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MINAS FAZ CIÊNCIADiretora de redação: Vanessa Fagundes Editor-chefe: Maurício Guilherme Silva Jr.Redação: Alessandra Ribeiro, Breno Ribeiro, Lorena Tárcia, Luana Cruz, Luiza Lages, Mariana Alencar, Maurício Guilherme Silva Jr.,Tuany Alves, Vanessa Fagundes, Verônica Soares.Editoração: Fatine OliveiraMontagem e impressão: GlobalPrint Editora Gráfica ltda.Tiragem: 25.000 exemplaresCapa: Fatine Oliveira

Redação - Av. José Cândido da Silveira, 1500, Bairro Horto - CEP 31.035-536Belo Horizonte - MG - BrasilTelefone: +55 (31) 3280-2105Fax: +55 (31) 3227-3864E-mail: [email protected]

Site: www.minasfazciencia.com.brInfantil: www.minasfazciencia.com.br/infantil Facebook: www.facebook.com/minasfazcienciaTwitter: @minasfazcienciaInstagram: @minasfazciencia

GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAISGovernador: Romeu Zema

SECRETARIA DE ESTADO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Secretário: Manoel Vitor de Mendonça Filho

Fundação de Amparo à Pesquisado Estado de Minas Gerais

Presidente: Evaldo Ferreira VilelaDiretor de Ciência, Tecnologia e Inovação: Paulo Sérgio Lacerda BeirãoDiretor de Planejamento, Gestão e Finanças: Thiago Bernardo Borges

Conselho CuradorPresidente: João dos Reis Canela Membros: Eva Burger, Luiz Roberto Guimarães Guilherme, Marcone Jamilson Freitas Souza, Michele Abreu Arroyo, Nilda de Fátima Ferreira Soares, Onofre Alves Batista Júnior, Sandra Regina Goulart Almeida, Valentino Rizziioli, Victor Lobato Garizo Becho

Para receber gratuitamente a revista MINAS FAZ CIÊNCIA, envie seus dados (nome, profissão, instituição/empresa, endereço completo, telefone, e e-mail) para o e-mail: [email protected] ou para o endereço: FAPEMIG / Revista MINAS FAZ CIÊNCIA - Av. José Cândido da Silveira, 1500, Bairro Horto - Belo Horizonte/MG - Brasil - CEP 31.035-536

EXPEDIENTE

REDES SOCIAIS

A revista MINAS FAZ CIÊNCIA completa 20 anos...

Falamos de ciência o tempo todo. As ciências estão presentes nas salas de aula, nos laboratórios e nas novas tecnologias, mas também na lingua-gem e no nosso olhar sobre o mundo. Falar de ciência é falar de cultura.

Gosto de pensar na ciência como um caminho para conduzir a curiosida-de humana, desde uma pequena experiência escolar até a descoberta de novos cálculos que permitem registrar um buraco negro no espaço.

Tão importante quanto a ciência é a sua divulgação. Graças a ela, pode-mos conhecer e entender o que os cientistas, de todas as outras áreas, estão fazendo para ajudar a sociedade.

Divulgação científica é oportunidade de conexão. Uma forma de unir cien-tistas, divulgadores e público pela recriação de discursos. Quando este elo se estabelece com afeto, a capacidade de compreensão e produção do conhecimento é potencializada.

Divulgar ciência é um exercício de cidadania e compromisso social. MI-NAS FAZ CIÊNCIA assume esta missão de maneira competente, com a exploração de novas linguagens e plataformas, em exercício permanente de experimentação.

MINAS FAZ CIÊNCIA busca propor, a seus públicos, experiências, diálogos e reflexões em torno da construção de saberes. Outro grande desafio desta ca-leidoscópica revista, elaborada, com muito carinho, é ampliar o debate acerca dos parâmetros, das inquirições e das multipotencialidades da ciência.

Quando entrei na faculdade de jornalismo, escrever sobre ciência não era algo que estava nos meus planos. Mas a vida colocou a divulgação científica em meu caminho, e, nesta mesma estrada, estava a MINAS FAZ CIÊNCIA. Ainda bem!

Desde então, direta ou indiretamente, a ciência fez parte da minha vida de leitora e de jornalista em formação, de professora de comunicação e de pesquisadora em divulgação científica. É um privilégio trabalhar com o que a gente gosta, escrever sobre o que a gente ama e entrevistar quem a gente admira.

Talvez este sentimento de orgulho, que contagia toda a equipe, esteja por trás de sua qualidade, de sua relevância. Cada vez que a revista chega da gráfica, a sensação é parecida com a de ter um filho nas mãos. Eis o meu registro, para a eternidade. Vida longa à MINAS FAZ CIÊNCIA!

Muito obrigado a vocês, leitores!

Alessandra Ribeiro, Breno Ribeiro, Fatine Oliveira, Lorena Tárcia, Luana Cruz, Luiza Lages, Maurício Guilherme Silva Jr.,

Tuany Alves, Vanessa Fagundes, Verônica Soares

(Esta Carta ao Leitor foi escrita a partir dos depoimentos da equipe responsável pela MINAS FAZ CIÊNCIA em celebração ao aniversário da revista. Veja os textos completos em nosso Instagram: @minasfazciencia)

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4 MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019

ÍNDICE

SAÚDE MENTALTese de doutorado investiga consequências de desastres naturais ao desenvolvimento de crianças e jovens

51

HIPERLINKNewsletter do projeto “Minas Faz Ciência”, curiosidades científicas dos leitores e recursos educacionais online

55

DEMOGRAFIARelatório da ONU mostra magnitude dos desafios para que, ainda hoje, mulheres tenham autonomia sobre a própria fecundidade

47

MEDICINADissertação de mestrado investiga dilemas da tarefa de comunicar a morte em hospitais de emergência

39

FÍSICAHá um século, astrônomos estrangeiros desembarcavam em Sobral (CE) para comprovar a Teoria Geral da Relatividade

42

CONTEMPORÂNEASPlataforma Lattes completa 20 anos de existência e implementa plano de modernização

56

ALIMENTAÇÃOBiofortificação alimentar permite melhoria nutricional das culturas com adição de elementos como iodo, selênio, ferro ou zinco

ENTREVISTA Professor da UFMG, Elcio Loureiro Cornelsen analisa fértil relação entre literatura e futebol

06

10 MEMÓRIAEstudo busca compreender laços de afetividade de população migrante com o quintal das residências

FARMÁCIANanotecnologia é empregada em tratamento alternativo e mais eficaz contra cravos e espinhas

13

26

20 MATEMÁTICA E COMPUTAÇÃOFerramenta auxilia investidores a prever movimentos financeiros da bolsa de valores

ESPECIALHistórias, princípios e desafios da revista MINAS FAZ CIÊNCIA, que, em 2019, completa duas décadas de divulgação dos saberes

23

17 ENGENHARIANanofibras são usadas em embalagens inteligentes, capazes de ampliar durabilidade de produtos alimentícios

35 HISTÓRIAPesquisa analisa efeitos do tabagismo no Brasil em três dimensões temporais: passado, presente e futuro

44 EDUCAÇÃOPrograma Outlab reúne laboratórios da UFMG engajados em auxiliar métodos pedagógicos de escolas mineiras

32 ECONOMIACusto de exportação do Brasil a 178 países é tema de pesquisa da Universidade Federal de Viçosa

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MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2017 5

CIÊNCIA ABERTA

você e sua família

Que memóriasdo interior

incorporaram à vidana cidade?

A pergunta acima baseou-se em reportagem da jornalista Tuany Alves, publicada nesta edição (páginas 10 a 13), sobre pesquisa que investiga a memória das pessoas em relação aos quintais de suas casas

“Fazer o sinal da cruz quando passamos por qualquer igreja, do tamanho que for. Sen-tar no meio fio, na rua. Um dia, eu e meus amigos jogamos badminton no meio de um cruzamento, no bairro Floresta. Descalços. Parávamos o jogo a todo o momento para os carros passarem. Foi como viajar ao meu passado, nas ruas de pedra da minha casa. Não dá para fazer isso todo dia, já somos ‘adultos’ e ‘cheios das responsabilidades’, mas... foi uma tarde de domingo muito bo-nita. Três crianças atrapalhando o trânsito.” Rafael Soal Via Facebook

“Sobre o quintal de casa, eu costumava en-terrar alguns brinquedos, para desenterrá--los no ‘futuro’. O que não aconteceu, pois não tenho mais acesso à casa onde morei. Então, permanecerão lá para sempre, ou até que uma escavação, ou obra, algo assim, tire-os de lá. Enterrei carrinhos, coleção de tazos etc.” Cassio J. TelesVia Facebook

“Tomar a ‘bença’ à minha mãe, a meus tios e avós, sempre que acordo, antes de dormir, antes de sair e quando os vejo pela primeira vez no dia.”Esdras Moreira Via Facebook

“Não era no interior, mas tinha quintal, e a horta do meu avô: couve, alface, cebolinha, jiló pros passarinhos, melancia, mamão (pena que só dava mamão macho, incomível).”Leo Cunha

Via Facebook

“Fazer pão e sentar na varanda, apreciando a vista.”Lorraine Candido Via Facebook

“Nooooo! Fazer doce com as mangas ver-des recolhidas da área externa do Cedecom [Centro de Comunicação da UFMG], fazer li-cor e bolo de jabuticaba, fazer doce de goiaba trazida de fazendas do interior, e considerar o Mercado Central o meu quintal.”Rosaly Senra

Via Facebook

“Fazemos a nossa comida usando ingre-dientes modos de fazer tradicional, o que é uma forma de preservar nossa cultura do interior.” patypibs

Via Instagram

“Cafezinho com broa, à tarde.”dantas_renata_pires

Via Instagram

MINAS FAZ CIÊNCIA tem por finalidade divulgar a produção científica e tecnológica do Estado para a sociedade. A reprodução de seu conteúdo é permitida, desde que citada a fonte.

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6 MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019

ENTREVISTA

Paixão nacional, o futebol não se res-tringe às quatro linhas ou ao universo das negociações milionárias. Também como narrativa, o esporte das multidões bate um bolão! Para além das inúmeras obras de ficção dedicadas a retratar personagens e episódios ligados ao fascinante universo do “ludopédio”, há que se destacar a rele-vância, para os estudos literários, de inú-meros escritos (biográficos e autobiográ-ficos) em torno de jogadores brasileiros.

Que o diga o ofício do professor Elcio Loureiro Cornelsen, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, há anos, dedica-se, dentre outros tantos projetos e linhas de pesquisa, à investigação das relações entre literatura e futebol. Doutor em Estudos Germanísticos, pela Freie Universität Berlin, na Alemanha, com pós-doutorados em Estudos Organiza-cionais (FGV, 2005), Teoria Literária (Uni-camp, 2010) e História Comparada (UFRJ, 2018), ele coordena, na UFMG, o Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Ar-tes. Integra, ainda, o Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (Negue).

Nesta entrevista a MINAS FAZ CI-ÊNCIA, Cornelsen aborda nuances de

Gol de letra!Professor da UFMG, Elcio Loureiro Cornelsen analisa

potencialidades e desafios dos estudos literários em torno de personagens e narrativas do futebol

Maurício Guilherme Silva Jr.

seu mais recente projeto de pesquisa – “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros” –, analisa percepções tradicionais sobre o esporte e fala das muitas possibilidades de estudo acerca do tema.

O que faz um pesquisador da área de li-teratura comparada, com ênfase em língua alemã, se enveredar pelo estudo das narra-tivas sobre o futebol?

O interesse pelo futebol remete a minha infância em São Paulo. Meu pai jo-gava futebol e sagrou-se campeão paulista amador em 1966. Cresci num ambiente de sedes de futebol amador. Porém, levaram décadas até que eu começasse a cogitar a possibilidade de adotar o esporte em geral – e o futebol, em especial, como objetos de estudo em nível acadêmico.

Na pesquisa brasileira, como se dá a rela-ção entre tais áreas?

Na área de Letras, mesmo nos dias atuais, ainda há certa resistência ao tema como objeto de estudo. Provavelmente, tal quadro ainda guarda resquícios de outros

tempos, em que o futebol era considerado “ópio do povo”, algo que não seria digno de atenção e que seria usado para “aliena-ção das massas”. Embora não seja linha de pesquisa formalmente reconhecida pela academia, a relação entre literatura e futebol representa eixo temático com grande potencial de estudo. Há certos lugares comuns que, todavia, têm fundo de verdade, como a célebre frase de José Lins do Rego: “O conhecimento do Brasil passa pelo futebol”. É inegável que, por seu significado para a cultura brasileira, o esporte figure como âmbito em que a própria sociedade se manifesta. Isso se reflete, também, na literatura, no modo como, cada vez mais, o futebol tem sido representado em verso e prosa.

Em que seara de estudos enquadram-se investigações como “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasi-leiros”, coordenada pelo senhor?

Após a fundação do Núcleo de Es-tudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (Fulia), na Faculdade de Letras da UFMG, em maio de 2010, passei a desenvolver pesquisas regulares sobre o assunto. O

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8 MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019

primeiro deles versava sobre “Literatura, música e futebol: um estudo das letras de hinos de clubes de futebol brasileiros”. A partir de 2014, desenvolvi nova investi-gação: “A memória do trauma de 1950 – relatos, ficções, imagens”. Portanto, tem sido contínua a produtividade de pesquisa a contemplar o tema do futebol no âmbito da literatura e das artes. Além disso, desde 2011, ministro, semestralmente, discipli-nas de graduação, na Faculdade de Letras da UFMG, sobre a temática, como “Futebol em verso e prosa”; “Cinema e futebol no Brasil”; “Futebol e linguagem”; e “Futebol e Memória”. Esta última me motivou a elaborar o projeto “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasi-leiros”. Em termos gerais, busco debater a presença temática do futebol no âmbito da literatura, e, especificamente, em obras de cunho memorialístico: biografias e auto-biografias. A partir daí, é possível analisar o discurso memorialista, formado a partir de obras biográficas ou autobiográficas sobre ex-jogadores do futebol brasileiro, estudar as especificidades de possíveis narrativas que alimentam o “mito” da “pá-tria em chuteiras”, e, respectivamente, do “estilo brasileiro de jogar”. Por fim, é pos-sível contribuir para os estudos da relação entre “história e memória” no campo da Teoria Literária.

Como escolher narrativas biográficas em País com tamanha tradição de craques?

A partir do objeto de estudo – as escritas da vida de jogadores brasileiros –, definimos, como corpus de análise, uma série de obras de e sobre jogado-res brasileiros, segundo os critérios de “cronologia”, “relevância” e “contexto histórico”. Pretendeu-se, assim, abran-ger momentos do futebol brasileiro, em que determinado jogador revelou pro-tagonismo, como Charles Miller, Neco, Arthur Friedenreich, Heleno de Freitas, Garrincha, Nilton Santos, Pepe, Pelé, Tostão, Roberto Rivellino, Falcão, Zico, Sócrates, Ronaldo e Neymar. Contem-plamos, basicamente, cinco fases do fu-tebol brasileiro: os primórdios e a con-solidação (1895-1945), os tempos de tragédia e glória (1945-1962), de glória e

ufanismo (1963-1976), os tempos rumo à democracia (1977-1993) e de globalização (1994-2014).

Qual a visão dos brasileiros acerca da “per-sona do jogador de futebol”? São muitos os estereótipos e preconceitos sobre o ofício?

A questão é de difícil resposta. A pes-quisa desenvolvida, em si, não me permite conclusões a esse respeito. Apenas como impressão pessoal, parece-me que a visão dos brasileiros acerca da “persona do jo-gador de futebol” é igualmente cambiante e condicionada ao contexto. Nos primór-dios, por exemplo, havia certo preconceito quanto à prática do esporte. Tomemos a crônica “Hora de football”, de João do Rio, publicada em 1916: “[...] Fazer ‘sport’ há vinte anos ainda era para o Rio uma ex-travagância. As mães punham as mãos na cabeça quando um dos meninos arranja-va um haltere. Estava perdido. Rapaz sem ‘pince-nez’, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as academias – era homem estragado”. E não só a prática de esportes em geral, e do futebol, em espe-cial, era criticada, como, também, o caráter que a modalidade adquiria ao se populari-zar nas décadas de 1920 e 1930, além da aparente “impropriedade” frente a outras atividades. O jogador Mario de Castro, do Clube Atlético Mineiro, por exemplo, cos-tumava usar o pseudônimo de Orion para esconder da família que praticava futebol. Para o então estudante de Medicina, um dos grandes craques de seu clube, jogar bola seria quebrar as expectativas da famí-lia. Não foi por acaso que, aos 26 anos de idade, Castro tenha abandonado a carreira, para se dedicar à Medicina. Como apon-ta o jornalista Eduardo Murta, “[n]aquele período, muitos consideravam o esporte uma opção marginal”. Se a prática pode-ria constranger as famílias tradicionais à época em que Mário de Castro atuou, na segunda metade dos anos 1920, o mesmo parece não ter ocorrido com o craque re-belde do Botafogo de Futebol e Regatas, Heleno de Freitas, nos anos 1940, que se tornara bacharel em Direito, e, embora não tenha exercido a profissão, era chamado, por cronistas e pelos próprios jogadores, de “Dr. Heleno”. Décadas mais tarde, seria

Além de auxílio do CNPq, a pesqui-sa recebeu bolsa do Programa Pes-quisador Mineiro (PPM), concedida pela FAPEMIG.

Elaborada em 2016 e aprovada em 2017, a proposta contou com bolsa de produtividade do Conselho Nacio-nal de Pesquisa e Tecnologia (CNPq).

