1121 a africa no seculo xxi um ensaio academico
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JOS FLVIO SOMBRA SARAIVAA frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
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Ministrio das relaes exteriores
Ministro de Estado Embaixador Mauro Luiz Iecker VieiraSecretrio-Geral Srgio Frana Danese
Fundao alexandre de GusMo
Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima
Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais
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Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo
Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima
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A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.
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JOS FLVIO SOMBRA SARAIVAA frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Braslia 2015
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Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]
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Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeAlyne do Nascimento SilvaLuiz Antnio Gusmo
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Impresso no Brasil 2015
S243 Saraiva, Jos Flvio Sombra.
A frica no sculo XXI : um ensaio acadmico / Jos Flvio Sombra Saraiva. Braslia : FUNAG, 2015.
146 p. (Em poucas palavras) ISBN 978-85-7631-553-7
1. Unio Africana (UA). 2. Cultura - frica. 3. Pan-africanismo. 4. Crescimento econmico - frica 5. Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD). 6. Poltica externa - frica - Brasil. 7. Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa (CPLP) I. Ttulo. II. Srie.
CDD 338.96
Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.
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Jos Flvio Sombra Saraiva
Professor Titular de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia, da qual docente desde 1986; Vice-Presidente da Comisso Internacional de Histria das Relaes Internacionais, entidade vinculada ao Comit Mundial de Cincias Histricas; Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Poltica Internacional (RBPI); Membro do Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo (Funag); Presidente da Associao Brasileira de Relaes Internacionais (ABRI) (2009-2011) e Diretor Geral do Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais
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(Ibri) (1998-2012). Autor de livros sobre a frica, entre os quais se destacam Formao da frica Contempornea (1987), O lugar da frica (1996) e frica parceira do Brasil atlntico (2012).
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Dedicatria
Dedico esse livro a dois representantes do renascimento
africano: ao sul-africano Nelson Mandela e ao queniano Ali
Mazrui. O primeiro faleceu no contexto da elaborao deste
ensaio, no ocaso de 2013. O segundo foi meu professor, um
dos intelectuais mais importantes do mundo contemporneo,
pilar do pensamento da frica moderna. Subiu aos cus em
fins de 2014.
Mesmo no tempo do apartheid, quando pisei pela primeira vez na frica do Sul, percebi como pessoas especiais moldam
a histria. Nos dias atuais, quando a hiptese da elevao
do continente africano no sistema internacional se faz, h
que lembrarmos as simples e eternas mensagens de Mandela
e Ali Mazrui: prover conscincia aos atos, avanar a frica
na combinao da cidadania com o desenvolvimento, forjar
uma frica para os africanos, saber que a cor da pele no
condio natural e automtica para a libertao humana.
Jos Flvio Sombra Saraiva
Braslia, maro de 2015
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Sumrio
I. A renascena africana ...............................................................11
1.1. As festas de Adis Abeba ...................................................11
1.2. Definindo o renascimento africano ...................................13
1.3. As razes do baob e a cultura africana ............................18
II. frica em mutao ....................................................................25
2.1. Uma nova frica no sculo XXI .........................................25
2.2. Os debates em torno da mutao ....................................28
2.3. Renascena africana no sculo XXI ...................................31
2.4. O mundo caminha para a frica .......................................40
2.5. A frica para os africanos .................................................46
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III. As relaes internacionais e a frica ........................................51
3.1. As novas condies internacionais do incio do sculo XXI ............................................................51
3.2. A crise global e a frica resiliente .....................................57
3.3. Os velhos desafios no novo tempo da frica ....................62
3.4. Os Estados Unidos da Amrica e a China: disputas ou cooperao na frica? .....................................67
IV. A frica autnoma e sustentvel: um desejo para o sculo XXI ......................................................................75
4.1. Um passo para a autonomia decisria .............................76
4.2. Desafios polticos para a Nepad........................................78
4.3. Caminhos para o desenvolvimento sustentvel e sustentado .........................................................................84
V. A frica olha o Brasil.................................................................95
5.1. A redescoberta mtua africano-brasileira: espelhos em movimento ....................................................95
5.2. A CPLP, os Palop e o Brasil na frica ............................... 105
5.3. Um novo discurso no Atlntico Sul: cooperao, dvida histrica e as asas da paz ..................................... 115
VI. Os velhos baobs e a nova frica ........................................... 127
6.1. Euforia e cautela: um balano de Adis Abeba em 2013 ......................................................... 128
6.2. Espelho da nova frica ................................................... 131
Bibliografia seletiva ............................................................... 135
