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CAO – Crim Boletim Criminal Comentado – 02/2020
(semana nº 02)
Subprocuradoria-Geral de Justiça de Políticas Criminais e Institucionais
Mário Tebet
Coordenador do CAO Criminal
Arthur Pinto Lemos Junior
Assessores
Fernanda Narezi Pimentel Rosa
Marcelo Sorrentino Neira
Paulo José de Palma
Ricardo José Gasques de Almeida Silvares
Rogério Sanches Cunha
Analista Jurídica
Ana Karenina Saura Rodrigues
Boletim Criminal Comentado Fevereiro-
2020- (semana nº 02)
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SUMÁRIO
SUMÁRIO --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 2
AVISO....................................................................................................................................................3
ESTUDOS DO CAOCRIM -------------------------------------------------------------------------------------------------- 3
1-Tema: Máquina caça níquel como objeto material de crime patrimonial..........................................3
2- Tema: Representação no crime de estelionato..................................................................................4
STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM ------------------------------ 6
DIREITO PROCESSUAL PENAL: ------------------------------------------------------------------------------------------ 6
1-Tema: Súmula Vinculante 14 e direito à intimidade de corréu...........................................................6
DIREITO PENAL: ------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 8
1-Tema: STJ - Reincidência habitual impede a incidência do princípio da insignificância.......................8
2-Tema: Lei 8.137/1990, art. 2º, II e não recolhimento de ICMS declarado e tipicidade......................10
3- Tema: Suspensão de CNH de motorista profissional condenado por homicídio culposo por acidente
de trânsito é constitucional.................................................................................................................17
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AVISO
Por meio de Convênio estabelecido com a SAP – Secretaria do Estado de Administração Penitenciária,
os Promotores de Justiça Criminais, em especial aqueles que oficiam nas Execuções Criminais,
poderão fiscalizar o cumprimento do Acordo de Não Persecução Penal – ANPP por meio do Sistema
de Reintegração – SISRE. Iniciamos esta semana testes nesse Sistema com as Promotorias de Justiça
Criminais de Carapicuíba, Bauru e Presidente Prudente. Esperamos, em breve, disponibilizarmos o
acesso ao SISRE para todas as Promotorias de Justiça Criminais do Estado.
Atualizamos os contatos e os endereços das Centrais de Penas e Medidas Alternativas (CPMAs) –
clique aqui.
O CAOCrim fará nos próximos dias proposta de regulamentação do ANPP à Procuradoria-Geral de
Justiça e à Corregedoria-Geral do Ministério Público.
Sugerimos que o ANPP e sua decisão de homologação, até que se conclua a evolução do ESAJ, sejam
encaminhados por e-mail à Promotoria de Justiça de Execuções Criminais, que poderá iniciar a
fiscalização do Pacto por meio de autos físicos.
Registramos que foram elaborados 1.165 Acordos de Não Persecução Penal no Estado. Destacamos
como aquelas que mais celebraram os Pactos as regiões de Presidente Prudente, Grande São Paulo
II e Campinas.
ESTUDOS DO CAOCRIM
1-Tema: Máquina caça níquel como objeto material de crime patrimonial
O objeto material dos crimes de furto e roubo deve ser coisa alheia móvel. Diz a doutrina que essa
coisa deve, também, ser economicamente apreciável. O interesse apenas moral ou sentimental da
coisa, desde que relevantes, também configura o crime, pois não deixa de integrar o patrimônio de
alguém.
Discute-se se maquinas caça-níqueis pode ser alcançada pela expressão “coisa”. Sem dúvida. Assim
já decidiu o STJ:
STJ- HC 202.784/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA
HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO QUALIFICADO TENTADO. CONDUTA TÍPICA MESMO QUANDO A RES
FURTIVA NÃO É RESGUARDADA JURIDICAMENTE. RÉU REINCIDENTE. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL.
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAS FAVORÁVEIS. POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DO REGIME PRISIONAL
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SEMIABERTO. SÚMULA N.º 269 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ORDEM PARCIALMENTE
CONCEDIDA.
1. É típica a conduta de roubar caça-níqueis porque, apesar de proibida a exploração de jogo de azar
em nosso ordenamento jurídico, a res furtiva tem relevância econômica, sendo atingido o patrimônio
da vítima, objeto jurídico tutelado pela lei penal.
2. Ao condenado reincidente que teve consideradas favoráveis as circunstâncias judiciais previstas
no artigo 59 do Código Penal, e cuja pena imposta foi inferior a quatro anos de reclusão, aplica-se o
regime prisional semiaberto. Incidência da Súmula n.º 269 desta Corte.
3. Ordem concedida parcialmente para fixar o regime semiaberto para o inicial cumprimento da pena
aplicada ao Paciente.
Clique aqui para ter acesso ao inteiro teor .
No mesmo sentido, TJ SP:
TJSP- Apelação nº 0002815-72.2012.8.26.0511
Apelação. Roubos majorados em continuidade delitiva. Art. 157, §2º, I e II, c.c. art. 71, do CP. Roubos
de máquinas de caça-níqueis. Tese de inépcia da denúncia afastada. Crime impossível. Inocorrência.