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MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019 9

a vez de Sócrates, o “Doutor”. É inegável que o preconceito socio-racial, que grassa no País, contribui para que a “persona do jogador de futebol” seja vista de maneira negativa. Por outro lado, como diria Roberto DaMatta, como “drama de justiça social”, o futebol também oferece, aos que se desta-cam na modalidade, uma mobilidade social, que, pela secular falta de vontade política de nossos governantes, lhes é sonegada, principalmente, pela falta de educação de qualidade a todos os cidadãos, e pelos me-canismos mantidos para garantir privilégios a determinados segmentos da sociedade brasileira. Para esses, que vislumbram a carreira de futebol como possibilidade de ascensão social, a visão da “persona do jogador de futebol” se alterou. Basta tomar-mos a obra O planeta Neymar, do jornalista Paulo Vinicius Coelho, de 2014, para ter-mos ideia de que, para muitos garotos, as referências não são mais os jogadores que atuam no Brasil. Seus ídolos se chamam Messi, Cristiano Ronaldo, Salah etc. Trata--se, pois, de quadro muito complexo.

Que narrativas lhes chamaram a atenção, durante as pesquisas, pelo inusitado?

Certamente, há histórias muito curio-sas sobre craques do futebol brasileiro. O jogador corintiano Neco, por exemplo, segundo relato de Antonio Roque Citadini, em Neco: o primeiro ídolo (2001), numa partida contra o Palestra Itália (futura So-ciedade Esportiva Palmeiras), teria se en-volvido em briga com o goleiro alviverde Primo, e lhe teria dado uma surra de cinta: “Ao chocar-se com o goleiro palestrino Primo, desfere-lhe alguns pontapés re-agindo à agressão do goleiro. Neco, em seguida, teria tirado a cinta, que prendia seu calção, dando a impressão aos es-pectadores de que agredia o goleiro com ela”. Independentemente de a agressão ter ocorrido, o curioso no episódio é o fato de que, àquela época, jogadores atuavam com cinta para prender o calção.

Sem dúvida, um dos jogadores bra-sileiros que mais rende em termos de “cau-sos” é Garrincha. Um dos episódios narra-dos por Ruy Castro na célebre biografia do “anjo de pernas tortas”, intitulada Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrin-

cha (1995), versa sobre a partida disputa-da entre as seleções do Brasil e da União Soviética na Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Garrincha estreara naquela partida, dera muito trabalho aos zagueiros russos e teria destruído o “futebol científico”: “A an-ticiência por excelência, o Anti-Sputnik, o anticérebro eletrônico ou qualquer cérebro. Kessarev, Krijevski, Voinov, Tsarev e, mais que os outros, Kuznetzov, todos os zaguei-ros russos foram driblados por Garrincha em algum momento do jogo: um de cada vez, dois, três ou, em fila, todos ao mesmo tempo. Garrincha deixava um russo senta-do e dizia como se ele pudesse entendê-lo: ‘Conheceu, papudo?’”, conta Ruy. Cada za-gueiro russo era mais um “joão” driblado pelo extraordinário ponta direita.

Por fim, um episódio a envolver o maior craque de todos os tempos. Em par-tida realizada no dia 17 de julho de 1968, no estádio El Campin, na capital colombia-na, Bogotá, entre o Santos Futebol Clube e a Seleção Olímpica da Colômbia, o árbitro Guilhermo Velázquez expulsou Pelé, para revolta dos torcedores, conforme narrado na “autobiografia” do Rei do Futebol: “Come-çaram a gritar: ‘Pelé! Pelé!’ Tinham desem-bolsado dinheiro para me ver e não deixa-riam que um juiz estragasse o programa. A única solução foi uma medida sem prece-dentes: expulsar o próprio Chato. E, com o árbitro expulso, eu pude ser ‘desexpulso’. Fui readmitido no jogo e todo mundo ficou feliz. Todo mundo menos o Chato, claro”.

É possível falar na presença de elementos – profissionais, existenciais etc. – similares à trajetória dos atletas brasileiros do futebol?

Há muito mais distinções do que propriamente elementos similares na tra-jetória dos jogadores, devido a origem, classe social, acesso à carreira, contexto etc. Porém, algo os une: o elevado nível técnico com que praticam ou praticaram o futebol, atestado pelo fato de que todos envergaram a camisa da Seleção Brasileira. Trata-se, pois, de jogadores diferenciados, sem que percamos de vista a questão do contexto: os primórdios do futebol – com Charles Miller, Neco e Friedenreich – re-presentavam outros desafios aos jogado-res, se comparados à fase de sua popula-

rização (com Heleno, Barbosa, Garrincha, Nilton Santos, Pelé, Tostão e Rivellino). O mesmo podemos dizer a respeito do fute-bol globalizado de nossos dias (com Ney-mar), mas que já dava seus sinais a partir da década de 1980, com Falcão, Zico, Só-crates, Romário e Ronaldo.

No universo da produção literária, que escri-tor nacional se destaca pela produção de nar-rativas sobre o (ou em torno do) “ludopédio”?

Dentre os escritores estudados até o momento, destacaria o saudoso Renato Pompeu, campineiro e torcedor da Asso-ciação Atlética Ponte Preta. Além de obras magistrais, como os romances Quatro olhos (1976) e A greve da rosa (1980), Pompeu não deixou de tratar do tema do futebol, uma de suas paixões. Além da biografia de José Ribamar dos Santos, in-titulada Canhoteiro, o homem que driblou a glória (2003), o escritor publicou o ro-mance A saída do primeiro tempo (1978), em que o “espectro da Ponte Preta” paira sobre os céus de Campinas, e o conto Me-mórias de uma bola de futebol (2002), em que a própria bola – uma narradora inusi-tada – expressa suas “vivências”.

Há certos lugares comuns

que, todavia, têm fundo de

verdade, como a célebre fra-

se de José Lins do Rego: “O

conhecimento do Brasil passa

pelo futebol”. É inegável que,

por seu significado para a cul-

tura brasileira, o esporte figure

como âmbito em que a própria

sociedade se manifesta. Isso

se reflete, também, na litera-

tura, no modo como, cada vez

mais, o futebol tem sido repre-

sentado em verso e prosa.

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10 MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019

MEMÓRIA

Cantinho secreto

Tuany Alves

Estudo elaborado na UFV analisa relação da população mineira nascida

no interior com o quintal das casas

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MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019 11

Já dizia Manoel de Barros: “Meu quintal é maior que o mundo”. Em tal “pe-dacinho”, a poesia faz morada; as pessoas se reúnem para conversas de fim de tarde; regam-se plantas e saberes ancestrais; germinam sentimentos, laços e memórias. Mais do que punhados de terra, quintais são oásis numa casa, principalmente, no ver daqueles que nasceram e viveram em tais áreas, mas, depois, migraram para ambientes urbanos, em busca de oportuni-dades. Afinal, é neste emaranho de ervas, flores e versos que elas criam e recriam o passado, o presente e, claro, o futuro.

Relação que transcende a espacialidade e a temporalidade, a ligação entre as pessoas do campo e o quintal é tão importante que se tornou tema de estudo do pesquisador Yan Victor Leal da Silva. A investigação, que uniu poesia, vivência e história, abordou o vínculo de sete moradores do bairro Nova Viçosa, na mineira Viçosa (MG), com os seus quintais. Às margens do município, a comunidade analisada está em transição do rural ao ur-bano, o que permite que, por ali, ainda se encontrem áreas externas nas casas – o que não se verifica na região urbana, formada, em grande maioria, por prédios residenciais.

De acordo com Silva, o tema surgiu ainda na graduação, quando, em estudo sobre sobre a agrobiodiversidade urbana na periferia de Ibirité (MG), ele percebeu que as pessoas vindas do interior falavam do quin-tal com muita saudade. “Alguns romantiza-vam a roça, como algo idealizado. Outros diziam que, agora, tinham uma vida na cida-de. O impasse ‘rural/urbano’ me aproximou dos quintais e da memória”, conta.

A aproximação também o levou a questionar aspectos para muito além da agricultura verificada nos quintais da co-munidade. “Queria entender, por exemplo, de onde veio a configuração do quintal, as posições das plantas ou suas escolhas. Em que momento isso apareceu na vida des-sas pessoas?”, explica.

As indagações deram origem à dis-sertação “Plantando com a memória: os quintais como espaço de vida na poética de gente, tempo e lugar”, defendida junto ao programa de pós-graduação em Extensão

Rural da Universidade de Viçosa (UFV), com bolsa da Coordenação de Aperfeiço-amento de Pessoal de Nível Superior (Ca-pes). Segundo Marcelo Lelles Romarco de Oliveira, professor da UFV e orientador do estudo, apesar de o programa estar dentro das Ciências Agrárias, há preocupação, em seus estudos, com o entendimento das transformações do mundo rural, a partir de relações socioeconômicas, culturais e históricas.

Em comunhãoPara responder a tais questões, no

entanto, Yan Silva optou pela imersão no objeto de pesquisa. Ele se mudou, de “mala e cuia” para a comunidade analisa-da. Durante todo o ano de 2018, morou em Nova Viçosa. “Eu desejava ser afetado pelo estudo. Ou seja, precisava trabalhar em conjunto com os moradores. Queria, enfim, fazer pesquisa solidária, e não so-litária”, destaca.

Após a mudança, por meio de sua vivência, o pesquisador selecionou sete moradores para entrevistar e conviver.

Fotos: Yan Silva

Há pessoas que, na cidade, romantizam "a roça", presente, de algum modo, nos quintais

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12 MINAS FAZ CIÊNCIA •SET/OUT/NOV 2019

Segundo Marcelo Oliveira, neste sentido, a pesquisa revela-se bem antropológica: “Não estávamos preocupados em entrevis-tar um número grande de pessoas”, conta. Yan Silva explica que buscou compreen-der muito mais as trajetórias de vida, e a relação dos sujeitos com os quintais ou a própria comunidade, do que comprovar teorias ou produzir estatísticas.

“Um dos principais fundamentos da Etnografia é realizar densa descrição. Em meu caso, quanto mais profunda ela fosse, melhor. Tentei acompanhar, ao máximo, o cotidiano das pessoas, para descobrir coi-sas. Como exemplo, lembro-me de que eu chamava de ‘centro da cidade’ o que, para os moradores, era, simplesmente, ‘rua’”, conta.

Outra descoberta do pesquisador diz respeito à memória: em grande medida, a

relação entre os moradores e seus quin-tais remete à infância. “Perguntei o que eles fazia, no quintal da roça, e muitos me respondiam: ‘Eu brincava, mexia nas coisi-nhas da horta, ajudava meus pais’. Ou seja, tratava-se de espaço de deleite”, esclarece.

Uma das chaves metodológicas para a descoberta de tais particularidades foi o alinhamento do relato etnográfico – a ex-periência – com a historicidade. Segundo o pesquisador, este desafio agregou um diferencial à investigação. “Todos os traba-lhos sobre a comunidade – e eu cito vários – não tiveram a sensibilidade de ir até lá. Munido dessa experiência, passei a ques-tionar a visão de outros autores sobre o bairro. Alguns chegaram a descrever a área como degradada, feia, poluída”, destaca.

No ver do professor Marcelo Oliveira,

Antes dos quintais

Viçosa foi construída à beira do ribeirão São Bartolomeu, na Zona da Mata. Cidade mineira com características interiora-nas, desenvolveu-se a partir da federalização da então Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (Uremg) – e, portanto, da criação da Universidade Federal de Viçosa (UFV) –, em 1969. À época, o município tornou-se região promissora, e as pessoas interessadas em conhecimento e emprego migraram para lá.

Nem tudo, porém, eram rosas na cidade. De acordo com Marcelo Oliveira, professor da UFV, tal processo migratório “empurrou” as pessoas de baixa renda ao entorno da cidade. Isso se deu, segundo o pesquisador Yan Silva, porque os terrenos próximos à Universidade se valorizaram muito. “Há, até mesmo, relatos históricos de pessoas que foram expulsas do centro de Viçosa, por meio de lei, que não permitia, ali, a construção de casebres. Isso caracteriza o processo que chamamos de gentrificação”, explica.

Nova Viçosa surge em tal contexto, junto à promessa de ser o bairro com a infraestrutura ideal àqueles que chegavam à cidade, em busca de vida nova. O projeto apresentava preços acessíveis a quem pretendia se instalar, e a recomeçar do zero. Atualmente, a área passa por vasto processo de expansão e urbanização. “Tanto é que os quintais estão ficam cada vez menores, ou deixam de existir”, frisa Marcelo Oliveira.

Na acepção de Yan Silva, contudo, muito ainda há de ser feito. “Umas das questões fundamentais na região é a assistência técnica dos quintais, as áreas produtivas e coletivas. Além disso, é preciso fortalecer a identidade coletiva do bairro”, conclui.

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passar um ano na comunidade permitiu, ao orientando, adentrar o cotidiano das pes-soas. Para Yan Silva, conduzir o estudo, por meio da vivência, foi algo difícil, e, por isso entende os motivos pelos quais outros pesquisadores preferiram ir à comunidade e dormir fora, sem se envolver. “Isso não é melhor ou pior. Trata-se, apenas, de esco-lha metodológica. Afinal, nossa influência também diz muito. E pode, inclusive, ser violenta, já que o simples fato de você usar óculos de marca, naquela comunidade, já diz alguma coisa”, completa.

Memória e futuro Segundo Marcelo Oliveira, algo forte

no estudo se refere à questão da lembran-ça, e à forma como ela possibilita a ligação entre dois mundos: o urbano e o rural. “Os quintais ajudam a preservar e a acionar a memória dessas pessoas, que vieram de um espaço rural e estão em momento de transição”, afirma.

Em relatos, os moradores contam que o trabalho industrial não fez com que dei-xassem de trabalhar na terra, de ter afeto e cuidado por ela. “Do ponto de vista socio-lógico, isso é muito interessante, já que a literatura clássica diz que o processo de de-senvolvimento acabaria com o camponês. O que se vê hoje, principalmente, na América Latina, é o seu aumento”, informa Yan Silva.

O estudo deu voz às pessoas, tor-nando-as protagonistas de suas histórias. Segundo Oliveira, ao trabalhar com a me-mória individual do sujeito, foi possível acionar aspectos de suas relações e raízes com o espaço. “Isso gerou dois ganhos. Em primeiro lugar, permite-se que as ge-rações futuras entendam como se deu o processo de transformação do espaço ur-bano da cidade de Viçosa. Além disso, é possível ver como a transformação ocorre em um microcosmo, o que nos ajuda a perceber mudanças reproduzidas em siste-mas macro”, ressalta o professor.

Colhendo fé Para as pessoas, os quintais são es-

paços que lhes permitem a aproximação com a terra, mesmo em áreas urbanas.

No entanto, mais do que falar sobre tal relação, no âmbito da memória e do fazer diário, a pesquisa desvendou elementos produzidos naquele ambiente. “O trabalho revelou o que é cultivado nos quintais: er-vas, plantas e aspectos culturais”, conta Marcelo Oliveira.

O levantamento foi realizado em qua-tro dos setes quintais visitados. “Nessa hora, surgiu ‘meu lado biólogo’, mas, cla-ro, sem perda das preocupações culturais. Descrevi quais eram plantas medicinais (arnica, fumo, cana de macaco, dipirona); com caráter espiritual (comigo ninguém pode, lágrima de Nossa Senhora, arruda); e usadas para a alimentação, como couve, carambola, taioba, ora-pro-nóbis. Ou seja, fui além da Biologia”, esclarece Yan Silva, ao lembrar, ainda, que certas espécies ti-nham mais de uma função.

E de onde essas plantas vêm? Diferen-temente do que se possa imaginar, os quin-tais são formados, principalmente, por meio de trocas. Segundo o pesquisador, existe, na comunidade, um circuito social de per-mutas de mudas e sementes. “Foram pou-cas as plantas que eles trouxeram da roça. Algumas vêm, inclusive, de outros estados, trazidas por parentes. Curioso é perceber que tal estratégia é muito comum ao ‘mundo urbano’”, conclui o pesquisador.

Relação de muitos moradores com seus quintais remete a memórias de infância

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FARMÁCIA

Nanotecnologia contra as espinhas

Luiza Lages

Veiculação de ácido retinoico

em nanopartícula é alternativa mais

eficaz e segura para tratamento da acne

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Para se livrar de cravos e espinhas, muitas pessoas recorrem à farmácia. Diversos tratamentos estão disponíveis como solução ao problema: há opções de cremes, géis, sabonetes e antibióticos orais no mercado. O ácido retinoico é um dos principais e mais eficientes ativos usados no combate à acne. A substância regula o processo de renovação celular e controla a colonização da Propionibacte-rium acnes (P. acnes).

O ativo tem outras ações, sendo muito usado para rejuvenescimento fa-cial. “O ácido retinoico reestrutura todo o processo de descamação, induz à forma-ção de mais colágeno, e a pele fica cada vez mais lisinha”, explica Gisele Goulart, professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisadora trabalhou no desenvolvimento de nova composição farmacêutica para o tratamento da acne, a partir do ácido.

Produtos que contêm ácido retinoico podem provocar vermelhidão, descama-ção, sensação de ardência e ressecamento da pele. Trata-se de reações adversas, que levam muitos pacientes a desistir do tra-tamento. O objetivo do estudo coordenado por Goulart é, justamente, reduzir a irrita-ção causada pelo ativo.

Para tal, os pesquisadores encap-sularam o ácido retinoico dentro de uma partícula lipídica. A tecnologia transforma a maneira como o ativo é veiculado. Nas formulações convencionais, a substância

Principal bactéria envolvida na pato-gênese da acne, promove a inflama-ção dos folículos pilosos (estruturas que dão origem aos pelos), causando as espinhas.

permanece livre, molecularmente dispersa no produto, o que faz com que entre em contato direto com a pele.

“Nesse sistema, associamos o ácido retinoico a uma amina, com grande cadeia lipofílica. Desse modo, também produzimos certa imobilização do grupo ácido: ele se liga à amina formando um par iônico, dentro da partícula lipídica”, explica a professora. O grupo ácido do ativo é uma das causas da irritação à pele, e a ligação química com a amina reduz tais efeitos adversos.

AdesividadeOs pesquisadores avaliaram a libe-

ração do ácido retinoico em estudos de permeação cutânea, que se mostrou mais controlada em relação à formulação conven-cional. Realizaram, ainda, estudos de segu-rança e eficácia, ao usar modelos animais, de epiderme humana reconstruída, e, mais recentemente, de segurança em humanos.

