autorizaÇÃo de produÇÃo - espm

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Competência comunicativa e empresa de si: uma análise do ethos de jornalistas profissionais no Facebook. 1 Naiana Rodrigues da Silva 2 Universidade de São Paulo Resumo Neste artigo é proposto o conceito de competência comunicativa como mais uma competência a ser exercida pelo jornalista na sociedade em rede. Essa competência deriva das novas subjetividades performadas, principalmente, nas redes sociais (SIBILIA, 2015), e articula-se com a racionalidade neoliberal que prega a empresa de si, condução da vida aos moldes da gestão empresarial (LAVAL E DARDOT, 2013). Para perceber o exercício da competência comunicativa são analisadas postagens de dois jornalistas. A análise revelou a construção de um ethos (MAINGUENEAU, 2006) de competência e sucesso por esses sujeitos, o que denota a vinculação discursiva deles à racionalidade neoliberal e à subjetividade do homem-empresa. Palavras-chave: Competência comunicativa; empresa de si; performance; ethos; redes sociais Introdução A mediação da experiência cotidiana por meio das mídias assume novos contornos com a entrada em cena de tecnologias que proporcionam conexões instantâneas e ubíquas entre os sujeitos. A aceleração da emissão de informações e a consequente complexidade do cenário comunicacional motivam autores como Manuel Castells (1999) a considerar que vivemos uma nova revolução no âmbito tecnológico-informacional comparável em termos de significação à sistematização da imprensa por Gutemberg, no século XV. A sociedade contemporânea, extremamente midiatizada e tecnologizada, organiza-se agora em fluxos de comunicação em rede. Todas as esferas da vida são assim influenciadas pela nova ordem social que se instaura, do trabalho à política e economia, chegando aos relacionamentos interpessoais. Na sociedade em rede (CASTELLS, 1999), a comunicação tem um papel central nas vidas dos sujeitos, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, cultura empreendedora e trabalho: consumo, narrativas e discursos, do 7º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2018. 2 Doutoranda no Programa de Pós-graduação da USP sob orientação de Roseli Fígaro; professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC); integrante do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA/USP e do grupo de pesquisa PraxisJor, do curso de Jornalismo da UFC. [email protected]

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Page 1: AUTORIZAÇÃO DE PRODUÇÃO - ESPM

Competência comunicativa e empresa de si: uma análise do ethos de jornalistas profissionais no

Facebook.1

Naiana Rodrigues da Silva2

Universidade de São Paulo

Resumo

Neste artigo é proposto o conceito de competência comunicativa como mais uma competência a ser exercida pelo jornalista na sociedade em rede. Essa competência deriva das novas subjetividades performadas,

principalmente, nas redes sociais (SIBILIA, 2015), e articula-se com a racionalidade neoliberal que prega a

empresa de si, condução da vida aos moldes da gestão empresarial (LAVAL E DARDOT, 2013). Para perceber o exercício da competência comunicativa são analisadas postagens de dois jornalistas. A análise revelou a

construção de um ethos (MAINGUENEAU, 2006) de competência e sucesso por esses sujeitos, o que denota a

vinculação discursiva deles à racionalidade neoliberal e à subjetividade do homem-empresa.

Palavras-chave: Competência comunicativa; empresa de si; performance; ethos; redes sociais

Introdução

A mediação da experiência cotidiana por meio das mídias assume novos contornos com a

entrada em cena de tecnologias que proporcionam conexões instantâneas e ubíquas entre os sujeitos.

A aceleração da emissão de informações e a consequente complexidade do cenário comunicacional

motivam autores como Manuel Castells (1999) a considerar que vivemos uma nova revolução no

âmbito tecnológico-informacional comparável em termos de significação à sistematização da imprensa

por Gutemberg, no século XV.

A sociedade contemporânea, extremamente midiatizada e tecnologizada, organiza-se agora em

fluxos de comunicação em rede. Todas as esferas da vida são assim influenciadas pela nova ordem

social que se instaura, do trabalho à política e economia, chegando aos relacionamentos interpessoais.