Bens móveis e alheios que, em que pese possam ter relação com contravenção penal, são aptos a
configurar objeto material dos crimes de roubo. Sentença mantida. Recurso não provido.
Clique aqui para ter acesso ao acórdão do TJ.
2- Tema: Representação no crime de estelionato
A Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime) inseriu no art. 171 o § 5º, que modifica a natureza da ação penal,
antes pública incondicionada (com as exceções do art. 182 do CP). Atualmente, a ação penal é pública
condicionada à representação, exceto se a vítima for:
I – a Administração Pública, direta ou indireta;
II – criança ou adolescente;
III – pessoa com deficiência mental;
IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
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Pode causar certa perplexidade o fato de o legislador ter modificado a ação penal no estelionato e
não tê-lo feito no furto, cuja natureza, ao menos na maior parte das modalidades, é plenamente
compatível com a ação penal que confere à vítima o poder de decidir se o autor do crime deve ser
processado pelo Ministério Público.
Uma explicação plausível pode ser o fato de que o estelionato pressupõe a participação direta da
vítima, que sofre o ardil, é enganada pela ação fraudulenta do agente, deixa-se levar por diversos
fatores e, portanto, acaba por colaborar para seu próprio infortúnio. Isto não ocorre no furto, em
que a vítima no geral ignora que está sendo despojada de seus bens, inclusive na subtração mediante
fraude, que jamais pode servir para que a vítima colabore de alguma forma para o sucesso da
empreitada criminosa, senão para que desvie sua atenção enquanto ocorre a subtração.
A participação direta da vítima no estelionato pode provocar uma espécie de constrangimento que
a previna de procurar os órgãos de investigação para lhes relatar a fraude sofrida. A vitimologia, aliás,
designa essa pessoa como “vítima por necessidade afetiva”, porque, imbuída de boa-fé, acaba sendo
envolvida pelo criminoso. Esta situação pode levá-la a não querer passar pelo constrangimento de
relatar, por diversas vezes e para várias pessoas, o golpe sofrido. É exatamente o mesmo fundamento
que antes limitava, com mais razão, a iniciativa persecutória nos crimes contra a dignidade sexual.
Retroatividade da Lei - tendo em vista que a necessidade de representação traz consigo institutos
extintivos da punibilidade, a regra do § 5º deve ser analisada sob a perspectiva da aplicação da lei
penal no tempo. Aqui temos que diferenciar duas hipóteses:
a) se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela
mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar
seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da
representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não
exigiu essa manifestação (como fez no art. 88 da Lei 9.099/1995);
b) se a incoativa ainda não foi oferecida, deve o MP aguardar a oportuna representação da vítima ou
o decurso do prazo decadencial, cujo termo inicial, para os fatos pretéritos, é o da vigência da novel
lei.
Nesse sentido, ENUNCIADOS 3 e 4 da PGJ/CAOCRIM/MPSP:
Enunciado 3: É dispensável a representação do ofendido no crime de estelionato se oferecida a
denúncia antes da eficácia da Lei nº 13.964/19, em respeito ao ato jurídico perfeito.
Enunciado 4: Conhecida a autoria, é necessária a representação da vítima no crime de estelionato se
não oferecida a denúncia até a eficácia da Lei nº 13.964/19, observado o prazo decadencial de seis
meses a contar de sua intimação.
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STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM
DIREITO PROCESSUAL PENAL:
1-Tema: Súmula Vinculante 14 e direito à intimidade de corréu
INFORMATIVO 964 STF- PRIMEIRA TURMA
A Primeira Turma, por maioria, negou provimento a agravo regimental em reclamação em que
discutida suposta afronta à Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal (STF) , em virtude de
a defesa do interessado não haver obtido acesso amplo e irrestrito aos elementos de prova já
documentados em inquérito policial, instaurado para apurar a prática de crime de lavagem de
dinheiro por diversos agentes.
No caso, a decisão agravada se baseou nas seguintes premissas: a) a investigação ocorre em segredo
de justiça; e b) o Relatório de Inteligência Financeira do Coaf (ao qual se pretende acesso integral)
menciona outros investigados, além do interessado. Desse modo, foi deferido o pedido do
reclamante quanto à extração de cópias do inquérito, com exceção de eventuais peças protegidas
pelo segredo de justiça, especialmente o relatório do Coaf, no que diz respeito a dados de terceiros.
A Turma ressaltou que o direito à privacidade e à intimidade é assegurado constitucionalmente, e
que é excessivo o acesso de um dos investigados a informações, de caráter privado de diversas
pessoas, que não dizem respeito ao direito de defesa dele, sob pretexto de obediência à Súmula
Vinculante 14.
Vencido o ministro Marco Aurélio, que proveu o agravo. Entendeu que o relatório do Coaf é um
documento único, e o reclamante está envolvido no episódio contido nesse documento. A Súmula
Vinculante 14 não faz distinção quanto aos documentos passíveis de acesso pela parte interessada,
exigindo apenas que estejam encartados nos autos.
Rcl 25872 AgR-AgR/SP, rel. Min. Rosa Weber, julgamento em 17.12.2019. (Rcl-25872).