“Quando colocamos o fármaco numa nanopartícula, a formulação adquire a pro-priedade chamada ‘adesividade’. A nano-partícula se encaixa melhor à estrutura da pele e fica ali retida, inclusive, no folículo pilossebáceo, foco de ação da acne”, ex-plica Goulart. O fármaco é liberado lenta-mente e não entra em contato direto com a pele. “Assim, diminuo a irritação e não

Classe de compostos químicos or-gânicos, contém nitrogênio em sua estrutura.

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Na renovação celular da pele, os queratinócitos (células que formam as camadas da epiderme) passam por descamação e são substituídas por novas estruturas celulares. Com a acne, o processo é alterado. Ocorre o acúmulo de queratinócitos, e as glândulas sebáceas e os folículos pilossebáceos são obstruídos por óleo e células mortas. Isso cria um ambiente mais anaeróbico, que fa-vorece o aumento da colonização por P. acnes.

“Todos esses agentes produzem um quadro de in-flamação muito característico. Pode ser que a parede do folículo piloso se rompa, com liberação de secreção, ou que fique aquele nódulo inflamado e fechado”, afirma Gise-le Goulart, professora da Faculdade de Farmácia da UFMG.

A acne é um processo inflamatório multifatorial, que pode ter causas genéticas, infecciosas e hormonais. O ácido retinoico regula o processo de renovação celular e promove a aeração do sistema, o que controla a coloni-zação da P. acnes, até que a pele volte ao estado normal.

comprometo os resultados, pois o ativo fi-cará retido e será liberado continuamente. Ganho muito em segurança e não perco nada em eficácia”, completa a professora.

O ácido retinoico não se solubiliza em água. Normalmente, ele é solubilizado em álcool, e, depois, incorporado à formu-lação. Por isso, produtos à base de ácido retinoico têm, também, álcool em sua composição. A nova tecnologia permite que o ativo seja administrado em veículo

aquoso, menos agressivo para a pele do que o álcool, uma substância desidratante.

“A formulação pode ser aplicada em creme, gel, pomada. A ideia, contudo, é que ela seja veiculada em bases mais su-aves, para ir ao encontro de um mercado que não existe, em função dessa limitação com a solubilização”, diz Goulart. A tecno-logia foi patenteada em abril de 2019 e já está disponível para empresas que tenham interesse em usá-la.

O processo da acne

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ENGENHARIA

Longa vida, in natura

Embalagens alimentícias produzidas com nanofibras

prolongam durabilidade dos produtos e podem reduzir

riscos para a saúde dos consumidores

Alessandra Ribeiro

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Na indústria de alimentos, especial-mente na de produtos cítricos, o óleo de laranja, extraído da casca da fruta, costuma ser descartado como lixo orgânico, para biocompostagem, ou destinado à produ-ção de cosméticos. Uma das substâncias presentes em sua composição é o limone-no, um solvente orgânico, com potencial para substituir materiais sintéticos com a mesma propriedade.

Depois de fazer testes com uma série de óleos e outros materiais, para produção de nanofibras (fibras produzidas em escala microscópica), o engenheiro de alimentos Kelvi Wilson Evaristo Miranda constatou que o óleo de laranja poderia substituir o tolueno, solvente sintético empregado na preparação do poliestireno – polímero que serve de matéria-prima à fabricação de em-balagens resistentes a altas temperaturas, como isopor e copos descartáveis.

O tolueno, popularmente conhecido como tíner, também é largamente usado para diluir tintas. “Na indústria alimentícia, tem-se todo o cuidado para que não haja resíduo do solvente na embalagem, nem migração para o alimento. Por isso, se conseguirmos subs-tituir uma linha sintética de potencial risco à saúde, acredito que viveremos melhor, se-gundo as possibilidades de uma ciência mais orgânica”, prevê o pesquisador.

Mais do que reduzir a exposição a substâncias passíveis de provocar doenças e reações alérgicas, em caso de contamina-ção acidental dos alimentos, o solvente or-gânico tem outras vantagens. “Sabemos que o sintético demanda mais investimentos e matérias-primas. Usar resíduo agrícola para gerar novo produto com grande potencial

tecnológico é muito melhor, inclusive, em relação ao meio ambiente”, defende.

“As nanofibras que obtivemos têm como característica a biofuncionalidade contra fungos e bactérias, principalmente, de origem alimentar”, destaca Wilson. Elas poderiam ser usadas na produção de emba-lagens aptas a conservar carnes e alimentos vegetais minimamente processados.

SubprodutosA produção da nanofibra, a partir

do óleo de laranja, foi uma das três eta-pas da pesquisa desenvolvida ao longo do doutorado de Kelvi Wilson, realizado junto ao programa de pós-graduação em Enge-nharia de Biomateriais da Universidade Federal de Lavras (Ufla), com orientação do professor Juliano Elvis de Oliveira, do departamento de Engenharia.

Os testes foram realizados no Labo-ratório Nacional de Nanotecnologia aplica-da ao Agronegócio, localizado na unidade da Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa) em São Carlos, no interior de São Paulo, sob coorientação do pesquisa-dor Luiz Henrique Capparelli Mattoso.

A segunda etapa da pesquisa consis-tiu na produção de sachês para a conser-vação de vegetais. Neste caso, em razão de sua porosidade, as nanofibras foram utili-zadas para envolver absorvedores de umi-dade e de etileno (hormônio de maturação dos vegetais), distribuídos em dois com-partimentos. “Em um dos compartimentos do sachê, a substância chamada perman-ganato de potássio, fundida, em baixa con-centração, encapsulada em parafina – que também é um subproduto petrolífero –,

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consegue absorver o etileno liberado pelos frutos e hortaliças”, detalha.

Em experimentos com tomates ver-des, ao longo de sete dias, com uso dos sachês, 70% dos frutos não amadurece-ram. Para efeito comparativo, 95% dos tomates acondicionados sem o sachê atingiram a maturação completa no mesmo período. “Em toda a pesquisa, visamos ao aproveitamento máximo do alimento, as-sim como à extensão de sua qualidade, nas características in natura”, resume Wilson.

Na terceira fase do trabalho, desen-volveu-se a “nanofibra inteligente”, instru-mento para verificar a qualidade dos pro-dutos próprios ao consumo. Inicialmente, os testes foram feitos com vinhos, para identificar possíveis processos de fermen-tação e deterioração. A ideia seria usar o material em um círculo com o diâmetro da boca da garrafa. Depois de um período de cinco a 15 minutos (variável de acordo com o tipo de vinho), em contato com o vapor da bebida, a nanofibra muda de cor, caso a acidez esteja acima da recomendada.

“Se o vinho estiver acidificado, ela sai de sua coloração azul-roxeada e pas-sa ao amarelo-laranja. A modificação de cor ocorre, normalmente, com pH em torno de 4,3, considerado ácido, o que não é uma caracte-rística do vinho, mas do vinagre”, descreve.

Escala industrialKelvi Wilson conta que ele e o

orientador resolveram não patentear as tecnologias desenvolvidas, mas torná-las amplamente acessíveis, com a publicação de artigos científicos sobre cada uma das

etapas da pesquisa. Ainda assim, afirma que ainda não houve procura de empresas interessadas. “Uma coisa é a pesquisa la-boratorial, em pequena estrutura. Outra diz respeito à grande escala, em planta indus-trial, que demanda muitos fatores”, pondera.

A tecnologia usada para obtenção dos nanomateriais é a fiação por sopro (ar comprimido), ou SBS [sigla em inglês para Solution Blow Spinning], ainda indisponí-vel em escala industrial. “Ela é totalmente possível, contudo, pois exige um equipa-

mento muito barato, e o nível de produção em larga escala é altíssimo”, garante.

Para o pesquisador, o processo é bem mais complexo do que apenas desen-volver o produto e lançá-lo no mercado: “A ciência já deu grandes passos na área da Nanotecnologia, mas a sociedade absorve tudo muito lentamente. Até porque, ainda é preciso de muito mais informações. Temos que realizar estudos, trabalhar com proces-sos de conscientização e de aceitabilidade do consumidor. Assim, aos poucos, incor-poram-se novos produtos”.

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MATEMÁTICA E COMPUTAÇÃO

Previsão correta, decisão acertada

Pesquisador do Cefet-MG desenvolve arcabouço que auxilia as pessoas a investir no mercado financeiro

Mariana Alencar

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Todo mundo conhece alguma histó-ria de alguém que guardava dinheiro sob o colchão, como forma de juntar quantia suficiente à realização de sonhos materiais. Na infância, as crianças ganham porqui-nhos e pequenos cofres para guardar cada moedinha que ganham. Há, ainda, aqueles que preferem deixar as economias na pou-pança, para que o dinheiro renda com o passar do tempo.

O comportamento do brasileiro assa-lariado em relação às finanças, entretanto, alterou-se nos últimos anos. Hoje, já não é tão vantajoso conservar dinheiro na ca-derneta de poupança, nem mesmo debaixo do colchão. Com as mudanças ocorridas na economia brasileira, ao longo da última década, os juros da Selic – a taxa básica de juros da economia, por meio da qual o Banco Central controla a inflação – dimi-nuíram consideravelmente, tornando muito pequenos os rendimentos poupados.

A saída, para muitos, está no in-vestimento em mercado de ações, que, por ser importante a qualquer economia, apresenta-se, hoje, como objeto de estu-dos diversos. Daí a busca por modelos e a ânsia por informações capazes de ajudar a previsão do comportamento do mercado. Em tal contexto, destaca-se a pesquisa de Carlos Alberto Silva de Assis: “Predição de tendências em séries financeiras utilizando meta-classificadores”.

Defendido junto ao Programa de Pós-Graduação em Modelagem Matemá-tica e Computacional, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), sob a orientação dos pro-fessores Adriano César Machado Pereira (DCC/UFMG) e Eduardo Gontijo Carra-no (DEE/UFMG), o trabalho consiste na apresentação de método para previsão de séries temporais financeiras, por meio do uso de técnicas de inteligência computa-cional combinadas. “O investimento na bolsa de valores exige trabalho de acom-panhamento. Você põe o dinheiro na bolsa, mas ele pode sumir, da noite para o dia. Isso aconteceu com as ações da Vale, que despencaram após o desastre de Brumadi-nho. O objetivo da pesquisa foi encontrar

soluções para ‘prever o futuro’ e, assim, ajudar a tomada de decisão do investidor”, explica Assis.

AlgoritmosHá alguns anos, pesquisadores da

área tentam desenvolver técnicas que aju-dem a previsão do comportamento de ativos financeiros. Entretanto, mesmo com os inú-meros estudos, antecipar preços e tendên-cias não é algo fácil. Realizar predições é li-dar com as incertezas do mercado financeiro e outros imprevistos. “Além disso, o ser hu-mano é feito de emoções. Quando vê seu di-nheiro rendendo, e percebe que o ativo tem subido, ele investe maior quantia, mas não é capaz de calcular o risco de queda. Por falta de conhecimento, a pessoa perde dinheiro”, detalha o pesquisador.

Em sua pesquisa, Assis desenvol-veu um meta-classificador, baseado em métodos de inteligência computacional, para descobrir tendências de preços para ativos de bolsa de valores. “Trata-se de um arcabouço composto de algoritmos inter-nos. Em meu estudo, desenvolvi um meta--classificador composto por sete algorit-mos, que foram aplicados em ambientes simulados”, conta.

Os meta-classificadores funcionam da seguinte forma: se o médico informa que alguém está com uma doença grave, o paciente pode optar por ouvir outras opini-ões. Ele, então, busca novos profissionais, para mais informações sobre seu estado de saúde. “Cada médico procurado é um algoritmo dentro do meta-classificador. No caso de minha analogia, o paciente es-cutaria a avaliação de sete médicos, para, então, tomar decisões”, esclarece.

Conforme o exemplo “medicinal”, na economia, há sete técnicas de inteligência computacional aptas a descobrir tendên-cias em séries financeiras: Programação Genética (PG); Máquinas de Vetor de Su-porte (SVM); Florestas Aleatórias (RF); Redes Neurais (MLP); Árvore de Decisão (J48); Otimização Mínima Sequencial (SMO); e Redes Bayesianas (BN).

Os meta-classificadores apresentam um importante diferencial dos classifica-

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dores tradicionais, ao prever qual avaliação tem maior peso. No mercado financeiro, dirão se as ações sofreram alta ou queda, e, ao fim, informarão as melhores atitudes a serem tomadas. Ou seja, a abordagem proposta é capaz de indicar, ao investidor, se ele deve comprar novos ativos, retirar o dinheiro ou continuar a investir.

Uma das formas de calcular os riscos se dá por meio da análise de dados histó-ricos da bolsa de valores. A partir dos pa-drões comportamentais do mercado finan-ceiro, os meta-classificadores conseguem traçar estimativas de futuro. A ferramenta leva possíveis anomalias em consideração. Há cada quatro anos, por exemplo, ocorre uma alteração no mercado devido às elei-ções presidenciais. Essa sazonalidade é calculada e considerada pelos algoritmos.

Para o desenvolvimento do meta--classificador, Assis testou ativos de nove empresas: Petrobras; Cielo; Itaú Uniban-co; Índice Bovespa; Usiminas; Compa-nhia Energética de Minas Gerais (Cemig); Gerdau; Kroton Educacional e Gol Linhas Aéreas Inteligentes. Os resultados foram satisfatórios, ao mostrar acurácia, na clas-sificação, de até 57%, além de ganhos fi-nanceiros de até 100% do valor de capital inicialmente investido. Constatou-se, tam-

bém, que o meta-classificador apresentou índices muito superiores em relação a ou-tros mecanismos de machine learning.

“Algumas simulações mostraram retorno de 100%, diferentemente de ou-tros métodos já desenvolvidos. Ou seja, se a pessoa aplica R$ 10 mil, ao tomar as decisões corretas, com a ajuda do meta--classificador, pode ter retorno acumulado de até R$ 20 mil em um ano”, comemora.

HorizontesCarlos Assis integra o grupo de es-

tudos Finanças Computacionais (Fico) da UFMG, formado por alunos, pesquisadores, professores, profissionais de várias áreas e empresas do setor econômico. O cará-ter interdisciplinar da equipe influenciou a formulação do problema central do pesqui-sador, uma vez que o trabalho não envolve apenas a Matemática Computacional e as Finanças, mas, também, áreas do conhe-cimento como Ciência da Computação, Ciência de Dados, Economia e Estatística.

Os resultados positivos do estudo são indicativos de potencial aplicabilidade do modelo em ambientes reais. Por isso, Assis está focado, agora, em desenvolver um projeto de pós-doutorado que busque a aplicação do que desenvolveu em sua tese.

Ramo da inteligência artificial que parte da ideia de que sistemas podem aprender com dados, identificar pa-drões e tomar decisões, sem neces-sidade de intervenção humana.

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ALIMENTOS

Pesquisadores aumentam valor nutricional de uma série de

produtos por meio de técnicas de biofortificação alimentar

“Superalimentos” contra a

fome oculta

Luiza Lages

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Na década de 1980, países europeus passaram a restringir a importação de trigo proveniente dos Estados Unidos e do Cana-dá, para incentivar a produção agrícola in-terna. Medições feitas na Finlândia, porém, mostraram que o teor de selênio era quatro vezes menor no trigo produzido na região. O solo europeu é naturalmente mais pobre, no que se refere ao elemento, se comparado ao norte-americano. No período, também foi aferida a redução do nutriente no plasma sanguíneo da população: notou-se aumento na incidência de câncer. A resposta ao pro-blema veio como política pública. Desde en-tão, naquele país, é obrigatório que a com-posição de fertilizantes usados nas lavouras inclua taxa mínima de selênio.

A prática adotada na Finlândia é um exemplo de biofortificação alimentar. A produção de “superalimentos”, que te-nham maior valor nutricional, é um dos grandes desafios atuais da agricultura. Di-versas pesquisas, em todo o mundo, têm testado a adição de elementos como iodo, selênio, ferro e zinco às culturas.

Há cerca de dez anos, na Universidade Federal de Lavras (Ufla), são feitos testes de enriquecimento de nutrientes em arroz, soja, feijão, milho e hortaliças diversas, inclusive o ora-pro-nóbis. Os testes são realizados em áreas agrícolas nas cidades de Lavras, Lambari, Uberaba e Patos de Minas. A di-versidade das regiões permite análises em diferentes tipos de solo e clima. Os pesquisa-dores testam os compostos isoladamente ou em conjunto, para determinar a quantidade a ser absorvida e o teor ideal para cada cultura.

Agricultura funcional“Tivemos grandes ganhos na agri-

cultura. Incorporamos tecnologias e con-seguimos, com melhoramento genético, aumentar a produção de uma cultura por área. Além disso, passamos a produzir materiais tolerantes à seca e ao ataque de pragas. O interessante, agora, é produzir plantações que consigam extrair mais nu-trientes do solo”, diz Luiz Roberto Guima-rães Guilherme, do Departamento de Ciên-cia do Solo da Ufla. O professor coordena, em parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig),

uma rede internacional conhecida como HarvestZinc. Nela, cientistas de 13 países desenvolvem estudos sobre a biofortifica-ção de alimentos.

Segundo o pesquisador, o momento é da chamada “agricultura funcional”. Cresce mundialmente, afinal, o interesse pela pro-dução de alimentos funcionais, que ajudam a combater a má nutrição e oferecem benefí-cios à saúde. Melhores técnicas de cultivo e fatores como o aumento da presença de gás carbônico na atmosfera levam ao aumento da produção em uma mesma área de plan-tio. “Se, antes, eu produzia cinco toneladas de um alimento em uma área, e aumentei a dez, o teor de nutrientes é diluído entre as plantas. Por isso, preciso ampliar a quan-tidade de nutrientes disponíveis na lavoura, para não gerar produtos com baixo valor nu-tritivo”, explica Guimarães Guilherme.

