a globalização e os direitos do consumidor

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A proteção do consumidor na era da globalização Cristiano Chaves de Farias Promotor de Justiça – BAHIA Professor do curso de Direito da UNIFACS – Universidade Salvador; da Faculdade de Direito da UCSal. – Universidade Católica do Salvador; do JusPODIVM – Centro Preparatório para a carreira jurídica; e da FESMIP – Fundação Escola Superior do MP/BA. Pós-graduando em Direitos Difusos pela PUC/SP e FESMIP/BA Membro do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual. Sumário: 1. Um novo tempo e uma nova concepção jurídica: a cidadania como elemento fundamental da ordem jurídica; 2. A idéia da proteção consumerista como consectário dessa nova era de direitos; 3. O sistema de defesa do consumidor no direito brasileiro; 4. A globalização como fenômeno do mundo moderno; 5. A (re)afirmação da proteção do consumidor em face da globalização; 6. Notas conclusivas. Bibliografia. “Ode ao consumidor Consome a dor da triste soberania enquanto o dominador contempla a mística do mercado (de norte a sul, de leste a oeste...) e exclama extasiado: ‘consummatun est’.” (Newton de Lucca) 1. Um novo tempo e uma nova concepção jurídica: a cidadania como elemento fundamental da ordem jurídica.

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Page 1: A Globalização e os Direitos do Consumidor

A proteção do consumidor na era da globalização

Cristiano Chaves de FariasPromotor de Justiça – BAHIA

Professor do curso de Direito da UNIFACS – Universidade Salvador; da Faculdade de Direito da UCSal. – Universidade Católica do Salvador;

do JusPODIVM – Centro Preparatório para a carreira jurídica; e da FESMIP – Fundação Escola Superior do MP/BA.

Pós-graduando em Direitos Difusos pela PUC/SP e FESMIP/BAMembro do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Sumário:

1. Um novo tempo e uma nova concepção jurídica: a cidadania

como elemento fundamental da ordem jurídica; 2. A idéia da

proteção consumerista como consectário dessa nova era de

direitos; 3. O sistema de defesa do consumidor no direito

brasileiro; 4. A globalização como fenômeno do mundo

moderno; 5. A (re)afirmação da proteção do consumidor em

face da globalização; 6. Notas conclusivas. Bibliografia.

“Ode ao consumidor

Consome a dor da triste soberania enquanto o dominador

contempla a mística do mercado (de norte a sul, de leste a

oeste...) e exclama extasiado: ‘consummatun est’.” (Newton de

Lucca)

1. Um novo tempo e uma nova concepção jurídica: a cidadania como elemento fundamental da ordem jurídica.

É imperativo reconhecer que as grandes transformações, de

diferentes matizes e origens, diuturnamente impostas nos mais diversos setores

da sociedade são decorrência da própria natureza humana. O homem é animal

teleológico, que atua em função das finalidades projetadas no futuro. Daí a

assertiva de KANT de que o gênero humano está em constante progresso para o

melhor1.

1 Cf. Scritti politici e di filosofia della storia e del diritto, cit., p.219 e ss..

Page 2: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Essa atuação humana em direção a um novo tempo traz a marca

registrada de uma nova realidade, imposta por meio de suas descobertas de

ordem tecnológica, científica, cultural, etc..

Novos tempos, mais do que logicamente, exigem uma nova

concepção jus-filosófica sobre a Ciência do Direito. Um direito poroso, aberto,

sensível aos avanços que a tecnologia e a capacidade intelectual do homem

impuserem e eficaz para regular novos conflitos que se descortinam.

Esse novo direito há de se coadunar com a reconhecida e

incontestável sociedade da informação, superando a idéia de que o “jurista

sempre foi um ser inteiramente refratário às inovações”, como salientou NEWTON

DE LUCCA2.

Ora, o direito não serve senão para se realizar, pacificando conflitos

de interesses estabelecidos dentro da sociedade. Como dizia IHERING, “não lhe

basta uma ‘pretensão normativa’, é preciso que se lhe dê ‘efetividade social’”,

logo, o direito que não é consentâneo e conexo com a sociedade que lhe incumbe

regular de nada servirá. Será uma mera abstração, sem interesse concreto. É

preciso um nexo claro, uma via de mão e contramão bem estabelecida, entre o

direito e a sociedade, estando bem adequados um com o outro, de modo a que

aquele seja o porto seguro para os conflitos estabelecidos nesta.

Com efeito, a força dos fatos e, nesse passo, o avanço imposto pela

inteligência humana, não pode ser elemento estranho à Ciência Jurídica, pena de

estabelecer um profundo hiato entre a realidade fenomenológica da vida e as

normas jurídicas3. Para tanto, é preciso que esteja o direito aberto, sensível e em

sintonia com os avanços da sociedade.

2 Cf. Títulos e Contratos Eletrônicos, in LUCCA, Newton de & SIMÃO Filho, Adalberto (coordenadores), Direito e Internet – Aspectos jurídicos relevantes, cit., p.23.3 O mestre baiano ORLANDO GOMES já de há muito reconhecia uma fratura do direito exposta na “esterilização dos conceitos e no desmoronamento de construções que pareciam inabaláveis” (cf. Introdução ao Direito Civil, cit., p. 7).