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
O texto da Súmula Vinculante 14 anuncia:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que,
já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia
judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
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Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do seu bom
sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização
documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é
óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos
retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da
Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o
indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe,
por conseguinte, o exercício. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade
dos investigados não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos
do acusado. E invocar a intimidade dos demais investigados, para impedir o acesso aos autos,
importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a
todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga
deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente
tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito a seu constituinte.
Em suma, deve ser assegurado o direito do indiciado (bem como ao seu defensor) de acesso aos
elementos constantes em procedimento investigatório que lhe digam respeito e que já se encontrem
documentados nos autos, não abrangendo, por óbvio, as informações concernentes à decretação e
à realização das diligências investigatórias pendentes, em especial as que digam respeito a terceiros
eventualmente envolvidos.
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DIREITO PENAL:
1-Tema: STJ - Reincidência habitual impede a incidência do princípio da insignificância
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou a aplicação do princípio da insignificância
na tentativa de furto de um pacote de suplemento alimentar Whey Protein de um supermercado, em
razão de o acusado ser reincidente.
O entendimento unânime se deu com a negativa do agravo regimental proposto pela defesa. Com
isso, a sentença foi restabelecida, pois o colegiado manteve a decisão monocrática na qual o relator
do caso, ministro Nefi Cordeiro, havia dado provimento ao recurso especial do Ministério Público.
Narram os autos que o suplemento alimentar sabor chocolate custava R$ 77,00 e foi posteriormente
devolvido ao supermercado.
Na sentença, o réu foi condenado à pena de um ano e quatro meses em regime aberto. Entretanto,
o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) aplicou o princípio da insignificância e o absolveu pela
atipicidade da conduta. Para a corte fluminense, a ofensividade do réu era mínima e o produto
possuía valor inferior ao salário mínimo vigente à época, sendo desproporcional impor pena por uma
conduta cuja lesão foi “absolutamente irrelevante”, já que o produto foi restituído.
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
A doutrina – especialmente a moderna – estrutura o Direito Penal de modo a torná-lo aplicável
apenas quando estritamente necessária a rigidez da sanção penal. Desta forma, sua intervenção fica
condicionada não apenas ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário), mas
também à existência de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado
(caráter fragmentário).
Como desdobramento lógico do caráter fragmentário, desenvolveu-se o princípio da insignificância.
Ainda que o legislador crie tipos incriminadores em observância aos princípios gerais do Direito Penal,
é possível que, em determinada situação, a lesão provocada no bem jurídico tutelado pela norma
penal seja diminuta, isto é, incapaz de atingi-lo materialmente e de forma relevante e intolerável.
Nesses casos, estaremos diante do que se denomina infração bagatelar ou crime de bagatela.
Segundo Carlos Vico Manãs, “o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação
restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas
em seu aspecto formal, de subsunção da fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo
material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela
norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal”. Para ele, tal
princípio funda-se “na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar,
pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-
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criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não
atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal” (O Princípio
da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1ª. ed., São Paulo: Saraiva, pp. 56
e 81).
Os tribunais superiores têm reconhecido com frequência o princípio da insignificância, mas
estabelecem alguns requisitos necessários. São eles: a) a mínima ofensividade da conduta do agente;
b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do
comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada.
Uma das limitações à incidência da causa de atipicidade material pode ser a reincidência do autor da
conduta. Embora a reincidência não seja um impeditivo absoluto, pois há decisões que aplicam a
insignificância mesmo em benefício de indivíduos anteriormente condenados (AgRg no REsp
1.715.427/MG, j. 17/12/2019), a acumulação de condenações (habitualidade criminosa) evidencia
um caráter orientado à prática de crimes, o que sem dúvida eleva o grau de reprovabilidade da
conduta, tendo em vista que o agente faz do crime um verdadeiro meio de vida. Em situações como
esta, encarar a conduta como algo irrelevante desvirtua o propósito do instituto e incentiva à ação
delituosa não apenas o próprio beneficiado como também outros indivíduos que acabam
percebendo a falta de rigor no trato de criminosos.
Recentemente, no julgamento do HC 557.194/MS (j. 4/2/2020), o STJ afastou a insignificância
pretendida a favor de um indivíduo condenado pelo furto de um rádio de valor irrisório. Não obstante
o valor do objeto fosse de fato reduzido, o tribunal considerou que as condições pessoais do
impetrante impediam a incidência do benefício:
“O paciente, segundo consta no acórdão, ostentava oito condenações transitadas em julgado.
Somam-se a isso as informações do documento de fls. 20-21, no qual se destacou que, afora aquela
passagem, o paciente, nos últimos doze meses, havia tido seis procedimentos policiais.
Portanto, os autos trazem componentes que revelam a acentuada reprovabilidade do
comportamento do paciente – a reincidência e maus antecedentes em crimes de natureza
patrimonial, que indicam a habitualidade delitiva. Dessa forma, observa-se que a Corte estadual
decidiu em harmonia com a jurisprudência do STJ no sentido de que a reiteração criminosa inviabiliza
a aplicação do princípio da insignificância.
