãode organização em grande escala ou de grande envergadura. Éaqui onde o critério de densidade ganha uma importância crítica.Quando falamos de densidade, nos referimos à frequência, intensi-dade e proximidade de atividades anarquistas, incluindo todos osprojetos individuais que acabamos de mencionar.

Muitas vezes, as propostas para mais organização apare-cem de desertos anarquistas – regiões com muito pouca atividadee muito poucas anarquistas – ou de lamaçais anarquistas – regiõescom muitas anarquistas, mas que estão atoladas ou pouco ativas(por exemplo, Barcelona depois da queda dos novos movimentospopulares). Estas estão destinadas ao fracasso. A organização emsi não gera mais atividade se não há nada para ser organizado.Pelo contrário, gasta-se muitíssima energia para construir umasestruturas que desde o primeiro momento serão imobilizadas.Existem poucas coisas mais tristes que uma “organização de mas-sas” ou “plataforma” anarquista com entre 5 e 15 membros emtodo um país, como as que apareceram várias vezes na Inglaterra,nos Bálcãs e nas Américas. Também é triste ver dezenas de com-panheiros dedicar muitíssimo tempo construindo uma grande or-ganização enquanto falham no trabalho de bairro, na subversão dolocal de trabalho e na luta de rua.

A meta-organização, com poucas exceções, só tem sentidoquando existe uma grande densidade anarquista. Nestes momen-tos, companheiros que antes sempre se opunham às iniciativas degrande organização que haviam visto antes mudarão de ideia e co-meçarão a apoiar uma ou outra iniciativa (quem dera, sem perdersua crítica anterior), como aconteceu na Catalunha ou na Grécia.

Quando existem muitos projetos anarquistas na mesma re-gião, é possível ampliar suas próprias forças e superar problemas e

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bilidade entre métodos anarquistas e autoritários (o que tambémos impediria de copiar as técnicas de marketing e de recrutamentoorganizadas pelos partidos políticos), mas por causa de um impul-so acrítico de fugir de coisas que gerem mídia desfavorável, damesma forma que fogem daquelas práticas anarquistas que tam-bém são estigmatizadas pela mídia.

O sucesso do Estado Islâmico refuta qualquer tentativa de

culpar a difamação, a ignorância e a mídia desfavorável pelos

fracassos do anarquismo.

Se existisse alguma coisa atrativa no anarquismo, ela bri-lharia por si mesma, não importando as campanhas difamatóriasda imprensa. Não encontraremos nossos defeitos na disseminaçãoe na propaganda. As ideias anarquista não estão escondidas. Pelocontrário, elas não estão sendo procuradas. Elas não são distorci-das, senão que ninguém se importa de torná-las claras. Se não es-tão triunfando é porque não são úteis.

Se o fracasso do anarquismo tem como consequência oaparecimento de novos partidos de esquerda, como veremos maisa frente, podemos dizer que o fracasso das insurreições do banli-

eue (os subúrbios pobres da França, onde as maiores revoltas es-touraram em 2005, semelhantes às revoltas em seguida na Ingla-terra) contribuíram para o jihadismo. Em ambos casos, grandes se-tores da sociedade falharam nas suas tentativas de auto-organizarsuas lutas, e consequentemente, procuraram pelo poder para al-cançar as mudanças que queriam.

Assim, o poder em si é um elemento chave. Um movimen-to sem poder social, como o anarquismo, que, além disso, buscadissolver ou descentralizar o poder, não pode copiar as fórmulasde um movimento que exerce poder de fato. Um peixe teria maischance aprendendo a se mexer com um pato.

O poder sempre atrai mais seguidores que uma ideia boni-ta, e graças à situação geopolítica no Oriente Médio e às políticas

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extremamente míopes dos Estados Unidos (já há alguns anos emdecadência irreversível), os jihadistas foram capazes de agarraruma quantidade significante de poder e de se mostrar como a opo-sição mais dedicada e feroz aos símbolos e líderes presumidos dosistema global atual.

E aqui encontramos a verdadeira importância da figura doterrorismo jihadista. Desde 1991 e a queda da União Soviética, osistema-mundo capitalista sente falta de uma dicotomia de opostospara modular e recuperar todos os movimentos dissidentes. O ca-pitalismo liberal foi mais efetivo em países desenvolvidos e tam-bém em escala global, enquanto o capitalismo de Estado (URSS,China, Cuba, etc.) foi, pelo menos, tão efetivo em países subde-senvolvidos, onde movimentos revolucionários tinham uma possi-bilidade de abolir o sistema econômico (o capitalismo nesses paí-ses precisou do Estado para impulsionar o seu desenvolvimento, etambém para institucionalizar ou neutralizar as forças dissidentesque poderiam interrompê-lo).

Durante décadas, todos os movimentos sociais do mundotinham que se subordinar a um desses dois paradigmas, ousando,no máximo, constituir uma oposição leal. Desde 1921 – com aiminente vitória bolchevique na Guerra Civil Russa e a derrotados movimentos revolucionários na Itália e Alemanha (graças àburocracia dos partidos comunista e socialista, como também dossindicatos libertários), que inaugurou uma realpolitik estatista en-tre as lideranças da URSS, as quais por décadas dedicaram-se asufocar qualquer movimento revolucionário que não pudessemcontrolar ou que não respondessem aos seus interesses geopolíti-cos – o horizonte revolucionário havia se extinguido. Qualquermovimento de rebelião estava condicionado a aceitar os preceitose o patrocínio de um dos dois polos dominantes. E a “liberdade”do primeiro polo e o anticapitalismo do segundo eram ambosmentiras.

Daí em diante, anarquistas estavam completamente margi-nalizados. Esquerdistas ingênuos, aliados a um desses polos, de-

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Nas assembleias heterogêneas e inter-geracionais normal-mente é melhor a informalidade se não se trata de um espaço paratomar decisões unitárias, porque gera um âmbito familiar e deconfiança, e normalmente são os jovens bichos políticos aquelesque dominam mais facilmente as estruturas formais. Porém, se setrata de um espaço para tomar decisões unitárias, a formalidadepode ser melhor para ajudar a aprendizagem sobre como tomardecisões em igualdade (sempre lembrando que a igualdade é ilu-

sória) e para evitar o controle da assembleia por uma hierarquiainformal. Haverá certas pessoas que sabem controlar melhor as es-truturas formais, e isso é um perigo, mas sendo um espaço hetero-gêneo e portanto com menos confiança, as participantes não teri-am tanta facilidade para a crítica direta, que é a melhor arma con-tra as hierarquias informais.

Aqui aparece uma dinâmica importante. Num espaço de to-mada de decisões unitárias (as decisões se aplicam a todas, com aideia de que todas as ações também se tomem de forma unida), opoder está centralizado e portanto existe o problema do controleda assembleia. Num espaço descentralizado – de coordenação en-tre grupos e indivíduos autônomos, de encontro, de decisões poradesão – o poder está difuso e não existe a mesma problemática.

Antes de passar à questão da meta-organização ou organi-zação em maior escala, é preciso dizer uma coisa sobre o históricodebate entre as posturas formais e informais. Mesmo que o debatenormalmente tenha se desenvolvido de forma desnecessária opon-do duas formas de organização, cada uma com suas vantagens edesvantagens, como se tivéssemos que escolher entre uma ou ou-tra, os partidários do formal tendem a equivocar-se mais. Costu-mam desconhecer a história das traições e fracassos das grandesestruturas formais, e costumam recorrer à demagogia em vez doargumento lúcido (por exemplo, mesclando a informalidade com ofracasso das estruturas formais). Se as pessoas de uma organiza-ção formal não cumprem os compromissos que tomam formal-mente, e se continuam criando hierarquias informais, não nos en-

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Isso é totalmente falso. Como bem comprova a democracia – empequena ou grande escala – as estruturas formais também servempara esconder dinâmicas desagradáveis ou para gerar a ilusão deque se está solucionando um problema. O mais importante é sem-pre a cultura do grupo, que se reproduz sobretudo nos espaços in-formais.

É necessário que entendamos que não se trata de uma dico-tomia, simetria ou congruência entre esses dois termos. O infor-

mal sempre supera o formal. Não existe nenhuma estrutura formalcapaz de substituir o espaço informal. Nem o Estado mais buro-crático está livre de espaços e relações informais; na verdade, éatravés de canais informais por onde costuma se mover o poder le-gitimado e escondido por trás das estruturas formais. É porque arealidade, em si mesma, é informal. Um racionalismo acrítico en-tre certos anarquistas fez desaparecer o reconhecimento de que ouniverso é caótico, e essa é uma das poucas vantagens que temoscontra o Estado.

Então, para mudar dinâmicas inoportunas, o mais impor-tante será a vontade decisiva do grupo para fazê-lo. Aprovar umaestrutura formal para solucionar o problema é uma maneira de la-var as mãos. Não obstante, as estruturas formais podem servircomo ferramentas se realmente existe a vontade necessária, por-que nos obrigam a sair de nossos padrões e comportamentos habi-tuais e frequentemente não examinados.

As estruturas formais podem facilitar a entrada de novaspessoas (que pode ser, ou não, um objetivo do projeto), deixandoclaro que não se trata de um grupo fechado de amigos. Porém, so-bretudo se são muito efusivas, também podem espantar as pessoasnovas dando a aparência de uma seita ou de um partido político.Um grupo muito isolado, por exemplo em um país ou região compoucas anarquistas, pode aproveitar da formalidade para facilitar ocontato com outras pessoas isoladas buscando companheiras, oucom companheiras no estrangeiro.

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nunciariam sua suposta falta de pragmatismo, enquanto a direitaos acusaria de serem agentes comunistas. O anarquismo perdeucompletamente o seu protagonismo. Essas dinâmicas somente seacentuariam na Guerra Civil Espanhola, aquele breve florescimen-to de esperança no último país onde o proletariado ainda não haviarecebido o aviso de que a revolução havia sido derrotada.