Page 3: A Globalização e os Direitos do Consumidor

ORLANDO GOMES era contundente: “não seria possível interpretar

e aplicar uma lei com desconhecimento ou desprezo de sua finalidade social”4.

Como alerta o eminente LUIZ EDSON FACHIN, “a tendência social

revela aos titulares dos direitos subjetivos sensível horizonte diverso. Trata-se do

exercício da solidariedade social, a esta – como bem disse o Professor

ORLANDO DE CARVALHO – ‘não se capta com esquemas jurídicos: constrói-se

na vida social e econômica”5.

Desse grande avanço tecnológico e científico decorrem,

naturalmente, alterações nas concepções jurídicas vigentes no sistema. Vê-se,

desse modo, uma passagem aberta para uma outra dimensão jurídica, na qual o

direito deve ser um elemento de garantia do homem na força de sua propulsão ao

futuro.

E, por conseguinte, reconhecida a necessária incidência desse

avanço tecnológico, científico e cultural, advém uma eliminação de fronteiras

arquitetadas pelo sistema jurídico clássico, abrindo espaço para um direito

contemporâneo, susceptível às influências da nova sociedade, que traz consigo

necessidades universais, independentemente de línguas ou territórios.

Há de se ter na tela da imaginação, nesse panorama, que o

problema a se descortinar em nossos olhos (muitos ainda atônitos pela

velocidade com que se operam os avanços da tecnologia e da evolução

comunitária humana) não é mais o de fundamentar as novas relações jurídicas,

mas sim, protegê-las6. Não se trata mais de conceber a existência, ou não, de

novas relações jurídicas originadas desses avanços tecnológicos, científicos,

culturais e (por que não?) humanos concretamente existentes. Sua existência e

visibilidade são uma realidade inexorável. Negá-las, seria fechar os olhos a uma

realidade concreta e presente e, assim, por via oblíqua, negar a própria

inteligência e capacidade humanas.

4 Cf. Introdução ao Direito Civil, cit., p. 26.5 Cf. Teoria Crítica do Direito Civil, cit., p.331.6 Nesse sentido, com o raciocínio voltado para os novos “ramos” do Direito, BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, cit., p.25 e ss..

Page 4: A Globalização e os Direitos do Consumidor

A grande questão que toca ao jurista do novo tempo é a proteção a

ser conferida aos cidadãos (rectius, aos entes dotados de personalidade como um

todo, para que não se exclua parcela de interessados) perante essas novas

relações jurídicas. É de se buscar a maneira mais segura para garantir os direitos

fundamentais nesse novo quadro de relações sociais, econômicas e jurídicas,

impedindo sua violação.

E reconheça-se que o ponto de partida para tanto deve estar,

sempre, no conceito de cidadania7. Isso porque a cidadania, concebida como

elemento essencial, concreto e real, para servir de centro nevrálgico das

mudanças paradigmáticas da Ciência Jurídica, será a ponte, o elo de ligação, com

o porvir, com os avanços de todas as naturezas, com as conquistas do homem

que se consolidam, permitindo um Direito mais sensível, aberto e poroso aos

novos elementos que se descortinem na sociedade. Um Direito mais real, humano

e, por conseguinte, justo.

Nenhum reflexo de novos temas ou avanços no Direito poderá colidir

ou afrontar a idéia de cidadania, que se constitui marco fundamental, pedra

angular, dessas novas relações jurídicas, como, inclusive, ressaltado pelo Art. 1º,

inciso III, da Lex Fundamentallis, que estabelece como princípio fundamental da

República brasileira a dignidade da pessoa humana. Esse o ponto de partida.

2. A idéia da proteção consumerista como consectário dessa nova era de direitos.

A proteção do consumidor é meta, busca incessante, dessa nova era

e representa verdadeiro desafio da fase contemporânea do Direito, pela sua

singular importância.

É que a sociedade contemporânea, desde o século XX, se

organizou a partir do fenômeno mundial das relações de consumo (mass

7 FACHIN, com habitual proficiência, leciona que o “conceito de cidadania pode ser o continente que irá abrigar a dimensão fortificada da pessoa no plano de seus valores e direitos fundamentais. Não mais, porém, como um sujeito de direitos virtuais, abstratos ou atomizados para servir mais à noção de objeto ou mercadoria”, cf. Teoria Crítica do Direito Civil, cit., p.330.

Page 5: A Globalização e os Direitos do Consumidor

consumption society ou Konsumgesellschaft), massificada pelo crescente

aumento de oferta de produtos e serviços, pelo império e crescimento do

marketing e pela propagação do crédito como elemento propulsor do

desenvolvimento econômico8. É o fenômeno denominado consumerismo,

originado etimologicamente da expressão consumerism, terminologia criada para

definir o movimento dos consumidores norte-americanos9 contra a produção e a

comunicação de massa, os abusos das técnicas de marketing e propaganda, a

periculosidade, qualidade e a confiabilidade dos produtos e serviços postos no

mercado, as informações fornecidas pelos fabricantes e distribuidores, etc..