Combate à fome ocultaProdutos alimentares “vazios”, com

poucos nutrientes, são parte de um proble-ma que afeta milhões de pessoas: a fome oculta. O conceito difere da abordagem original para a fome, pois leva em consi-deração a falta de nutrientes, e não apenas a falta de comida. Pessoas que aparentam se alimentar podem desenvolver graves ca-rências de micronutrientes, como vitamina A, zinco e ferro.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 44% dos paí-ses vivem, ao mesmo tempo, sérios níveis de subnutrição e sobrepeso, incluindo obesidade. São fatores associados ao de-senvolvimento de doenças crônicas, como diabetes e câncer. Nesse contexto, a biofor-tificação contribuiria com a ingestão diária de cada nutriente, a partir de culturas com grande alcance populacional, como arroz, feijão, soja e trigo.

“Nos países onde esses nutrientes não são deficientes no solo, é possível, simples-mente, cultivar plantas com maior capacida-de de absorvê-los”, diz Luiz Roberto Gui-marães Guilherme. Tal seria uma das ações plausíveis da “biofortificação genética”, que inclui a seleção de espécies vegetais com os melhores genes ou genótipos para absorção de nutrientes específicos. Outra possibilidade

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passa pelo desenvolvimento de organismos geneticamente modificados.

Para solos pobres, entretanto, a es-tratégia genética torna-se frustrada. Nesses casos, é interessante que ela seja pensada em conjunto com a “biofortificação agro-nômica”, técnica de adubação das plan-tas, com uso de fertilizantes enriquecidos com nutrientes estratégicos. O objetivo é que eles sejam absorvidos e acumulados nas culturas. “Particularmente nas regiões mais pobres do planeta, que tendem a estar localizadas em faixas de terra onde os so-los são mais carentes, não se pode traba-lhar com um método isolado. Não dá para pensar, apenas, no material genético que absorverá mais nutrientes em uma área onde o teor natural dos mesmos é baixo”, afirma o pesquisador.

CustosEnquanto a biofortificação genética

não apresenta custos adicionais, a estra-tégia agronômica inclui gastos com ferti-lizantes. O método apresenta duas técnicas possíveis de aplicação: nas folhas ou no

solo. A pulverização foliar requer quantidade menor de nutrientes e pode ser feita junto à aplicação de pesticidas, realizada, frequen-temente, por muitos agricultores. Entretan-to, a técnica não apresenta efeito residual: os nutrientes serão absorvidos por apenas uma safra. “Como, no Brasil, temos capa-cidade de produzir mais de uma lavoura por ano, é interessante fazer a aplicação no solo. Há a possibilidade de várias plantas, de di-ferentes safras, absorverem os nutrientes”, explica Guimarães Guilherme.

O pesquisador explica que, para o grande produtor, que já faz a pulverização das culturas, a biofortificação não represen-ta grande diferença nos custos produtivos. Para o pequeno produtor, salienta os ganhos possíveis. Além de gerar produtos com maior valor agregado, com crescente demanda em mercados externos, a adição de nutrientes traz uma série de benefícios às lavouras.

O selênio está associado a processos antioxidantes, antienvelhecimento. Embora não seja essencial para o crescimento da planta, suas propriedades produzem maior resistência contra falta de água, presença

No organismo

de pragas, doenças e outras situações típi-cas das lavouras. O zinco é outro exemplo. Já usado por produtores, o composto é es-sencial ao desenvolvimento e ao aumento da produtividade da planta. Entretanto, o elemento ainda não é aplicado em quan-tidades suficientes para trazer benefícios à alimentação humana.

“Alguém precisa estar disposto a pa-gar esse ‘extra’, em termos de ganho nutri-cional. Para quem quiser operar no mercado de produtos diferenciados, gourmet, isso é fácil. Nosso objetivo, porém, é que esse tipo de produto chegue às populações de baixa renda. O ideal seria que o governo criasse políticas públicas de saúde para motivar os produtores”, afirma o professor da Ufla. No Brasil, um exemplo – embora não se trate de biofortificação – é a obrigatoriedade da adi-ção de iodo ao sal, decretada, em 1956, pelo presidente Juscelino Kubitschek. A legisla-ção brasileira de fertilizantes já recomenda a aplicação de zinco nos solos, e, desde 2016, sugere a adição de selênio.

Importante ao funciona-mento normal da glândula tireoide. Sua carência está relacionada ao desenvolvi-mento de bócio endêmico e hipotireoidismo.

Facilita o transporte de ou-tros minerais dentro do orga-nismo humano. Sua deficiên-cia pode causar distúrbios no sistema nervoso.

Atua na síntese das células vermelhas do sangue e no transporte de oxigênio em todo o corpo.

Tem propriedades antioxidantes e contribui para o funcionamento do sistema imunológico. A ca-rência do elemento está relacio-nada a certos tipos de cânceres e a problemas cardiovasculares.

É fundamental à estrutura e à função de enzimas vitais à homeostase, condição que equilibra as composições químicas do organismo.

Confira os efeitos de cada elemento em seu corpo

Enxofre (S)

Iodo (I)

Selênio (Se)

Ferro (Fe)

Zinco (Zn)

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ESPECIAL

Conhecimento em revista

Verônica Soares da Costa

Duas décadas depois de sua primeira edição, MINAS FAZ CIÊNCIA celebra expansão de possibilidades

narrativas e discute o presente e o futuro dos saberes

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Beatriz Sarlo afirma, no artigo “Inte-lectuales y revistas: razones de una prácti-ca”, que a iniciativa de elaborar uma revista ilustra a decisão de fazer política cultural. Se considerarmos a pesquisa e a divul-gação do conhecimento como práticas constituintes da cultura de uma sociedade, é possível lançar mão do pensamento da escritora e crítica literária argentina para afirmar: investir em uma publicação de ci-ências é, também, fazer “política científica”.

No caso de MINAS FAZ CIÊNCIA, a decisão foi tomada há 20 anos, em dezem-bro de 1999, com a publicação da edição n° 1, cujas chamadas de capa destacavam temas como bioterrorismo, câncer e polui-ção sonora – desafios ainda atuais às ciên-cias do século XXI. Criada pela FAPEMIG, a revista é parte de um movimento que se intensificou no Brasil, na virada da década de 1990 aos anos 2000, rumo à ampliação de ações de divulgação e popularização da ciência. Assim, ao mesmo tempo em que nascia a publicação, outras iniciativas de popularização do conhecimento surgiam em todo o País. Nem todas, porém, revelaram--se tão longevas quanto a iniciativa mineira.

A revista não foi o primeiro projeto de divulgação científica da FAPEMIG. Ou-tras ações já estavam em andamento na Instituição, como a produção de boletins de notícias e de minidocumentários. Após o diagnóstico da necessidade de maior integração da comunidade científico-tec-nológica com outros setores da sociedade, a revista foi idealizada como estratégia de aproximação entre públicos diversos, para

mostrar, à população, os resultados das pesquisas desenvolvidas com recursos do Estado. Assim está no texto do primeiro editorial: “São assuntos ricos, infelizmente pouco divulgados. Por isso estamos pro-duzindo esta revista voltada para o público leigo, mostrando a produção de C&T em formato de jornalismo científico”.

Os pontos fundamentais desta his-tória já foram discutidos em artigo acadê-mico, publicado em 2017. Contudo, com a proximidade das celebrações dos 20 anos de publicação da revista, o editor--chefe, Maurício Guilherme Silva Jr., e a diretora de redação, Vanessa Fagundes, encontraram-se para um bate-papo, com o intuito de relembrar o passado e, ao mesmo tempo, projetar futuros possíveis para a publicação.

Com anos dedicados ao projeto “Minas Faz Ciência” – que hoje também contempla produtos desenvolvidos para

Em 1998, o primeiro produto de divulgação científica da FAPEMIG foi uma série de minidocumentá-rios em parceria com a Rede Minas de Televisão. Segundo Vanessa Fagundes, foi um início importan-te, pois a TV possibilitou que a Fundação atingisse, rapidamente, grande número de pessoas. “Isso contribuiu para o nascimento da revista, pois o retorno do público chamou a atenção: as pessoas co-meçaram a falar sobre as pesquisas e a escrever para a Fundação, como forma de elogiar e pedir mais ações de divulgação científica”.

Trata-se de artigo apresentado no IV Encontro Regional Sudeste de História da Mídia, em 2016, e, pos-teriormente, publicado, sob o título “Reflexões e experiências jorna-lístico-acadêmicas desenvolvidas no projeto Minas faz Ciência”. no livro Divulgação Científica: novos horizontes (Belo Horizonte: Mazza Edições, 2017. [ePub]), que você pode acessar, gratuitamente, neste link: http://bit.ly/livrodivulgacao-cientifica. Leia, também, o artigo de Beatriz Sarlo, citado na abertura da reportagem, disponível em http://bit.ly/beatrizsarlo.

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o ambiente digital –, Maurício e Vanessa têm suas histórias e escolhas profissionais e acadêmicas entrelaçadas ao projeto. São também defensores das políticas de divul-gação científica e de sua importância para o desenvolvimento científico, social e eco-nômico de uma nação.

Nos trechos a seguir, eles falam da relação afetiva que desenvolveram com MINAS FAZ CIÊNCIA, da expansão do pro-jeto, por meio do Programa de Comunica-ção Científica, Tecnológica e de Inovação (PCCT), das motivações para continuarem o trabalho com a comunicação pública da ciência e seus desafios, além do entendi-mento de que a revista é parte da história da própria FAPEMIG e do desenvolvimento científico em Minas Gerais. “Duas décadas não são dois dias. Efemérides são uma oportunidade para olhar para o passado e vislumbrar um futuro”, sintetiza Maurício.

Histórias entrelaçadas“A minha história com a Minas Faz

Ciência começa muito antes de eu traba-lhar na FAPEMIG”, conta Vanessa Fagun-des, atual coordenadora da Assessoria de Comunicação Social da Fundação. Ela ainda era estudante de Jornalismo na Uni-versidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quando se interessou pelo jornalismo científico e decidiu atuar na área. “Come-cei a pesquisar projetos que trabalhassem com essa temática e descobri a revista. Eu me tornei assinante, gostei muito da pro-posta e mandei uma carta, algo comum na época, para a então editora responsável, me apresentando como candidata a um estágio”, relembra.

Foi só depois de ter se formado, no entanto, que Vanessa recebeu uma ligação da editora, Karina Almeida, para fazer par-te da equipe. “Vim à FAPEMIG para atuar, principalmente, na revista, como jornalista. Depois de produzir reportagens sobre as pesquisas desenvolvidas em Minas Gerais, eu me encontrei profissionalmente e, mais tarde, me tornei servidora na Fundação”.

Seu nome apareceu pela primeira vez na revista nº 12; cinco edições depois, já assinava como editora. “Foi um grande desafio, pois a função exige que se pense a revista como um todo, com a definição

da linha editorial e de abordagens temá-ticas, de maneira mais ampla do que no cotidiano do trabalho como jornalista”. O ofício se revelou solitário por alguns anos, até a criação do PCCT, em 2010, edital que selecionou profissionais para atuarem na produção de conteúdo do projeto “Minas Faz Ciência”. “A entrada de outros jorna-listas, com novos olhares e experiências, acrescentou muito à iniciativa. A revista cresceu em qualidade, em proposta, em objetivos”, avalia.

Maurício Guilherme Silva Jr. come-çou a participar da produção da revista a partir de 2011, quando foi aprovado no primeiro edital de seleção do PCCT. No ano seguinte, passou a atuar como editor de MINAS FAZ CIÊNCIA. Sua estreia foi na edição nº 43, cuja reportagem de capa tratava da dengue – tema que continua a assombrar os mineiros, em função do au-mento do número de casos no Estado. O trabalho como editor começou na edição de nº 51, e segue até hoje.

“Lidar com ciência, jornalismo e tex-tos de revista tem forte relação com minha caminhada profissional anterior, e, hoje, com minha prática docente. Fui assessor de comunicação na UFMG, mas, ainda como estudante de Jornalismo, já tinha me apaixonado pela divulgação das ciên-cias. Antes mesmo de integrar o grupo de profissionais do PCCT, conhecia e admi-rava a publicação. Quando me candidatei, vislumbrei a possibilidade de aprender e colaborar com a proposta, também como pesquisador e professor”, comenta, ao fri-sar que ser editor de uma revista de divul-gação científica é motivo de orgulho, por tudo o que ela representa: “Principalmente,

A iniciativa busca disseminar e popularizar a ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) no Estado. O PCCT fomenta e desenvolve voca-ções na área da difusão das ciên-cias, com a concessão de bolsas de incentivo à formação de profis-sionais dedicados à cobertura na área, de modo a ampliar o espaço dedicado à ciência em veículos da grande mídia e divulgar projetos e programas desenvolvidos com o apoio da FAPEMIG. Leia a deli-beração que aprovou o programa, de agosto de 2010, em http://bit.ly/pcctfapemig.

Dados do Boletim Epidemiológi-co de Monitoramento dos casos de dengue, chikungunya e zika, publicados pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Ge-rais, indicavam o registro de 466.796 casos prováveis (con-firmados + suspeitos) da doença no Estado e 125 óbitos, até o dia 12 de agosto de 2019.

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como locus de discussão de uma ciência que permite às pessoas ter experiências singulares de leitura e apreensão de textos e narrativas”, define.

MINAS FAZ CIÊNCIA são muitas

“A revista propõe leituras que podem ser fragmentadas, mas têm a própria frag-mentação como potência, com diversidade de olhares e de possibilidades de imersão. É bonito acompanhar os desdobramentos dessa trajetória, as transformações visuais, as mudanças gráficas, as propostas de ex-perimentação desenvolvidas nos últimos anos. E ver MINAS FAZ CIÊNCIA se meta-morfoseando, de acordo com dinâmicas so-ciais que atravessam a prática do jornalismo científico”, analisa Maurício. Tal processo de transformação e adaptação pode ser no-tado, por exemplo, no passeio pelas capas de todas as edições publicadas, ininterrup-tamente, ao longo dos últimos 20 anos.

Para Vanessa Fagundes, um dos motivos da relevância da revista é o fato de a FAPEMIG ter se comprometido a dar publicidade e a ampliar o conhecimento da sociedade sobre o que é feito em laborató-rios, salas de aula e grupos de pesquisa mi-neiros. Ela também destaca a estratégia da divulgação científica ampliada, focada não só em um produto, mas, sim, nas múltiplas possibilidades de diálogo com pessoas de diferentes perfis, a partir da diversidade de linguagens e formatos, e, até mesmo, de eventos que proporcionam imersão em ati-vidades científicas e debates sobre o tema.

“Neste sentido, o PCCT fortaleceu a intenção de diversificar as ações de divul-gação, porque a chegada de profissionais com diferentes habilidades permitiu, tam-bém, que trabalhássemos em novas pla-taformas de publicação, como podcasts, vídeos e outras ações na internet, quando as redes sociais e os blogs estavam apenas começando a se estabelecer”.

Muito antes de as palavras “transver-salidade” e “transmídia” estarem em voga, o projeto “Minas Faz Ciência” já sinalizava que a multiplicidade de produtos e experi-ências possíveis de contato com as ciências era um caminho promissor para projetos bem-sucedidos de divulgação científica.

As edições especiais temáticas, por exemplo, apresentaram-se como desafio desde a primeira experiência, que surgiu da demanda de evento científico que seria rea-lizado no Estado. “Por um tempo, a ideia da edição especial foi abandonada, mas havia temas muito salientes nas discussões sobre CT&I, como a importância da internacio-nalização das pesquisas, o que motivou a criação de uma edição anual, extra, capaz de abordar os assuntos de maneira mais pro-funda”, relembra Vanessa.

Havia, no entanto, o antigo desejo de conversar com o público infantojuve-nil, em idade escolar. “Falar com crianças não é simplificar a linguagem, nem tratar o

Além dos 25 mil exemplares im-pressos, distribuídos gratuitamen-te pelo Brasil, a revista MINAS FAZ CIÊNCIA está disponível, para lei-tura, em sua versão digital, no en-dereço http://bit.ly/revistasMFC.

O podcast Ondas da Ciência surgiu em 2011, antes mesmo que o consumo de informações neste formato virasse tendência no Brasil. Já são mais de 225 programas gravados e disponí-veis nas principais plataformas, como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Castbox, Ihe-art, Anchor, SoundCloud, Spre-aker, Podbean e Podcast addict. Ouça também pelo site: http://bit.ly/OndasDaCiencia.

As edições especiais e as revistas MINAS FAZ CIÊNCIA infantil po-dem ser acessadas em suas ver-sões digitais no link http://bit.ly/MFCEspecial.

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leitor como dotado de inteligência menor. Por isso, ao conceber a revista MINAS FAZ CIÊNCIA infantil, em 2015, elaboramos um projeto que buscava dialogar com as crian-ças, considerando a complexidade dessa missão”, conta.

Para Maurício Guilherme, a propos-ta de falar com o público infantil levou a equipe a estudar e a aprender muito: “Cha-mamos autores de livros infantojuvenis e especialistas, como o escritor Leo Cunha, para dialogar; promovemos conversas com mães e pais para avaliar a recepção; e, mesmo hoje, quando produzimos a quinta edição infantil, seguimos aprendendo so-bre formatos e linguagens”.

Um dos desdobramentos da revista MINAS FAZ CIÊNCIA infantil foi o podcast

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“Viagem de Tiê”, idealizado e produzido pela jornalista Luiza Lages e lançado como material complementar à edição de 2018.

A marcaEm função da multiplicidade de abor-

dagens, Maurício Guilherme defende que MINAS FAZ CIÊNCIA é mais do que uma revista impressa: “Somos uma marca de narrativa jornalística, que recebe interferên-cias externas e internas muito ricas, capazes de ampliar suas potencialidades. Devemos falar não só de um produto impresso, mas de uma trajetória de pensamento de divul-gação científica, que culmina com a versão impressa da revista e outras materialidades a compor esta narrativa”.