Em 1991, pela primeira vez em setenta anos, não haviauma dicotomia global capaz de modular as revoltas. Os malvadosdesapareceram e com eles desapareceu qualquer esperança de queos vencedores tivessem que se mostrar como bonzinhos. As misé-rias do sistema apenas aumentavam e já não havia mais a quemculpar. As primeiras linhas autônomas de luta que apareceram vie-ram dos movimentos indígenas, tanto em Oka como em Chiapas.Elas também estiveram subordinados às políticas da esquerda,com consequências desastrosas, tanto para as vítimas dos genocí-dios socialistas quanto para os iludidos que optaram pela paciên-cia democrática. Em seguida, o movimento anti-globalização apa-receu e dentro dele anarquistas ganharam cada vez mais protago-nismo e influência. O outro polo num novo antagonismo globalhavia começado a se definir por si mesmo. Sua tensão interior eraentre aqueles que tinham muitos recursos e pouca legitimidade, eque propunham a legitimidade de algumas instituições dominantescontra outras, e aqueles que projetaram um horizonte revolucioná-rio e um caminho baseado na horizontalidade de auto-organiza-ção.

Em 2001, com os atentados jihadistas contra as capitaiseconômicas e políticas de Nova Iorque e Washington, o sistema-mundo adotou um novo paradigma baseado mais uma vez numadicotomia de opostos: entre democracia e terrorismo. Como todoparadigma, este não surgiu do nada. Seus laboratórios foram paí-ses como Espanha ou Alemanha que já possuíam políticas inte-grais antiterrorismo (mais avançadas que as tentativas anêmicasde Reagan ou Clinton de instalar o antiterrorismo). Mas a partir de2001, ela se desenvolveu tomando a forma de uma conjuntura denarrativa moral, discurso político, mandatos institucionais, víncu-

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los entre Estados e recursos juridico-militares que qualquer gover-no aliado com as potências globais poderiam lançar mão. 2

É importantíssimo reconhecer que estamos novamente aponto de perder qualquer possibilidade de protagonismo ou influ-ência nos conflitos globais. Portanto, precisamos analisar as dife-renças entre o velho e o novo polo do mal. Por um lado, o terroris-mo é muito pior, muito mais terrível que o seu predecessor. So-mente pessoas de uma identidade bem específica podem ser sedu-zidas pelo jihadismo, muito diferente de todos aqueles seguidoresignorantes e acríticos, aqueles lambe-botas que a URSS ganhou daesquerda mundial. As pretensões necessárias de liberdade e igual-dade do bloco liberal, durante a Guerra Fria, em geral limitaram ascapacidades repressivas dos Estados ocidentais com respeito àssuas dissidências internas. Tinham que trabalhar arduamente parase mostrarem mais justos que os Estados comunistas, dadas suasenormes desigualdades. Agora, estas mesmas dinâmicas não acon-tecem mais. Os Estados de hoje precisam fazer muito pouco parase diferenciarem dos aparentemente bárbaros jihadistas. Nova-mente, é um choque de civilizações, mas desta vez se os malvadosparecem tão extremamente incivilizados, os mocinhos podem se

2 É interessante ressaltar como os Estados Unidos e seus aliados possibilita-ram o aparecimento do jihadismo, embora uma análise extensiva disso es-teja fora do escopo deste texto. É suficiente assinalar como as injustiçasque alimentam o jihadismo (por exemplo, ditaduras na Arábia Saudita, Pa-lestina, Egito e Indonésia) são financiadas por essas potências; os camposonde o jihadismo se desenvolveu e treinou - no Afeganistão e na Bósnia -foram criados e abastecidos pelos Estados ocidentais; a resistência secularpalestina e das esquerdas foi substituída por uma resistência fundamentalis-ta menos capaz de ganhar apoio internacional graças às políticas do Estadode Israel (e também à inaptidão e corrupção da própria esquerda palestina)e em alguns casos devido às intervenções diretas do serviço secreto israe-lense ; o jihadismo no Iraque surgiu do nada e se tornou a principal força deoposição à ocupação graças a uma campanha do Pentágono de dar-lhesmais protagonismo na mídia; também há dificuldade em comprovar as acu-sações de que o serviço secreto britânico e estadunidense organizaram aten-tados interreligiosos (entre shiitas e sunitas) onde culparam jihadistas, rom-pendo a solidariedade entre setores da resistência e aumentando o funda-mentalismo.

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senvolver sua própria luta, e exigiram que a organização em sifosse um espaço para geração de lutas.

Mas não são as siglas que criam lutas. As lutas nascem nasruas. As organizações ou servem para coordenar e ampliar umaatividade já existente ou não servem. Como disseram os compa-nheiros do MIL*: "a organização é a organização das tarefas daluta".

Portanto, a necessidade de organização depende da densi-

dade da atividade anarquista em um lugar ou região.

A unidade mais básica que conforma a densidade anarquis-ta é o projeto. Os projetos individuais costumam se auto-organi-zar. Nessa categoria encontramos centros sociais, grupos de ação,grupos de propaganda, publicações, grupos de trabalhadoras, hor-tas, assembleias, iniciativas feministas, grupos de autodefesa etreinamento, etc. O ideal é que se escolha as estruturas e o nível deformalidade e informalidade que melhor sirvam ao seu projeto, li-vre de dogmas e esquemas prévios. Podem utilizar o consenso for-mal, o consenso informal, a separação de tarefas e funções, a dele-gação ou inclusive a votação, se sabem se proteger do perigo dasmaiorias. Também podem ser as iniciativas de um indivíduo quebusca cumplicidades e colaborações pontuais, como costuma seruma parte desproporcional dos pequenos projetos de maior quali-dade e duração.

Entre todas estas opções, a informalidade favorece a confi-ança, a afinidade e um funcionamento fluido e rápido. A formali-dade facilita a criação de um espaço para receber gente nova etambém facilita mudanças nas dinâmicas internas, se existe a von-

tade decisiva para tanto. Este último ponto é de suma importân-cia. Quando falamos de dinâmicas internas que um grupo queiramudar, pensamos em coisas como irresponsabilidade e falta decompromisso, falta de autocrítica, hierarquias, comportamentossexistas. Muitas pessoas pensam que uma estrutura formal em sipode mudar ou superar uma dinâmica interna nociva no grupo.

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da luta e que renunciará à violência no momento em que a políciavier e arrombar a porta de madrugada para levar nossas compa-nheiras? Gente que se deixa levar por eleições ou que entra nasinstituições municipais? Gente que não está num processo deauto-aprendizagem, leitura e crítica profundas, que não entendecomo funciona o mundo em que vive nem onde reside a raiz daopressão?

E se se recruta mediante propaganda superficial, quais sãoas vantagens de uma organização grande, inflada por pessoas comexpectativas irreais e com uma ignorância total da história das lu-tas?

Diante dessas críticas, só encontrei respostas evasivas. Nãose trata de uma dicotomia entre ser muitas ou poucas anarquistas.A maioria das formações populistas são tão pequenas como umconjunto de grupos de afinidade informais ou como um único gru-po.

Frequentemente, a mania de recrutar ou criar uma grandeorganização anarquista ou “uma capacidade de mobilização” não énada mais que um substituto que esconde uma falta absoluta de lu-tas próprias. Nas lutas, aprofundamos nossas ideias e práticas eencontramos novas companheiras, novas cumplicidades. Acabaque são as pessoas que não têm uma luta em seu cotidiano, quenão sabem encontrar os conflitos sociais, que querem criar umaorganização grande baseada no recrutamento, ou uma capacidademobilizadora baseada em técnicas sedutoras de comunicação.

Organização Anarquista

Grande parte das iniciativas de organização anarquista quevimos fracassar nos últimos anos foram sufocadas por pessoas quenão tinham sua própria projetualidade, não sabiam encontrar e de-

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safar com um grau ainda maior de barbaridade, acima de tudo sevierem com uniformes esplêndidos, tecnologias impessoais e oposicionamento estratégico militar ordenado e disciplinado, comopudemos ver este outono em Paris e em outras capitais europeias.

Além disso, a figura do jihadismo é muito menos inclusivaque o comunismo. É pouco factível para a direita acusar as anar-quistas de serem agentes do fundamentalismo islâmico, ou para aesquerda de acusá-las de serem pouco pragmáticas por não apoiá-la, como nos acusaram por não apoiar o Estado comunista. Por ou-tro lado, pelo mundo, a maioria das pessoas marginalizadas nuncase sentiram identificadas com o fundamentalismo islâmico (embo-ra exista um bilhão de pessoas as quais organizações como o Esta-do Islâmico estão procurando representar e influenciar como cor-religionárias).

A nova dicotomia possui outra fraqueza: totalmente opostaà dicotomia que reinava durante a Guerra Fria, a presente foiconstruída numa era em que as principais potências mundiais des-frutam de muito pouca legitimidade e confiança. A figura inflada,avara e arrogante dos Estados Unidos em 2001 está muito longeda heroica protetora da liberdade das duas Grandes Guerras. E aEuropa de 2015, a da austeridade, da corrupção, das fronteirassangrentas, não parece nem um pouco melhor.

Em outras palavras, vivemos num mundo onde os podero-sos estão tentando esconder e esmagar revoltas, o desejo de liber-dade e os movimentos revolucionários sob o pretexto de antiterro-rismo. O antiterrorismo ainda convence, ainda mobiliza as pessoase serve para justificar mais repressão e controle, mas ao mesmotempo, este é um mundo em crise, no qual a maioria das pessoasinquietas, das pessoas raivosas, das pessoas precárias estão em dú-vida sobre em qual dos dois polos de poder confiar. É uma dicoto-mia feita para ser desmontada, para permitir-nos, uma vez mais,criar um espaço autodefinido de luta e liberdade.

Ainda assim, parece que poucas anarquistas perceberamque atacar o antiterrorismo, discursivamente e na prática, irá não

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apenas desmobilizar uma das mais potentes armas do arsenal esta-tal, mas pode também ser nossa única chance de recuperar nossoprotagonismo, autodefinir uma subjetividade de negação e rebeli-ão, e lançar caminhos revolucionários para os próximos anos.