É nesse panorama da “revolução das massas”10 que surge a

necessidade de equilibrar as relações sociais, marcadas por um desnível natural

imposto pelas diferentes posições e interesses das partes envolvidas no

fenômeno consumerista: de um lado o poderio econômico e a idéia do lucro, do

outro a necessidade de consumir para o desenvolvimento de praticamente todas

as atividades humanas.

Surge de forma intuitiva, então, a exigência de mecanismos

eficientes, ágeis e de fácil acesso para a população em geral, tutelando o

hipossuficiente da relação consumerista. Aliás, é o próprio mercado sócio-

econômico que vem a exigir tais mecanismos de controle para superar a

vulnerabilidade do consumidor11.

8 Com o fortalecimento da sociedade capitalista e a idéia do lucro inspirando maior produção e oferta, criando o mercado da força de trabalho e de bens de consumo, surgiram as primeiras manifestações organizadas de consumidores, nos estertores do Século XIX. Em seguida, por força da internacionalização da economia e de grandes fusões empresariais, houve rápido crescimento das organizações de consumidores na Inglaterra, Suécia, Holanda, Alemanha, França, Austrália, Japão, entre outros. Sobre o aspecto histórico da proteção do consumidor, vide LEONIR BATISTI, Direito do Consumidor para o MERCOSUL, cit., p.45 e ss.. 9 SÔNIA MARIA VIEIRA DE MELLO, cf. O Direito do Consumidor na era da globalização: a descoberta da cidadania, cit., p.11, aponta que os precursores do Direito Consumerista foram, de fato, os norte-americanos, na década de 60, a partir de quando se deu a evolução da matéria. 10 Cf. EDUARDO ARRUDA ALVIM et alli, cf. Código do Consumidor Comentado, cit., p.11, vislumbrando, ainda, que o consumerismo “é visível hodiernamente quer nas sociedades industrializadas como nas economias em desenvolvimento, aonde freqüentemente se persegue a satisfação de necessidades muitas vezes irreais ou incorretamente hierarquizadas”. 11 Assim, ADA PELLEGRINI GRINOVER e ANTONIO HERMAN DE VASCONCELOS E BENJAMIM, cf. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, cit., p.6.

Page 6: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Vê-se, assim, que a legislação consumerista é conquista de um novo

tempo12, é o reconhecimento de uma era de novos valores, fundados na

personalidade humana, abandonando o nítido caráter individual e patrimonialista,

até então prestigiado na legislação brasileira. O homem deixa de ser objeto e

passa a ser, de uma vez por todas, sujeito de direito.

Máxime com a Lex Mater que, logo em seu art. 1º, inciso III, impõe a

dignidade da pessoa humana como princípio vetor do Ordenamento brasileiro13.

Como salienta, com proficiência, EDUARDO GABRIEL SAAD, “o

individualismo impregnou todo o direito ao mesmo tempo que a realidade social já

pedia novas regras jurídicas para regular fatos e situações completamente

ignoradas no passado”.14

Com a legislação protetiva do consumidor ganhou força a ordem e

os novos valores emanados da Constituição da República, como a solidariedade

social (CR, art. 3º, I), o valor social da livre iniciativa (CR, art. 1º, IV), a igualdade

substancial15 (CR, art. 3º, III, e 5º, caput e I) e, é claro, a dignidade da pessoa

humana (CR, art. 1º, III), significando, em última análise, a vitória da própria

cidadania.

Averbe-se, destarte, que a proteção do consumidor, numa sociedade

massificada, globalizada e com francas desigualdades como a nossa, é um dos

mais importantes aspectos da garantia do exercício da cidadania plena, em razão

das circunstâncias de vulnerabilidade e hipossuficiência que marcam as relações

consumeristas.

12 Não é difícil estabelecer um paralelo, como o faz NEWTON DE LUCCA, entre o direito do consumidor e o direito comercial. Ambos têm matizes históricas bem definidas, surgindo este para aplacar as necessidades da sociedade burguesa e na busca de expansão mercadológica, enquanto aquele prende-se ao fenômeno da sociedade de massa, buscando dar guarida à proteção humana, cf. Direito do Consumidor – Aspectos práticos, cit., p.103. No mesmo sentido, TULIO ASCARELLI, cf. Corso di Diritto Commerciale, Milano : Giuffrè, 1962, p.4.13 Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e seus reflexos no direito brasileiro, vide, por todos, a lição de GUSTAVO TEPEDINO, cf. Temas de Direito Civil, cit., p.1 e ss.. 14 Cf. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p.26. 15 Na doutrina espanhola, MARIA TERESA QUINTELA GONÇALVEZ, lembrada por EDUARDO ARRUDA ALVIM et alli , cf. Código do Consumidor Comentado, cit., p.12, afirma com lucidez que “los derechos de los consumidores son una consecuencia direta de la reivindicación de una igualdad real, del reconocimiento del derecho a la participación de todos los ciudadanos y del modelo del Estado social de Derecho”.

Page 7: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Com JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, em última análise, a

proteção do consumidor significa verdadeiro “exercício de cidadania, ou seja, a

qualidade de todo ser humano como destinatário final do bem comum de qualquer

Estado, que o habilita a ver reconhecida toda a gama de seus direitos individuais

e sociais, mediante tutelas adequadas colocadas à sua disposição pelos

organismos institucionalizados”.16

Com efeito, o sistema de proteção ao consumidor procura

resguardar a vida, a saúde e a segurança do consumidor contra riscos

decorrentes do fornecimento de bens e de serviços perigosos ou nocivos, além de

tender à preservação de seus interesses econômicos, assegurando-lhe

contratação justa e adequada, minorando o desnível.17

A proteção do consumidor exige, portanto, não apenas uma nova lei,

mas uma nova filosofia18, uma nova mentalidade de atuação.