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IA renascena africana
1.1. As festas de Adis AbebaO dia 25 de maio de 2013 foi de festa na capital da Etipia.
Convergiram para Adis Abeba governantes e pensadores
africanos de quase todos os pases daquele continente. Dos
novos governantes do norte africano da Primavera rabe aos
empresrios e intelectuais da frica Austral e das Amricas,
alm de europeus e asiticos, grande e diversa comunidade
de interessados acompanharam debates e discursos
acerca da nova frica. Seminrios internacionais voltados
para temas como o pan-africanismo e as novas formas de
insero internacional do continente africano marcaram o
ms de maio naquela parte norte e oriental da frica.
Cinco dezenas de chefes de Estado africanos estiveram
na nova e bela sede da Unio Africana (UA) para celebrar
a renascena africana. Renascena ou renascimento
significam, para as novas geraes de africanos, o alcance
de uma vida material, intelectual e socialmente saudvel,
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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ao desenvolver suas possibilidades educacionais e de renda
em Estados capazes de garantir processo de democratizao
e respeito diversidade cultural que marca o presente
africano.
Foi em Adis Abeba que nasceu formalmente, h 52 anos, a
ento Organizao da Unidade Africana (OUA), transformada
posteriormente na atual Unio Africana (UA). Ante o brilho
das independncias, o projeto tinha por propsito romper
o colonialismo e buscar a paz e o desenvolvimento. A
estratgia originria era a unidade e a coordenao poltica
dos novos Estados no sistema internacional. Daqueles atos
heroicos dos grandes lderes das lutas contra a colonizao,
herdam os africanos de hoje uma nova insero, mais
altrusta, da frica no mundo.
A foto oficial dos lderes do continente africano em Adis
Abeba no ano de 2013, alm de outros lderes mundiais
convidados, causou fascnio diante da elevao gradual
que se observa no continente historicamente mais
atrasado, poltica, social e economicamente, do mundo
contemporneo. Emerge no incio do sculo XXI um ar
de esperana, de possibilidades que se desenharam nos
ltimos anos, depois de inmeras guerras, desinteligncias
domsticas, fome, crises alimentares e doenas epidmicas
que devastaram populaes ao largo desse meio sculo de
independncia formal dos pases africanos. A lembrar que a
primeira independncia formal na frica abaixo do Saara foi
a de Gana, antes Costa do Ouro, em 1957, dez anos depois
da independncia da ndia, vizinha da frica.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
A nova frica quer ser do mundo. Esse foi o sentido
dominante que conduziu as delegaes africanas s festas
e celebraes de Adis Abeba. As mudanas ainda no so
to visveis na frica para todo o mundo, mas os discursos
de Adis Abeba sugerem um ciclo novo, que se iniciou j
na passagem do sculo XX para o sculo XXI. A essa
transformao se sugere o conceito de renascena africana.
Renascimento, em acepo africana, significa erguer-se
no mundo, normalizando os direitos elementares da pessoa
humana, melhorando o padro da economia e da governana
poltica. Renascena toca na ideia de digna insero das
sociedades africanas nos fluxos globais de forma positiva,
assertiva e humana para os habitantes do grande continente
de 54 pases e mais de um bilho de habitantes. Essa foi a
lio que deixou Nelson Mandela no dia 5 de dezembro de
2013, ao deixar sua labuta heroica no mundo que ele tanto
soube mudar por palavras e gestos.
1.2. Definindo o renascimento africanoEmbora parea um fenmeno do momento, uma
criao poltica passional, uma vontade do hoje, a ideia
do renascimento africano tem longa maturao. Iniciou-
-se quase mesmo no tempo das independncias, no
final da dcada de 1950 e incio dos anos 1960. Emergiu
gradualmente com um movimento profundo de valorizao
da realidade africana e de busca da identidade ps-colonial.