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE
FURTO. HABITUALIDADE DELITIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. RESTITUIÇÃO
DO BEM. RAZÃO INSUFICIENTE PARA A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A
jurisprudência desta Quinta Turma reconhece que o princípio da insignificância não tem
aplicabilidade em casos de reiteração da conduta delitiva, salvo excepcionalmente, quando as
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instâncias ordinárias entenderem ser tal medida recomendável diante das circunstâncias concretas
do caso, o que não se infere na hipótese em apreço, máxime por se tratar de réu reincidente
específico e ainda responder por diversos outros processos criminais. Precedentes. 2. O simples fato
de o bem haver sido restituído à vítima, não constitui, por si só, razão suficiente para a aplicação do
princípio da insignificância. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp n. 1.553.855-RS,
relator Ministro Ribeiro Dantas, publicado no DJe de 26/11/2019.)”.
2-Tema: Lei 8.137/1990, art. 2º, II e não recolhimento de ICMS declarado e tipicidade
INFORMATIVO 964 STF- PLENÁRIO
O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado
do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990.
Com essa orientação, o Plenário, em conclusão de julgamento e por maioria, negou provimento a
recurso ordinário em habeas corpus e revogou a liminar anteriormente concedida (Informativo 963).
Na situação dos autos, sócios e administradores de uma empresa declararam operações de venda ao
Fisco, mas deixaram de recolher o ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de
Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicação) relativamente a diversos períodos. Por três vezes, a empresa aderiu a programas de
parcelamentos da Fazenda estadual, mas não adimpliu as parcelas. Os ora recorrentes foram
denunciados pela prática do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, que define crimes contra
a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Na
primeira instância, o juízo os absolveu sumariamente por considerar a conduta atípica. Em sede de
apelação, o tribunal de justiça local afastou a tese da atipicidade e determinou o regular
prosseguimento do processo.
Ato contínuo, a defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) (HC
399.109). Naquela Corte, a Terceira Seção, por maioria, asseverou ser inviável a absolvição sumária,
notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há
excludentes de ilicitude. Salientou que eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar deverá ser
esclarecida com a instrução criminal.
Daí a interposição do presente recurso ordinário, no qual se requeria a declaração da ilegalidade do
acórdão do tribunal de justiça, com o objetivo de restabelecer a sentença que os absolvia
sumariamente.
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Prevaleceu o voto do ministro Roberto Barroso (relator), que estabeleceu três premissas, reputadas
importantes no equacionamento da matéria: (i) o Direito Penal deve ser sério, igualitário e
moderado; (ii) o pagamento de tributos é dever fundamental de todo cidadão, na medida em que
ocorra o fato gerador e ele exiba capacidade contributiva; e (iii) o mero inadimplemento tributário
não deve ser tido como fato típico criminal, para que seja reconhecida a tipicidade de determinada
conduta impende haver um nível de reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais
gravoso.
Explicitou que o sujeito ativo do crime é o sujeito passivo da obrigação, que, na hipótese do ICMS
próprio, é o comerciante. O objeto do delito é o valor do tributo. No caso, a quantia transferida pelo
consumidor ao comerciante. A utilização dos termos “descontado” e “cobrado” é o ponto central do
dispositivo em apreço. Tributo descontado, não há dúvidas, refere-se aos tributos diretos. Já a
expressão “cobrado” abarca o contribuinte nos tributos indiretos. Portanto, “cobrado” significa o
tributo que é acrescido ao preço da mercadoria, pago pelo consumidor — contribuinte de fato — ao
comerciante, que deve recolhê-lo ao Fisco. O consumidor paga mais caro para que o comerciante
recolha o tributo à Fazenda estadual.
O ministro salientou que o valor do ICMS cobrado em cada operação não integra o patrimônio do
comerciante, que é depositário desse ingresso de caixa. Entendimento coerente com o decidido pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 574.706 (Tema 69 da repercussão geral), oportunidade na qual
assentado que o ICMS não integra o patrimônio do sujeito passivo e, consequentemente, não
compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.
Dessa maneira, a conduta não equivale a mero inadimplemento tributário, e sim à apropriação
indébita tributária. A censurabilidade está em tomar para si valor que não lhe pertence. Para
caracterizar o tipo penal, a conduta é composta da cobrança do consumidor e do não recolhimento
ao Fisco.
Segundo o relator, além da interpretação textual do preceito, a interpretação histórica também
conduz à tipicidade da conduta. Na redação apresentada em substitutivo ao projeto de lei original,
tratava-se, em incisos separados, a hipótese de retenção e não recolhimento e a hipótese de
cobrança no preço e não recolhimento. No texto final aprovado, o dispositivo foi compactado sem a
modificação do sentido da norma. Fundiu os dois incisos em um só e dispôs os termos “descontado”,
para o tributo retido na fonte, e “cobrado”, para o incluído no preço.
De igual modo, a análise do direito comparado reforça essa compreensão. Em outras partes do
mundo, os delitos tributários inclusive são punidos de forma mais severa. O relator lembrou que a
Primeira Turma do STF concedeu pedido de extradição fundado em tipo penal análogo (Ext 1.139) e
que o STF já reconheceu a constitucionalidade do tipo penal em debate (ARE 999.425, Tema 937 da
repercussão geral).