É que de nada valerá a criação de um novo sistema se o operador

do direito continuar preso a paragens de um passado distante, perdido em idéias

ultrapassadas e dissonantes da nova realidade social. O Direito – e, por óbvio, o

seu intérprete – devem estar sintonizados com a sociedade que lhe incumbe

pacificar, atento aos novos valores e princípios que inspiram o seu tempo e com

os olhos voltados para o amanhã.

3. O sistema de defesa do consumidor no direito brasileiro.

A proteção ao consumidor exige – e não poderia ser diferente –

maior interferência do Estado nas relações privadas. É o intervencionismo estatal

como forma de superação da vulnerabilidade do consumidor.

16 Cf. Manual de Direitos do Consumidor, cit., p.27. 17 Nesse sentido, CARLOS ALBERTO BITTAR, cf. Direitos do Consumidor, p.7. 18 Essa a idéia de FILOMENO, cf. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p.17.

Page 8: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Esse dirigismo contratual, como já antevia o visionário ORLANDO

GOMES, somente se pode tornar concreto com a adoção de modelos jurídicos e

políticas de proteção às relações de consumo efetivos, impondo condutas

negativas aos fornecedores para que sejam garantidos direitos ao hipossuficiente.

Assim, era necessário alçar à altitude constitucional a proteção ao

consumidor no direito brasileiro, importando em nítido deslocamento do eixo

fundamental dos direitos de cidadania. Era preciso que a Magna Charta

chamasse para si a responsabilidade de traçar as garantias básicas para o

perfeito exercício de cidadania, elencando, dentre elas, a proteção às relações de

consumo.

A tutela do consumidor, revelando-se, é de se repetir, como

importante aspecto da proteção à própria pessoa humana, rompeu com a unidade

sistemática do Código Civil (fruto do próprio movimento de descodificação,

inspirador da criação de microsistemas jurídicos19), estando assentada em

princípios e normas próprias, dotada de autonomia científica e dogmática.

Como bem percebeu TEPEDINO, a proteção do consumidor reflete

“princípios autônomos, setoriais, ora conflitantes com o Código Civil, ora

simplesmente peculiares, traduzidos por técnicas legislativas e de linguagem

específicas, e pela busca de uma nova completude. O monossistema se desfaz

através deste processo de fragmentação normativa, dando lugar a um

polissistema, isto é, um sistema de direito privado formado por inúmeros

microssistemas, dentre os quais se inclui o Código do Consumidor”.20

Equivale a dizer, a tutela do consumidor foi estruturada a partir da

tábua axiológica de valores prevalentes unificados no Texto Constitucional,

fazendo avultar a garantia do estado social de direito, afastando-se do eixo da

autonomia privada prestigiada pelo Código Civil.

19 Acerca da questão, consulte-se ORLANDO GOMES, cf. A caminho dos micro-sistemas. Novos temas de Direito Civil, Rio : Forense, 1983, p.40-50. No mesmo sentido, NATALINO IRTI, L’etá della descodificazione, Milano : Giuffrè, 1979.20 Cf. Temas de Direito Civil, cit., p.248.

Page 9: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Nesse passo, os comandos dos arts. 5º, XXXII, 24, 150, §5º, e 170,

V, da Lex Legum, estabelecem de forma indelével o domicílio constitucional da

defesa do consumidor, abrindo espaço para que se demonstre a quebra do elo

com o sistema jurídico individual e patrimonialista, do início do século passado,

prestigiando princípios humanitários e a personalidade humana (o que é reforçado

pelos arts. 1º, III, e 3º, III da CR).

O constituinte brasileiro, assim, traçou a base sólida, a viga de

sustentação, para a edificação da tutela do consumidor, não podendo a legislação

infraconstitucional se afastar de um plano mais amplo que é a tutela da própria

pessoa humana.

Assim, com olhos fixos nos valores esculpidos na Constituição, a

legislação consumerista construiu um sistema próprio, com princípios vetores21

(CDC, art. 4º) e regras fundamentais de ordem pública (CDC, art. 1º). Estampou

rígidas normas contratuais22, mitigando a ilimitada autonomia da vontade de

tempos longínquos, obstando, e.g., a presença de cláusulas abusivas, as quais

declarou nulas de pleno direito (CDC, art. 51). Submeteu o fornecedor às regras

da responsabilidade civil objetiva por danos causados por fato ou vício do produto