Na sociedade em rede (CASTELLS, 1999), a comunicação tem um papel central nas vidas dos sujeitos,

1Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, cultura empreendedora e trabalho: consumo, narrativas e

discursos, do 7º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2018. 2 Doutoranda no Programa de Pós-graduação da USP sob orientação de Roseli Fígaro; professora do curso de Jornalismo

da Universidade Federal do Ceará (UFC); integrante do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA/USP e

do grupo de pesquisa PraxisJor, do curso de Jornalismo da UFC. [email protected]

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que são vividas também em espaços extremamente simbólicos como as redes sociotécnicas (LATOUR,

2005), comercialmente representadas, por exemplo, por sites e aplicativos de redes sociais.

A presença dos sujeitos nas redes sociais digitais desencadeia uma verdadeira transformação

das subjetividades. Paula Sibilia (2015) defende que a maneira como nos relacionamos com nós

mesmos e com outros foi significativamente modificada na transição do século XX para o XXI graças

“ao modo performático de ser e estar no mundo” (SIBILIA, 2015, p. 356). A autora recupera o conceito

de performance, proveniente do campo artístico, para compreender as novas subjetividades, estas que

são móveis, fluidas e fragmentadas.

Em outras palavras, em uma atmosfera moral renovada como a que se vive atualmente nas

sociedades aglutinadas pelos mercados globais, dispositivos como as redes sociais Facebook,

Twitter, Instagram e Youtube, assim como a proliferação de câmeras e telas sempre disponíveis para se ver e se mostrar, estão a serviço dessas novas ambições. Servem para tornar visível a

própria performance – e, nesse gesto, performar e projetar um eu atraente – para um público

potencialmente infinito (SIBILIA, 2015, p. 357).

De acordo com o pensamento da autora, a existência dos sujeitos está atrelada à visibilidade de

suas performances, que são construídas para dar conta de diferentes esferas da vida, da filiação político-

ideológica ao desempenho profissional. Sibilia (2015) alerta ainda que a performance midiática dos

sujeitos não pode ser confundida com uma encenação mentirosa. “O que de fato ocorre nesses atos é a

invenção de um corpo e uma subjetividade reais” (SIBILIA, 2015, p. 359). Esse modo de construção

subjetiva vigente se espraia para a seara profissional, para o mundo do trabalho, sendo inclusive tomado

como medida de competência profissional. Seguindo o raciocínio de Sibilia (2015), pode-se concluir

que um profissional competente nos dias atuais não é aquele que apenas domina o saber-fazer de seu

campo de atuação, mas aquele com desenvoltura para mostrar/exibir/performar seu saber-fazer.

No campo profissional do Jornalismo, essa performance da competência exposta nas redes

sociais vem se tornando praticamente mandatória por conta tanto da natureza comunicacional do ofício

quanto pela hiperconcorrência desenhada não só entre as empresas de comunicação, mas entre os

próprios jornalistas (CHARRON E BONVILLE, 2016). É comum ver profissionais em seus perfis nas

redes sociais não só compartilhando as produções que realizam como também exibindo premiações

conquistadas, descrevendo a superação de dificuldades no cotidiano de trabalho ou mesmo mostrando

cenas de dedicação à profissão.

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Imagem 1: reprodução do perfil da jornalista da Rede Globo de Televisão, Sandra Annemberg, no Facebook

Imagem 2: reprodução do perfil da jornalista do canal de TV GNT, Lilian Pacce, no Facebook.

Nos exemplos destacados, pode-se perceber duas formas de performar a profissão. Uma que

pode ser considerada mais ordinária, pois é comum de ser encontrada nas redes sociais, o

compartilhamento do próprio trabalho; e outra não tão comum que é o reconhecimento público da

competência do trabalho com uma premiação. Além de serem maneiras de expor a subjetividade, como

observou Sibilia (2015), defende-se, nesse artigo, que publicações dessa natureza, em que jornalistas

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exibem seu saber-fazer podem ser consideradas como mais uma competência requerida do profissional

na contemporaneidade: a competência comunicativa.