Lutar contra a dicotomia de opostos do terrorismo de umaposição anarquista pode nos colocar em contato com aliados ines-perados, como prefigura o crescimento da solidariedade com omovimento de libertação curda, dado que os verdadeiros oponen-tes e vítimas dos fundamentalistas do Estado Islâmico pelo SulGlobal terão que ou se aliar com o Ocidente ou desenvolver suaspróprias visões anarquistas. Na verdade, o Estado Islâmico temmuito a ver com o Syriza e o Podemos; as diferenças mais cho-cantes são meramente em função do nível de violência que temsido considerado normal nas sociedades em que nasceram, e da re-lativa legitimidade que tal violência concede aos discursos e práti-cas de vingança.

Os escritos de Osama Bin Laden demonstram que a Al Qa-eda era majoritariamente uma tentativa de abrir espaço para umcapitalismo islâmico. Seu objetivo sugere imediatamente uma pre-disposição para cooptar e liderar os amplos movimentos anticolo-niais nos quais a organização surgiu. Na verdade, a necessidadegeopolítica original da Al Qaeda de lutar contra a URSS e os EUAprenunciava a situação histórica subsequente. Nos anos 1960 e1970, os movimentos anticoloniais ganharam a independência (eperderam qualquer possibilidade de liberdade) recorrendo a umadas duas potências mundiais para obter ajuda e proteção. Ao ter-minar a Guerra Fria, esses movimentos, ainda aturdidos com seusêxitos fracassados, se encontravam desamparados. A organizaçãodescentralizada e sem Estado da Al Qaeda foi uma adaptação ne-cessária para uma situação mais insegura. Para que pudessemexercer uma relação de vanguarda, tendo em vista a falta de dire-ção dos movimentos anticoloniais (que neste momento se prepara-vam para sua fase anti-globalização), a Al Qaeda teve que espa-lhar uma ideologia que promovesse a pureza ortodoxa (os funda-mentalistas islâmicos fizeram o mesmo papel que os marxistas fi-

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bastante melhor se cada projeto anarquista (aberto) se esforçassetanto assim para convidar à colaboração e abrir-se à participação.

Porém, é preciso fazer uma crítica ao cartaz e ao vídeo quepublicaram para essa campanha, sob o lema “Já passou pela suacabeça que você pode ser um anarquista?”. Os materiais de apre-sentação não fazem uma única referência séria aos conflitos soci-ais, às realidades da luta, nem ao enorme desafio que enfrentamoscomo anarquistas. Ao contrário, chamam o público a identificar-secomo anarquistas, buscando uma cumplicidade sem riscos, semprofundidade de ideias, sem compromissos fortes, sem processosde transformação total (e nem sequer me refiro à transformação domundo, mas à transformação pessoal que todas tivemos que viverpara sermos anarquistas). Claro, num cartaz ou num vídeo, não sepode comunicar tudo o que é necessário, mas é possível tornar vi-sível que existem críticas mais profundas, que existem riscos, queexiste conflito.

A propaganda pode ser um convite para buscar, para inves-tigar, para aprofundar, para começar o processo de transformação.Porém, o recrutamento não pretende nada disso.

Os materiais de apresentação da FAC caem na exigência domarketing de serem atrativos e fáceis de digerir. Ir pra prisão não éatrativo. Apanhar da polícia não é atrativo. Passar horas e horasem assembleias não é atrativo. Anos e décadas de derrota não sãoatrativos. Portanto, isso fica fora da visão que as populistas apre-sentam do anarquismo.

Baseando-se somente nestes materiais, daria pra ser anar-quista até dormindo. Mas não dá. É claro que é preciso dormir,descansar, mas não é esse o ponto. Mesmo que a auto-organizaçãoe a oposição às injustiças pareçam geniais, as pessoas não queremse dedicar à destruição do Estado e, nem a médio ou a longo pra-zo, apoiarão quem está comprometido com isso. Não ganhamosnada com alianças e cumplicidades ilusórias.

Há que se perguntar: que tipo de pessoa será recrutada comuma visão tão atraente do anarquismo? Gente que se distanciará

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de dezenas de presidentes e corporações mundiais. Qualquer co-nhecimento de sua obra deixa claro que se trata unicamente detécnicas de manipulação de massas.

A história também nos oferece outros episódios que os po-pulistas ignoram, ou por preguiça ou por escolha. Bernays inven-tou a filosofia e a ciência do marketing, mas não foi ele quem in-ventou muitas das suas técnicas específicas. Os populistas de hojenão são os primeiros a tentar utilizar métodos estéticos para difun-dir suas ideias e mudar o mundo. No início do século XX, os da-daístas já haviam tentado conseguir uma revolução através da co-municação subversiva, e o fizeram com muito mais inteligência,criatividade e dedicação que os populistas de hoje. E foi um tre-mendo fracasso. Porém, as empresas capitalistas tomaram nota ese apropriaram das técnicas desenvolvidas pelos dadaístas. Seusavanços estéticos, suas técnicas de comunicação, acabaram sendomais eficazes quando ligadas a processos capitalistas, utilizadospara vender produtos e não para uma sedução revolucionária. Oinovador artista russo Rodchenko teve um destino parecido comsua obra, aproveitada tanto pelas autoridades bolcheviques como,mais tarde, pela indústria de relações públicas do Ocidente.

A ânsia por fazer marketing só se justifica pela debilidadenão examinada dos populistas. Eles se percebem sozinhos, masnão entenderam as estruturas sociais que provocam seu isolamen-to, nem possuem nenhuma projetualidade revolucionária pararomper com essas estruturas.

O que eles querem é recrutar.

Para criticar a prática de recrutamento, pode ser proveitosopegar o exemplo da FAC, a Federação Anarquista Catalã. Temosque dizer que esta organização é heterogênea e seria totalmente in-justo tachá-la de populista, ainda que contenha elementos populis-tas. Também teríamos que dizer que sua campanha de apresenta-ção, na qual podemos analisar dinâmicas populistas, foi feita comuma energia e um entusiasmo louváveis. Estaríamos numa posição

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zeram antes) e usar táticas espetaculares para capturar a atençãomundial (da mesma forma que grupos como o RAF e as BrigadasVermelhas ganharam a hegemonia em amplos movimentos).

Em ambas frentes, o Estado Islâmico os ultrapassou, con-vertendo uma rede descentralizada em uma estrutura de Estado.Enquanto a Al Qaeda simplesmente eclipsava outros elementosdos movimentos de resistência no Afeganistão, Iraque e em outroslugares, o Estado Islâmico tem a possibilidade de monopolizar aresistência, dizimando quaisquer elementos que se oponham tantoao fundamentalismo quanto ao Ocidente. (Incidentalmente, o fatode que o Estado Islâmico centralizou uma rede descentralizada edeu ao Ocidente o que sua lógica militar convencional há muitosuplicava – um Estado inimigo – sugere o envolvimento dos servi-ços secretos ocidentais na sua criação; entretanto, ao contrário dosconspiradores malucos, temos que insistir que não faz muita dife-rença, pois em qualquer caso, aquilo a que os anarquistas seopõem – a lógica estatal – estaria igualmente presente).

Da mesma forma, o Syriza e o Podemos surgiram do meiode movimentos descentralizados mas perdidos, sobre os quais ra-pidamente impuseram hegemonia, transformando-os em forças es-tatistas. O fato de que eles espalharam miséria através do instru-mento da lei e não de bombas ou facas é uma diferença estéticamais significativa para cientistas políticos do que para pessoas in-teressadas em emancipar-se.

A Crise

O capitalismo está numa crise profunda. Não é a primeiravez e não será a última, porém a novidade é que esta crise de acu-mulação se sobrepõe a uma crise planetária, quer dizer, com o fra-casso escancarado dos ecossistemas que sustentam a vida nesteplaneta. E também é a primeira vez que uma crise de acumulaçãoocorre num mundo com armas nucleares, na qual não está claro

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quem será o próximo poder político a organizar o sistema-mundoe na qual a potência que chegou ao seu crepúsculo ainda possui aforça militar para liquidar qualquer competidor que busque tomaro seu lugar. Aos poucos, os Estados Unidos vão perdendo sua he-gemonia, incapazes de impor sua vontade no Sudeste asiático, noOriente Médio, na América do Sul e no leste europeu. Apesar detudo, eles mantêm a força para assegurar que nenhuma outra po-tência possa impor uma nova hegemonia. Se eles não conseguiremfazer um acordo para compartilhar poder num novo sistema glo-bal, meia dúzia de países possuem a capacidade de explodir o pla-neta para garantir que ninguém fique com nada.

A expansão industrial liderada pelos Estados Unidos após aII Guerra Mundial, alcançou sua conclusão nos anos 1970 e desdeentão a expansão financeira tem gerado tanta mais-valia que nãohá onde colocá-la. A maioria das atividades econômicas migrarampara países como a China, Coreia do Sul, Vietnã, Singapura, Ma-lásia, Turquia e Brasil. Porém, as estruturas e instituições de ge-renciamento econômico permanecem na América do Norte e naEuropa Ocidental. E várias dessas estruturas foram seriamenteabaladas por falências e escândalos relacionados à crise de 2008.Os supostos líderes mundiais não conseguem mais oferecer um larseguro para o Capital.

Uma recessão e um colapso da magnitude da quebra de1929 foram apenas evitados, por enquanto, pela migração massivade capital para os mercados imobiliários - o mais adequando paraa especulação e absorção de quantias enormes de capital - da Chi-na, Turquia e Brasil. A bolha está prestes a estourar.

O Espaço Sideral

O que pode evitar que ela estoure? Se o padrão vigente naeconomia global desde o século XV continuar, somente uma novaexpansão industrial. Onde tal expansão poderia acontecer, e em

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ríamos que fazer críticas. Nota-se que as autoras submeteram a co-municação de ideias às exigências de um produto de marketing:ser atrativo e fácil de digerir.