ou do serviço23 (CDC, arts. 12, 17, 18 e 25), superando a dogmática da

responsabilidade com base no elemento subjetivo, a culpa. Estabeleceu,

outrossim, solidariedade entre aqueles que participam do fornecimento de

produtos ou serviços, desde a produção até a comercialização24 (CDC, arts. 12,

21 Ao analisar os princípios do CDC, CARLOS ALBERTO BITTAR, após lista-los, afirmando que o primeiro deles é o da proteção da vida, da saúde e da segurança do consumidor (contra vícios existentes em produtos ou em serviços, ou outros abusos na circulação de bens) , verbera que com o reconhecimento de tais princípios “tolhem-se, ou inibem-se, práticas abusivas por parte das empresas produtoras, prestadoras de serviços ou intermediárias, nas relações de consumo, instrumentando-se, de outro lado, consumidores e suas entidades”, cf. Direitos do Consumidor, cit., p.7.22 A respeito dos contratos no Direito do Consumidor, consulte-se a notável obra de CLÁUDIA LIMA MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo : RT, 3ªed., 1999.23 Sobre a responsabilidade civil objetiva nas relações de consumo, consulte-se MÁRCIO MELLO CASADO, cf. Responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor – Justificativas, precedentes e análise do sistema nacional, in Revista de Direito Privado, São Paulo : RT, vol.3, julho/setembro de 2000, p.157.24 Veja-se interessante precedente jurisprudencial acerca da matéria: “... A responsabilidade solidária da administradora (de consórcio) configura-se no fato de a concessionária permitir a modificação do pedido, com suporte na marca do grupo econômico Volkswagen, conduzindo o negócio sob a confiança do consumidor. Inteligência do art. 34 do CDC. Hipótese concreta em que a relação jurídica consortil reclama abordagem sob a égide das regras de consumo, em face da nova realidade denominada de ‘pós-moderna’, reflexiva da globalização e acumulação de riquezas e bens intangíveis...” (TJ/RS, EI 599.178.050, Ac. 9ªGr. Câms. Cíveis, j.17.9.99, rel. Des.

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13 e 18). Fixou, ainda, novas regras e prazos, novo sistema, para os vícios

redibitórios (CDC, arts. 18 e 20), dentre inúmeras outras regras protetivas.

Não foi apenas. O legislador incorporou diversos avanços

doutrinários e jurisprudenciais – tais como a garantia da reparação dos eventuais

danos morais, nulidade das cláusulas abusivas, inversão do ônus da prova em

favor do consumidor, entre outros – e, com isso, posicionou-se ao lado dos mais

avançados Ordenamentos mundiais.

Tratando-se de verdadeira garantia constitucional a proteção do

consumidor, sobreleva concluir que está fulminada de morte, inquinada de

inconstitucionalidade, qualquer norma ou situação jurídica que viole ou mesmo

que apenas tenha a possibilidade de consistir óbice à defesa do consumidor25.

Em outras palavras, o sistema de tutela do consumidor no direito

brasileiro tem como base o próprio Texto Constitucional. Logo, todas as normas

que compõem o Ordenamento e, naturalmente, lhe devem obediência – inclusive

aquelas oriundas de tratados e convenções internacionais, que ingressam em

nosso Ordenamento com sede infraconstitucional – têm de estar consentâneas

com a proteção da parte vulnerável, garantindo correta interpretação e aplicação

do conjunto normativo.

4. A globalização como fenômeno do mundo moderno.

Esse sistema de proteção do consumidor ganha, agora, cores ainda

mais nítidas com o fenômeno da globalização, que nos defronta com a

mundialização das economias e do próprio consumo e predominância do capital

financeiro e, via de conseqüência, faz descortinar novos e prementes desafios

para o direito.

Fernando Braf Henning Jr., in Revista de Direito Privado 3:308).25 Corretamente, já se decidiu: “O contrato de seguro-saúde, por ser um contrato de adesão, deve ser interpretado em favor do aderente quando gere qualquer dúvida, como a exclusão de cobertura para determinada doença, pois não se pode mantê-lo submetido a uma situação de incerteza e, conforme interpretação do art. 170, IV e V, da CF, tais cláusulas devem ser aplicadas em detrimento da parte mais forte.” (TJ/SP, ApCív.275.091-2/3, Ac.unân.4ªCâm.Dir.Privado, j.8.5.97, rel. Des. Aguilar Cortez, in Revista de Direito Privado 1:236).

Page 11: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Daí a advertência de ARNOLDO WALD de que “a grande ruptura do

terceiro milênio consiste na criação, reconhecimento e na generalização, no

mundo inteiro, da nova economia, baseada no desenvolvimento tecnológico e na

competição, mas também na globalização e na desmaterialização parcial da

riqueza. E esta nova concepção da economia tem reflexos em todos os aspectos

da sociedade e inclusive no direito”.26

A globalização apresenta-se, pois, com uma noção imprecisa, mas

de relevo para o Direito, especialmente para o Direito do Consumidor.

Genericamente, se pode afirmar que é a designação dada ao conjunto de

transformações de ordem política, social e econômica verificadas nos últimos

tempos em quase todos os estados democráticos de direito, tendentes à

integração dos mercados, possibilitando maior circulação de riquezas. É, enfim, a

integração acelerada dos mercados nacionais.

Sem dúvida, “o mercado de câmbio se transformou no primeiro

compartimento dos mercados financeiros a entrar na globalização e é partir dele

que se desenvolve o mercado de derivados ou de securitização com relação à

variação de moedas e juros”, como salienta o Professor JOSÉ LUÍS FIORI27,

destacando que o elemento principal desse fenômeno mundializante é,

efetivamente, o capital financeiro.