A performance profissional nas redes sociais não deve ser olhada apenas como um gesto de

vaidade. Considerando-a como um demonstrativo de competência comunicativa, é possível percebê-la

como forma de adesão à racionalidade neoliberal que prega a empresa de si. Nas postagens de dois

jornalistas selecionadas para ilustrar essa discussão, será possível perceber como a performance

ensejada por eles, no Facebook, cria um ethos (MAINGUENAU, 2006) de competência e de sucesso

profissional.

Razão neoliberal e empresa de si

As ações e os discursos dos homens são influenciados pelos valores, lógicas e ideologias

correntes no seu tempo, portanto, a reflexão sobre o trabalho do jornalismo no presente requer um olhar

para a conjuntura que o cerca, notadamente marcada pelas transformações do capitalismo. Christian

Laval e Pierre Dardot (2013), em um esforço intelectual para dar conta dos meandros do sistema

econômico vigente e sua imbricação no cotidiano, descortinam a nova razão do mundo. Para eles, essa

razão é global e marcada na atualidade pela conquista do poder pelas forças neoliberais; pelo auge do

capitalismo financeiro mundializado; pela individualização das relações sociais e polarização extrema

entre ricos e pobres, além da suscetibilidade a novas patologias psíquicas por parte dos sujeitos sociais.

Os autores partem da tese de que o neoliberalismo é uma racionalidade. “La racionalidad

neoliberal tiene como característica principal la generalización de la competência como norma de

conducta y la empresa como modelo de subjetivación” (LAVAL E DARDOT, 2013). Os pesquisadores

valeram-se das ideias de Michel Foucault, em “Nascimento da biopolítica” (2010), para considerar o

neoliberalismo como uma racionalidade. Em Foucault (2010 apud LAVAL E DARDOT, 2013), a

racionalidade política é uma racionalidade governamental. Governo, no pensamento foucaultiano, não

é sinônimo de institucionalidade, mas do uso de técnicas e de procedimentos para dirigir/governar a

conduta dos homens. “Llamo gubernamentalidad – escribe entonces – ao encuentro entre las técnicas

de dominación ejercidas sobre los otros y las técnicas de sí” (FOUCAULT, 2010 apud LAVAL E

DARDOT, 2013).

O sujeito forjado por essa racionalidade neoliberal é o homem-empresa. Um indivíduo que

rege/governa sua própria vida como se estivesse gerenciando uma empresa. Portanto, ele precisa ser o

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mais eficaz possível, mostrar-se como completamente devoto ao trabalho, buscar a perfeição por meio

de aprendizado contínuo, aceitar a flexibilização imposta pelo mercado, ser seu próprio empregador e

inventor de si mesmo (LAVAL E DARDOT, 2013). Esse neosujeito é herdeiro do empreendedorismo

das Ciências Econômicas que, na contemporaneidade, não se restringe ao espaço financeiro,

econômico ou do trabalho, alastrando-se para diferentes esferas da vida social.

A imagem do empreendedor é de um combatente, de um competidor nato que luta para vencer

com vistas a ser o líder de algo. Antes, esse desenho estava restrito ao universo das empresas, mas as

novas teorias de gestão, com destaque para os postulados de Peter Drucker, foram responsáveis por

difundir o empreendedorismo como modo de comportamento social aplicável a diferentes situações

(LAVAL E DARDOT, 2013).

O eco dessas reflexões chega, inclusive, ao jornalismo, mais particularmente, aos novos

arranjos econômicos alternativos de trabalho (FÍGARO E NONATO, 2017), nos quais, conforme as

autoras, a noção de empreendedorismo, muitas vezes, é usada para mascarar a precarização do trabalho

jornalístico. Pachi, Barros e Moliane (2017, p. 3) constataram que a dupla empreendedorismo e

inovação vem sendo inserida no contexto jornalístico por meio de conceitos difusos e que, em sua

maioria, versam sobre “criação de novos negócios, visão de futuro, oportunidade e liberdade, tanto de

atuação como de vida”. De acordo com o trio de pesquisadores, a apropriação das definições

provenientes do campo econômico-administrativo produz a ideia de que o empreendedor é o sujeito

que faz algo significativo, enquanto o inovador é aquele que aprimora algo para torná-lo diferente.