A marca MINAS FAZ CIÊNCIA é, as-sim, cambiante: amplia-se e se expande em outros suportes, como o ambiente di-gital, sem perder sua essência, conforme destaca o editor. “A revista reposiciona sua marca o tempo todo, não sem considerar estratégias de persuasão e construção narrativa colaborativa. Enquanto estamos

V – A primeira capa em que usamos uma metáfora vi-sual, a de nº 49, com um Davi, de Michelangelo, em proporções distintas da obra original, para falar sobre obesidade.

reunidos para pensar pautas e reportagens, reconhecemos a importância de manter a versão impressa em circulação, e, também, a necessidade de ampliar o diálogo com outros territórios. Tudo está integrado, para que haja ampliação narrativa, transmídia, com engajamento de novos públicos nes-ses outros espaços e ambientes”.

A estratégia passa, primeiramente, por um investimento institucional da Fun-dação, além do perfil do grupo de jorna-listas que compõem o PCCT nos últimos anos, o que possibilita, também, fazer ci-ência por meio da revista, pelo incentivo à produção de artigos e de análises sobre o campo da comunicação pública da ciência.

Um dos valores compartilhados pela equipe é a de que as estratégias de todo o projeto editorial precisam ser pensadas e repensadas continuamente e, no caso de MINAS FAZ CIÊNCIA, a possibilidade de fazer a revista circular de mão em mão, para seus 25 mil assinantes, é vista como um diferencial estratégico para ampliação de públicos. Atualmente, a publicação é distribuída a assinantes individuais, e a escolas municipais de Belo Horizonte, ins-tituições de ensino e pesquisa, bibliotecas e jovens pesquisadores de todo o Estado e

de outras partes do Brasil. “A chegada da versão física à casa das pessoas transforma a relação da ciência no dia a dia. Uma capa de revista impressa, hoje, no meio de uma sala, num quarto de estudos, estimula a relação material de diversas pessoas com aquele produto. Os leitores do impresso não são únicos: nós, potencialmente, atin-gimos muito mais do que 25 mil assinan-tes”, destaca Maurício.

Além disso, o público de estudantes nas séries iniciais do ensino fundamental desenvolve, desde muito cedo, novas rela-ções com a ciência, mediadas pela revista. “Recebemos relatos do impacto desse mo-mento de contato com a revista, que é vista pelas crianças quase como um presente, mesmo entre aquelas já acostumadas a

Para ouvir os programas da série, acesse http://bit.ly/Via-gemDeTie.

Além da revista impressa, hoje, o projeto “Minas Faz Ciência” con-templa dois sites, um deles dedi-cado ao público infantojuvenil, um canal no YouTube, o podcast “Ondas da Ciência” e perfis nas principais plataformas de redes sociais: somos @minasfazciencia no Instagram, no Facebook e no Twitter.

Rapidinhas! Todo mundo tem uma pauta, uma entrevista, uma capa e uma reportagem especial favorita. Conheça as preferências de quem está à frente da revista MINAS FAZ CIÊNCIA:

Edição predileta

Maurício – Gosto muito da discussão sobre o corpo, que fizemos na edição nº 62.

Vanessa – Me tocou muito a discussão sobre suicídio, na edição nº 63. O resultado da abordagem foi fantástico, apesar do tema delicado.

Capa preferida

M – Todas as capas in-fantis são esteticamente bonitas, e sempre apre-sentam uma pergunta, uma provocação.

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consumir informação na internet. Há uma vivência, uma experiência muito diferen-te, que deve ser valorizada por quem quer despertar o interesse, a curiosidade e a futura vocação em carreiras tecnológicas e científicas”, completa Vanessa.

Bastidores da produçãoO processo de produção da revista

começa com dois meses de antecedência da data de circulação, em encontros coor-denados por Maurício Guilherme, em que são debatidas sugestões recebidas de pes-quisadores, de outras instituições, temas factuais e, ainda, pesquisas do banco de dados da FAPEMIG. “Temos preocupação com a variedade de fontes que nos che-gam, e, também, em equilibrar as áreas do conhecimento, pesquisadores e pes-quisadoras, a diversidade das instituições e regiões de Minas Gerais, que devem ser igualmente contempladas”, detalha.

Definidas as pautas, os jornalistas da equipe partem para o trabalho de pesquisa e apuração juntos aos cientistas. “Aspecto importante desse momento é que as repor-tagens não se restringem ao momento da entrevista com o pesquisador; é necessário estudar e entender o tema, previamente, para fazer as melhores perguntas”, observa a diretora de redação, Vanessa Fagundes.

Maurício Guilherme, cuja trajetória de pesquisa está no campo dos estudos literários, resgata o conceito de trans-criação para descrever esse processo de construção das reportagens: “Há muitas relações na construção de textos jornalísti-cos. A transcriação diz de um território de convivência dos públicos com os pesqui-sadores, com a ciência e os jornalistas. É uma mistura. Não fazemos tradução literal e direta do discurso dos cientistas, o que seria impossível. Assumimos o lugar de uma ‘criação outra’, de um diálogo que parte do pressuposto de que todos pode-mos construir esse texto, a partir de nossas experiências individuais, em diálogo com o que a revista nos apresenta. Não é o dis-curso dos cientistas, nem da ciência; tam-bém não é uma aula. Trata-se, antes, de um convite: vamos conversar sobre ciência? É, enfim, uma antiaula: vamos ter dúvidas?”

Depois de prontas, as reportagens passam pelo processo de edição, que ade-

qua os textos ao estilo e à linha editorial da revista. Segue-se, assim, à diagramação, que vai muito além de mera técnica para organizar textos no espaço: o objetivo é oferecer informação visual sobre a pesqui-sa em questão. “As ilustrações e imagens são também criações, e servem à divulga-ção científica, não estão ali só para enfei-tar", pondera Vanessa.

Desenvolvimento mineiroA trajetória da publicação constrói

caminhos narrativos para a ciência no Estado: “Quando olhamos uma revista iso-lada, talvez isso não seja tão perceptível, mas, ao observarmos o conjunto dos últi-mos 20 anos, vemos a história da ciência em Minas naquelas páginas. Ao revisitar as publicações, me marcou muito a abor-dagem sobre o novo marco legal da ciência e da tecnologia, algo de nossa história re-cente que mudou a perspectiva da produ-ção científica para pesquisadores do Brasil inteiro. MINAS FAZ CIÊNCIA não deixou de debater cada um de seus aspectos, como a inclusão da inovação como eixo fundamental do desenvolvimento científico e as demais dificuldades legais enfrentadas pelos cientistas. Construímos essa história com as abordagens jornalísticas, por meio de nossas escolhas e do movimento das instituições”, observa Vanessa.

Maurício Guilherme explica que, do ponto de vista jornalístico, é importante que haja clareza sobre diferentes níveis de entrelaçamento entre sensibilidades, significados da ciência e modos de experi-mentação: “Não podemos ignorar as espe-cificidades de um jornalismo também ins-titucional, que se vincula ao modo como o Estado lida com suas políticas de ciência e suas relações nacionais e internacionais”.

Revisitar as páginas dos 20 anos de MINAS FAZ CIÊNCIA é, também, pensar como o próprio jornalismo foi imaginado e como as sensibilidades se concretizam em narrativas que tratam da ciência no Estado, em sua relação com a história do conheci-mento no Brasil e no mundo. “É como fa-lar da gota para discutir o oceano, mas de maneira muito rica. Uma só edição não dará

conta de todo o processo ligado à discussão da ciência. É preciso pensar cada novo nú-mero em seu tempo, e com os desafios de cada período, para, então, refletir sobre o conjunto”, completa.

Os próximos 20 anosTanto a diretora de redação quanto

o editor-chefe acreditam que a publicação representa a história da instituição e da ci-ência em Minas, além de revelar a própria evolução dos profissionais envolvidos na equipe. “É interessante ver como questões que antes não nos tocavam aparecem mais forte agora, o que demonstra nosso cresci-mento como pesquisadores da área, e, tam-bém, nosso compromisso ético com pautas que começaram a mobilizar a comunidade acadêmica no século XXI”, conta Vanessa Fagundes, em meio às reflexões sobre os desafios da inclusão e da diversidade, por exemplo. Ela acredita que o projeto “Minas Faz Ciência” construiu a história de uma equipe, que já teve diversos colaboradores ao longo dos anos: “Cada um deixou sua marca nas páginas da revista”, diz.

Para Vanessa, duas décadas é uma marca a ser intensamente comemorada, além de representar a oportunidade para repensar o significado da divulgação cien-tífica e de seus públicos: “Hoje, é muito raro encontrar um projeto com essa his-tória, que mantenha sua característica ori-ginal, como revista distribuída a qualquer interessado, em qualquer parte do Brasil. Isso diz de uma estratégia maior da ins-tituição, de realmente compartilhar o que está sendo produzido e investir na divulga-ção do conhecimento. É algo a ser festeja-do, mas que também nos leva a refletir: por que queremos comunicar ciência? Qual a relevância do trabalho que fazemos? Para quem direcionamos nossos esforços? Essa visão do que é a ciência contribui para o desenvolvimento social e científico? São temas em constante discussão no grupo, que alimentam e valorizam o projeto ‘Mi-nas Faz Ciência’. Avançamos a partir des-ses questionamentos”, destaca.

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ECONOMIA

Luiza Lages

Pesquisa avalia evolução dos custos “tarifários” e “não tarifários” do comércio

entre o Brasil e 178 países

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“Se o mundo fosse livre de imper-feições, um produto exportado pelo Brasil chegaria, a qualquer país importador, pelo mesmo preço. A diferença de valor, nor-malmente, inclui custos de transporte e uma série de outras medidas e restrições”, diz Orlando Monteiro da Silva, professor do departamento de Economia da Uni-versidade Federal de Viçosa (UFV). No passado, o comércio internacional foi mar-cado pelas barreiras tarifárias. A taxação de produtos importados funcionava como ação protecionista, para dar vantagem ao produtor interno. Tal tipo de tarifa impacta no preço final de mercadorias e serviços, e leva o consumidor a buscar o que é feito no próprio país, com preços menores.

Também eram comuns, no comércio entre nações, restrições quantitativas, cha-madas de “cotas”. Governos determinavam limites de importação sobre determinados produtos. Com o limite da quantidade de entrada de mercadorias, o preço unitário do produto subia, levando à menor compe-titividade no mercado externo. “As tarifas e cotas geravam distorções de preços entre os países, e, consequentemente, redução do comércio internacional”, explica Silva.

O pesquisador coordenou estudo sobre os custos do comércio internacio-nal brasileiro. Foram selecionados 178 países, em recorte temporal entre 1995 e 2013, com dados já atualizados até 2015. Analisou-se a diferença de preço entre os produtos exportados pelo Brasil e seus parceiros comerciais. A pesquisa mostrou que, ao longo dos anos, os custos tarifá-rios foram reduzidos.

Surgiram, então, as medidas não tari-fárias, como as sanitárias e fitossanitárias, sobre produtos agrícolas. “Os custos tari-fários, considerados transparentes, dimi-nuíram, por causa da visibilidade e da con-testação que geram. O que vai substituí-los são as barreiras não tarifarias”, completa o pesquisador. O estudo procurou calcular o tamanho de tais barreiras sobre o preço dos produtos, além de entender do que são constituídas e como evoluíram.

Barreiras não tarifáriasNo início de 2018, a União Europeia

embargou a entrada de produtos de carne

– principalmente, aves – de 20 fábricas brasileiras que tinham autorização para exportar aos países europeus. O embargo foi justificado por argumentos de que exis-tiam deficiências no controle de salmonela do frango exportado. A medida é fruto de desdobramento das investigações da Polí-cia Federal à BRF, companhia do ramo de alimentos.

A empresa foi implicada na operação Carne Fraca, com a alegação de que bur-lava os padrões de segurança alimentar. A BRF, por sua vez, argumentou que a decisão da Comissão Europeia não se baseou em questões sanitárias, e se configurava como medida de proteção ao mercado local.

Orlando Monteiro da Silva lembra que o embargo à BRF não é um caso isolado. Nos últimos anos, diferentes fábricas e pro-dutos brasileiros sofreram restrições de co-mercialização, com países diversos. “Essas medidas levaram a uma queda drástica das importações e exportações de alimentos, e, especificamente, de carnes. Tais situações chamam, e continuarão a chamar, a atenção do comércio internacional. Isso ficou claro em nosso trabalho: se um país quiser expor-tar com mais intensidade, terá que observar, muito bem, questões sanitárias e fitossani-tárias dos produtos que comercializa”, afir-ma o professor.

A necessidade de cumprir normas sanitárias para viabilizar a exportação de produtos eleva os custos de produção e, consequentemente, do produto final. “Se, para se adequar a essas condições, não é possível trabalhar com custos bai-xos ou aumentam-se os gastos, perde--se competitividade”, diz Silva. Questões técnicas, como rotulagem, embalagem e adequações às características culturais dos países, também são fatores significa-tivos, hoje, para o aumento dos custos do comércio internacional.

Blocos econômicosEm função da heterogeneidade asso-

ciada aos países avaliados, a pesquisa da UFV teve foco no comércio internacional do Brasil com grandes blocos econômi-cos. “Fez-se a pergunta: será que estar em um bloco econômico reduz custos? Os pa-íses, normalmente, juntam-se para reduzir

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as barreiras comerciais entre eles, e para realizar integração comercial”, explica Or-lando Monteiro da Silva. Calcularam-se, então, os custos do comércio brasileiro com Mercosul, Comunidade Andina, Nafta, União Europeia e Asean. No período, mais de 80% do comércio do País foi feito com nações pertencentes aos cinco blocos.

Segundo a análise, os produtos fo-ram divididos em “agrícolas” e “manufatu-rados”, ou “industrializados”. Os resulta-dos mostram que o custo do comércio dos manufaturados tem diminuído, principal-mente, em função da queda das tarifas ao longo do tempo. O mesmo não acontece com os itens agrícolas. De maneira geral, o custo do comércio do Brasil com os pa-íses do Mercosul é mais baixo, em função da menor distância entre os integrantes do bloco. Esses valores, porém, aumentaram no período.

“Um bloco de integração como o Mercosul, que seria tão importante para o Brasil, tem sido prejudicado por deficiência de infraestrutura, de exigências sanitárias e de fronteiras, além de uma série de outras medidas não tarifárias, inclusive, institu-cionais e de procedimento alfandegário”, afirma Monteiro. O pesquisador lembra que a Argentina barrava caminhões carregados

com produtos agrícolas brasileiros, na fron-teira com o Rio Grande do Sul. A liberação demorava tanto que as remessas eram per-didas. “A perecibilidade das mercadorias fazia com que o custo do comércio com a Argentina fosse maior”, conta.

Custos estruturaisOs 178 países estudados foram di-

vididos em países ricos, de renda média e baixa. “Vimos que o comércio do Brasil com nações de alta renda tem custo menor. Isso ocorre em função da infraestrutura e da tecnologia daqueles países, que facili-tam o comércio”, explica o pesquisador. A estrutura também afeta a relação comercial com nações próximas, fronteiriças. “Espe-ra-se que o custo de comércio com esses países seja mais baixo, pois a distância en-tre eles é menor. Isso, porém, nem sempre é verdadeiro”, esclarece.

A pesquisa mostrou que pode ser mais caro comercializar com países da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), por exemplo, do que da Europa ou da América do Norte. “Apesar de estarem próximos ao Brasil, tais nações não têm boas estradas ou portos, e acaba sendo mais caro comercializar com eles”, completa Monteiro.

PARTICIPAÇÃO DA FAPEMIGPROJETO: Os custos do comércio internacional brasileiro: trajetória recente e efeitos sobre o crescimen-to do comércio bilateralCOORDENADOR: Orlando Montei-ro da SilvaINSTITUIÇÃO: Universidade Fede-ral de Viçosa (UFV)CHAMADA: UniversalVALOR: R$ 50.400

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HISTÓRIA

O tabagismo no tempo

Alessandra Ribeiro

Pesquisa da UFMG apresenta retrospectiva

e realiza projeções sobre os efeitos do consumo de

cigarros no País

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Nos últimos 30 anos, o Brasil assistiu à queda vertiginosa do número de fuman-tes. Em 1989, a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição – primeiro levantamento a incluir informações sobre o tabagismo no País –, revelou que 34,8% da popula-ção adulta brasileira eram fumantes. Entre os homens, o índice chegava a 43,3%, e, no que tange às mulheres, a 27%. Dados mais recentes, apurados em 2013, na Pes-quisa Nacional de Saúde, mostram que 14,7% do total da população fumam. O atual percentual é de 18,9% na população masculina e de 11%, na feminina.

“O Brasil é referência no que diz respeito ao combate à epidemia do taba-gismo. De 1989 a 2013, houve redução de mais de 50% na prevalência. Nos paí-ses desenvolvidos, a diminuição foi mais lenta”, observa Cristiano Sathler dos Reis, autor da pesquisa que traça a história do tabagismo no Brasil. Sua tese de douto-rado foi defendida, em fevereiro de 2019, junto ao Programa de Pós-graduação em Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

As principais fontes de dados consul-tadas foram a Pesquisa Especial de Tabagis-mo (2008), incluída na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad); os cen-sos demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010; e estimativas do Sistema de Informa-ções sobre Mortalidade (SIM), do Ministé-rio da Saúde, e da Divisão de População da Organização das Nações Unidas.

No mesmo ano em que o tabagismo foi incluído, pela primeira vez, numa pesquisa nacional sobre saúde no Brasil, em 1989, também implementou-se o Programa Nacio-nal de Controle do Tabagismo, com adoção de uma série de medidas subsequentes: ba-nimento da propaganda do tabaco em todos os tipos de mídia; criação de mensagens de advertência nas embalagens dos produtos de tabaco; proibição de fumar em lugares fechados; aumento de impostos e preços dos produtos de tabaco, dentre outras.

Em março de 2019, o Governo Fede-ral criou um grupo de trabalho, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pú-blica, para avaliar a possibilidade de dimi-nuir a tributação dos cigarros fabricados no Brasil. Uma das justificativas seria a possível redução do consumo de produtos estrangeiros contrabandeados e de baixa qualidade. Na avaliação do pesquisador, se implementada, tal medida iria “na contra-mão” dos países desenvolvidos. “As pes-quisas que observam os efeitos das políti-cas públicas de combate ao fumo mostram que o imposto no preço do cigarro influen-cia a redução da prevalência do tabagismo, e, consequentemente, a mortalidade dos indivíduos nas nações”, destaca.