Hola Dictadura contém ideias muito simples, pouca infor-mação e menos análise. Dá a quem a recebe a sensação de que seestá lendo através da tela de um smartphone. Se parece com umadessas revistas gringas para patriotas sem cérebro, como a Time.

O conteúdo de Hola Dictadura é, sem dúvida, muitíssimomelhor que o da Time. Sério, seria ótimo que todo mundo a lesse.Teríamos menos apoio popular às políticas antiterrorismo. Porém,no final, a revista não consegue nada mais que ser uma crítica pro-gressista. Não há nenhuma análise propriamente anarquista, o quequer dizer que todas as ideias apresentadas na revista apoiam osvalores democráticos. Tem o seu motivo: as ideias anarquistas sãomais complicadas de explicar e mais difíceis de aceitar, porquetoda a formação e informação que as pessoas têm absorvido aolongo das suas vidas foi produzida através de várias estruturas so-ciais para que apoiem as crenças fundamentais do Estado, do pa-triarcado e do capitalismo. É muito mais fácil utilizar argumentosprogressistas contra o antiterrorismo para convencer as pessoas.Ao enfrentar um movimento animado por tais argumentos, o Esta-do não teria nenhum problema em desviá-lo ou absorvê-lo medi-ante uma reforma, porque não são críticas radicais que vão à raizdo problema.

Não se trata de um repúdio de identidade. O problema nãoé que a revista não sai toda em preto, com péssima diagramação,cheia de as-na-bola e referências ao Estado e ao Capital. O proble-ma é que ela mesma se trai, opta por uma via fácil que o Estado jásabe controlar, e não engloba a profundidade necessária para de-senvolver uma luta inteligente.

Um maior conhecimento da história já vetaria qualqueraposta anarquista pelo uso do marketing. Não custa muito desco-brir as origens dessa profissão. É sabido que o “pai” das relaçõespúblicas e do marketing é Edward Bernays, importante assessor

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duto, seja um carro novo ou “a marca” anarquista (expressão insu-portável que temos ouvido sair da boca de companheiros populis-tas). A propaganda do marketing sempre tem que ser atrativa e fá-cil de digerir.

São duas práticas totalmente opostas. O marketing não écapaz de difundir ideias profundas, que são as únicas que possuemalguma possibilidade de ajudar-nos a mudar este mundo de siste-mas de dominação tão complexos. O marketing está projetadopara vender algo – qualquer merda – em grandes quantidades.

Temos visto como companheiros populistas têm se queixa-do de que os textos eram muito longos, inclusive quando se trata-va de panfletos habilmente diagramados, com uma boa distribui-ção de espaço, e textos escritos com elegância e sem nada de su-pérfluo. Não sugeriram buscar um formato mais adequado para otexto em questão nem uma correção que permitisse comunicar amesma informação em menos palavras (repito, tanto o formatocomo o texto eram impecáveis), mas queriam impor uma proibi-ção implícita a textos muito compridos para caber em um tweet.Estão sendo cúmplices da infantilização de seus leitores e da atro-fia de suas próprias capacidades intelectuais.

Consideremos um exemplo concreto. Passamos da verbor-reia inútil das contas de Twitter que mantêm certos grupos popu-listas, para analisar brevemente um dos projetos de difusão com amaior qualidade entre todas as formações populistas: Hola Dicta-

dura, uma revista que fala sobre o uso das leis antiterroristas.

Já foi evidenciado que neste presente texto expressamoscríticas bem fortes. Não se trata de jogar merda pra todo lado nemde criar inimizades baratas, assim como achamos necessário fazerelogios quando forem merecidos. Hola Dictadura demonstra umalto nível tanto em seu projeto quanto em sua preparação. É evi-dente que está bem trabalhado. Quem me dera que a propagandaanarquista fosse preparada com tanta dedicação, habilidade e seri-edade. Porém, se analisarmos somente a revista em si, separadadas práticas pacificadas e pro-capitalistas dos populistas, ainda te-

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que matéria? Não está claro. Existe um novo processo de industri-alização capaz de absorver a maior quantidade de capital líquidoda história e também produzir lucros? A produção descontroladade smartphones e bugigangas semelhantes não alcançaram o queera necessário – nem de longe – e estes produtos já estão chegan-do aos cantos mais pobres do mundo. E quais são os novos territó-rios que podem ser desenvolvidos? A África parece ser o únicocontinente que poderia ainda receber um intenso processo de de-senvolvimento capitalista, mas não é grande o suficiente – nemem população, nem em território – para absorver a quantidade ini-maginável de capital líquido que está nesse momento procurandoinvestimento; nem imaginamos que se for investido na África eleseja capaz de produzir lucros imediatos.

É preciso entender que com cada expansão, a quantidadede capital em jogo aumenta exponencialmente. Em contraste, apopulação do mundo não está crescendo tão rápido [para dar contadesse excedente de capital] e o planeta não cresce em absoluto[para fornecer novos territórios para explorar]. Na verdade, a ca-pacidade energética e biológica do planeta necessária para susten-tar o processo econômico de sua mais ingrata espécie está diminu-indo.

Logicamente, o único país que não foi conquistado pelo ca-pitalismo, o único terreno capaz de receber sua próxima expansãoé o espaço sideral. Dizemos isso com toda seriedade: será atravésda mineração de asteroides e da terraformação de Marte (transfor-mação da atmosfera e superfície de um planeta para torná-lo se-melhante à Terra). O capitalismo está com problemas aqui, e tal-vez seja nossa única esperança para tornar a crise atual em umgolpe que leve à ruína do sistema-mundo ao invés de servir comoímpeto para mais uma restruturação: pela primeira vez na história,pode ser que a crise de acumulação tenha chegado antes das tec-nologias necessárias para a próxima expansão econômica. Aindarestam alguns tantos anos para uma colonização rentável do espa-ço sideral.

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A Imaginação

Aqui vemos onde o Estado nos colocou em xeque. Desdemuito tempo, ele matou a capacidade popular da imaginação. Hácem anos, haviam imaginários revolucionários muito vivos. Insis-timos em que tais imaginários sejam indispensáveis para uma re-volução, que nenhuma insurreição pode crescer e superar os seusobstáculos internos sem um imaginário revolucionário amplo ecompartilhado e sem uma imaginação popular capaz de adaptaresse imaginário, de forma descentralizada, de acordo com as ne-cessidades da luta.

Os imaginários revolucionários morreram afogados emsangue nas batalhas da Primeira Guerra Mundial, um drama mór-bido que demonstrou a fraqueza fatal da classe proletária; e tam-bém foram sufocados pelo cinismo bolchevique depois de suacontrarrevolução russa, que demonstrou que as instituições de po-der são mais fortes e determinantes que a classe, e que o proletari-ado pode facilmente ser educado para servir como opressores.

Ultimamente, a imaginação, ou seja, a capacidade de gerarnovos imaginários, atrofiou até quase morrer graças às técnicas doEspetáculo, à indústria do entretenimento primeiramente modela-da em Hollywood e mais recentemente nos novos dispositivos tec-nológicos: computadores, videogames e aplicativos, que tão pou-cos revolucionários apontaram como seus inimigos mais ferozes.

Com a morte da imaginação, quem conseguirá resistirquando o capitalismo oferecer novos mundos? No momento emque ele alcançar seu sonho interessado e revelá-lo como mais umpasso em direção à exploração, talvez muitas revolucionárias tam-bém se arrependam das suas posturas ingênuas, vagas, acríticas,populistas e covardes a favor da tecnologia. Porém, será tarde de-mais.

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das por “terrorismo” em todo o Estado (espanhol), muitas pessoasdemonstraram solidariedade apesar do medo de serem as próxi-mas a cair. Porém, algumas assembleias e organizações – pelo quevi, sempre de caráter populista – se distanciaram das represálias,negando-se a dar qualquer apoio e inclusive justificando a repres-são. É preciso dizer que muitos setores da esquerda independentis-ta (que luta pela separação das regiões da Espanha) foram muitomais solidários que estes anarquistas.

Sua recusa à solidariedade se conecta com uma desvincula-ção – generalizada entre quase todos os populistas – das práticascombativas. Em uma coletiva de imprensa convocada por váriasformações anarco-populistas por causa das detenções da segundafase da Operação Pandora em outubro de 2015, os porta-vozes di-ziam o que era e o que não era o anarquismo (de forma que osmeios de comunicação capitalistas ampliavam seus discursos im-becis e não solidários). Repudiavam a violência. Por fim, conse-guem sua própria pacificação. O último meio que lhes resta é a di-fusão. Porém carentes de força e solidariedade, a única coisa quepodem difundir são ideias vazias.

Quando se trata de difusão, os anarquistas populistas seapropriam de técnicas de marketing sem nenhum escrúpulo nemanálise histórica. Tudo bem conhecer a ciência do marketing e derelações públicas como técnicas de controle de massas, mas é to-talmente incoerente que anarquistas se proponham aproveitar detais técnicas.

Para deixar mais claro nossa recusa ao marketing, devere-mos entender o que ele é e o que não é. Negá-lo não significa des-cartar a importância da estética, do bom desenho e da boa diagra-mação ou técnicas de difusão bem trabalhadas. Entretanto, existeuma diferença fundamental: a difusão anarquista começa por umaideia que se quer comunicar; depois buscamos o formato maisadequado para a comunicação da ideia. Ao contrário, a prática demarketing condiciona o conteúdo à forma porque seu objetivofundamental não é a difusão de uma ideia mas a venda de um pro-

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da Grécia Antiga contavam com muito menos pessoas que uma tí-pica prefeitura conta hoje e eram capazes de organizar sistemas deescravidão, de castigo e execução, de patriarcado, de comércio ex-plorador e de guerra. Na verdade, a maioria dos primeiros Estadosnão eram mais que municípios.