O sujeito neoliberal ou o homem-empresa habita os espaços tradicionais e institucionalizados e

os novos lugares de ação e trabalho. É caracterizado, sobretudo, pelo comprometimento pleno com a

atividade de trabalho. “El sujeto unitário es, por lo tanto, el sujeto de la implicación total de sí”

(LAVAL E DARDOT, 2013). Para os autores, o discurso em torno do homem-empresa tem um aspecto

disciplinador, porém que se manifesta de forma diferente do poder de que tratou Foucault em “Vigiar

e Punir” (1987). A disciplina engendrada pelo discurso do homem-empresa não provem do Estado ou

de outros sujeitos. Ela parte do próprio indivíduo na adesão às práticas do governo de si como uma

empresa.

“Hablar de empresa de sí es traducir la idea que cada uno puede tener sobre su vida: conducirla,

gestionarla, dominarla em función de sus deseos y necesidades, elaborando estrategias adecuadas”

(AUBREY, 2000 apud LAVAL E DARDOT, 2013). Destituído do lugar de trabalhador e assumindo

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a feição de empresa, o sujeito neoliberal considera o trabalho um serviço, produto mercantil que ele

pode negociar. Esse novo sentido do trabalho ilustra bem a colocação de Ricardo Antunes (1999), de

que “o sentido do trabalho que estrutura o capital acaba sendo desestruturante para a humanidade, na

contrapartida, o trabalho quem tem sentido estruturante para a humanidade é potencialmente

desestruturante para o capital”. Os valores humanos e sociais do trabalho são substituídos pelos valores

empresariais, portanto, o homem-empresa potencializa seu capital humano por meio da competência e

da competitividade, palavras-chave tanto para o modo de produção e reprodução do capital quanto para

a subjetivação do homem e seus relacionamentos sociais.

Uma das consequências danosas com a instauração desse novo modo de agir e pensar é a

debilidade das identidades dos sujeitos com a gradativa substituição do seu referencial de vida e ação

que deixa de estar ancorado nas instituições sociais, como família, escola e estado, para se balizar na

empresa (LAVAL E DARDOT, 2016). A posição identitária de empresa se impõe em relação às outras

identidades sociais que esse indivíduo pós-moderno poderia ostentar (HALL, 2006) e isso favorece a

imbricação entre vida profissional e vida pessoal a tal ponto que a segunda depende da primeira para

existir.

Dependência essa que estigmatiza o sujeito neoliberal quando ele não obtém êxito empresarial.

Fracasso, vergonha e desvalorização são os ganhos daquele que não vence a concorrência e, portanto,

está fadado à humilhação social que pode chegar ao ponto de se transformar em patologia (LAVAL E

DARDOT, 2013).

Psicologicamente, a empresa de si aciona uma variedade de transtornos emocionais que se

manifestam quando o sujeito não atinge as metas, o rendimento, o nível de competência e ultrapassa a

concorrência da maneira que planejou para si mesmo. Perda de autonomia, crise de personalidade,

desmoralização, depressão generalizada, perda de ideais e perversões ordinárias são algumas situações

desencadeadas pelo “mal governo” de si. (LAVAL E DARDOT, 2013). Daí o esforço de muitos

jornalistas em performar um ethos de competência e sucesso nas redes sociais, maneira de manter o

equilíbrio emocional e de prestar contas consigo mesmo a respeito de seus ganhos.

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Jornalismo de comunicação e competência comunicativa

No jornalismo, particularmente, a performance profissional ensejada nas redes sociais atende

aos anseios de uma hiperconcorrência traçada entre os mercados com os quais o jornalismo se relaciona

que se dá não apenas em sentido macro, mas no universo micro entre os próprios profissionais.

O processo de produção e de distribuição da informação jornalística, tal como se conhece hoje,

leva os agentes (empresas jornalísticas e jornalistas) a concorrerem simultaneamente em vários

mercados: a) o mercado dos anunciantes, de onde provêm a maior parte da renda das empresas jornalísticas; b) o mercado dos consumidores, que deve ser atraídos já que a renda publicitária

depende disso; c) o mercado de fontes, junto às quais os jornalistas buscam os materiais

necessários à produção da informação; d) o mercado financeiro, no qual as empresas

jornalísticas obtêm o capital necessário para seu desenvolvimento e expansão; e finalmente e) o mercado profissional, no qual os jornalistas buscam obter o reconhecimento dos pares e,

eventualmente, prestígio e renome (CHARRON E BONVILLE, 2016, p. 341).