Nos termos usados pela pesquisa de Cristiano Sathler dos Reis, os estudos sobre “a epidemia do tabagismo” começa-ram com atraso no Brasil, em comparação a outros países. Segundo a retrospectiva traçada por ele, a primeira pesquisa do gê-nero foi publicada em 1939, na Alemanha, e mostrou que parcela significativa de pes-soas com câncer de pulmão (32%) eram usuárias do tabaco. Em 1950, começaram a ser publicados estudos em outros terri-tórios, como Inglaterra e Estados Unidos. “No Brasil, em relação aos países desen-volvidos, a epidemia começou mais tarde. Não tínhamos dados sobre isso”, explica.

Pesquisa publicada na revista PLoS Medicine, em 2012, avaliou o efeito das políticas antitabagistas implemen-tadas no Brasil, entre 1989 e 2010. Os resultados apontam que a medida mais importante para a redução da prevalência do tabagismo foi a polí-tica de aumento de impostos (48%), seguida por leis de ambiente livres de fumo (14%), restrições de comerciali-zação (14%), programas de incentivo de cessação (10%), avisos de saúde (8%), campanhas de publicidade e propaganda (6%) e maior restrição ao acesso de tabaco entre os jovens (inferior a 1%).

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A pesquisaPrimeiramente, fez-se a reconstrução

da história do tabagismo no Brasil, com base nas seguintes variáveis: coorte, ou seja, grupo de pessoas com uma mesma característica (nascidos entre 1929 e 1983); idade (15 a 79 anos); e período (1948 a 2008). “A pesquisa disponível era a PNAD, de 2008; nela são feitas perguntas sobre o histórico de consumo de tabagismo de cada pessoa. Os mais velhos que captei tinham de 75 a 79 anos. Em 1948, esse grupo etário tinha de 15 a 19 anos”, detalha. Os critérios foram observados entre homens e mulheres, pertencentes a dois grupos de escolaridade: “ensino superior completo e incompleto”, e “sem instrução”.

Também foram produzidas estimati-vas de mortalidade atribuível ao consumo de cigarro no País, para a população adul-ta, com idade a partir de 35 anos, entre 1980 e 2015. Para tanto, consideraram--se a taxa de mortalidade por câncer de pulmão e as estimativas do risco relativo de morte de fumantes em comparação ao de não fumantes. Com base nessas infor-mações, pôde-se realizar projeção dos efeitos do tabagismo sobre a mortalidade brasileira até 2030.

Sexo e cigarroA história do tabagismo no Brasil mos-

tra que o padrão de consumo do cigarro é di-ferente entre os sexos. Independentemente da idade e do período analisado, a prevalência do hábito de fumar é superior na população

masculina. Comparativamente, observou-se atraso de pelo menos 15 anos na propagação da epidemia entre as mulheres.

A tendência não é uma particularida-de brasileira: também se observou maior consumo de tabaco entre os homens, ao longo do tempo, em países como Alema-nha, Espanha, EUA e Japão, o que se ex-plica por motivos socioculturais. Estudos citados na pesquisa atribuem o menor consumo de tabaco entre as mulheres à desaprovação social e ao status socioeco-nômico mais baixo.

Nos Estados Unidos, mais de 50% da população jovem masculina fumou cigarros em 1920, enquanto, entre as mu-lheres, as maiores prevalências foram atin-gidas em 1950. Na Itália, o crescimento da prevalência revelou-se significativo entre nascidas a partir de 1960.

O pico da prevalência do tabagismo no Brasil se deu entre homens com menor escolaridade, na faixa etária de 30 a 34 anos, em 1963 – 68,4% eram fumantes. No caso das mulheres brasileiras, o ápice ocorreu entre aquelas que tinham de 25 a 29 anos, em 1988 – 40,6% fumavam. No período de 1980 a 2015, o tabagismo foi responsável por 6,5 milhões de mortes no País: 4,7 milhões entre os homens e 1,8 milhão entre as mulheres.

Segundo as projeções realizadas por Cristiano Sathler dos Reis, para o período de 2015 a 2030, se excluída a mortalidade atribuível ao tabagismo, a expectativa de vida adulta é maior em relação à do total da população em todo o período analisado.

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Para os homens, os ganhos seriam de 3,9 anos, para o conjunto de todas as causas, e de 1,1 anos, excluída a mortalidade atri-buível ao tabagismo. Os ganhos na expec-tativa de vida entre as mulheres seriam, respectivamente, de 1,9 anos e 1,6 anos.

Melhor saberA escolaridade é outro fator com

forte influência no consumo do tabaco, es-pecialmente para os homens, em todas fai-xas etárias analisadas: indivíduos menos escolarizados tendem a fumar mais. Entre as mulheres, a relação se revelou mais fra-ca, sobretudo, entre as nascidas de 1934 a 1948 (subdivididas em coortes de quatro anos), e de 1954 a 1958.

Embora a tese não seja conclusiva so-bre a associação entre nível educacional e tabagismo, há indícios de que o acesso à in-formação, sobre os efeitos nocivos do vício para a saúde, seja uma variável importante. Um modelo de evolução da epidemia do ta-baco na Europa, por exemplo, usado como referência para a tese de Reis, mostra a in-trodução do hábito de fumar, primeiramen-te, entre médicos, em razão da maior renda disponível. No entanto, à medida que os riscos do tabaco tornaram-se conhecidos, os mesmos profissionais foram os primei-ros a reduzir o consumo. O comportamento se repete na população em geral, quando as pessoas começam a se conscientizar acerca dos malefícios do tabagismo.

Outro estudo demonstra que a ini-ciação ao hábito de fumar na adolescência está relacionada à falta de compreensão mais apurada sobre os riscos associa-dos ao consumo do tabaco. A iniciação é crescente nesse período da vida, e rara em idades mais avançadas, quando a cessação torna-se mais comum. “Os jovens estão na fase de iniciação ao tabagismo. Os primei-ros grupos etários que começam a fumar vão dos 15 aos 24 anos. É muito raro que pessoas depois dos 30 anos comecem a fumar”, observa o pesquisador.

Há evidências científicas de que a idade tem influência sobre o hábito do tabagismo, associada a processos bio-lógicos e sociais de envelhecimento dos indivíduos. Isso se aplica, por exemplo, no início da fase adulta das mulheres. Durante

a idade fértil (dos 15 aos 39 anos), aquelas que desejam engravidar podem ter motiva-ções mais fortes para evitar o consumo do tabaco em relação aos homens.

Estudo realizado em 2016, a partir dos dados da Pes-

quisa Especial de Tabagismo, incluída na Pnad 2008,

mostra que as influências familiares (pais, mães e ir-

mãos) sobre a iniciação do tabagismo são importan-

tes. Os efeitos parentais variam de acordo com o sexo

de pais e filhos. As mães exercem maior influência

sobre as filhas, enquanto os pais, sobre os filhos. A

relação entre irmãos (e irmãs), no entanto, tem mais

importância para a iniciação do tabagismo entre os jo-

vens do que a relação entre pais e filhos – sobretudo,

entre pares de irmãos do mesmo sexo.

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MEDICINA

Mensageiros do fim

Mariana Alencar

Estudo desenvolvido por pesquisadora da Fiocruz-MG mostra que, apesar de frequente

nos hospitais de emergência, a morte se revela um tabu até mesmo para os médicos

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A finitude da existência é uma das poucas certezas da humanidade. A emoção relacionada à morte, entretanto, apresenta--se como fenômeno subjetivo, atrelado a contextos socio-históricos. Ou seja, muitos não sabem lidar com “o fim”, mesmo cien-tes de sua inevitabilidade. Tal dificuldade, aliás, não é problema exclusivo de quem perde entes queridos. O dilema atinge, tam-bém, a comunidade médica, cujo propósito reside nos cuidados com a vida humana e a quem cabe o difícil papel de comunicar, a familiares e amigos, as piores notícias.

Nos hospitais de emergência, por exemplo, embora a morte seja um evento frequente, devido à gravidade dos casos atendidos, os médicos percebem a vivência de comunicá-la como uma das mais árduas tarefas de seu fazer profissional. Isso acon-tece porque a função vem acompanhada por dificuldades culturais, éticas, políticas, am-biguidades e falta de preparo com o tema.

Tal dificuldade cotidiana da comuni-dade médica inspirou a psicóloga Gislai-ne Alves de Souza, doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou – Fio-cruz Minas, a desenvolver a dissertação de mestrado “Comunicar a morte em um hos-pital de emergência: a significação da ex-periência na percepção do médico”. Com especialização em programa de residência integrada multiprofissional em Saúde do Idoso, a maior parte de sua carga horária deu-se na assistência hospitalar.

“No mestrado, elegi como proposta aprimorar e aprofundar os estudos sobre a comunicação da morte em um hospital de emergência. Devido ao impacto do fe-nômeno nos envolvidos, e às implicações no cotidiano da assistência à saúde, inte-ressei-me por discutir a temática”, explica.

Análise de dadosAlém de inquirir o modo como os

médicos lidam com a necessidade de comunicar o falecimento de pacientes às famílias, a pesquisa buscou compreender as relações do médico com os limites en-tre vida e morte. O estudo de Gislaine de

Souza, afinal, integrou projeto mais amplo da Fiocruz, intitulado “Vidas em risco: uma abordagem antropológica sobre as repre-sentações da morte entre médicos que tra-balham em setores de urgência”.

Dessa forma, o primeiro passo da in-vestigação foi a coleta de dados, por meio da etnografia, realizada pela antropóloga Janaína de Souza Aredes. Durante nove meses, ela entrevistou e acompanhou 43 médicos que atuavam junto a pacientes graves, com risco de morte em um hospital de pronto-socorro, referência em trauma na América Latina, localizado no hipercen-tro de Belo Horizonte, Minas Gerais.

“Com o intuito de compreender o contexto em que os dados da etnografia fo-ram coletados e produzidos, também reali-zei visita técnica ao hospital. Após a leitura exaustiva das entrevistas e do diário de campo, iniciei a categorização dos dados de interesse para o estudo, assim como as análises. A pesquisa foi desenvolvida segundo a abordagem qualitativa guiada pela Antropologia Interpretativa”, detalha Gislaine de Souza.

A análise dos dados coletados mos-trou que a relação com a família, usual-mente, é rápida e impessoal. Além disso, a comunicação ocorre sem conversas pré-vias, de maneira a conciliar a atenção aos parentes à própria dinâmica das emergên-cias. Observou-se que, mesmo com a exis-tência de diretrizes que apontam formas de comunicar a morte, os médicos anunciam o falecimento de modo indireto, com uso de eufemismos e metáforas por veem a morte como tabu e fracasso.

Em outros termos, eles fazem uso de mecanismos defensivos, enfatizam a gravi-dade clínica e informam, progressivamen-te, sobre o agravamento do quadro, para que a morte seja aguardada pela família e se encaixe na rotina da emergência. “Trata--se de comunicação pensada nos moldes do modelo informacional, mas que, na prá-tica, é dinâmica e traz à tona significados envoltos por aspectos afetivos e sociocul-turais. Via de regra, a morte é interpretada

Método de investigação, por ex-celência, da Antropologia. De ampla abrangência, une técnicas de coleta de dados e incorpora, na análise, elementos observados e obtidos no campo. Na Saúde Coletiva, o mecanismo auxilia a compreensão das ações de pro-fissionais e pacientes, a partir do contexto em que estão inseridos.

como adversidade: o pior desfecho, a má notícia”, comenta.

Falar X AgirA pesquisadora relata, ainda, que,

no contexto do hospital de emergência, a cultura institucional predominante é in-tervencionista, ancorada no paradigma biomédico. Cabe ao profissional da saúde lutar contra a morte e silenciar suas emo-ções diante dos familiares e dos colegas. “O médico vivencia reações e emoções por ser o portador ‘oficial’ da comunicação da morte. E, embora tente lidar com ela de modo a não afetar sua vida pessoal, intera-ge com o familiar que sofre, é tocado pela reação do outro e lida com suas limitações, confrontando-se com o sofrimento próprio e alheio”, reflete Souza.

O estudo constatou que os signos e os significados correlacionados ao paradigma biomédico apresentam a morte como tabu ou fracasso, enquanto, em suas ações, o fim e a interação intersubjetiva revelam-se terreno obrigatório de emoções – as quais, por vezes, são escondidas pelo profissional. Isso porque a forma de pensar e agir, con-forme cultuada em um hospital de emergên-cia, deixa transparecer que, na comunicação da morte, não está em jogo a naturalidade da finitude dos seres vivos, mas a impossi-bilidade médica de salvar o paciente, além da subjetividade de todos os envolvidos.

Dentre os resultados da pesquisa, o que mais surpreendeu Gislaine Alves de Souza foi a contradição entre a fala e a ação dos médicos. Ela conta que, mesmo que

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alguns deles aleguem não ter dificuldades de comunicar a morte, de modo contrário, na ação de comunicar a morte evidenciam que o processo não é fácil. Os médicos, ainda que se demostrem frios, interpretam esse posicionamento como máscara para não interagir com o familiar que sofre, ad-ministrar seus afetos e minimizar a sobre-carga emocional de sua profissão. Acabam por se emocionar escondido no hospital, em outros ambientes e durante as entrevistas.

Os setores de urgência e emergência hospitalar configuram-se como lugares onde se luta pela vida. Além disso, comu-nicar é uma prática social: “Existem cons-truções sociais sobre a morte que impos-sibilitam a neutralidade do fenômeno. As dificuldades estão envoltas por questões que não se referem às informações técnicas e ao repasse da notificação do óbito bioló-gico, mas a ações que agregam aspectos humanos, intersubjetivos, psicossociais e culturais. Inicialmente, as perspectivas de interpretação dos médicos do hospital me eram distantes, mas a abordagem etnográ-fica do ofício me possibilitou compreender que existe diferença entre ‘o que dizem e o que fazem’”, alega.

A pesquisadora conta que um novo artigo está em desenvolvimento. Nele, serão analisados os elementos que in-fluenciam a comunicação da morte, em um hospital de emergência, conforme as características do paciente, a circunstância da ocorrência, o contexto de cuidados, a religião, o preparo para o fim e a formação médica. Outra ação resultante do estudo será a devolutiva aos participantes: “Con-sidero que as dificuldades com a morte, em cascata, influenciam as habilidades interpessoais e comunicacionais, assim como o próprio cuidado”, conclui Souza.

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FÍSICA

Cem anos atrás, Sobral, no Ceará, foi palco de expedição que revolucionou a

ciência moderna

Luiza Lages

Há exatos 100 anos, um eclipse solar levou o Brasil ao centro de uma observação astronômica que impactou a história da ciên-cia. Em maio de 1919, dois astrônomos in-gleses chefiaram uma expedição científica em Sobral, no Ceará. A missão era fornecer dados para comprovar a Teoria Geral da Relativida-de, publicada, em 1915, por Albert Einstein. Nela, o físico alemão lida com a gravidade e argumenta que tal fenômeno é provocado pela deformação do espaço e do tempo nas proxi-midades de um objeto material.

O que um eclipse tem a ver com a Teoria Geral da Relatividade?

“Uma das previsões da teoria é que a luz de uma estrela distante, quando pas-sasse próxima a um corpo de grande mas-sa, sofreria curvatura em sua trajetória”, diz Domingos Savio de Lima Soares, profes-sor do departamento de Física da Univer-sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma das formas de comprovar a curvatura provocada pela gravidade seria observar o céu em um eclipse solar total.

Durante o eclipse, a lua bloqueia o Sol. A “noite” em pleno dia permite aos cientistas medir as posições relativas das estrelas cujos raios luminosos passam nas imediações do Sol. Ao comparar com me-dições feitas durante a noite, seria possível verificar se essas estrelas apresentam o deslocamento aparente previsto por Eins-tein, provocado pela massa do Sol.

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Evidências da curvatura espaço-tempo

Por que Sobral?

No dia 29 de maio de 1919, um eclipse total do Sol acon-teceu e foi visível em faixa que incluía todo o Nordeste brasileiro e parte do continente africano. Arthur Eddington, influente astrô-nomo inglês, organizou duas expedições científicas para obser-vação do eclipse: uma no Brasil; a outra, na Ilha do Príncipe, na costa ocidental da África.

Os astrônomos Andrew Crommelin e Charles Davidson chefiaram a expedição em Sobral, município recomendado, aos ingleses, por astrônomos do Observatório Nacional do Rio de Janeiro. Além de estar localizada na região onde seria visível o eclipse, a cidade fica próxima a Fortaleza, o que facilitaria a co-municação e o transporte de equipamentos.

A expedição em Sobral

Os resultados obtidos em Sobral foram, e ainda são, alvo de críticas. “Não havia condições técnicas para obter a medida do deslocamento das estrelas com a precisão necessária”, critica Soares, ao explicar que, devido a problemas com equipamentos, à dificuldade de controlar condições externas e à tecnologia disponí-vel, seria muito difícil, à época, obter o nível de certeza necessário à comprovação do deslocamento estelar.

Depois de pouco mais de um mês, os ingleses retorna-ram a Sobral e fizeram novas medições das estrelas, à noite. Com uma média das marcações obtidas em So-bral e na Ilha do Príncipe, a equipe anunciou ter com-provado a Teoria da Geral da Relatividade.

(Um mês depois...)

A equipe de astrônomos ingleses trouxe dois instru-mentos para realizar as medições: uma câmera astro-gráfica, de Greenwich, e um telescópio irlandês, com lente de dez centímetros de diâmetro. Os astrônomos fizeram as medidas durante o eclipse, ao meio dia.

Incerteza

A faixa do Eclipse

Segundo Domingos Soares, outros experimentos confirmaram a teoria de Einstein. “Posteriormente, comprovou-se a deflexão não da luz visível, mas de ondas de rádio”, conta. Ondas emitidas por quasares, objetos distantes no Universo, também defletem ao passar pelo Sol. Hoje, o desvio luminoso é observado em inú-meras fotografias dos telescópios orbitais, como o Hubble, nos chamados efeitos de lentes gravitacionais.