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Ao versar sobre a interpretação teleológica, o ministro Roberto Barroso observou que são
financiados, com a arrecadação de tributos, direitos fundamentais, serviços públicos, consecução de
objetivos da República. No País, o ICMS é o tributo mais sonegado e a principal fonte de receita
própria dos Estados-membros da Federação. Logo, é inequívoco o impacto da falta de recolhimento
intencional e reiterado do ICMS sobre o Erário. Considerar crime a apropriação indébita tributária
produz impacto relevante sobre a arrecadação.
Também a livre iniciativa é afetada por essa conduta. Empresas que sistematicamente deixam de
recolher o ICMS colocam-se em situação de vantagem competitiva em relação as que se comportam
corretamente. No mercado de combustíveis, por exemplo, são capazes de alijar os concorrentes que
cumprem suas obrigações.
O relator esclareceu que a oscilação da jurisprudência do STJ, ao afirmar a atipicidade da conduta
adversada, fez com que diversos contribuintes passassem a declarar os valores devidos, sem recolhê-
los. Houve uma “migração” do crime de sonegação para o de apropriação indébita e não é isso que
o direito deseja estimular.
No tocante às consequências do reconhecimento da tipicidade sobre os níveis de encarceramento
no País, aduziu que é virtualmente impossível alguém ser efetivamente preso pelo delito de
apropriação indébita tributária. A pena cominada é baixa, portanto, são cabíveis transação penal,
suspensão condicional do processo e, em caso de condenação, substituição da pena privativa de
liberdade por medidas restritivas de direito. Além disso, é possível a extinção da punibilidade se o
sonegador ou quem tenha se apropriado indevidamente do tributo quitar o que devido.
Assentada a possibilidade do delito em tese, o ministro assinalou que o crime de apropriação indébita
tributária não comporta a modalidade culposa. É imprescindível a demonstração do dolo e não será
todo devedor de ICMS que cometerá o delito. O inadimplente eventual distingue-se do devedor
contumaz. O devedor contumaz faz da inadimplência tributária seu modus operandi.
Por fim, consignou que o dolo da apropriação deve ser apurado na instrução criminal, pelo juiz
natural da causa, a partir de circunstâncias objetivas e factuais, tais como a inadimplência reiterada,
a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de
“laranjas”, a falta de tentativa de regularização de situação fiscal, o encerramento irregular de
atividades com aberturas de outras empresas.
A ministra Rosa Weber acrescentou que a conduta eleita pelo legislador penal não exige, para sua
perfectibilização, o emprego de fraude ou simulação pelo contribuinte, nem qualquer omissão.
Vencidos os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que deram provimento
ao recurso, por considerarem a conduta atípica. Compreenderam estar-se diante de imputação
criminal pelo mero inadimplemento de dívida fiscal. O ministro Gilmar Mendes salientou que uma
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interpretação constitucional do dispositivo deve levar em conta o animus de fraude do agente, sob
pena de fomentar-se uma política criminal arrecadatória. Ademais, inexiste apropriação de tributo
devido por terceiro, pois o tributo é devido pela própria empresa.
RHC 163334/SC, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 18.12.2019. (RHC-163334)
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
O art. 2º da Lei 8.137/90 pune, no inciso II, a conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valor de
tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de
obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Em fatos que envolvem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), há certa
controvérsia a respeito do alcance do tipo, que estabelece uma espécie de apropriação indébita
tributária: seria aplicável apenas e tão somente ao substituto tributário ou abarcaria também quem
destaca o ICMS na nota fiscal, repassa o valor respectivo ao consumidor, mas não o recolhe ao fisco
estadual?
O substituto tributário é aquele a quem a lei impõe o recolhimento do tributo embora não se trate
do praticante do fato gerador. A substituição pode ser para a frente, para trás ou propriamente dita.
Na definição de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr, a substituição para a frente “é uma forma de antecipação
do tributo, pela qual o substituto deve recolher o tributo que seria devido pelo substituído em
momento posterior do ciclo econômico, ou seja, o imposto é pago pelo substituto, com recursos que
lhe são fornecidos pelo substituído, embora o fato gerador normalmente só ocorreria
posteriormente”. Já a substituição para trás “ocorre quando o substituto é responsável pelo
pagamento do imposto devido pelo substituído na etapa anterior do processo de circulação da
mercadoria. Tal substituição normalmente se dá quando o contribuinte-substituído, transmitente da
mercadoria, é produtor de pequeno porte ou comerciante individual, enquanto o substituto,
adquirente da mercadoria, é contribuinte de maior peso, inspirando maior confiança no fisco no que
toca ao pagamento do tributo, principalmente em razão da sua melhor organização. Na realidade,
ocorre um diferimento do imposto porque o fisco não recebe o tributo no momento da saída da
mercadoria do estabelecimento do comerciante de pequeno porte, mas em etapa posterior do ciclo
econômico, sendo o recolhimento feito pelo substituto”. Por fim, a substituição propriamente
dita ocorre em um negócio específico, isto é, quando substituto e substituído integram o mesmo
negócio jurídico.
A outra situação mencionada no segundo parágrafo – e que gera a dúvida sobre a caracterização do
crime – não se confunde com a substituição tributária. No caso, a sociedade comercial é contribuinte
direta de uma obrigação tributária própria. Embora haja o destaque do valor do ICMS e seu repasse
ao consumidor, este jamais pode ser considerado contribuinte substituído do tributo estadual. A
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própria sociedade comercial dá ensejo ao fato gerador e é a única responsável pelo recolhimento do
tributo.