A busca por prestígio e renome, citada pelos autores, mobiliza, nas redes sociais, o exercício de

uma dada performance ou a construção de um ethos específico pelos profissionais. Raquel Recuero

(2009) lembra que os sites e aplicativos de redes sociais favorecem a emergência de tipos de capital

social que são de difícil identificação no espaço offline. A reputação é um dos valores que integra o

capital social dos sujeitos nas redes online. “A reputação, portanto, é aqui compreendida como a

percepção construída de alguém pelos demais atores e, portanto, implica três elementos: o “eu” e o

‘outro’ e a relação entre ambos. O conceito de reputação implica diretamente no fato de que há

informações sobre quem somos e o que pensamos, que auxiliam outros a construir, por sua vez, suas

impressões sobre nós” (RECUERO, 2009, p. 109).

Ostentar uma reputação, na era do jornalismo de informação (CHARRON E BONVILLE,

2016), vigente na maior parte do século XX, consistia no exercício da profissão respeitando-se os

valores que a norteavam, como ética, objetividade, veracidade, dentre outros. Na atualidade, com a

crescente instauração de um jornalismo de comunicação, os contornos que delimitam a reputação são

outros.

Em “Natureza e Transformação do Jornalismo”, Charron e Bonville (2016) constroem hipóteses

sobre a existência de quatro paradigmas jornalísticos que se alternam historicamente como resultado

de mudanças estruturais na economia ou do tipo de sociedade vigente. Cada paradigma abarcará

práticas e discursos jornalísticos específicos. Os paradigmas identificados pelos autores são:

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Jornalismo de transmissão (predominante no século XVIII), jornalismo de opinião (predominante no

século XIX), jornalismo de informação (predominante no século XX) e jornalismo de comunicação

(apresentado na virada para o século XXI).

O paradigma do jornalismo de comunicação “é a forma específica de jornalismo de uma

sociedade fortemente urbanizada, na qual o setor de consumo individual é a principal fonte de acúmulo

em prol do capital financeiro (sociedade pós-industrial ou sociedade do consumo)” (CHARRON E

BONVILLE, 2016, p. 143). A sociedade em que vigora esse paradigma é a mesma que tem como

protagonista o homem-empresa e na qual as subjetividades são construídas por meio de performances.

Uma sociedade que tem a concorrência e a competência como valores de vida.

Charron e Bonville (2016, p. 155) observam que os jornalistas buscam se diferenciar entre si

por meio do “material de atualidade” que produzem. O que será acrescentado ao pensamento dos

autores, por meio deste artigo, é que essa diferenciação entre os pares se dá também pela capacidade

de apresentar-se como competente em um espaço comunicacional, como é o caso das redes sociais na

internet. Optou-se nomear esse tipo de performance de competência comunicativa, pois o conteúdo

simbólico realizado pelos jornalistas não é conteúdo informativo, jornalístico, mas textos (no sentido

amplo do termo) que versam sobre seu desempenho profissional, que falam de si mesmos, o que na

Análise do Discurso coincide com a definição de ethos (CHARAUDEAU, 2006).

Josenildo Luiz Guerra (2008, p. 111) observa que o exercício do trabalho jornalístico requer o

domínio de três competências: cognitiva, de conduta e de produção.

As competências dizem respeito aos conhecimentos prévios necessários ao exercício da

atividade. Dão conta basicamente das necessidades relacionadas ao conhecimento dos fatos (competência cognitiva); aos procedimentos adotados tanto com os profissionais quanto com as

demais pessoas envolvidas na cobertura (competência de conduta), e à elaboração material do

produto a ser disponibilizado (competência de produção). Do ponto de vista prático, essas competências representam a capacidade requerida para que a produção jornalística se processe,

isto é, para que a informação inicial obtida seja transformada no produto final a ser consumido

pela audiência.