Ora, esse processo de mundialização do capital, tende a fomentar o

consumo como forma de alcançar o lucro, que é o próprio resultado almejado.

Nesse passo, é imperioso reconhecer como consectários desse fenômeno a

hegemonia do capital financeiro, o crescimento de empresas transnacionais, a

internacionalização da produção, a liberalização do comércio e o maior

oferecimento de produtos e serviços, mudança nas práticas contratuais, com

repercussões claras na sociedade organizada.

26 Cf. Um novo direito para a nova economia: os contratos eletrônicos e o Código Civil, in Direito e Internet – Relações jurídicas na sociedade informatizada, cit., p.9.27 Cf. Globalização, hegemonia e império, in Poder e dinheiro – uma economia política da globalização, cit., p.91.

Page 12: A Globalização e os Direitos do Consumidor

“Mercados abertos, liberdade alfandegária, fim da idéia de

soberania, eliminação do xenofobismo, linhas de produção mundiais, capitais

flutuantes e de extrema volatidade freqüentando mercados financeiros sem limites

de fronteira, esses os traços característicos do processo de maximização da

rentabilidade econômica, responsáveis pela mais drástica alteração estrutural no

modo de produção capitalista dos últimos anos”, como reconhece o Prof.

FERNANDO HERREN AGUILLAR, concluindo, coerentemente, que é “em matéria

de Direito Econômico, esses efeitos são particularmente sentidos”.28

Daí, então, a grande importância do fenômeno globalização para o

Direito do Consumidor.

Não que a globalização venha a ser responsável por tudo o que se

impõe ao Direito, nem que todas as novidades jurídicas sejam fruto de sua

atuação na sociedade. É preciso abrandar esse impulso cego, essa tendência a

aumentar a importância desse processo.

O que se quer afirmar é que a globalização reflete no Direito,

especialmente na proteção das relações de consumo, merecendo, por isso,

análise valorativa para a formação do conhecimento jurídico. É que, como

afirmado anteriormente, o direito e a sociedade devem estar de mãos dadas,

numa via de mão e contramão, retratando o direito os valores sociais do seu

tempo.

Ou seja, novas soluções e tratamento jurídico se impõem para uma

nova realidade social.

Até porque é o Direito a ciência que “opera a transformação das

tendências democraticamente definidas pelo parlamento eleito em valores”,

referências concretas, em algo real, palpável pela população, como preleciona

CALIXTO SALOMÃO FILHO.29

28 Cf. Direito Econômico e globalização, in SUNDFELD, Carlos Ari & VIEIRA, Oscar Vilhena (coordenadores), Direito Global, cit., p.269.29 Cf. Globalização e teoria jurídica do conhecimento econômico, in SUNDFELD, Carlos Ari & VIEIRA, Oscar Vilhena (coordenadores), Direito Global, cit., p.267.

Page 13: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Desse modo, impõe-se à Ciência Jurídica acompanhar e adaptar as

mudanças paradigmáticas na estrutura do mercado de consumo, com a crescente

expansão do capital, para não deixar órfã a sociedade que lhe incumbe tutelar,

especialmente pelo intervencionismo característico da matéria30.

5. A (re)afirmação da proteção do consumidor em face da globalização.

Ao contrário do que se pode imaginar, o papel intervencionista do

Estado nas relações de consumo, diante da nova realidade da sociedade

globalizada, há de ser ressaltado em face da necessidade de proteção das

economias nacionais e da inolvidável promoção do bem estar social e individual,

garantida pelo Texto Maior, como, aliás, ressaltado alhures31.

Em outras palavras, a globalização gera a necessidade de

fortalecimento da atuação estatal na proteção da sociedade e do indivíduo,

principalmente no que se refere às relações consumeristas (e à própria regulação

do mercado), com vistas a garantir sua dignidade imposta constitucionalmente. A

globalização não pode, pois, violar ou atingir o sistema protecionista interno32.

Tenha-se na mente que o desenvolvimento de atividades mercantis

globalizada exige uma responsabilidade também globalizada dos fabricantes e

30 Idêntico é o pensamento de RONALDO PORTO MACEDO Jr., para quem “à medida que a sociedade de consumo de serviços apresenta novos problemas ela demanda soluções inovadoras. A existência de agências reguladoras fortes, a uniformização do direito no Mercosul e uma nova compreensão da natureza do processo de contratação moderno constituem capítulos do desafio consumerista atual”, cf. Globalização e Direito do Consumidor, in SUNDFELD, Carlos Ari & VIEIRA, Oscar Vilhena (coordenadores), Direito Global, cit., p.239.31 Recente decisão da Eg. 4ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº63.981, veio a reconhecer que as mercadorias adquiridas no exterior têm a garantia válida no Brasil, desde que a empresa que trabalhe com a mesma marca no nosso país, seja coligada, representante, filial ou subsidiária do fabricante. Com base no fenômeno da globalização, o eminente Min. CÉSAR ÁSFOR ROCHA afirmou que “as grandes corporações perderam a marca da nacionalidade para tornarem-se empresas mundiais”, devendo a globalização beneficiar também ao consumidor e não apenas aos fornecedores.32 A respeito da noção de soberania e sua compatibilização com a globalização, consulte-se PASCUAL CAIELLA, Cf. Problemas relativos a la compatibilización de los derechos constitucionales y el derecho comunitario, in SUNDFELD, Carlos Ari & VIEIRA, Oscar Vilhena (coordenadores), Direito Global, cit., p.51. Chega mesmo a dizer o Professor da Universidad Nacional de La Plata, na Argentina, que “la propia Constitución, en uso de su supremacia, decide por império Del constituyente, ubicarse en un vértice distinto de la pirâmide. Pero seguirá siendo suprema para el resto de su ordenamento jurídico nacional”.