Por que, então, há dúvida sobre se o crime se caracteriza?
Porque o tipo penal pune a conduta de deixar de recolher valor de tributo ou de contribuição social
descontado ou cobrado. Os que advogam a tese de que o crime se caracteriza fora das situações de
substituição o fazem baseados no fato de que se trata de um tributo efetivamente cobrado mas não
repassado ao fisco. O tipo, portanto, abarcaria duas situações: o não recolhimento do tributo
descontado por substituição e o não recolhimento do tributo cobrado (repassado ao consumidor).
Havia no próprio STJ certa divergência a respeito da caracterização do crime no caso do tributo
cobrado. A Sexta Turma, por exemplo, tem decisões nas quais considera que quem cobra o imposto
do consumidor e não promove o recolhimento é simples inadimplente, não autor de crime tributário:
“1. O delito do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte ou cobre
valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos. 2. O comerciante que vende
mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, não realiza o pagamento do tributo
não deixa de repassar ao Fisco valor cobrado ou descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se
inadimplente de obrigação tributária própria.” (REsp 1.543.485/GO, j. 5/4/2016).
A Quinta Turma, por outro lado, tem decisões em sentido contrário:
“2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito
aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou
cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído
em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há que se
falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico
pátrio, no caso a Lei 8.137/1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo
legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria
recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. Precedente”
(RHC 44.465/SC, j. 18/6/2015)
Em julgamento do habeas corpus 399.109/SC, realizado em 22 de agosto de 2018, a Terceira Seção
do STJ dirimiu a divergência para estabelecer, por maioria, a tipicidade da conduta.
Divergindo da tese vencedora, a ministra Maria Thereza de Assis Moura se alinhou à orientação de
que a expressão descontado ou cobrado, contida no tipo, diz respeito aos casos de responsabilidade
tributária, não de simples repasse do custo do tributo ao consumidor, que não é o contribuinte do
ICMS e não tem relação tributária com o fisco. É, portanto, incorreto considerar que o valor do ICMS
embutido no preço é cobrado – na acepção do tipo penal – do consumidor:
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“Sob esta perspectiva, é também o consumidor quem arca, por exemplo, com o ônus econômico do
imposto de renda e com a contribuição previdenciária pagos pelo comerciante, já que, na formação
do preço da mercadoria, são levados em consideração todos os custos, diretos e indiretos, da
atividade. Da mesma forma, o custo do aluguel do imóvel, da energia elétrica, dos funcionários etc.,
tudo isso é repassado ao consumidor.
Nem por isso alguém sustenta que há apropriação indébita do imposto de renda quando o
consumidor compra um produto e o comerciante, após contabilizar corretamente o tributo,
simplesmente deixa de recolhê-lo.”
Já segundo o ministro Rogério Schietti Cruz – relator –, o tipo penal abrange ambas as situações. A
expressão descontado se relaciona a tributos diretos em que se verifica a responsabilidade por
substituição tributária (o substituto retém o tributo na fonte e não o recolhe). Já a
expressão cobrado compreende as relações tributárias relativas a tributos indiretos, ainda que
decorrentes de operações próprias, pois o contribuinte de direito retém valor do tributo e o repassa
ao adquirente do produto. No caso do ICMS, o valor é sempre suportado pelo consumidor, pois, tanto
em substituição tributária quanto em operações próprias, o tributo é repassado na cadeia de
produção.
No voto em que acompanhou o relator, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca afirmou que, antes,
alinhava-se à orientação dominante na Sexta Turma, de que o crime só poderia se caracterizar se o
tributo fosse descontado ou cobrado do contribuinte, o que não ocorre no simples repasse ao
consumidor, que – repita-se – não é sujeito passivo da obrigação tributária relativa ao ICMS.
Reavaliando, no entanto, sua posição, o ministro chegou à conclusão de que o tipo penal não exige
que o desconto ou a cobrança seja feita do contribuinte. Não há limitação expressa que autorize a
conclusão de que somente o substituto tributário pode ser sujeito ativo. Dessa forma, basta que seja
feito o desconto ou a cobrança para que o delito se aperfeiçoe:
“Nada obstante, ao lançar novo olhar sobre a matéria, verifico que a limitação realizada, no sentido
de que o tipo penal somente se perfaz quando o valor é descontado ou cobrado de quem também é
contribuinte, não encontra amparo no tipo penal em estudo, uma vez que a norma não traz essa
especificação. Nesse contexto, entendo que a conclusão no sentido de que o tipo só é preenchido
nos casos de substituição tributária não resiste à mais simples forma interpretação normativa, que é
a gramatical.
(…)
Dessa forma, o crime em tela só pode ser praticado pelo sujeito passivo de obrigação tributária, que,
nessa qualidade, descontar ou cobrar valor de tributo ou de contribuição social, de terceiro, não
necessariamente contribuinte, e não recolher o valor aos cofres públicos.