Os municipalistas não possuem exemplos de êxitos real-mente revolucionários, tirando Rojava*. Mas Rojava não tem nadaa ver com o municipalismo de Bookchin nem com o da CUP. Nãoconseguiram a autonomia necessária para começar seu experimen-to através de um processo gradual de protestos e eleições, masatravés de uma guerra civil na qual tinham à disposição um grandeexército. E se os curdos conseguirem liberar duradouramente umaparte do seu território, só terão criado um Estado mais descentrali-zado que a típica carnificina burocrática dos marxista-leninistas.Num futuro próximo, todavia, terão que resolver a contradição en-tre as tendências inerentes das estruturas centralizadas – de centra-lizar cada vez mais seu poder – e seu desejo pela liberdade. Oucriarão um novo Estado, um novo sistema de dominação, ou oabolirão por completo. Não ousamos dizer como terão que se or-ganizar para superar essa contradição; não sabemos. Mas qualquerpessoa neste planeta é capaz de afirmar – com toda a razão – queos Estados não se reformam: ou são destruídos ou te dominam.

Um municipalismo supostamente revolucionário não temargumentos históricos. Se fundamenta na debilidade, no fracassode outras práticas de luta e na falta de visão de como proceder.

Outro princípio abandonado por uma parte das anarquistaspopulistas é o da solidariedade. Em resposta às ondas repressivasentre 2013 e 2015 que, até hoje, resultou em 68 anarquistas deti-

* Rojava é uma região autônoma “de facto” situada na porção norte-nordesteda Síria, organizada em três cantões autogovernados: Afrîn, Jazira e Kobanî(wikipedia.org). Ela faz parte do Kurdistão, hoje dividido em territórios doIraque, Turquia e Síria. A experiência de Rojava tem recebido bastanteatenção de anarquistas devido às suas assembleias populares (confederalis-mo democrático), aos seus exércitos populares de autodefesa e ao feminis-mo que vem se desenvolvendo há décadas na região.

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Colapso ou Tecnossocialismo

Se o capitalismo não conseguir ressuscitar-se e empreenderuma expansão industrial antes que a bolha especulativa estoure,acabaremos tendo que enfrentar uma pobreza muito mais extremaque a que já conhecemos.

Estamos preparados para resistir à emigração e à fome, àdesintegração de nossas frágeis comunidades devido à miséria ex-trema? Ou não estamos nem pensando nisso? Não estamos apos-tando numa ruptura violenta e catastrófica com o sistema capita-lista que atualmente nos alimenta? Ou imaginamos que consegui-remos seguir comendo de supermercados, que haverá uma transi-ção suave entre o sistema de dinheiro e empresas e autogestão to-tal, que após uma greve geral ou evento similar desmontaremosumas barricadas, consertaremos alguns danos e continuaremos vi-vendo como antes, só que sem leis ou patrões?

Existe uma outra possibilidade: um colapso controlado emdireção a um tecnossocialismo pior que a mais horripilante histó-ria de ficção científica. A destruição da infraestrutura e de valorsempre foi uma atividade importante para o capitalismo. A devas-tação produzida por uma guerra ou uma decadência que constituio primeiro estágio da gentrificação são vitais para facilitar umcrescimento econômico posterior. Neste sentido, novas tecnologi-as em desenvolvimento pela Google e a Apple apresentam umachance de abrir caminho para o capitalismo atualmente estagnado.

A Internet das Coisas poderia ser meramente um aumentosem precedentes do nível de controle tecnológico; finalmente, arealização da sociedade panóptica. Porém, ele poderia evoluir paraum tipo de tecnossocialismo, ou seja, uma racionalização extremados processos econômicos, substituindo, por fim, os interesses decurto prazo da burguesia (da época anterior do capitalismo) e dasmultinacionais (da época atual, que pode estar chegando ao seufim). Para entender isso mais claramente, podemos pegar o exem-plo dos novos carros inteligentes (smartcars). De acordo com a ló-

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gica atual, eles seriam apenas outro produto: um carro elétrico eautomatizado que dirige sozinho; um modelo de carro mais caro,mais fetichizado, disponível para os consumidores mais ricos; ou-tra invenção que daria à companhia que detém sua patente umavantagem efêmera no mercado.

Mas, se a abordagem – especialmente da Google – quebusca uma racionalização transformadora através de novas tecno-logias vira realidade (e, no momento, o único obstáculo é a incer-teza de se os Estados irão apoiar ou impedir esta transformação, jáque a tecnologia existe), estaremos de frente a outra possibilidade.O carro inteligente, para pegar esse exemplo, não seria mais umproduto a ser comprado por indivíduos de acordo com a lógica dapropriedade privada em vigor. Novas tecnologias permitiriam queo carro inteligente funcionasse como uma propriedade coletiva-alienada distribuída da maneira mais eficiente possível (comoexemplo temos o primitivo modelo do Bicing em Barcelona*).Através de um aplicativo, reservaríamos uma viagem e o carro in-teligente viria lhe pegar. Você pagaria uma cota, já que o carro nãote pertenceria, mas ele seria um aspecto da própria cidade.

Então, quais seriam as consequências desse tipo de organi-zação tecno-econômica? Para além do desaparecimento das com-panhias de táxi, seria o fim – ou pelo menos uma redução crucial– do empreendimento capitalista mais importante do período pós-guerra: as fábricas de automóveis e as companhias de petróleo.Isso permitiria um “decrescimento” significante como um cami-nho para a expansão capitalista. Pela primeira vez, a destruiçãosistemática que faz parte da expansão cíclica capitalista não seriao resultado semi-descontrolado de um processo de guerra ou deca-dência. Ao invés disso, ele surgiria de uma restruturação racionalpor excelência. A propriedade coletiva-alienada e os algoritmosque gerenciam-na permitiriam a utilização e a distribuição maiseficiente da totalidade dos veículos, de modo que eles sempre es-

* Um serviço de bicicletas coletivas via subscrição distribuído pela cidade,como o programa das “Bicicletas Amarelas” do Provos, na Holanda, sem oelemento capitalista

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Os populistas não estão saindo do seu isolamento. Na ver-dade, fora do gueto as pessoas estão muito mais isoladas que den-tro dele. Dentro, pelo menos, existem práticas de solidariedade eapoio mútuo mais vivas que na sociedade normalizada. Antes darevolução, só existe uma maneira de sair do gueto que é normali-zar-se, acatar as normas da sociedade. E parece que os companhei-ros populistas estão fazendo isso cada vez mais.

No populismo, fica evidente o abandono das práticas radi-cais. Os proponentes de várias iniciativas de organização de mas-sas na Feira do Livro anarquista de Barcelona, em 2015, sabiamdisfarçar muito bem suas palavras para não dizer barbaridadesalarmantes. Insistiam que não estavam rebaixando seus discursosnem suas práticas, mas ao mesmo tempo defendiam constante-mente que era importante diluir os discursos e as práticas anar-quistas para “chegar às pessoas”. Porém, vários de seus seguido-res, que não sabiam policiar sua língua tão bem como um político,faziam em seguida uma equivalência direta entre “sair do gueto” e“abandonar a autogestão” para reivindicar as instituições públicas.

E falando de abandono de princípios, nos últimos anostem-se visto uma nova aposta no municipalismo, tanto dos parti-dos, organizações e plataformas de esquerda (como a CUP, Arrane a Barcelona en Comú), como de grupos libertários, como o Em-bat. Para a esquerda, faz todo sentido: ela precisa encontrar umnovo disfarce, um novo aroma, para que o cadáver da via instituci-onal – que ela nunca deixa de arrastar – possa parecer vivo maisuma vez, depois de tantos fracassos. Mas e por que também o de-veriam fomentar os anarquistas? O municipalismo é a ponte per-feita entre o movimento social e sua auto-traição. É mais uma viade institucionalização.

A conquista do município é um engano. Atividades de ges-tão estatal ao nível municipal não são menos alienantes por seremmenos distantes. Métodos de alienação política, métodos baseadosna autoridade e na obediência não mudam de natureza se o corpopolítico é de 100 milhões ou de 10 mil pessoas. As cidades-Estado

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para beber cerveja barata e tomar uma droguinha nos lugares típi-cos do nosso meio.

Mas nem todas temos a mesma experiência. Algumas denós começamos a ocupar porque não tínhamos dinheiro para pagarum aluguel. Vestimos a roupa que conseguimos reciclar ou roubar.Não vamos a festas, nem insultamos nossos corpos com drogas, econhecemos nossas vizinhas. Tenho amigas que alugam e traba-lham em empregos normais e também estão metidas no gueto,igual a mim.

Então, o que é o gueto? O gueto é ter que mentir sobrequem somos para que não nos mandem embora de nossos traba-lhos. É ter que esconder os detalhes de nossas vidas quando fala-mos com pessoas desconhecidas. É ter que fingir sermos pessoasnormais quando buscamos um apartamento, realizamos trâmitesburocráticos ou cruzamos fronteiras. É saber que podem nos ta-char de terroristas e jogar-nos na cadeia.

Esses são os muros do gueto. São estruturas sociais que noscontrolam, nos castigam e nos isolam. Me parece míope que oscompanheiros populistas não saibam disso. É uma mostra de suagrave falta de seriedade e de uma posição cômoda onde nunca fo-ram buscar os verdadeiros muros de sua prisão.

E sim, faz todo sentido a categoria “pessoal normal” comocategoria que exclui a nós mesmas. A pessoa normal é a pessoanormalizada, que segue as normas de sua sociedade. Ser anarquis-ta não é normal. E o que fazem com as pessoas que não seguem asnormas de sua sociedade? Pois então: jogam-nas em um gueto.

Podemos decorar os muros de nosso gueto e até colocarazulejos para que fiquem mais legais – como fazem muitos rebel-des estéticos – ou podemos perfurá-los com pequenos buracospara poder passar mensagens. Mas é totalmente errôneo pensarque esse gueto fomos nós que construímos. Enquanto o capitalis-mo existir, também existirá o gueto. Ele é apenas mais uma estru-tura integrante da sociedade espetacular e do próprio Estado.