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EDUCAÇÃO

Educar pela ciência

Lorena Tárcia

Laboratórios da UFMG buscam ampliar conexão com as escolas públicas e privadas

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Serviços personalizados, bilíngues, com equipes de professores doutores qua-lificados e disponíveis a atuar em parceria com as escolas de Belo Horizonte – e, até mesmo, do exterior. Eis alguns dos dife-renciais de três laboratórios integrantes do Programa Outlab, parceria da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) com a Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG (PRPq/UFMG), com vistas a estreitar as relações entre a classe científica, o ecos-sistema de inovação e a sociedade.

Segundo o pró-reitor de pesquisa da UFMG, professor Mario Fernando Monte-negro Campos, os resultados das pesqui-sas têm grande potencial. “A Universidade conta com ampla e diversa infraestrutura laboratorial, por meio da qual são condu-zidas pesquisas na fronteira do conheci-mento. Resultados dessas investigações científicas, frequentemente, apresentam grande potencial de se tornar produtos ou serviços inovadores, e com expressivo im-pacto social”, explica.

Dentre os 25 laboratórios selecio-nados para a primeira etapa do pro-

grama, três se dedicam a ampliar as conexões com escolas, e a trabalhar a inovação nos processos de ensino e aprendizagem. O projeto “Science School”, proposta coordenada pe-las professoras Sílvia Guatimosim e Maristela Poletini, atua com escolas de Belo Horizonte desde 2015. “Ini-ciamos tudo de forma tímida, sob o nome ‘Educa com ciência’, uma forma de dar oportunidade para que

alunos de pós-graduação exer-cessem a docência e a divul-gação científica, no ambiente

da educação básica”, conta Poletini.A equipe interdisciplinar identificou

fragilidades no ensino de ciências no en-sino básico e, a partir daí, oferece soluções criativas para que as escolas melhorem seu desempenho. Alunos entediados, fal-ta de fôlego dos professores em ampliar o escopo de atividades e e estrutura la-boratorial precária são itens presentes no diagnóstico do estudo, que reflete a reali-dade de boa parte das escolas de Minas e do Brasil. Como consequência, dados do

Pisa, prova realizada em 70 países, põem o País na 63º posição no que se refere ao ensino de Ciências.

A solução proposta pelo “Science School” envolve práticas científicas para aprendizagem ativa, interessante e enga-jadora, a partir de espaço físico adequado e insumos laboratoriais diferenciados. As imersões dos estudantes nestes ambien-tes podem acontecer na própria escola, na UFMG, ou de forma híbrida. Também existe a possibilidade de oficinas de férias, no formato summer school, e cursos de atualização em ensino de ciências para os professores.

“A proposta vai além da interface da UFMG com a educação básica. Nosso de-safio é possibilitar a imersão do estudante na ciência realizada na Universidade, em viés de divulgação científica”, pontua Ma-rina Poletini, ao destacar tal ponto como importante diferencial.

InteraçãoOutro laboratório dedicado à cone-

xão entre universidade e ensino básico é o Núcleo de Educação e Comunicação em Ciências da Vida (Neducom), do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Por meio do projeto “Interagir”, a equipe de professores e alunos oferece às escolas parceria para capacitação de educadores e educandos no âmbito da saúde. Oficinas destinadas aos estudantes abordam quinze temáticas, como drogas, educação sexual e viagem ao corpo humano. Já a formação de professo-res passa por oito assuntos, dentre os quais, depressão, ansiedade e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

As interações integram ações teóri-co-práticas, com uso de jogos, dinâmicas e equipamentos médicos. Ao lidar com peças anatômicas reais, ou, até mesmo, cadáveres, o projeto também pretende contribuir com o despertar vocacional dos estudantes. “Trabalhamos com obje-tos educacionais disponíveis somente em universidades”, destaca a coordenadora, Rafaellla Cardoso Ribeiro.

Além disso, “o contato com os moni-tores de diversos cursos da área da saúde facilita o engajamento dos estudantes, que, muitas vezes, deixam de fazer determina-

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dos tipos de questionamento a seus pro-fessores, principalmente, sobre assuntos relacionados à educação sexual”, pontua. A equipe multidisciplinar do laboratório é for-mada por professores doutores das áreas de Anatomia, Genética, Fisiologia e Histologia.

Com abordagem ampliada, o Labora-tório de Conexões Intermídia (Labcon), da Faculdade de Faculdade de Filosofia e Ci-ências Humanas, trabalha a interface entre comunicação e educação, na construção de narrativas em múltiplas plataformas, capa-zes de incorporar, à didática e aos projetos pedagógicos, as habilidades midiáticas características dos jovens estudantes do ensino médio. Por meio de metodologia própria, dentro de dinâmicas conhecidas como transmidiáticas, o projeto Transmedia Education desenvolve de materiais didáticos diferenciados a projetos de imersão nas es-colas, para construção coletiva de soluções

de aprendizagem diferenciadas, conectadas aos anseios de alunos e professores.

A coordenadora, professora Geane Alzamora, considera esta conexão uma importante maneira de ampliar as rela-ções entre a academia e a população. “A universidade pode contribuir muito com o processo de ensino e aprendizagem, nas dimensões social, cultural e política, pois, nelas, são desenvolvidas pesquisas de ponta em áreas de interesse das escolas, e não apenas do ponto de vista da didática, mas, também, da socialização”, destaca.

No caso do Labcon, as pesquisas enfatizam a visão crítica dos estudantes em relação àquilo que consomem nos meios de comunicação de massa. “O que nos mobiliza é compreender o consumo midiático estudantil fora da sala de aula, e como este hábito pode ser aproveitado nos processos escolares”, ressalta Alzamora.

DesafiosPara o pesquisador e professor Alfre-

do Gontijo de Oliveira, presidente da Fun-dep, “transformar as pesquisas científicas em produtos comercializáveis é um pro-cesso longo, que envolve diversas etapas e muitos riscos”. O programa Outlab, segun-do ele, foi idealizado a partir da identifica-ção de entraves nessa fase de transforma-ção, com a proposta de ajudar a capacitar os laboratórios da UFMG no processo de aproximação com o setor empresarial.

A maior dificuldade dos três labora-tórios, ao se avizinhar do mercado, segun-do as coordenadoras, está na conexão com as escolas privadas. Ou seja, a identifica-ção e a captação de possíveis parceiros. “Vimos, no Outlab, uma oportunidade para profissionalizar nosso trabalho, de forma mais efetiva, neste sentido”, conclui Ma-ristela Poletini.

Para saber mais

Outlab: www.programaoutlab.com.br

Contatos com os laboratórios:

Science School: [email protected]: [email protected] Education: [email protected]

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DEMOGRAFIA

Pelo direito de decidir

Alessandra Ribeiro

Relatório do Fundo de População da ONU revela que milhões de

mulheres ainda não têm autonomia sobre

sua fecundidade

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Em 1969, as mulheres tinham, em média, 4,8 filhos. Dentre as casadas, ape-nas 24% usavam algum método contra-ceptivo para retardar ou evitar a gravidez. Nos países menos desenvolvidos, onde somente 2% usavam algum método con-traceptivo, o número de filhos por mulher chegava a 6,8. Naquela época, o movi-mento de emancipação feminina lutava por igualdade de acesso à educação, de opor-tunidades de emprego e de remuneração, pelo direito ao divórcio e, até mesmo, à propriedade de imóveis.

Passados 50 anos, a liberdade e os direitos reprodutivos tornaram-se realida-de para muitas mulheres. Ao mesmo tem-po, em relação a outras, persistem desafios que impedem o exercício pleno desses di-reitos. Centenas de milhões ainda enfren-tam barreiras econômicas, sociais, insti-tucionais, dentre outras, que as impedem de tomar suas próprias decisões sobre quando, com que frequência e de quem en-gravidar. Esta é a principal constatação do “Relatório sobre a situação da população

mundial 2019: um trabalho inacabado”, documento publicado anualmente, desde 1978, pelo Fundo de População das Na-ções Unidas (UNFPA, na sigla em inglês).

Oficial de programa para População e Desenvolvimento do Fundo de População da ONU no Brasil, Vinícius Monteiro, mes-tre em Demografia pelo Centro de Desen-volvimento e Planejamento Regional (Ce-deplar) da UFMG, justifica o subtítulo da publicação. “Metas estabelecidas pela co-munidade internacional, há 25 anos, ainda não foram completamente cumpridas. O relatório destaca, por exemplo, que mais de 200 milhões de mulheres querem evitar a gravidez, mas ainda enfrentam barreiras para concretizar esse desejo por meio de métodos contraceptivos”, diz.

Vinícius Monteiro se refere ao plano elaborado com a participação de 179 pa-íses, em 1994, no Cairo, durante a Con-ferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. As metas previam o desenvolvimento sustentável baseado nos direitos, nas escolhas individuais e na conquista da saúde sexual e reprodu-tiva para todos. Em 2016, com a inclusão do acesso universal ao atendimento e aos serviços de saúde sexual e reprodutiva na “Agenda 2030 de Desenvolvimento Sus-tentável”, novos objetivos foram traçados: zerar as mortes maternas evitáveis e os ín-dices de violência ou prática nociva contra mulheres e meninas, além do atendimento a 100% das demandas de contracepção.

Métodos anticoncepcionaisNo Brasil, a população saltou de 92,9

milhões, em 1969, para 212,4 milhões em 2019, segundo dados do Fundo de População da ONU. Neste período, a taxa de fecundidade (estimativa de filhos por mulher) caiu de 5,2 para 1,7 – abaixo da

Casamento infantil: estima-se que 800 milhões de mulheres vivas, hoje, casaram-se quando eram crianças.

Marcos para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres

1970

Conselho de População da ONU estabelece o Comitê Internacional para a Pes-quisa em Contracepção

O Dispositivo Intrauterino (DIU) Dalkon Shields

entra no mercado

1971

Legalização do aborto nos Estados Unidos

1973 1975

Abertura da Década das Mulhe-res, instituída pela ONU

1979

Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (Cedaw) é adotada

Primeira transferência de embrião de uma

mulher a outra resulta em um nascimento vivo

1984

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média global, de 2,5 filhos. “A taxa de fe-cundidade do Brasil, hoje, está abaixo do que chamamos de nível de reposição, de 2,1 filhos por mulher. Se a média for man-tida ao longo do tempo, a tendência é que a população se estabilize, pare de crescer. Abaixo disso, há tendência de declínio, em médio e longo prazos”, explica o demógra-fo do UNFPA.

Hoje, 77% das brasileiras casadas, ou em qualquer tipo de união, na faixa etá-ria dos 15 aos 49 anos – a chamada idade reprodutiva –, usam algum método con-traceptivo moderno (esterilização, DIU ou pílula) para retardar ou evitar a gravidez. O percentual supera os índices de contracep-ção em nível mundial (58%) e na América Latina (70%). “Isso representa avanços que o Brasil conquistou nas últimas déca-das, principalmente, com o Sistema Único de Saúde, o SUS, que oferece oito tipos de métodos contraceptivos à mulheres que de-sejam evitar a gravidez”, analisa Monteiro.

A adesão aos chamados contracepti-vos modernos só é maior na China (82%), no Reino Unido (79%) e na Finlândia

(78%). Costa Rica e Nicarágua apresen-taram índices semelhantes ao brasileiro (77%). O relatório do UNFPA destaca que as taxas de prevalência de contraceptivos são, geralmente, mais baixas entre os 20% mais pobres da população, e mais altas en-tre os 20% mais ricos. No caso do Brasil, apesar do índice elevado, há fortes diferen-ças regionais, também influenciadas por fatores como raça, cor, idade, nível socio-econômico e escolaridade. “Observamos que, no meio urbano, as mulheres têm nú-mero de filhos mais próximo ao que gos-tariam de ter, enquanto, no ambiente rural, não conseguem controlar sua fecundidade da maneira que gostariam”, compara.

AbortoSegundo o relatório do Fundo de

População da ONU, 42% das mulheres em idade reprodutiva vivem nos 125 países onde o acesso ao aborto seguro é altamen-te restrito. No entanto, os dados sugerem que a frequência da prática não é significa-tivamente impactada por restrições legais: as taxas em nações com leis restritivas

1985

África do Sul retira o banimento a casa-mentos inter-raciais

1986

Primeira criança nascida de uma mãe de aluguel sem

relação com os pais

1987

Lançamento da Iniciativa Maternidade Segura

1995

4ª Conferência Mundial das Nações Unidas Sobre Mulheres

1997

Divórcio é legalizado na República da Irlanda

2007

UNFPA lança Programa Global de Insumos para a

Saúde Reprodutiva

aproximam-se das registradas naquelas com legislação mais permissiva. A dife-rença é que, quanto mais restritivo o con-texto legal, maior a proporção de abortos inseguros, que varia de menos de 1% (nos países menos restritivos) a 31% (mais res-tritivos). Em todo o mundo, apenas 55% dos abortos são seguros e contam com método recomendado, administrado por profissional capacitado.

Vinícius Monteiro lembra que a questão foi tratada na Conferência Interna-cional sobre População e Desenvolvimen-to, em 1994. À época, os países concorda-ram que, em nenhuma hipótese, o aborto poderia ser promovido a método de plane-jamento familiar. Os países, porém, teriam autonomia para decidir em que situações ele seria legalizado ou não. “A prevenção da gravidez indesejada deve ser sempre tratada como prioridade pelos países, para evitar a necessidade de aborto. Indepen-dentemente da causa, nos casos em que isso acontecer, é necessário fornecer apoio amplo, além de todo o acesso aos serviços de saúde”, esclarece.

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Gravidez na adolescênciaOutro dado que chama a atenção

refere-se à gravidez precoce. No mundo, o número de filhos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos chega a 44. Entre as brasileiras, são 62, mesmo número apu-rado entre as jovens latino-americanas. “Apesar de ter reduzido a taxa de fecundi-dade, a gravidez na adolescência é um de-safio muito significativo, no caso do Bra-sil, e na América Latina, como um todo”, aponta Monteiro.

O relatório revela que, apesar da am-pla evidência de que muitos adolescentes não casados são sexualmente ativos, nor-mas sociais e, até mesmo, impedimentos legais podem limitar ou proibir discussões sobre saúde sexual e reprodutiva, ou acerca de sexualidade entre os jovens. Em 2017, 68 dos 108 países que enviaram dados ao Programa Conjunto das Nações Unidas

Do controle à saúdeO Fundo de População das Na-

ções Unidas (UNFPA) foi criado em 1969, quando a população mundial alcançou a marca de 3,6 bilhões de habitantes. O número representava um aumento de cerca de 1 bilhão de habitantes, em apenas 17 anos. A preocupação era que o crescimento populacional prejudicasse o progres-so econômico e o meio ambiente.

O Fundo passou a apoiar pro-gramas nacionais de população, que distribuía contraceptivos em escala sem precedentes. Isso acabou por estimular políticas de controle popu-lacional nas décadas de 1970 e 1980. Com financiamento e incentivo de países doadores e fundações, alguns países implementaram programas que coagiam ou forçavam casais a usar contraceptivos ou a limitar o ta-manho de suas famílias – inclusive, com incentivos financeiros.

Anos mais tarde, com a pressão de movimentos feministas e defenso-res da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, houve mudança de pa-radigma. O foco, antes voltado a ques-tões populacionais e à redução da fecundidade, passou a ser os direitos dos indivíduos e dos casais de pre-venir ou retardar a gravidez, além de alcançar a saúde sexual e reprodutiva.

Para além dos métodos con-traceptivos, a saúde e o bem-estar sexual e reprodutivo das mulheres passaram a englobar outros fatores, como a capacidade de prevenir e administrar complicações do aborto inseguro; sua capacidade de evi-tar ou tratar infecções sexualmente transmissíveis, o que inclui o HIV; e os cuidados que recebem durante a gestação e o parto. A prevenção e o manejo da infertilidade e do câncer ginecológico também foram defini-dos como partes da saúde sexual e reprodutiva feminina.

sobre HIV/AIDS (Unaids) indicaram a exi-gência de consentimento dos pais para que menores de 18 anos possam acessar servi-ços de saúde sexual e reprodutiva.

Mesmo quando o objetivo da legis-lação é proteger os menores, isso pode desencorajar adolescentes a buscar apoio profissional especializado. As jovens são as principais afetadas, já que sofrem as conse-quências sociais e físicas de uma gravidez não intencional. “É necessário avançar nas causas que chamamos de ‘determinantes indiretos’. Tudo se relaciona ao serviço de saúde e à informação, mas, também, a questões de gênero. Muitas vezes, a adoles-cente tem acesso à camisinha, e sabe da im-portância do preservativo, mas, na hora da relação sexual, não consegue negociar com o parceiro. É necessário trabalhar o empo-deramento da mulher e o conhecimento dos homens, para que haja impacto nos indica-dores”, destaca o pesquisador.

2009

Pílula do dia seguinte é aprovada pelo órgão americano Food and Drug Administration

(FDA) para uso por ado-lescentes de 17 anos

2012

Assembleia Geral da ONU adota resolução sobre a prevenção à mutilação

genital feminina

2013

Comissão da ONU sobre o Status de Mulheres exige que os estados

ponham fim à prática de casamento infantil, precoce e forçado

2016

Acesso universal ao atendimento e aos serviços de saúde sexual e reprodutiva é incluído nas Metas de Desenvolvimento Sustentável

2017

Milhões de pessoas em 168 países

unem-se à Marcha das Mulheres

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SAÚDE MENTAL

o excesso destrói

Mariana Alencar

Estudo busca avaliar como inundações e secas impactam a saúde mental de

crianças e adolescentes

A falta castiga,

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Na literatura acadêmica, a estimati-va é de que, em média, ocorra, a cada dia, um desastre ambiental – que pode ser de-finido como evento imprevisível, capaz de causar danos enormes, como destruição e sofrimento humano. De modo específico, as tragédias naturais são provocadas por desequilíbrios da natureza, sem atuação hu-mana, embora possam ser potencializados por ela. Ao redor do Planeta, ano após ano, é possível notar aumento de tais catástrofes, principalmente, relacionadas ao desequilí-brio climático, a exemplo de tempestades, ciclones e temperaturas excessivas.