A essas competências elencadas por Guerra (2008) acrescenta-se a competência comunicativa,

que, de acordo com a discussão aqui travada sobre a empresa de si, não seria exclusiva da profissão de

jornalista, mas necessária a todos os homens-empresas. Em um sentido amplo, é a capacidade de os

sujeitos neoliberais construírem uma reputação, em espaços simbólicos, ancorada na exibição de sua

própria competência e, consequentemente, sucesso.

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Para o homem-empresa não basta ser competente se os demais não souberem. Da mesma forma

como as empresas publicizam seus atos e não apenas seus produtos, o homem-empresa precisa fazer o

mesmo, com o agravante de que a competência ali performada, exibida, é o próprio produto que ele

oferta ao mercado. A competência comunicativa pode, assim, ser vista como um ato de venda de si

mesmo, completamente adequado à condução da vida por meio da empresa de si. Em ambientes

comerciais, ela pode ser considerada equivalente ao marketing pessoal ou ainda à gestão de marca

pessoal (personal branding). Contudo, dada a fundamentação teórica aqui trazida, preferiu-se articular

a expressão competência comunicativa, em uma remissão direta ao campo da comunicação.

Neste artigo, será analisada uma das formas de expressão dessa competência comunicativa por

parte dos jornalistas, materializada em um ethos discursivo que visa a construção de uma reputação

profissional.

Ethos jornalístico

Representar a si mesmo, falar de si não é uma prática exclusiva da comunicação em rede. Na

contemporaneidade, essa ação se tornou mais visível publicamente graças aos novos espaços de

comunicação mobilizados pelas tecnologias. Mas desde a retórica clássica é admitido que todo discurso

comporta uma imagem de si, do próprio orador. Mesmo nas situações discursivas mais ordinárias, a

apresentação de si manifesta-se, seja de forma intencional ou não (AMOSSY, 2005). A imagem que o

enunciador ou locutor se atribui e a corporalidade que ele materializa compõem o ethos discursivo,

conceito herdado da retórica e apropriado pela Análise do Discurso e pela Pragmática (AMOSSY,

2005).

Como observa Ruth Amossy (2005, p. 11), o ethos faz parte da enunciação. “A construção

especular da imagem dos interlocutores aparece igualmente na obra de Michel Pêcheux, para quem A

e B, nas duas pontas da cadeia de comunicação, fazem uma imagem um do outro: o emissor A faz uma

imagem de si mesmo e de seu interlocutor B; reciprocamente, o receptor B faz uma imagem do emissor

A e de si mesmo”. A autora observa como o ethos é tratado para diferentes correntes e autores da

Análise do Discurso. Não há intenção aqui de recuperar essa ação, mas de destacar que o ethos é uma

figura conceitual inerente ao discurso independentemente da perspectiva pela qual esteja sendo

analisado.

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O ethos discursivo forma o que Patrick Charaudeau (2006, p. 73) chama de condição de

identidade de quem enuncia. Dominique Maingueneau (2006, p. 70) também relaciona o ethos à

identidade do enunciador: “A especificidade de um ethos remete, de fato, à figura de um ‘fiador’ que,

por meio de sua fala, se dá uma identidade que está de acordo com o mundo que ele supostamente faz

surgir”. Maingueneau (2006, p. 60) reforça que o ethos discursivo é um processo interativo no qual o

locutor quer causar impacto no locutário3 e promover a adesão dele ao discurso ali ensejado. O ethos é

portanto uma ferramenta no jogo de influência discursiva entre os parceiros de uma situação

comunicativa. Ele é a maneira que o locutor se legitima perante o público ao qual se destina. Dessa

forma, por mais que o ethos seja uma imagem de si, ele é uma conexão com o outro, e é construído a

partir de uma noção híbrida, envolvendo um movimento entre o social e o discursivo. O ethos, portanto,

não pode ser visualizado fora de uma situação comunicativa definida que, por sua vez, está atrelada a

um contexto sócio-histórico determinado.