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tariam em uso ou recarregando. Isso possibilitaria uma grande re-dução no número total de veículos e na infraestrutura de transpor-te. Colocando de outro modo, nos encontramos de frente a ummodelo de expansão capitalista (a produção de novas tecnologias,a transformação total das cidades) que é completamente compatí-vel com a precariedade (qualquer consumidor pode se deslocarsem possuir seu próprio veículo, cada pessoa pode se virar consu-mindo menos) e com a crise ecológica. E mais, o mesmo conceitode propriedade coletiva-alienada, com gerenciamento hiper-racio-nal, pode ser posto em prática com respeito à moradia, educação,e outros pilares fundamentais que prendem as pessoas exploradasà economia.

Justamente como Jason Radegas e Lev Zlody (2001) previ-ram, o socialismo de Marx não foi possível segundo a evoluçãodas forças produtivas, mas segundo a evolução das forças do con-trole social. A propriedade coletiva sempre foi praticável, masapenas agora a propriedade coletiva-alienada poderia virar realida-de: uma propriedade distribuída de acordo com uma lógica coleti-va, compartilhada, mas que é desenvolvida e controlada pelas es-truturas de poder.

O Fascismo

Até agora, insistimos na ideia de que o antifascismo é – etem sido desde os anos 1920 – uma estratégia da esquerda paracontrolar movimentos e frear as lutas verdadeiramente anticapita-listas. Ele também sempre foi um fracasso se o pensarmos comouma luta contra o fascismo. As estratégias propriamente anarquis-tas para combater o fascismo eram muito mais efetivas, porqueentendiam o fascismo como uma ferramenta da burguesia – e nes-se sentido, da democracia –, e dessa forma eles atacaram direta-mente o fascismo não no ponto onde ele entrava em conflito com

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a democracia (direitos, liberdades civis, moderação), mas onde eleconvergia com os interesses dos proprietários e governantes. Des-de o fim da Segunda Guerra Mundial, o antifascismo tem se base-ado em exagero, pânico e erro, como uma análise mais sóbria dofenômeno do neofascismo em países como Rússia, Grécia ou Es-panha bem demonstra. O fascismo foi reduzido a um fantoche e auma arma minoritária dentro do arsenal democrático.

Porém, se uma crise ainda mais forte chegar, se a metodo-logia democrática do gerenciamento do capital quebrar e for des-legitimada, será que o fascismo voltaria? Não desconsideramos apossibilidade, mas prevemos que isso só acontecerá em poucospaíses menos cosmopolitas, onde líderes e tecnocratas com pers-pectivas globais não possuem interesses estratégicos e tampoucoentendem muito bem as particularidades culturais (como a Hun-gria ou Bulgária). Em geral, vemos duas possibilidades: sua sobre-vivência na democracia, na qual o neofascismo é tolerado comouma ferramenta minoritária (como na Alemanha) ousuprimido/admoestado se ele ousar exceder seu mandato muito li-mitado (como na Grécia ou Rússia), e na qual as ditaduras não-fascistas são toleradas na periferia, sempre com a esperança deque um dia irão se tornar uma democracia estável; ou o surgimen-to de uma nova estruturação político-econômica do poder.

Fazemos essa previsão porque o fascismo é o resultado deuma relação de classes muito específica, na qual uma burguesianacional se une com elementos da classe média, com organizado-res de sindicatos ou de movimentos sociais e com instituiçõescomo a imprensa e os militares. Porém, hoje as burguesias nacio-nais não existem como atores poderosos e independentes. O totali-tarismo do sistema-mundo atual é uma tecnocracia, um totalitaris-mo do material incorporado nas arquiteturas sociais e na organiza-ção tecnológica da vida. Em suma, ele é totalmente compatívelcom a democracia e não tem nenhuma necessidade de carismasnem de alianças conscientes ou pactuadas entre classes, com seusprotagonistas indispensáveis e atores proativos. É claro que issosó mudaria com a emergência de um modelo de sistema-mundo

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Os companheiros que estão presos numa posição antissoci-al reagem à previsível e eterna dinâmica da institucionalizaçãoisolando-se ainda mais. Se algumas pessoas dos movimentos hete-rogêneos contra a austeridade (ou anteriormente contra a globali-zação) atualmente estão na política, os antissociais se aferram aessa tragédia mundana apontando-a como a prova de que a partici-pação em tais movimentos foi um erro. Assim, demonstram a fra-gilidade de sua posição e a falta de radicalidade de sua visão. Osesquerdistas com sua mera presença conseguem distanciá-los dosconflitos sociais, os quais são sempre sujos, complexos e sempreatraem oportunistas e institucionalizadores. Os que se acham“mais radicais” estão buscando espaços puros de antagonismos -coisa que não existe -, porque não sabem defender ideias e práti-cas radicais em espaços heterogêneos.

Por outro lado, os populistas sentem seu isolamento masnão entendem as raízes dele. Com um conjunto de métodos equi-vocados, fundamentados numa debilidade crônica e uma amnésiahistórica realmente muito trágica, estes anarquistas populistascaem numa fuga desenfreada para frente, o que eles chamam de“chegar nas pessoas”.

A maioria dos populistas que conheço tem menos contatoscom gente fora do gueto que uma típica anarquista antissocial. Vialguns fracassarem como insurrecionalistas e agora estão fracas-sando como organizadores de massas. Não chegaram às pessoasem absoluto. Entretanto, estão obcecados em “sair do gueto” e vi-vem satisfeitos (ilusoriamente) por serem mais consequentes queos outros anarquistas, nós que ficamos no gueto.

Para começar, não entendem o que é o gueto nem de ondeele vem. Não podemos ser mais categóricos: o gueto é construído

unicamente pelo Estado. Não entender este fato básico é ignorarpor completo a natureza da sociedade atual. Para eles, o gueto sig-nifica viver em uma okupa porque é legal, se vestir de preto, ir devez em quando a manifestações e conversas, e colar em festas

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pessoas a erguerem a bandeira da anarquia numa sociedade sãosempre as sonhadoras, mas nós não somos tão especiais. Tende-mos a ser pessoas mais sensíveis – de uma forma ou de outra – epara nós o anarquismo é útil desde o início, precisamente porquenão aguentamos a vida nesta sociedade, com todas as suas menti-ras e imposições. O anarquismo corresponde às nossas necessida-des psicossociais. As outras pessoas não são cegas às mentiras eimposições, mas elas aguentam-nas e inventam a si mesmas asdesculpas adequadas. A necessidade de sobreviver é um dos argu-mentos mais fortes e razoáveis que existe e, hoje em dia, é o Esta-do quem garante a sobrevivência da população.

Populismo e Suicídio Revolucionário

Nem as tarefas dos grupos de afinidade nem as propostaspráticas em espaços heterogêneos constituíram o maior esforço deuma grande parte dos anarquistas nos últimos anos. Pelo contrário,cada vez mais companheiros estão se dedicando ao suicídio revo-lucionário. Ao nosso ver, o maior problema do anarquismo atual éo populismo.

Se apostamos numa tensão entre as necessidades sociais eantissociais da luta, reconhecemos que o auto-isolamento é a mal-dição das companheiras que não sabem superar as contradições daposição antissocial, e o populismo é a maldição das companheirasque não sabem superar as contradições da posição social.

Se, fora do meio anarquista, os novos partidos de esquerdasão a consequência da morte dos movimentos contra a austerida-de, dentro do meio anarquista sua consequência é o populismo.Pode-se perceber uma angústia, um medo, uma reação aos êxitoseleitorais de algumas ativistas que antes estavam nas assembleiasou em manifestações conosco.

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não apenas superior mas também promovido por uma potência ca-paz de derrotar e substituir a potência e o arquiteto do sistema-mundo atual; ou com o colapso do sistema em que vivemos e aausência de qualquer alternativa hegemônica.

Sobre Classes e Tecnocratas

Em todo caso, o colapso é apenas uma possibilidade. En-tretanto, a crise e a austeridade já estão aqui. Precisamos contra-atacá-los e para isso temos que criticar o neoliberalismo que atual-mente predomina no pensamento dos tecnocratas e líderes de Es-tado. Porém, esta tarefa não será realizada pelo jeito fácil, de re-tratar o neoliberalismo e a austeridade como o grande mal quandoeles são apenas mais uma faceta do capitalismo. Porque, se o capi-talismo resolver essa crise evitando um colapso econômico, aprosperidade voltará e teremos perdido – companheiros populis-

tas: tomem nota! – toda a força e influência ganhas através de dis-cursos oportunistas que buscam afinidades e simpatias superficiaisatravés do falatório do mal da crise, do mal da austeridade. Nãopodemos esquecer o quão solitários estávamos na era do cresci-mento econômico, quando éramos praticamente os únicos queprotestavam contra o capitalismo.

A resistência do capitalismo global em face a um possívelcolapso demonstra que as estruturas atuais de gerenciamento eco-nômico (FMI, bancos centrais, Reserva Federal, bancos privadosprotegidos pelos tesouros estatais) são muito mais fortes agora queem épocas anteriores. E a habilidade do Estado chinês – um possí-vel sucessor como líder global – de evitar ou ao menos protelar aexplosão de uma bolha financeira no seu país e o colapso do seumercado de ações salvou, até agora, a economia global que se ti-vesse ficado nas mãos do eixo Wall Street – Washington já teriafracassado. Para nós, isso reflete a maior capacidade tecnocrática

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de um Estado mais centralizado para direcionar a acumulação decapital e gerenciar os seus excessos.3 Um sistema de partido únicotem claramente menos possibilidades de frear e recuperar a revoltapopular, mas talvez essa não seja mais a principal preocupaçãodos governantes. Se o modelo chinês triunfar nos próximos anos,já temos uma imagem da organização do poder no futuro. Ao con-trário, se a democracia não for ultrapassada, o fascismo tambémnão irá desaparecer, pois o fascismo é o antagonista intrínseco (ouseja, o irmão pequeno, o complemento) da democracia. Uma de-mocracia forte suaviza o fascismo, uma democracia fraca usa-ocomo uma ferramenta subordinada, enquanto uma democracia fra-cassada sem estrutura político-econômica que se supere se rende aele.