E seu projeto a afirmao do ecumenismo de uma frica
para todos os africanos. De Nelson Mandela a Ali Mazrui,
os conceitos conformam hoje um sentido ao renascimento
UsuarioNotahistoria do renascimento africano
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africano, mesmo que em diferentes espectros polticos e
filosficos possam divergir na arena das discusses em
torno dessa renascena.
Alguns autores, africanos e de fora da frica, j no
contexto do soleil des indpendences, chamavam a ateno para a cultura, a diversidade e as possibilidades civilizatrias
africanas. A renascena da frica emergiu como movimento
de reformulao dos esteretipos acerca da vida no
continente. Seu centro foi sempre, ainda hoje o , a recusa
ao tratamento da realidade africana como eternamente
primitiva e tradicional. E seu alcance universal a afirmao
de uma viso global a partir da frica.
A ideia da elevao e renascena africanas foi reconhecida
pela proposio inquietante publicada no Correio da Unesco no incio dos anos 1960, quando o antroplogo, filsofo e
professor francs Claude Lvi-Strauss (1908-2009) comentou
as razes da crise da antropologia moderna. Aparecia nas
cincias sociais europeias o conceito de que a frica era
bem mais complexa e diversa que a reduo antropolgica
realizada por levas de antroplogos e historiadores europeus
desde o sculo XIX.
Os movimentos de independncia e as novas lideranas
africanas no sculo XX ajudaram a forjar novas percepes
e ideias do que hoje chamamos de renascimento africano.
Como comentava o professor Ali Mazrui (1933-2014), o
renascimento africano um projeto de vida, de esforos
combinados: de ideias e projetos de fora para dentro
da frica, mas principalmente de dentro para fora do
continente.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Provocado pela reao ativa e autnoma das sociedades
africanas em seu movimento na direo das independncias
polticas, j na segunda metade do sculo XX, Claude Lvi-
-Strauss reconhecia os limites da velha antropologia de
Lewis Henry Morgan (1818-1881) como meio intelectual
do estudo da diversidade das sociedades africanas. Para
entender as vozes dos que reagiam a serem apenas objetos
de pesquisas antropolgicas, seria necessrio mais esforo
dos estudos acerca da frica, particularmente pelos prprios
africanos. E assim se fez.
Os africanos demonstraram que seria possvel fazer
histria prpria e poltica de libertao anticolonial. Era o
incio da ideia da frica para os africanos. Intelectuais e
ativistas nacionalistas africanos lideraram aquelas primeiras
vogas de vontade africana no contexto das independncias
das dcadas de 1950 e 1960. Apresentaram, naqueles anos
da descolonizao, rejeio a serem objetos de pesquisas
feitas pelos cnones eurocntricos. Grupos pan-africanistas
e intelectuais pan-negristas, na frica e fora dela, dirigiam
suas armas intelectuais e polticas contra as chamadas
tradies advindas de alguns escritos do filsofo Friedrich
Hegel (1770-1831), que negavam a historicidade das
sociedades sem escrita e das narrativas traduzidas em
documentos no formais de memria, como a tradio oral.
A crtica foi dura nos anos 1960. E seguiu at a dcada
das independncias dos pases de lngua portuguesa na
frica, nos anos 1970. As lutas pelo acesso independncia
de esprito, atentas ao valor do livre arbtrio, calcadas
no conceito de autonomia decisria, trouxeram novas
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propostas. Destacaram-se inditas vises do mundo e um
esforo intelectivo e prtico de criao de um lugar prprio
dos africanos na chamada civilizao contempornea.
Insistiram os pan-africanistas do Caribe, como Aim
Cesaire (1913-2008), nas formas mltiplas de culturalismos e
nas infinitas possibilidades de ver a si mesmos como aqueles
que descendiam das razes africanas, mesmo estando fora
da frica. Era o caso do caribenho Cesaire, ao anotar a
importante dimenso da dispora africana. Via na dispora
uma grande oportunidade de criao de uma nova cultura
pan-africana, com os africanos do continente, em torno de
uma cultura nova, um verdadeiro renascimento africano,
plasmado no Atlntico africano, caribenho e americano.