A partir dessas noções de ethos, pode-se olhar para postagens de jornalistas no Facebook e

perceber qual a imagem de si que estes constroem com vistas a alavancar sua reputação social.

Exemplo 1

As duas postagens aqui reproduzidas foram publicadas por uma jornalista cearense experiente,

com cerca de duas décadas de trabalho na redação de uma grande empresa de comunicação, em seu

perfil pessoal no Facebook4. Na primeira imagem (de acordo com a ordem de leitura ocidental), a

3 Nos estudos de enunciação, Maingueneau (2006) usa o termo locutário como um equivalente a receptor, sujeito ao qual

se destina um dado discurso. 4Os perfis selecionados para a análise foram retirados da timeline da autora no Facebook. A identidade dos profissionais e

das pessoas com quem eles interagiram foram preservadas, apesar de serem dados públicos, com o intuito de evitar

constrangimentos ou outras implicações.

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jornalista mostra seu contentamento com a realização de uma série de reportagens. Aqui não nos

interessa sobre o que as reportagens versam, mas sim a postura de felicidade da jornalista com o

resultado do trabalho, quando ela classifica o mesmo como um “antigo sonho realizado”. Já na segunda

postagem, ela revela seu espaço de trabalho e as hastags denunciam tratar-se de um plantão de

domingo. Apesar de ela não fazer menção a uma suposta felicidade por trabalhar em pleno fim de

semana, o uso do diminutivo “cantinho” expressa um modo carinhoso de tratamento para com o

trabalho. As duas postagens reunidas passam a ideia de contentamento com a profissão, elas mostram

a afeição dessa jornalista pelas ações e local de trabalho.

Exemplo 2

O exemplo 2 traz uma postagem e dois comentários publicados na própria postagem. Elas dizem

respeito à mesma jornalista mencionada no exemplo 1. Aqui tem-se uma publicação em que a

profissional afirma estar feliz por ter sido citada no ranking de jornalistas mais premiados do Brasil.

Em seguida, tem-se uma breve conversa travada entre ela e um amigo. A afetividade está mais uma

vez expressa, assim como no exemplo 1. É interessante que o comentário elogioso do amigo reforça

os argumentos que compõem a reputação da jornalista. O comedimento que ela adotou em sua fala, ao

não verbalizar suas qualidades, foi o mote para que outro viesse e expusesse as razões do mérito.

Nesse momento, fica claro o caráter dialógico do ethos, elaborado para impressionar, impactar

o público ao qual se destina. O impacto da postagem da jornalista foi tal que mobilizou o comentário

de um amigo. Essa resposta é também exemplar da construção de uma reputação pela jornalista, pois,

como afirmou Recuero (2009), a reputação é a percepção de um ator pelos demais. No caso aqui

analisado, o comentário deixado na página da profissional confirma que o público reconhece sua

reputação e a reforça. O discurso de competência da jornalista, portanto, tem o reforço de dois fiadores:

a instituição que compôs o ranking e a selecionou como uma das mais premiadas do Brasil e o amigo

que teceu o comentário elogioso.

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Ao olhar em conjunto para as três postagens aqui selecionadas é possível depreender um ethos

discursivo de competência – explícito no exemplo 2 – e de afeição, carinho e felicidade com a profissão.

A imagem construída pela jornalista é, portanto, de uma profissional que se sente feliz em atuar como

jornalista e, por conta disso, é competente, o que é um indicador de sucesso profissional, afinal, como

observam Laval e Dardot (2013), o gozo, a satisfação do sujeito neoliberal está diretamente atrelada

ao seu rendimento máximo. “El empresario de si mismo es um ser hecho para ‘triunfar’, para ‘ganar’”.

Apresentar-se como jornalista competente e feliz é mostrar-se um vencedor. Nesse horizonte

discursivo, os profissionais insatisfeitos serão relegados ao lugar da incompetência e do fracasso.

A construção de um ethos positivo e a confirmação de sua reputação por terceiros mostram que

a jornalista, de forma consciente ou não, exercita com maestria a competência comunicativa, pois,

como observa Sibilia (2015, p. 354), a felicidade desponta como um elemento mandatório nas

performances projetadas nas redes sociais. “Parece estar crescendo, na peculiar atmosfera cultural da

sociedade contemporânea, essa sorte de exigência na produção de um gozo performático e inesgotável

como um horizonte de realização universal”.