Tudo isso sugere, pelo menos para uma leitora astuta, umaimportante mudança na estruturação do capitalismo e da socieda-de de classes anterior. A sociedade de classe mudou. Isso é umfato. Uma classe de investidores burgueses unidos por interessesde classe (os quais são interpretados subjetivamente por cada um)e divididas por competição e distintas afinidades nacionais, funci-ona muito diferente de um sistema de redes de instituições e em-presas tecnocráticas onde as ações individuais são moduladas porum funcionamento institucional impessoal, e no qual uma gigan-tesca parte dos fluxos de capital está automatizada e gerida por al-goritmos. Esta diferença é evidente em todos os níveis: as relações

3 Os acontecimentos dos últimos anos também demonstram a pobreza dasanálises de Antonio Negri e dos anti-imperialistas. Não existe nenhum con-flito entre o Estado e as multinacionais/capital, apenas os conflitos de sem-pre entre Estados dominantes e suas instituições, bancos e empresas, e osEstados menos poderosos que estão subordinados a um sistema global quenão privilegia seus interesses. Os últimos, vítimas dentro de uma ótica anti-imperialista, possuem suas próprias instituições, bancos e empresas e semostraram perfeitamente capazes de desenvolver capitalismos autóctonestoda vez que alcançaram a autonomia necessária para isso. Obviamente, adependência absoluta dos grandes bancos da ajuda do Estado para sobrevi-ver (injetar liquidez) demonstra que isso é uma questão de diferentes estru-turas num sistema unificado e não de antagonistas em conflito, nem de pa-trão e ferramenta.

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fortes entre seus participantes e também gera oportunidades para ocombate (que talvez seja a única vantagem sobre as espetacularesgreves gerais), dado que os vizinhos têm que defender-se contraos inevitáveis despejos. Sim, uma greve de aluguéis está muitolonge de acontecer, mas não tão longe como a revolução. O quenos falta não são possibilidades, mas seriedade.

Paralelamente a estas atividades de construção de podercoletivo e contra-ataque imediato contra a miséria, faltariam ativi-dades mais ideais, focadas em criar espaços próprios onde as rela-ções sociais que queremos pudessem começar a florescer. Praças ehortas ocupadas, redes de intercâmbio e dádiva, oficinas. Nestesentido, sim, temos exemplos: o Ateneo de Oficios de Poble Secou o Ágora de Juan Andrés no Raval; os dois projetos aumentarambastante a intensidade e as possibilidades das lutas nessas zonas,mas o seu reconhecimento como exemplos importantes não foimuito amplo.

E em seguida, sempre existem os projetos e as atividades –tanto destrutivas como construtivas – que somente surgirão degrupos anarquistas mais ou menos afins. São imprescindíveis, masse as linhas paralelas não se encontrarem em espaços amplos e he-terogêneos, ficarão isoladas e com poucas possibilidades de con-seguir seus objetivos.

Resumindo: as pessoas não se distanciam do anarquismoporque acreditam nos dogmas estatistas. Acreditam nos dogmasestatistas porque estão obrigadas a reproduzi-los. As crenças nãodeterminam as ações da maioria das pessoas, mas, ao contrário,suas ações determinam suas crenças. Acreditarão no que resultemais cômodo enquanto tiverem que viver sob as imposições doEstado.

Dada essa sociedade-prisão, o anarquismo não será espa-lhado com mais ou melhor propaganda. Será espalhado se puderexercer força contra as estruturas dominantes, se conseguir por emprática suas ideias – ao menos de forma limitada – e se elas pude-rem ser úteis para as pessoas na sua vida cotidiana. As primeiras

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am no nosso mundo ideal, e tampouco tivemos essa conversa – ada revolução – com nossas vizinhas e companheiras de assem-bleia. Aos nossos próprios olhos éramos umas sonhadoras semfundamentos práticos, de modo que mordíamos a língua inclusivequando fazíamos nossas propostas. Não propomos que se negassea pagar - não como proposta pontual, mas todos os dias - comomedida de contra-ataque, e não entendemos as assembleias comoum espaço para propor e organizar tais medidas.

Existiam todos os elementos para uma luta exitosa no me-trô e no ônibus: novas tecnologias para tornar visível e evitar oscontroles (fiscais); associações ou seguros solidários para pagarmultas em coletivo; raiva popular contra a subida dos preços e aturistificação, precarização e gentrificação generalizadas na cida-de; assembleias em todos os bairros para organizar propostas forado controle dos partidos políticos e plataformas de pactos; e aindauma capacidade difusa de sabotagem. Teria sido possível vinculá-la com a luta contra as fronteiras (dado a cumplicidade dos segu-ranças do metrô em identificar e bater em imigrantes) e com a lutacontra o aumento do controle social (dado a prevista implementa-ção de um sistema integrado de rastreamento e vigilância por todaa rede de transporte público). Teria sido possível que ganhasse aforma de sabotagem contra as tecnologias de controle no metrô, aabertura das estações, a desabilitação das máquinas de bilhetes euma massiva propaganda fomentando o catracaço, uma ação quebeneficia todo mundo, que fomenta a ilegalidade e que não se re-mete a um pactismo com as autoridades. Em vez disso, foram fei-tas manifestações pontuais que bloquearam as linhas de transpor-te, apenas incomodando as pessoas que não queriam passar aindamais tempo se deslocando entre o trabalho e sua casa, e com oúnico objetivo de pressionar a TBM (administração do transportepúblico) e a prefeitura a implementar uma mudança.

Uma campanha exitosa desse tipo teria podido servir comoum passo em direção a um grande acontecimento, como uma gre-ve de aluguéis. Uma greve assim exige muito mais compromissoque a greve geral de um dia, tece vínculos de solidariedade mais

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entre Estados (ou ninguém percebeu que não houve guerras entreos grandes Estados, como aquelas que marcaram os séculos ante-riores a 1945?); a diminuição da importância de capitalistas indi-viduais; a proporção de capital fixo e líquido controlado por enti-dades inumanas/institucionais; a forma como as grandes corpora-ções funcionam mais com instituições público/privadas do queempresas dirigidas por um capitalista; o aumento do poder dasinstituições e burocracias em face a indivíduos ricos ou políticoscarismáticos; o declínio da importância da figura do burguês comoproprietário ou investidor; a grande flexibilidade e o desapareci-mento de linhas fixas entre trabalhadores e patrões/gerentes de ca-pital e da disciplina de trabalho; o crescimento astronômico da im-portância de gerentes, diretores, especialistas e outras espécies detecnocratas, e um longo etcétera.

Infelizmente, uma análise detalhada dessas mudanças, forados círculos de especialistas e acadêmicos sem perspectivas revo-lucionárias ou experiências de conflitos nas ruas, não tem sido co-mum.4 Alguns até atacam dogmaticamente as tentativas de perce-ber e entender essas mudanças, seja por apego quase religioso à fi-gura do proletariado, evidente entre companheiros como os doProletarios Internacionalistas ou uma irrisória combinação de ig-norância e arrogância presente em textos como “Cuando se señala

la luna”.

O resultado dessa falta de investigação são camaradas quepropõem que a crise é apenas um show e uma conspiração, e mui-tos outros que não pensaram nas possíveis saídas da crise que ospoderosos dispõem.

4 Também não acredito que aqui estejamos inventando a roda. Existem mui-tos exemplos de análises lúcidas sobre tais mudanças, destacando entre elasas de Terra Cremada, Aürt, ou GEA La Corrala, mas quase sempre numamicro-escala, normalmente com a cidade como marco de análise. Para umponto de vista global, podemos nos referir aos textos dos seguidores da Te-oria da Comunização que, diminuindo um pouco sua lucidez, caem na feti-chização da esfera econômica como única ótica de análise e em uma faltade projetualidade revolucionária, dando protagonismo quase único ao Capi-tal.

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Para dizê-lo de uma forma mais clara, embora tambémsimplista: a austeridade, que começou logo após a crise dos anos1970 e assinalou o fim da expansão industrial e o começo da ex-pansão financeira, reflete a necessidade vital do capitalismo deabrir mais esferas da vida e da sociedade para o investimento docapital líquido excessivamente abundante que ele gerou. A privati-zação é uma forma de abrir mais infraestruturas e instituições paraos investimentos. A austeridade não evita a crise - já que a acumu-lação de capital é infinita e o investimento bem-sucedido de mais-valia somente gera mais mais-valia que precisa ser investida ouserá perdida -, ao invés disso, ela prolonga-a. Porém, os gerentesdo capital são incapazes de fazer qualquer outra coisa, da mesmaforma que pessoas morrendo de fome matarão a galinha ao invésde esperar que ela ponha ovos.

Frear com a austeridade e dar outra vez prioridade parasubsídios sociais, os poderosos poderão parar o avanço de uma re-volta popular. Mas, no momento, e com boa razão, eles tememmuito mais um colapso econômico – que é inevitável, até que umafronteira até hoje desconhecida seja aberta para a expansão econô-mica – do que uma revolta popular, já que, ao que parece, ela émeramente uma possibilidade distante. Mesmo que comecem a te-mer uma revolta, eles não podem parar de olhar para novos terre-nos para investir seu capital. Então, continuarão pressionando pelaausteridade. E somente um Estado economicamente autossuficien-te (e nem a Alemanha, que evitou o aumento do seu orçamentocom os empréstimos, como fazem os EUA, atende a esse critério)seria capaz de resistir à pressão, ou um Estado suficientemente po-deroso para quebrar com as normas imperantes e descumprir comos grandes credores.

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os despejos, o uso da ocupação de casas que não pertencem aosbancos) e uma recusa a criticar a propriedade privada ou a inclu-são de pessoas que pagam aluguel. As minoritárias Plataformas deAfetados pelas Hipotecas e pelo Capitalismo (PAHC) superaramalgumas dessas limitações, mas a organização geral ficou compoucas possibilidades fora da via eleitoral, assim como com pou-cas perspectivas ilegalistas, dado que pouquíssimos anarquistas (eaqui me incluo) participaram nesta organização de ação direta ediscursos reformistas.