A ideia de renascena emerge da necessidade de
reconstruo da memria coletiva, pela qual os africanos
se tornassem atores dos processos, e no apenas agentes
passivos de levas externas de ocupao. No era, portanto,
expulsar o colonizador, mas era o esforo de reformular o
conhecimento sobre a frica. O caminho dos intelectuais
africanos e construtores dos conceitos pan-africanistas foi
o de romper mitos erguidos contra seu processo histrico.
Esse gesto mudou as possibilidades de insero da frica,
j em parte daquelas dcadas iniciais de independncia, na
sociedade internacional.
O recurso histria como instrumento dessa afirmao
de identidade coletiva foi particularmente desenvolvido
pelos primeiros e grandes historiadores africanos da primeira
leva das independncias. Tantos foram os discpulos dos
professores africanos Joseph Ki-Zerbo (1922-2006) e Claude
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Ak (1939-1996) nessas linhas das primeiras geraes de
intelectuais da frica independente.
Os estudos arqueolgicos e paleontolgicos de If, Nok e
do vale do Rift confirmaram a primazia africana na gnese
da humanidade. O estudo das clssicas prticas agrcolas
e da domesticao de animais, entre outros processos
espetaculares de redefinio do Egito antigo como parte
de uma civilizao de origem africana, foram fundamentais
para o desenvolvimento da confiana historiogrfica que
sedimenta hoje certo sentido de futuro.
Um elemento crucial da renascena africana est no
resgate das tradies africanas com o compromisso da
transformao do presente. A reside a contemporaneidade
das correntes de pensamento da frica. A ideia buscar
resolues de problemas, na prtica, na escola, na formao
da juventude africana, uma vez que ainda se perpetuam no
continente africano crises culturais e sociais advindas dos
velhos mtodos e mtricas impostas pela educao desigual
do colonizado.
No a reproduo das antigas realidades do mundo
contemporneo o que busca o renascimento africano.
Tenta, ao contrrio, desenhar o elo criativo do passado
pouco conhecido em favor da transformao do presente.
A interlocuo entre esses dois tempos particularmente
notada na obra do prmio Nobel de literatura nigeriano Wole
Soyinka (cuja premiao do Nobel de Literatura ocorreu
no ano de 1986). Sua obra toca nos desafios das novas
culturas e religies. Lembra que, na cultura nigeriana, houve
quadras histricas longas em durao nas quais o dilogo
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entre culturas e religies foram elegantes e respeitosos.
As religies no se conflitavam, mas conversavam em paz.
Para Soyinka, os nigerianos j dialogaram mais na histria.
Hoje, parte do grande pas da frica ocidental est metida
no terrorismo religioso.
Temas e interesses desses novos autores africanos do
sculo XXI conversam com anteriores. Tais autores ligam
a gerao dos anos 1960 e a renovao dos autores do
novo sculo aos cinquenta anos da criao formal de uma
instituio de libertao, como foi a OUA. Perguntam-se os
africanos sobre a significao da busca da especificidade
cultural diante do multiculturalismo consumista do novo
sculo. Indagam-se acerca do patrimnio cultural e das
novas formas de expresso. Preocupam-se os educadores da
frica com o desenvolvimento educacional da modernidade.
Desejam manter importantes contedos africanos nos
programas escolares dos jovens. Alimentam a ideia de que
a educao tradicional da frica, de base familiar, pode
conviver com os estudos das novas tecnologias e dos
programas avanados que envolvam os grandes temas do
mundo e da produtividade necessria que a frica tambm
precisa desenvolver no mundo.
1.3. As razes do baob e a cultura africanaNas savanas africanas, vive a rvore de maior longevidade
do planeta. O baob africano, que pode chegar a mais de mil
anos de idade, simboliza a resistncia dos povos da frica. O
abrao ao velho baob pode exigir vrios homens enlaados
no caule da velha imagem africana de fortaleza. Mesmo
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
como metfora, as razes da renascena africana apesar
de sua contemporaneidade e movimento dinmico desde
os movimentos das independncias so to profundas
quanto as dos velhos baobs.
J no sculo XIX, ou no incio do sculo XX, emergiram
os primeiros autores do renascimento africano. Postularam
correntes de pensamento acerca da cultura e da vida social
e imaterial do continente dos baobs. Uma das primeiras
proposies tericas acerca do renascimento africano foi
proposta por Edward Blyden (1832-1912), h pouco mais de
um sculo, por meio de seu projeto de explicao da riqueza
cosmopolita das culturas africanas.