Exemplo 3

O exemplo 3 reúne duas postagens de um jornalista com cerca de uma década de atuação

profissional e que trabalha tanto para um veículo de comunicação tradicional quanto mantém um blog

independente em que se dedica à cobertura esportiva. Na primeira postagem, o jornalista exibe um

certificado de menção honrosa concedido pela participação em um concurso jornalístico internacional.

A referida premiação foi dada a uma matéria veiculada pelo blog. Já na segunda postagem, ele celebra

sua posição no ranking de jornalistas mais premiados, assim como o fez a jornalista cujas postagens

foram analisadas nos exemplos 1 e 2.

Quando o jornalista enuncia “esse vai para um quadro”, na primeira postagem, ele afirma estar

orgulhoso pelo reconhecimento de seu trabalho, afinal, o ato de emoldurar remete a obras artísticas e

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imagens que, por conta de sua beleza, devem ser apreciadas e, para tal, precisam ficar expostas em um

ambiente. Nesse caso, a possível colocação de uma moldura em torno do certificado refere-se não só à

exibição do documento em si, mas ao trabalho jornalístico mencionado pelo certificado, digno de

admiração assim como o jornalista que o realizou.

Na postagem seguinte, pode-se destacar na análise o emoticon que sorri e chora ao mesmo

tempo, usado como indicativo de emoção e alegria pelo jornalista por este figurar em um ranking de

premiações. Os emoticons são símbolos de comunicação usados para expressar emoções tanto positivas

quanto negativas, o uso deles é comum nas redes sociais o que denota o letramento do jornalista, ou

seja, o domínio dos códigos comunicativos correntes na escrita na rede social. Domínio esse importante

para o exercício da competência comunicativa.

Pode-se concluir que o ethos construído pelo jornalista é também de competência, comprovado

pelas instituições que reconheceram seu trabalho. Elas funcionam assim como um fiador social, tomado

aqui como um sujeito, uma entidade fora do campo do jornalismo, que reconhece a legitimidade do

trabalho profissional, atestando, certificando sua competência. Aliada à imagem de competência, tem-

se ainda a de satisfação. Apesar de a ênfase na satisfação não ser tão forte no exemplo 3 como nos

anteriores, mesmo assim, ela está presente. O orgulho e a alegria representados nas postagens denotam

o gozo do profissional em ser jornalista. E, conforme a racionalidade neoliberal que orienta a vida do

homem-empresa, só tem direito ao gozo, o sujeito que atinge seu rendimento máximo, feito esse

alcançado apenas pelos vencedores.

O exemplo 3, assim como os dois anteriores, nos mostra o domínio da competência

comunicativa pelo jornalista que, ao enunciar seus feitos vencedores, constrói sua reputação junto ao

mercado de trabalho, por meio da ancoragem discursiva no ethos de competência e sucesso.

Considerações finais

A identificação do ethos de competência e sucesso nas postagens de jornalistas em uma rede

social que não se destina exclusivamente ao compartilhamento de ações de trabalho, a exemplo de

outras existentes com essa finalidade, mostra como a lógica neoliberal invade as subjetividades. Usar

esse espaço simbólico para a exaltação da competência profissional, e não para a construção de laços

sociais por outros amálgamas, é reconhecer que a empresa de si, de fato, é totalitária e se sobrepõe a

outras facetas e identidades possíveis ao sujeito neoliberal.

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Além disso, o ethos performado por esses profissionais revelou a operacionalização da

competência comunicativa dos jornalistas. Esse conceito, aqui apresentado, pode ser aprofundado em

outras discussões de forma a aproximá-lo das condições que marcam a emergência do paradigma do

jornalismo de comunicação. A ideia não é apenas sistematizar mais um conceito acadêmico, mas

propiciar ao jornalista perceber o quão servil à racionalidade neoliberal ele pode estar sendo e, assim,

interpelá-lo a subverter essa ordem e buscar um sentido mais humano e emancipatório para o trabalho.

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