Dentro de um espaço mais amplo como um assembleia decidade ou de bairro, existia a possibilidade – não testada – detransformar este modelo para que deixasse para trás os traços degrupo ativista especializado e adotasse características mais radi-cais e combativas. Em seu momento, o exemplo das auto-reduçõesnos bairros proletários da Itália dos anos 1960 e 1970 fui muitoimportante. Teria sido um modelo interessante: se eles cortam os

serviços sociais, em vez de exigir mudanças no âmbito das leis,

vamos instaurar nossos próprios cortes, não pagando impostos

sobre produtos ou o transporte público, pagando somente metade

do gás, da água e da luz, do aluguel, etc. Um espaço amplo teriasido ideal para organizar iniciativas desse tipo, porém não foi fei-to. Deixou-se as questões da miséria e da precariedade para seremgeridas por cada um de forma individualista e isolada.

Sim, houve manifestações em Barcelona contra o aumentoda tarifa do transporte público, mas a resposta foi dominada poruma assembleia reformista que nós anarquistas não éramos capa-zes de contrastar, mesmo sendo os organizadores mais ativos dassucessivas campanhas no metrô e no ônibus. Fora alguns protestospontuais, a proposta do transporte público gratuito só foi posta nonível da propaganda e não da ação. E aí nos perdemos em ques-tões muito importantes mas pouco úteis no momento, sobre umacidade anarquista (isso existiria?) e o transporte ideal (teria algumtransporte ideal?). As poucas vezes que propusemos um transportegratuito, nós mesmas quase não acreditávamos na proposta, já quenão estávamos convencidas de que as cidades e os metrôs existiri-

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e à passividade. Se nós, anarquistas, que passamos todo o dia pen-sando nessas coisas, não fomos capazes de conceber nem de porem prática naqueles espaços multitudinários as propostas que cor-respondiam a nossos próprios desejos e necessidades, como ousa-mos culpar os outros por não o havermos conseguido?6

Quais poderiam ter sido as propostas anarquistas para aauto-organização? Hipoteticamente é impossível dar as respostasmais inteligentes a esta pergunta. Somente a partir da prática e dainteligência coletiva seria possível desenvolver os caminhos maisadequados. Porém, pode-se oferecer algumas sugestões para nãoficar na abstração.

A experiência das Xarxes de Suport Mutu – as redes deapoio mútuo, um modelo de pressão coletiva como respostas paraproblemas de moradia e trabalho, desenvolvido em Seattle e queapareceu primeiro no bairro barcelonês de Clot – foi interessante.Deu lugar a batalhas pequenas mas importantes, porém, ao finaldemonstrou a falta de paciência generalizada entre as anarquistase a grande dificuldade, na sociedade atual, para evitar dinâmicasde assistencialismo. A maioria dos grupos deste tipo renderam-seem pouco tempo, em vez de fazer um trabalho profundo no bairropara encontrar outras pessoas com problemas econômicos e vonta-de de resistir.

A Plataforma de Afetados pelas Hipotecas (PAH) teve maisêxito neste sentido, mas muitas vezes ao custo de emperrar qual-quer avanço em sua própria luta. Estamos falando de demandas evisões reformistas, discursos criminalizadores e não solidários aoutras formas de luta (o uso da autodefesa e dos distúrbios contra

6 E as companheiras da pegada individualista ou antissocial que não me ve-nham dizer que não há nenhuma necessidade de espaços multitudinários,porque elas, com suas próprias forças, não conseguem nem realizar seusdesejos nem derrotar o Estado. Individualistas e antissociais comprovados econsequentes como Renzo Novatore tinham uma postura mais matizada ereal, ao invés da derrotista e dogmática, sobre as relações com às odiadasmassas. Estimavam sobretudo sua liberdade individual, mas não foram tãofrágeis que não souberam buscar a realização de seus desejos em lutas hete-rogêneas, mas que justamente estas eram o seu terreno preferido.

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As Promessas da Esquerda

Neste panorama, os novos partidos da esquerda promete-ram o que eles são incapazes de conseguir: acabar com a austeri-dade sem destruir o capitalismo. Como dissemos, a austeridade sópode acabar através de uma nova expansão capitalista ou de umarevolução social que finalmente derrube as incorrigíveis dinâmi-cas internas do capitalismo. E como mostrou muitas vezes a His-tória, o Estado não é capaz de destruir o capitalismo (a não ser queapareça um sistema ainda mais explorador) porque o Estado é umaparato de alienação e dominação que é obrigado a abastecer-se ealimentar-se através das estruturas mais eficientemente explorado-ras. Se você impõe sua vontade com uma arma, a única coisa quevocê nunca irá fazer é fechar a fábrica de balas. Um povo autossu-ficiente não gera a mais-valia alienável que o Estado necessitapara se financiar e impor suas decisões.

Nós anarquistas estamos perfeitamente posicionadas paraindicar a incoerência e o irrealismo da esquerda, mas estamos per-didas numa grande confusão. Em parte, ela é ideológica. A recusade muitos anarquistas em desenvolver críticas profundas e sensa-tas à democracia e à tecnologia os converte em promotores empol-gados dos principais eixos de controle social que o Estado dispõenesta conjuntura tão decisiva. Apelam a estes valores tão funda-mentais do sistema atual de dominação por medo, por preguiça,por oportunismo e por falta de qualquer análise escrupulosa. Émuito mais fácil “chegar ao povo” denunciando os políticos davez do que questionando os pilares da própria sociedade. Hoje emdia, qualquer pessoa que critica a democracia ou a tecnologia seexpõe à pior marginalização e perseguição. Na sinistra simulaçãode uma estratégia, estes populistas se rendem às exigências dopróprio sistema e fazem apologia aos valores que o seu supostoinimigo lhes ensinou e não lhes permitirá questionar.

Porém, mais que ideológica, a confusão é psíquica. Apósos golpes repressivos, depois de presenciar tantas vezes como

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cada êxito que conseguimos se desvanece por motivos que aindanão terminamos de entender, ficamos cansados. Sem a imagina-ção, não temos nenhum horizonte revolucionário. Sem uma análi-se renovada global, não entendemos o que está acontecendo com omundo ao nosso redor. E sem ânimos não podemos gerar projetua-lidades conflitivas que nos permitam aprender enquanto agimos.Ficamos estagnados, paramos, perdemos nossas energias em inici-ativas dedicadas ao fracasso.

As Propostas Anarquistas

Os novos partidos de esquerda, desde o Podemos ao Barce-lona en Comú, surgiram da morte do movimento 15M. Pelo me-nos em Barcelona e Madrid, a participação anarquista ajudou avencer os partidos de esquerda e os políticos de base na sua tenta-tiva de centralizar o movimento e utilizá-lo exclusivamente paraexercer pressão institucional. Sim, uma parte do movimento orga-nizou manifestações em Madrid e em Bruxelas para exigir a refor-ma constitucional, mas em geral se manteve a recusa aos partidospolíticos, dirigiu-se a maioria de suas energias para os protestosmais diretos e em Barcelona, pelo menos, a coisa caminhou paraassembleias de bairro e outros espaços mais difíceis de centralizar.E as assembleias de bairro formaram parte de um grande laborató-rio para a radicalização das greves, o apoio a lutas anteriormenteparciais e isoladas, a definitiva derrota do pacifismo e a melhorados métodos de comunicação, difusão e assembleias.

Os políticos de base não conseguiram capturar o movimen-to nem se aproveitar de suas estruturas; criaram seus novos parti-dos depois da morte do movimento das praças. Estes partidos ali-mentaram-se precisamente da decepção popular, do pensamentode que todo aquele movimento não havia servido para nada. Por-tanto, poderíamos dizer que nós anarquistas tivemos êxito na ne-

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gação das manobras de institucionalização das lutas, mas experi-mentamos um fracasso completo no momento de introduzir nossaspropostas nos espaços sociais emergentes. Algumas de nós fica-mos envergonhadas porque nossas ideias eram muito ousadas eoutras por carência de visão e de propostas em si mesmas. Outrasainda, que eram mais radicais, foram tão frágeis que nem sequersouberam expressar e por em prática suas ideias em espaços ondetambém existiam ideias contrárias às suas. Por acaso as ideiasanarquistas não podem ser defendidas quando entram em contatocom ideias reformistas? Cederam os novos espaços aos reformis-tas sem nem ao menos travar a batalha.

Foi uma conquista importante que muitas daquelas assem-bleias não tenham se convertido em espaços centralizados de de-cisões unitárias capazes de representar e controlar todo um movi-mento. Mas, não soubemos lançar propostas anarquistas que pu-dessem servir a outras pessoas dentro das assembleias descentrali-zadas que ajudamos a criar.5 Ao fim, os institucionalizadores daslutas ganharam o conflito, mesmo tendo que esperar alguns anos.

Conseguimos - e não foi graças a nós mesmos, mas devidoà capacidade anárquica latente nas próprias pessoas - um primeiropasso em direção à auto-organização da sociedade. Mas as pesso-as, e com alguma razão, esbarraram com a inutilidade das assem-bleias autônomas. Agora, com menos razão, voltam a depositarsuas esperanças nas estruturas democráticas, apostando desta vezem novos representantes e novos partidos. Sem dúvida não é nos-sa responsabilidade, como iluminados, mostrar às pessoas comodevem organizar suas vidas nem aproveitar-nos das assembleias.Mas vivemos num mundo no qual todas as pressões estruturaisnos afastam da auto-organização e nos conduzem à representação

5 Quando me refiro a propostas que poderiam servir às outras pessoas, nãofalo de projetos assistencialistas que nós fazemos, os bons anarquistas, paraas pessoas, mas de propostas que poderiam ser úteis tanto para nós comopara as demais. Ou seja, rechaçando o assistencialismo, não sabemos fazernada com as outras pessoas se elas não começam a se identificar tambémcomo anarquistas. E é uma carência triste, pois existe muitíssimo terrenofora do assistencialismo e do recrutamento.

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