Blyden, um dos pais do pan-africanismo, nasceu em So
Toms, mas morreu em Serra Leoa. Por meio de seu livro
intitulado Christianity, Islam and the Negro Race, elaborou uma teoria do humanismo africano. Sua teoria estava
sustentada na ideia de que os africanos deveriam assimilar
saberes modernos, configurados nas transformaes do
tempo, em particular aquelas que advinham das novas
culturas que perfilavam a frica da passagem do sculo
XIX para o sculo XX. Essa assimilao, no entanto, no
significava a negao dos diversos matizes culturais e
histricos da experincia dos povos africanos. Props Blyden
uma articulao original do cristianismo com o islamismo e
com as cosmogonias africanas.
Edward Blyden foi intelectual revolucionrio. Sugeria um
renascimento africano no qual a cor da pele no fosse objeto
de anlise. Sua proposio era o cosmopolitismo cultural e
a convivncia consonante de contrrios. Seu tema central
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foi o confronto positivo dos discursos humanistas, cada
um deles vlido para a frica, mas que no poderiam ser
subsumidos na imposio de uma nica forma de pensar
e de construir instituies e normas sociais e polticas no
continente africano.
Sob a perspectiva poltica, Blyden j anunciava a boa
governana democrtica na frica, ao observar as condies
dramticas da sociedade liberiana, na qual ele se estabeleceu
aps a dispora americana, no incio do sculo XX. Em
especial criticou e lutou contra o conceito desdenhoso e
opressivo de massas camponesas na frica.
Edward Blyden anunciou, lamentou e criticou aspectos
negativos da futura formao de Estados africanos, em
especial a manipulao e a explorao das massas de
trabalhadores por estruturas econmicas e polticas
voltadas para a explorao. A crtica de Blyden introduo
de importaes de modelos para a frica segue em parte
vlida at os dias de hoje. Argumentou que as construes
culturais de fora do continente africano podem e devem ser
acolhidas, mas internalizadas com razo crtica. Ao tempo
em que se inclua a frica no mundo, Blyden desejava que
tambm se forjassem os africanos suas prprias teorias e
conceitos.
Avanadas, as ideias de Blyden foram perdendo fora
no tempo. A colonizao, as escolhas das elites locais, as
condies econmicas e polticas do continente confluram
para outras paragens. Os discursos cosmopolitas e
humanistas foram soterrados em favor da politizao da
descolonizao, das formas prprias de grande parte das
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
lutas de independncia no continente, alm dos temas do
discurso de uma existncia autnoma e separada daqueles
que nascem com a pele negra. Era o incio da fase pan-
-negrista.
Dois aspectos despontaram no pan-africanismo e no
movimento da negritude no sculo XX. Em primeiro lugar,
representaram pensamento de classes j educadas no
sistema ps-colonial. Alguns se dedicaram a obras de defesa
da renascena africana por meio da noo de retorno s
razes, discurso com pouca circulao sobre as massas de
africanos colonizados. Em segundo lugar, esses movimentos,
embora africanos, tiveram forte influncia das Amricas.
Foram intelectuais afro-caribenhos e afro-americanos, por
meio de iniciativas como a de William Edward Du Bois (1868-
-1963), que formaram a ideia de uma frente racial, dentro da
concepo dos movimentos pan-negristas. William Du Bois,
historiador, nasceu em Massachusetts, nos Estados Unidos.
Morreu em Acra, atual capital de Gana, defendendo suas
ideias.
O pan-africanismo, em grande medida, foi migrando para
a Europa e dela para a frica, a compor parte do iderio
poltico das lutas de descolonizao dos anos 1950 e incio
dos anos 1960. Nos congressos pan-africanistas em 1919,
em 1921, em 1923 e em 1927 , observaram-se debates
acalorados em torno da questo racial, das identidades,
alm da proposta do dio como instrumento de luta.
Propunha-se, ento, uma alternativa cultural e poltica de
luta em favor da emancipao dos negros, tanto na Amrica
quanto na frica.