No Brasil, as secas e as inundações são os desastres naturais mais frequen-tes. De acordo com a Agência Nacional das Águas (ANA), só em 2017, ao menos 40 milhões de brasileiros foram atingi-dos por um dos dois fenômenos. Dentre os impactos das tragédias na sociedade, destacam-se problemas à saúde mental dos atingidos, efeitos, por vezes, maiores que os danos físicos. Ainda que as vítimas consigam se recuperar ao longo do tempo, muitos passam a apresentar queixas diag-nósticas como “transtornos mentais”.

Diante deste cenário, Sabrina de Sousa Magalhães investiu no trabalho “De-sastres decorrentes de eventos climáticos extremos: impacto na saúde mental e acom-panhamento prospectivo de sintomas em crianças e adolescentes”, tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Gradu-ação em Medicina Molecular da Universida-de Federal de Minas Gerais (UFMG).

O principal objetivo da investigação foi avaliar a saúde mental de indivíduos entre 6 e 18 anos, expostos à seca e às inundações. “A pesquisa teve caráter ex-ploratório. No contexto de mudanças cli-máticas, queríamos ver como isso se dava no Brasil, em relação, principalmente, a um público pouco estudado: as crianças”, conta Magalhães.

A escolha de trabalhar com os pe-quenos e pequenas, além dos jovens, foi influenciada, justamente, pela escassez de estudos similares. Além disso, crianças e adolescentes são mais vulneráveis do que os adultos aos impactos de estressores ambientais. Outros trabalhos já mostraram que a vivência de tais desastres, durante

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a infância, afeta a pessoa de forma signi-ficativa. Os sintomas de ansiedade podem acompanhar a vítima até a vida adulta. Daí a importância da pesquisa no auxílio precoce a problemas que podem surgir mais tarde.

Outro elemento que motivou Sabrina Magalhães diz respeito ao caráter multi-disciplinar do estudo, e à convergência com sua trajetória acadêmica. “Ainda na graduação, fiz iniciação cientifica na área de Neuropsicologia do envelhecimento, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Depois me formei em Psicologia, e fiz mestrado na área. À época, tive contato com um professor da UFMG, que me in-centivou a fazer o doutorado”, conta.

Na Universidade mineira, já existia um projeto, coordenado por Marco Aurélio Romano-Silva, que precisava de alguém que o levasse adiante. “Por conta do ca-ráter interdisciplinar da proposta, senti-me confortável em assumir o desafio. Trata-se, portanto, de trabalho que aborda aspectos da Medicina, Psicologia e da Geografia, além de contar com grande aplicabilidade social”, frisa a pesquisadora.

Região NorteO primeiro passo para realização da

pesquisa referiu-se à escolha dos locais de ação. Cogitaram-se São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, mas foi na capital do Acre que Magalhães e sua equipe encontraram as condições ideais para entrevistar crian-ças e adolescentes expostas às inunda-ções. Por se situar no Norte do País, Rio Branco apresenta clima equatorial chuvo-so. Isso significa que, por ali, praticamente não há estação seca. Além disso, trata-se de área com maior nível pluviométrico anual da nação.

No que diz respeito à seca, o local escolhido foi o Norte de Minas Gerais, ou, mais especificamente, a cidade de Francis-co Sá. A região apresenta clima semiárido, com baixas taxas pluviométricas. Dife-rentemente das inundações, a aridez foi considerada, na pesquisa, como desastre ambiental crônico, pois a população está constantemente exposta a ela.

Todos os jovens que participaram do estudo foram recrutados em escolas públicas, a partir do seguinte critério de

inclusão: ter entre 6 e 18 anos; estar ma-triculado em escola da região; ter autoriza-ção do responsável e interesse próprio em participar da pesquisa. “O primeiro contato com os jovens foi via Secretaria Munici-pal de Educação ou da Saúde. Depois de realizado o convite, deslocamo-nos para os locais, em equipe com três ou quatro pessoas. Com todos os documentos de autorização e assentimento assinados, en-trevistamos, primeiramente, os pais e, em seguida, os jovens”, conta a pesquisadora.

Métodos adaptadosPara a realização das entrevistas,

recorreu-se a dois instrumentos comuns da Psicologia: o questionário chamado “Inventário de comportamentos da infância e da adolescência”, respondido por pais ou responsáveis pelos jovens; e a escala “Children Revised Impact of Event Scale (Cries)”, que avalia os sintomas de Trans-torno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em crianças e adolescentes.

O TEPT ocorre quando uma pessoa é exposta a episódio concreto de ameaça de morte, lesão grave, ou, ainda, ao tes-temunhar acontecimento traumático com outros indivíduos. Tais quadros impactam diretamente no funcionamento social e educacional das vítimas. Alterações de hu-mor, intrusão de lembranças angustiantes e fuga de estímulos que remetem ao episó-dio traumático são sintomas comuns nos casos ligados ao Transtorno.

Para a pesquisa, foi necessário, ainda, que Magalhães e sua equipe adap-tassem a escala Cries para a realidade da população infantil brasileira. Feito isso, o contato com os jovens permitiu que os pesquisadores extraíssem o máximo de in-formações, para que a saúde mental fosse precisamente avaliada, sob vários aspec-tos.

“A partir do contato com as crianças e os adolescentes, avaliamos dados de saúde mental, variáveis cognitivas, como inteligência, atenção e memória, e reali-zamos tarefas qualitativas, para ver como elas vivenciaram os desastres. Também re-alizamos a coleta de materiais biológicos, como sangue e cabelo. Isso tudo para que a saúde mental pudesse ser analisada sob

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diversos âmbitos: molecular, comporta-mental e cognitivo”, detalha.

SurpresasOs primeiros resultados apresentaram

discrepância entre relatos dos pais e dos jovens. Segundo a pesquisadora, os depoi-mentos das crianças e dos adolescentes fo-ram mais efetivos para a avaliação do que o comportamento relatado pelos responsáveis.

A partir da coleta dos dados, obser-vou-se que a maioria das crianças, tanto aquelas expostas a inundações quanto as que vivem em condições de seca, não de-senvolveram o TEPT. A pesquisa, entretanto, mostrou que alguns dos sintomas relatados podem ser relevantes para o funcionamento social e educacional dos indivíduos.

Após a realização da primeira coleta de dados, os pesquisadores realizaram o acompanhamento prospectivo dos jovens que participaram da pesquisa. Para o gru-po da inundação, os questionários foram aplicados 14 meses após a primeira entre-vista. Em relação ao da seca, o novo conta-to foi feito depois de 17 meses.

No processo, observou-se que, em geral, a maioria dos sintomas apresentou remissão ao longo do tempo. Contudo, no ambiente de seca, os sintomas relativos ao TEPT e à ansiedade foram mantidos, ou mesmo aumentaram, neste período. “O resultado foi surpreendente para mim, pois acreditava que os jovens submetidos à seca já estavam adaptados àquele am-biente. Houve remissão dos sintomas na população exposta às inundações porque as condições foram reestabelecidas após o desastre”, explica Magalhães, ao lembrar que, em relação à aridez, a condição é crô-nica. “Além disso, no caso da inundação, as famílias apresentavam resiliência muito grande, o que, acreditamos tenha permi-tido a diminuição dos sintomas. As me-

diações social e familiar foram importantes nestes contextos”, reflete.

Frentes de pesquisaO percurso da pesquisa e os resulta-

dos obtidos instigaram Sabrina Magalhães a aplicar a metodologia em outras regiões. A pesquisadora pretende investigar desastres ambientais fortemente influenciados pela ação humana, como no caso dos desaba-mentos das barragens de Bento Rodrigues e Brumadinho. “Cogitamos realizar a pes-quisa nestes locais, mas ainda não há equi-pe para abrir nova frente de trabalho. Isso está no horizonte. Temos a hipótese de que desastres causados diretamente pela ação – ou omissão –, humana possuem impacto mais intenso do que os naturais”, comenta.

Ainda que não tenha sido possível expandir o estudo a outras áreas, a pesqui-sadora acredita na relevância da proposta, e, também, do que já foi realizado: “Os estudos contribuem com o aumento da conscienti-zação da comunidade científica e do poder público acerca das consequências de de-sastres naturais, principalmente, ao desen-volvimento de crianças e adolescentes”.

Na inundação, 57,4% das crianças e 94,7% dos adolescentes foram ras-treados positivamente para TEPT. Já na seca, 16% das crianças e 23,5% dos adolescentes foram positiva-mente rastreados para TEPT.

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HIPERLINK

Recursos educacionais IIOutro repositório online de recursos para uso em sala de aula é o Instituto Net Claro Embratel. Há recursos para ensinar, aprender e se inspirar. É possível pesquisar por nível de ensino ou por área de conhecimento. No campo de ciências, por exemplo, há planos de aula sobre como construir átomos e material detalhado para auxi-liar o professor a explicar a febre amarela, dentre outros tantos recursos gratuitos. Acesse: http://bit.ly/recursosgratuitosmfc.

Lorena Tárcia Ciência inboxO projeto “Minas Faz Ciência” agora tem newsletter. Quer re-ceber notícias sobre o universo mineiro das ciências? Entre no minasfazciencia.com.br e logo aparecerá o quadro para você se cadastrar.

Curiosidades científicas IPerguntamos a nossos seguidores do Instagram: “O que você gostaria de saber sobre as pesquisas cien-tíficas produzidas em Minas?” Recebemos várias e ótimas respostas, a serem transformadas em repor-tagens para nossos sites e para a revista. Os mineiros querem saber, por exemplo, se existem programas de incentivo para aproximar estudantes do ensino médio com a ciência, e se há pesquisas sobre a redução do consumo de plástico e uso de bioplástico nas gran-des cidades. Também quer contribuir? Envie sua su-gestão para [email protected] ou converse conosco em nossas redes sociais (Face, Instagram e Twitter).

Curiosidades científicas IIVocê tem ideia de quais palavras-chaves mais levam pessoas a nosso site infantil? As pesquisas que mais direcionam são “telescópio caseiro”, “por que feve-reiro tem 28 dias?” e “minhocuçu”. Já no site MFC, eis as temáticas campeãs: “respiração das plantas”, “química forense” e “cobra coral verdadeira”.

Curiosidades científicas IIIO que é uma estrela cadente? Como passear por Mar-te por meio da tela do computador? Qual a duração do dia nos outros planetas do Sistema Solar? Essas curiosidades são respondidas no Blog do Espaço!, mantido pelo Espaço do Conhecimento UFMG. Aces-se lá: http://bit.ly/blogespaco.

Recursos educacionais I Escola Digital é um portal gratuito e aberto, com mi-lhares de recursos digitais mapeados. São vídeos, áudios, games, livros digitais, aplicativos e outras ferramentas que podem ser usadas dentro ou fora do ambiente escolar. O usuário pode fazer buscas genéricas – apenas pelo nome da disciplina ou pelo tipo de mídia de interesse – ou mais específicas, da seleção de conteúdos envolvendo temas transversais a recursos multidisciplinares. Também é possível se cadastrar para aproveitar todos os recursos de intera-ção e criação, além de participar do curso a distância, disponível, gratuitamente, para professores e gesto-res escolares: https://escoladigital.org.br.

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CONTEMPORÂNEAS

Sob novas funções

No ano em que completa 20 anos, plataforma Lattes se moderniza para facilitar integração do currículo a outras bases de dados

Mariana Alencar

Em abril de 2019, começou a circular nas redes sociais a notícia de que a plata-forma Lattes estava prestes a acabar. A in-formação, entretanto, era falsa. Na ocasião, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não só desmentiu o boato, como anunciou a mo-dernização do serviço.

Criada em 1999, a ferramenta é, hoje, responsável por integrar, em um único sis-tema de informação, bases de dados de currículos, grupos de pesquisa e institui-ções. Trata-se do mais importante conjunto de informações acadêmico-científicas do País, com cerca de seis milhões de docu-mentos cadastrados.

A importância da plataforma vai além da quantidade de currículos cadastrados. Sua dimensão engloba, também, ações de planejamento e gestão de agências de fomento federais e estaduais, fundações de apoio à ciência e à tecnologia, instituições de ensino superior, institutos de pesquisa, além do próprio CNPq. Trata-se, ainda, do instrumento que auxilia ações de órgãos governamentais e políticas estabelecidas pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

“Nesses 20 anos, o principal fenô-meno resultante da criação da plataforma foi a capilarização a partir da adoção do currículo, o que aconteceu em 16 de agos-to de 1999. Hoje, quase tudo no mundo acadêmico envolve informações do cur-rículo Lattes, que, ao longo do tempo, foi reconhecido como espaço para registro da vida acadêmica do pesquisador”, comenta Vinícius Medina Kern, professor de Ciên-

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cia de Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Modernização anunciadaEm dezembro de 2018, o CNPq

anunciou o plano de modernização da pla-taforma. Com o intuito de tornar o sistema mais eficiente, a proposta deve repensar o posicionamento estratégico do Lattes. A ideia é aprimorar as tecnologias e a qua-lidade das informações, por meio da cor-reção de falhas identificadas na ferramenta.

A principal mudança, já implemen-tada, é a integração da plataforma com o Orcid (Open Researcher and Contributor ID), um código identificador amplamente usado no meio acadêmico, sobretudo fora do Brasil, para identificação de autores de trabalhos científicos. O preenchimento das informações no currículo Lattes é de

responsabilidade do pesquisador. Ou seja, cabe ao usuário o fornecimento de dados, o que acaba por aumentar o risco de frau-des e erros. Com a integração ao Orcid, a certificação dos dados será refinada, posto que se torna mais fácil cruzar as informa-ções com outros identificadores.

Segundo Kedma Duarte, pesquisa-dora membro da Comissão de Gestão da Plataforma Lattes (ComLattes), a proposta de modernização visa a transformá-la em sistema essencialmente digital. “Até então, há dificuldade para o pesquisador estran-geiro se cadastrar. Com a integração ao Orcid, isso ficará mais fácil. Todos poderão integrar seu currículo ao de outros países. Além disso, as informações de outros cur-rículos internacionais poderão ser impor-tadas automaticamente”, explica.

Atualmente, ao menos 120 mil pes-quisadores brasileiros adotam essa assina-tura digital única. Isso faz com que o Brasil ocupe a sexta posição no ranking de países a usar o identificador. Com a integração ao Lattes, a expectativa é que o número aumen-te e o retrabalho de inserção de dados em sistemas diversos seja minimizado.

Nesse sentido, outra mudança, im-plementada aos poucos, é a integração com bases de dados nacionais. Kedma Duarte explica que, com a alteração, o pesquisador poderá importar as informa-ções para pesquisa do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). O plano de modernização do Lattes prevê, também, integração com a plataforma Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-perior (Capes), que trata da avaliação da pós-graduação

“O coordenador poderá importar, de uma vez só, todos os currículos dos docentes envolvidos no trabalho. Isso, hoje, é muito trabalhoso, pois também há informações duplicadas. As mudanças são a oportunidade de aproximação com pessoas fora da comunidade acadêmica. O CNPq trabalha, também, no desenvolvi-mento de um aplicativo, para que os pes-quisadores possam acessar o Lattes pelo celular. Haverá ainda outros apps para tomada de decisão das universidades”, detalha Kedma Duarte.

Burocracias e dificuldadesEm duas décadas de existência como

banco nacional de currículos acadêmicos, a plataforma Lattes é referência nas uni-versidades. Hoje, mesmo alunos de gra-duação, no início da trajetória acadêmica, precisam ter seus currículos registrados na ferramenta, para que possam desenvolver trabalhos de iniciação científica.

Ao longo dos anos, a plataforma pas-sou por diversas transformações. Vinícius Kern destaca a mudança que aconteceu ainda nos primeiros anos de existência do Lattes: “Em 2003, houve imensa perda sis-têmica. As mudanças de governo, à época, criaram dificuldades. Até 2002, o CNPq envolvia várias instituições de ensino e pes-quisa na evolução do Lattes. Essas institui-ções expunham suas demandas sobre o que era importante mudar no currículo”, lembra, ao comentar, ainda, que a grande virtude disso era que, mesmo que não fosse aten-dida, a comunidade saberia que o currículo iria mudar em determinada direção. “Isso permitia que as instituições se adaptassem às mudanças. Em 2003, com a ruptura, a participação acabou. Hoje, as universidades sabem das mudanças apenas por meio da observação”, relembra o pesquisador.

As transformações pelas quais a plataforma passou revelam que o atual processo de modernização não indica a obsolescência do sistema. Trata-se, na verdade, de ação necessária, que visa acompanhar as mudanças tecnológicas e informacionais das últimas décadas. “Vejo com bons olhos que a base curricu-lar e a plataforma, que é uma coisa viva, precisam progredir. Entretanto, há outros pontos a serem adaptados, mas que não estão previstos na modernização. Há, por exemplo, falta de definição sobre o que significam as informações e categorias a serem preenchidas”, destaca.

Como exemplo, Kern pergunta: “O que é um projeto de pesquisa?”. “Na plataforma, precisamos informar sobre ‘projetos’ e ‘projetos de pesquisa’. Algu-mas definições tornam-se confusas para pessoas que têm contato pela primeira vez com o sistema. Tal situação, inclusive, dá margem a acusações de fraude. Por vezes, porém, trata-se, simplesmente, de preen-chimento malfeito”, completa.

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O conhecimento e seus iluminares.

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MINAS FAZ CIÊNCIA • JUN/JUL/AGO 2019 59

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60 MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019

MUDOU-SEDESCONHECIDORECUSADOFALECIDOAUSENTENÃO PROCURADOEND. INSUFICIENTECEPNÃO EXISTE Nº INDICADOINFORMAÇÃO ESCRITA PELOPORTEIRO OU SÍNDICO

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