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Irrelevante, assim, a ausência de relação jurídica entre o Fisco e o consumidor, porquanto o que se
criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar do dinheiro relativo ao imposto, devidamente
recebido de terceiro, quer porque descontou do substituído tributário quer porque cobrou do
consumidor, não repassando aos cofres públicos.”
Ainda segundo o voto, o fato de outros custos também serem repassados ao consumidor não impede
a caracterização do crime, pois o ICMS é imposto sobre o consumo, isto é, incide apenas se o produto
for efetivamente comercializado, ao contrário de outros custos fixos (outros tributos, aluguel,
funcionários, estrutura de funcionamento, equipamentos, etc.) pagos pelo comerciante
independentemente da comercialização da mercadoria.
A decisão também se fundamentou em aresto do Supremo Tribunal Federal segundo o qual o ICMS
não pode ser incluído na base de cálculo da COFINS e do PIS/PASEP porque não se trata de receita,
mas de simples ingresso de caixa de valores não pertencentes à empresa. Trata-se do recurso
extraordinário 574.706/PR (j. 15/03/2017), noticiado no Informativo 857 nos seguintes termos:
“Prevaleceu o voto da ministra Cármen Lúcia (Presidente e relatora). Consignou que a inclusão do
ICMS na base de cálculo das referidas contribuições sociais leva ao inaceitável entendimento de que
os sujeitos passivos desses tributos faturariam ICMS, o que não ocorre. Assim, enquanto o montante
de ICMS circula por suas contabilidades, os sujeitos passivos das contribuições apenas obtêm
ingresso de caixa de valores que não lhes pertencem. Em outras palavras, o montante de ICMS,
nessas situações, não se incorpora ao patrimônio dos sujeitos passivos das contribuições, até porque
tais valores são destinados aos cofres públicos dos Estados-Membros ou do Distrito Federal.
Ponderou, igualmente, que a parcela correspondente ao ICMS pago não tem natureza de
faturamento (nem mesmo de receita), mas de simples ingresso de caixa. Por essa razão, não pode
compor a base de cálculo da contribuição para o PIS ou da COFINS.”
Ressalte-se que, naquele julgamento, o ministro Rogério Schietti Cruz destacou quatro aspectos
essenciais para a caracterização do delito:
1º) O fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto
devido não exerce influência na prática do delito, que, a exemplo da apropriação indébita comum,
não pressupõe clandestinidade, mas, ao contrário, tem como elemento estrutural a posse lícita e
legítima da coisa apropriada;
2º) Ao estabelecer que o crime consiste em “deixar de recolher […] na qualidade de sujeito passivo
da obrigação”, a lei não distingue o sujeito passivo direto do indireto da obrigação tributária, razão
pela qual o sujeito ativo do crime pode ser tanto o contribuinte (sujeito passivo direto da obrigação
tributária) quanto o responsável tributário (sujeito passivo indireto da obrigação tributária);
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3º) O tipo pressupõe apenas o dolo de não recolher o valor do tributo descontado ou cobrado,
dispensando-se motivação especial, como o intuito de fraudar o fisco;
4º) Considerando que o tipo contém a expressão “valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado”, conclui-se que o sujeito ativo do crime é restrito, isto é, nem todos os
sujeitos passivos de obrigação tributária que deixam de recolher tributo ou contribuição social devem
responder pelo crime, mas somente os que descontam ou cobram o tributo nas circunstâncias
tratadas no julgamento. Exclui-se, portanto, a punição do mero inadimplemento.
Este mesmo caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do recurso em habeas
corpus 163.334/RS, no qual o agente pretendia reverter a decisão do STJ. O tribunal, no entanto, em
decisão proferida há alguns dias, manteve o entendimento de que a conduta tipifica o crime
tributário e firmou a seguinte tese:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS
cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº
8.137/1990”.
3- Tema: Suspensão de CNH de motorista profissional condenado por homicídio culposo por
acidente de trânsito é constitucional
DECISÃO DO STF- Publicado em notícias do STF no dia 12/02/2020
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão de quarta-feira (12), julgou
constitucional a imposição da pena de suspensão da habilitação a motoristas profissionais que
tenham sido condenados por homicídio culposo (sem intenção de matar) em razão de acidente de
trânsito. A questão foi analisada no Recurso Extraordinário (RE) 607107, com repercussão geral
reconhecida, e a solução será aplicada a pelo menos 75 processos com o mesmo tema sobrestados
em outras instâncias.
No caso em análise, um motorista de ônibus abalroou uma motocicleta e provocou a morte do
condutor. Em primeira instância, ele foi condenado à pena de 2 anos e 8 meses de detenção,
convertida em pena restrição de direitos e multa. Também foi aplicada a pena de suspensão da
habilitação por período igual ao da condenação.
Ao julgar apelação criminal, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) entendeu que a penalidade
de suspensão do direito de dirigir inviabiliza o direito ao trabalho e a excluiu da condenação. No
recurso ao STF, o Ministério Público de Minas Gerais sustentava que, se a Constituição Federal
permite ao legislador privar o indivíduo de sua liberdade e, consequentemente, do exercício de sua
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atividade laboral em razão do cometimento de crime, pode também permitir a suspensão da
habilitação para dirigir como medida educativa.