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Nomes e propostas dessas formas anteriores de
renascimentos africanos so conhecidos na literatura.
William Du Bois sugeriu a formao de uma frente nica
de homens de cor. Mas Marcos Garvey (1887-1940),
nascido na Jamaica e falecido em Londres, preferia uma
frente fragmentada, para diferentes reas e geografias,
sem direo geral. George Padmore (1903-1959), nascido
em Trinidad e Tobago e morto em Londres, glorificava o
gnio negro, que mais tarde foi tomar corpo em lderes
africanos no campo poltico e intelectual. Algumas dessas
ideias chegariam, mais tarde, na forma moderada e liberal
de lderes das independncias africanas, como em Lopold
Senghor (1906-2001), intelectual, lder da independncia e
poeta nascido no Senegal (pas que governou), falecido na
Frana. Foi o construtor dos conceitos do movimento da
ngritude. Senghor foi o primeiro presidente da frica negra, ou frica subsaariana, a visitar oficialmente o Brasil. Isso
ocorreu em agosto de 1964.
Esse conjunto de ideias originais, gestadas deste lado,
nas Amricas, mas tambm na frica, pode ser considerado
base do renascimento africano. O pan-africanismo trouxe,
naqueles anos, um conjunto de pontos fundamentais
que podem ser considerados, em leitura contempornea,
elementos que ainda animam parte do lxico dos debates
em curso no incio do sculo XXI.
Uma releitura dessa intelectualidade anterior, bem como
dos temas e discursos polticos dos atores das lutas de
independncia na frica, permite afirmar que h conceitos
e proposies que alimentam uma linha de pensamento de
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
elevao cultural e poltica do continente africano. Algumas
podem ser sintetizadas em pequenos pontos, como ligas
que vinculam a herana dos primeiros renascentistas
africanos ao novo renascimento do sculo XXI. So, a saber:
igualdade da raa negra com todas as raas;
liberdade dos povos da frica e seus descendentes;
controle das terras africanas pelos africanos;
abolio dos trabalhos forados e dos impostos
excessivos;
abolio, no sentido poltico e econmico, de todas
as distines raciais e de classe;
liberdade de comunicao no interior da frica e ao
longo das suas costas;
liberdade de associao, de imprensa e de expresso;
reconhecimento do direito educao;
reconhecimento dos direitos sindicais.
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II frica em mutao
2.1. Uma nova frica no sculo XXI
A frica desenha uma mudana histrica. O sculo
XXI se iniciou com mutaes na base das sociedades, das
economias e dos Estados africanos. Destacam-se as atuais
formas de insero internacional de seus Estados nacionais,
bem como o envolvimento crescente de antigos e novos
atores globais que participam, de forma interessada e
crescente, da gestao do futuro da frica.
Pode-se reconhecer que o continente africano assiste a
uma transio positiva para um novo patamar de insero
internacional no incio do novo sculo. Em trs linhas, pode-
-se observar a elevao do status da frica no nascer do sculo XXI, a saber:
avano gradual dos processos de democratizao
dos regimes polticos e conteno dos conflitos
armados;
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crescimento econmico associado a performances macroeconmicas satisfatrias e aliceradas na
responsabilidade fiscal e na preocupao social;
elevao da autoconfiana das elites por meio de
novas formas de renascimentos culturais e polticos.
A frica e mesmo a chamada frica negra ou frica
subsaariana, considerada a regio mais pobre do mundo,
cresce entre 5% e 6% ao ano desde 20031. H uma dcada
de crescimento econmico (2003-2013) que vem sendo
apresentado como a dcada da nova frica.
Adaptaes macroeconmicas globalizao moveram
as economias de todo o continente para equilbrios na rea
da gesto dos negcios dos Estados. Saudveis vm sendo
as inflaes mdias do continente africano, contidas na faixa
de 6% desde 2003. As exportaes avanam na proporo de
43% a 45% do Produto Interno Bruto (PIB) nos ltimos anos.
O crescimento do PIB africano nos dois ltimos anos foi
aproximado a 5%, conforme os dados do Fundo Monetrio
Internacional (FMI) e do Banco Mundial disponveis.
As expectativas para 2015 e anos seguintes so alentadoras,
a seguir a mtrica, segundo as casas mundiais de ratings e de investimentos globais.