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demais participantes do fornecimento. Ou seja, ao invés de importar em

enfraquecimento da proteção do consumidor, a globalização exige uma defesa

ainda mais ampla e segura, eis que os riscos de lesões às relações

consumeristas aumentam nitidamente.

Nessa trilha, não é possível qualquer restrição ao nosso eficaz

sistema de proteção ao consumidor. Ao revés, deve se tentar ampliar a proteção

consumerista, coadunando-se com a própria diretriz constitucional.

Aliás, é certo e incontroverso que como corolário do conceito de

soberania nacional, presente nos estados democráticos de direito, apresenta-se a

supremacia constitucional.

E é a partir dessa induvidosa supremacia da ordem constitucional

que até mesmo convenções e tratados internacionais devem se compatibilizar

com a ordem (constitucional) interna para que possam ter aplicabilidade33. É que

têm os tratados e convenções internacionais, assim como quaisquer instrumentos

normativos externos que pretenda ingressar em nosso Ordenamento, altitude

infraconstitucional, devendo obediência hierárquica ao Texto Máter.

Daí MAURÍCIO ANDREIUOLO RODRIGUES afirmar com

propriedade que, “ao menos no Brasil, o tratado internacional não pode

ultrapassar os limites impostos pela Constituição da República. E a razão para

tanto está na natureza estável do texto constitucional. A leitura dos arts. 59 e

seguintes deixa ver que se trata de uma Constituição rígida. E como tal, os seus

preceitos revestem-se de situação hierárquica mais elevada. Porque se trata de

conflito de normas de diferentes hierarquias – uma, constitucional, e a outra, de

natureza internacional, logo infraconstitucional – não tem valor a regra do

monismo moderado, ordinariamente utilizada, e de acordo com a qual ‘lex

posterior derrogat lex priori’.”34

33 Nesse sentido, TEPEDINO, cf. Temas de Direito Civil, cit., p.264. Também no direito argentino vige esse entendimento, como ressalta TOMÁS HUTCHINSON Y JULIÁN PEÑA, cf. “El Tratado de Assunción y la Constitución Nacional”, in Revista de Derecho Privado Y Comunitario, vol.5, Santa Fé : Rubinzal-Culzoni Editores, 1994, 453 e ss..34 Cf. Teoria dos direitos fundamentais, in TORRES, Ricardo Lobo (org.), Rio : Renovar, 1999, p.160.

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É bem verdade que o ideal seria a criação de ordens jurídicas

comuns (direito comunitário), integrando as sociedades globalizadas sob o prisma

jurídico35. Todavia, as dificuldades para tanto são incontáveis.

Veja-se que a própria Comunidade Econômica Européia – CEE, que

de há muito formou um direito de cunho supranacional, visando à adequada

proteção dos consumidores dos países signatários, ainda não conseguiu

harmonizar de forma completa essa defesa consumerista.

Entre nós, a tentativa de regulamentação protetiva comunitária dos

consumidores vem se dando através do Mercado Comum do Sul - MERCOSUL,

pretendendo colocá-los a salvo dos processos de integração econômica36. Vale

lembrar que o comitê técnico (denominado CT-7), responsável pelas questões

que envolvem a proteção do consumidor, vem tentando promover a harmonização

das normas componentes dos mercados37.

Como adverte DE LUCCA, “a conseqüência de um mercado comum

deveria ser a de que passaríamos a ter um ‘consumidor latino-americano’, com

direitos iguais nas relações de consumo estabelecidas em tal âmbito, e não mais

apenas um consumidor nacional de cada país, com atribuição de direitos

distintos”.38

As dificuldades práticas de implementação de uma situação jurídica

dessa envergadura são cristalinas. Primo, não há um sistema legislativo comum.

35 Salienta SÔNIA MARIA VIEIRA DE MELLO que apesar das legislações internas representarem significativos avanços é seria necessária“a harmonização destas legislações para que o consumidor regional do MERCOSUL tenha os mesmos direitos e proteções no âmbito das operações de consumo ocorridas no Mercado Comum, o que efetivamente só será possível com a criação de legislação harmonizada, com Tribunais Supranacionais competentes para agir nesta esfera com a devida legalidade e legitimidade”. Mais adiante, no entanto, ressalva que “a harmonização jurídica deve atentar-se para os princípios e objetivos básicos da integração econômica, garantindo perfeita e livre circulação de bnes, pessoas e capitais”, cf. O Direito do Consumidor na era da globalização: a descoberta da cidadania, cit., p.157.36 O Protocolo de Ouro Preto, em seu art. 34, declara o MERCOSUL com personalidade jurídica de direito internacional. Todavia, como alerta LEONIR BATISTI, não se trata de “entidade supranacional, mas sim intergovernamental”, cf. Direito do Consumidor para o MERCOSUL, cit., p.415.37 CLÁUDIA LIMA MARQUES, cf. Direitos do consumidor no MERCOSUL, in Revista de Direito do Consumidor, São Paulo : RT, vol.32, outubro/dezembro de 1999, p.21, propõe a solução dessa harmonização através da adoção de solução similar à da Comunidade Européia, ou seja, a harmonização fragmentada.38 Cf. Direito do consumidor – Aspectos práticos, cit., p.110.