Restrição razoável
O relator do recurso, ministro Roberto Barroso, afirmou que o caso em exame, no qual foi retirado o
direito de dirigir de uma pessoa considerada perigosa no trânsito, é típico de individualização da
pena. No seu entendimento, o direito ao trabalho e ao exercício de profissão não são absolutos e
podem ser restringidos por lei, desde que essa restrição seja razoável. Segundo o relator, a
Constituição Federal autoriza a imposição de sentenças determinando suspensão ou interdição de
direitos.
Ele lembrou que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) prevê penas de detenção e
suspensão da habilitação para o motorista que comete homicídio culposo na condução de veículo,
com cláusula de aumento se estiver conduzindo veículo de passageiros. Salientou também a
necessidade de rigor na punição desses delitos, pois, embora tenha ocorrido uma redução nos
últimos anos, o Brasil é um dos países com o maior número de mortes por acidentes de trânsito no
mundo.
Para Barroso, a pena imposta em primeira instância foi razoável e proporcional, pois a suspensão da
habilitação, mesmo que impeça a pessoa de trabalhar como motorista, possibilita que ela exerça
outra profissão, o que não ocorreria caso a pena não tivesse sido convertida em restritiva de direitos.
“Quando se priva fisicamente a liberdade de alguém, essa pessoa não pode dirigir, não pode
trabalhar, não pode sair. Portanto, aqui estamos falando de algo menor em relação à pena privativa
de liberdade”, disse.
Por unanimidade, foi dado provimento ao RE 607107 para restabelecer a condenação de primeira
instância. A tese de repercussão geral fixada (Tema 486) foi a seguinte: “É constitucional a imposição
da pena de suspensão de habilitação para dirigir veículo automotor ao motorista profissional
condenado por homicídio culposo no trânsito”.
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
O art. 302 do Código de Trânsito comina ao autor de homicídio culposo na direção de veículo
automotor as penas de detenção (ou reclusão, na forma qualificada do § 3º) e suspensão ou proibição
de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Há quem argumente que a imposição de limitação ao direito de dirigir não pode atingir o motorista
profissional que, por imprudência, negligência ou imperícia, tenha matado alguém na direção de seu
veículo. Isto porque, tratando-se do meio pelo qual este indivíduo exerce sua profissão e sustenta a
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si e à sua família, impedi-lo de dirigir equivale a provocar privações que exorbitam a finalidade da
pena.
Mas a orientação majoritária se firmou no sentido de que a limitação não só é possível como é crucial
para retirar de circulação motoristas que, exatamente pela profissão, deveriam adotar condutas com
nível de prudência mais elevado do que a média. É o que há muito decide o STJ:
“2. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, a imposição da pena de suspensão do direito
de dirigir é exigência legal, conforme previsto no art. 302 da Lei 9.503⁄97. O fato de o paciente
ser motorista profissional de caminhão não conduz à substituição dessa pena restritiva de direito por
outra que lhe seja preferível. (HC 66.559⁄SP, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves. DJU
de 07⁄05⁄2007)” (AgRg no AREsp 1.044.553/MS, Quinta Turma, j. 23/5/2017).
“De acordo com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, os motoristas profissionais –
mais do que qualquer outra categoria de pessoas – revelam maior reprovabilidade ao praticarem
delito de trânsito, merecendo, pois, a reprimenda de suspensão do direito de dirigir, expressamente
prevista no art. 302 do CTB, de aplicação cumulativa com a pena privativa de liberdade. Dada a
especialização, deles é de se esperar maior acuidade no trânsito” (AgRg no REsp 1.771.437/CE, Sexta
Turma, j. 11/6/2019).
Em julgamento realizado no dia 12/02/2020, em sede de repercussão geral, o plenário do Supremo
Tribunal Federal chegou à mesma conclusão, por unanimidade.
Um motorista de ônibus havia sido condenado porque, ao abalroar uma motocicleta, provocou a
morte do condutor. No julgamento da apelação, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais afastou a
suspensão da habilitação sob o fundamento de que a penalidade inviabilizava o direito ao trabalho.
O Ministério Público recorreu então ao STF sustentando que se a Constituição Federal admite a
privação da liberdade, que necessariamente impede o condenado de exercer sua profissão, não há
razão plausível para julgar inconstitucional a suspensão da habilitação imposta em conjunto com a
privação da liberdade ou com a restrição de direitos que a substitua.
O relator do recurso extraordinário, min. Roberto Barroso, afirmou que o exercício da profissão não
é um direito absoluto, e a Constituição Federal admite restrições, desde que concretamente
razoáveis e adequadas. Para o ministro – seguido pelos demais – a suspensão da habilitação do
condenado por conduta imprudente no trânsito nada mais é do que um elemento de individualização
da pena, adequado à necessidade de punições severas diante do número alarmante de vítimas de
crimes dessa natureza.
Em razão de ter sido reconhecida a repercussão geral, firmou-se a seguinte tese, que será aplicada a
outros setenta e cinco processos sobrestados em instâncias inferiores:
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“É constitucional a imposição da pena de suspensão de habilitação para dirigir veículo automotor ao
motorista profissional condenado por homicídio culposo no trânsito” (Tema 486).