Cresce a frica, no que tange ao crescimento anual
do PIB, mais que a Europa e as Amricas, particularmente
depois da crise de 2008. Reformas econmicas liberalizantes,
1 Segundo dados de hoje do Fundo Monetrio Internacional, o Produto Interno Bruto (PIB) da regio cresceu 4% em 2003, 5,7% em 2004, 5,6% em 2005 e 4,8% em 2006, alcanando nos anos seguintes o patamar de 5,5%. Em 2012, a frica cresceu seu PIB em torno de 5,5%, com previso de crescimento entre 5% a 6% nos prximos anos.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
reduo de vulnerabilidades externas geradas por saldos
exportadores e crescente atrao de investimentos externos
diretos so fatos, entre outros, celebrados como de
sinalizao de sustentabilidade econmica pelos africanos
e ainda surpreendem os elaboradores dos relatrios das
agncias internacionais, como o FMI e o Banco Mundial.2
H razes para otimismo em todas as regies da frica,
embora existam excessos em alguns pases em todas as
regies, do norte ao sul do continente, do leste ao oeste.
O ambiente positivo anima a confiana dos mercados. Na
mdia da frica negra, os investimentos internos equivalem
a 19,4% do PIB, percentual maior que o do Brasil nos
dias de hoje, embora seja ainda considerado baixo para
a sustentabilidade do crescimento econmico. O vetor da
elevao do crescimento interno visvel desde 2002 e tende
a crescer nos prximos anos, mesmo ante a crise global
que se perpetua menos no contexto do capitalismo norte-
-americano e mais no caso europeu, tradicionais parceiros
do continente africano. A frica vem sendo escolhida como
parte das prioridades para novas reas e carteiras de
emprstimos do Banco Mundial.
H preocupaes, no entanto, no campo social,
que variam de pas para pas, por meio de polticas de
construo de metas de reduo da pobreza. H tambm
a ateno dos setores financeiros em alguns pases
africanos com a eventualidade de um novo ciclo de
2 IMF, Africa Foreign Investment Survey 2006. Washington: IMF, 2007. THE WORLD BANK, Bridging the Atlantic: Brazil and Sub-Saharan Africa: South-South Partnership for Growth. Washington: The World Bank; Braslia: IPEA, 2011.
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endividamento interno advindo principalmente das polticas
financeiras engendradas pela poltica chinesa na frica,
que tem interesse estratgico no continente para a compra
de petrleo e de commodities agrcolas e para a explorao de recursos minerais.
A penltima reunio de chefes de Estado e de governo
do grupo de pases conhecido pelo acrnimo Brics Brasil,
Rssia, ndia, China e frica do Sul , realizada em Durban,
na frica do Sul, no primeiro semestre de 2013, incluiu
em sua agenda o tema da indstria na frica. Para alguns
autores, na frica e mesmo no Brasil, o esgotamento do
modelo das commodities para a frica, depois desses anos de elevao econmica, poderia estar atingindo ponto
de declnio. Produo com valor agregado e insero nas
cadeias produtivas de valor e internacionalizadas seria,
portanto, um possvel novo ponto de inflexo das economias
mais modernas na frica, como o caso da frica do Sul, na
regio austral, e, parcialmente, da Nigria, no oeste, e at
mesmo da Etipia e da Tanznia, na frica do leste.
2.2. Os debates em torno da mutao
H na frica e fora dela o sentimento de que a primeira
dcada do novo sculo e os primeiros anos da segunda
dcada do sculo XXI foram positivos. A frica vem superando
o drama histrico das guerras intestinas e internacionais3. O
3 Um bom estudo acerca das origens e dos desdobramentos desses conflitos est em ALI, Taisier M.; MATHEWS, Robert O. Civil Wars in Africa. Roots and Resolutions. London: Ithaca, 1999.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
nmero de pases africanos com conflitos armados internos
caiu de treze para cinco, nos ltimos dez anos4.
Os conflitos foram uma das causas imediatas da pobreza
no continente. A reduo dramtica dos mesmos faz pensar
que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhes
queimados nos conflitos entre 1990 e 2005, podem agora ser
dirigidos s polticas de reduo da pobreza e da misria5.