Page 16: A Globalização e os Direitos do Consumidor

Secundo, as diferenças na proteção do consumidor nos ordenamentos internos

são gritantes, praticamente impedindo uma uniformização da legislação

defensiva.

A título ilustrativo pode ser lembrado que a Lei de Defesa do

Consumidor da Argentina não incluiu expressamente no seu âmbito de alcance os

direitos básicos do consumidor previstos no CDC brasileiro (art. 6º).39

É preciso partir, então, da insuperável premissa de que a criação de

um sistema protetivo comum não se pode significar retrocesso em relação aos

avanços impostos e reconhecidos pelo Texto Constitucional de 1988, que se

constitui na mola propulsora do sistema jurídico nacional, e consolidados em

diploma legais posteriores (como o CDC).

Importa asseverar, nesta linha de intelecção, que apesar de

desejável a regulação do mercado comum (sul-americano e, até mesmo,

mundial), não poderá importar em adesão cega às regras oriundas do direito

comunitário. Estas devem obediência aos princípios constitucionais internos que

não podem ser subvertidos.

Com TEPEDINO, “a harmonização, com efeito, não poderá jamais

significar a recepção acrítica e servil às normas comunitárias, mormente quadno

estas contrariem a tábua axiológica que define a ordem pública interna”.40

De forma mais clara: não se pode querer liberar os mercados

comuns econômicos, quebrando barreiras para facilitar a circulação de produtos e

serviços, ampliando o fenômeno consumerista, sem o respeito às garantias de

proteção do consumidor (que constitui em última ratio verdadeira proteção da

39 Situação contrária se detecta na Europa, onde os ordenamentos jurídicos internos terminam tendo de ser alterados para incorporar as normas de proteção do consumidor oriundas da CEE. CLÁUDIA LIMA MARQUES, em excelente estudo comparativo, cf. Normas de Proteção do consumidor (especialmente, no comércio eletrônico) oriundas da União Européia e o exemplo de sua sistematização no Código Civil alemão de 1896 – Notícias sobre as profundas modificações no BGB para incluir a figura do consumidor, in Revista de Direito Privado, São Paulo : RT, vol.4, outubro/dezembro de 2000, p.50 e ss., aponta que enquanto a Itália optou por modificações pontuais em seu Codice Civile, a Alemanha não só modificou profundamente suas normas contratuais da parte especial do BGB, mas igualmente optou por incluir nele os conceitos de consumidor e fornecedor.40 Cf. Temas de Direito Civil, cit., p.264-5.

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própria cidadania), reconhecidas constitucionalmente e disciplinadas na Lei

nº8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor.

6. Notas conclusivas.

A nova realidade social traz consigo o reconhecimento de novos

valores inspiradores do sistema jurídico, formando, efetivamente, um novo direito,

fundado em valores humanitários, reconhecidos constitucionalmente.

Impõe-se, assim, uma mudança de concepções jus-filosóficas. É

necessário que a cidadania seja a pedra de toque do sistema jurídico, devendo

ser exercida em sua plenitude, inclusive no que respeita à proteção do

consumidor.

Não podem, pois, nem mesmo as novas relações de mercado e a

formação de blocos comunitários violar as garantias básicas traçadas pelo

constituinte como nova tábua de valores do ordenamento jurídico brasileiro,

garantindo a cidadania como ponto de partida para a estruturação jurídica, social

e econômica do país.

Não que se deva descartar a formação de uma grande instituição

(agência) de defesa dos consumidores em grupos comunitários, como o próprio

MERCOSUL. Ao revés, é desejável até mesmo para maior aproveitamento das

potencialidades de cada país e facilitação da circulação de riquezas. Apenas

existem limites legislativos internos que não permitem diminuição ou negação da

proteção integral da dignidade do homem moderno.

Ademais, é fundamental repisar que se deve pretender a formação

de um verdadeiro sistema jurídico comum e não apenas normas específicas para

as relações de compra e venda. Espera-se, deste modo, numa eventual disciplina

normativa globalizada o advento de normas que transcendam o direito material

para tratar de questões de índole processual e, até mesmo, sobre a criação de

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um Tribunal Comunitário (nos moldes da CEE), além de regular sistemas

extraprocessuais de solução rápida e ágil, como os juízos arbitrais41.

Certo é, via de conseqüência, que as regras protetivas da pessoa

humana – e dentro desse panorama do consumidor – não podem ser afastadas

nem mesmo através de processo de integração econômica.

É que os valores humanos se sobrepujam aos elementos

patrimoniais, devendo se lembrar que o Direito existe para o homem, incumbindo-

lhe, precipuamente, garantir sua proteção integral.

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