H, ao mesmo tempo, uma onda democratizante dos
regimes polticos em vrias partes da frica. A casa norte-
-americana Freedom House demonstra esse avano gradual. Um processo tardio mas relevante para a consolidao
de instituies e governos na frica com bases menos
autocrticas e com algum apelo s noes da democracia
fato relevante para a elevao da confiana internacional.
H debates duros em torno dessas mutaes no
continente africano. A interpretao dominante acerca
do futuro do continente permanece, em certos crculos
intelectuais e polticos, plasmada por olhares enviesados
que se repetem com regularidade gritante. Meios de
comunicao insistem em apresentar uma frica indolente
e ditatorial. Empresrios e empresas, mesmo acumulando
ganhos comerciais no momento, ainda duvidam das
4 Os conflitos na frica foram chaga da histria recente com impacto econmico incontestvel, como demonstram relatrios como o da organizao no governamental Oxfam, Ians e Saferwood, publicado recentemente. Informa que cerca de US$ 284 bilhes foi o custo para o desenvolvimento do continente causado pelos conflitos armados entre 1990 e 2005. O curioso que essa soma corresponde aproximadamente ao valor de toda a ajuda financeira internacional recebida pela frica no mesmo perodo.
5 PROGRAMA das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD. Relatrio do Desenvolvimento Humano, 2005 e 2014. O novo Relatrio do Desenvolvimento Humano, do ano de 2013, j anuncia modestas, mas vigorosa evoluo nessa rea to sensvel e necessria da elevao do padro social, educacional e societrio das populaes africanas. Ver PROGRAMA... Relatrio do Desenvolvimento Humano, 2014.
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possibilidades do agir em terreno africano de forma mais
duradoura, a impulsionar a logstica que a frica requer.
Mesmo no Brasil, universidades e escolas continuam
afnicas de histrias da frica6. As tragdias e os genocdios
ganham a cor espetacular das telas televisivas, enquanto
as experincias de estabilizao e crescimento econmico,
assim como as iniciativas polticas de reduo da pobreza e
das doenas endmicas na frica, so silenciadas.
O prisma, no caso do Brasil, ainda o da reduo da
reflexo da frica contempornea e a nfase dimenso
da afro-brasilidade. Claro que uma se comunica com a
outra. A ligao das duas dimenses permite comunicar as
fricas que existem dentro do Brasil com a dispora e os
africanos do outro lado do Atlntico Sul, porm expe de
modo incompleto o esforo de entendimento dos grandes
desafios da insero africana na ordem internacional do
sculo XXI. A frica caminha por si s, com ou sem o Brasil
e os afro-descendentes.
O insuficiente acompanhamento dos debates africanos
contemporneos conjuga-se ausncia de significativos
centros estratgicos voltados para o acompanhamento da
nova corrida para a frica. Essa uma discusso ainda
no Brasil, onde estamos avanando espao, mas modesto
ainda, mesmo com a chegada de novas pesquisas e de
grupos intelectuais e empresariais voltados para o estudo
do continente ribeirinho.
6 A produo nacional de livros a respeito da frica escassa, em geral sem pesquisa in loco, alm de reproduzirem, em grande medida, vises romnticas ou voltadas para o estudo do outro lado do Atlntico Sul apenas pela via politizada do discurso da afrobrasilidade.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Da a preocupao legtima, de setores responsveis
em vrios governos das economias centrais e em grande
parte das emergentes, no sentido do entendimento dessas
mutaes. Sem conhecimento estratgico, no h ttica
que permita avanar de forma duradoura e consistente um
programa de ao do Brasil na frica nas prximas dcadas.
Deste lado do Atlntico Sul, a percepo da inteligncia
africana acerca de seu prprio futuro matria oculta,
gua turva, no seio do conhecimento brasileiro hegemnico
disseminado nas universidades, empresas, agncias de
governo e meios de comunicao, seno mesmo nas
veias da ao pragmtica do Brasil para a frica. A baixa
apreciao da frica por parte da mdia e de agentes
sociais e econmicos em vrias partes do mundo, ainda
particularmente no Brasil, no corresponde ao e
apreciao dos estudiosos e mesmo dos grandes grupos
econmicos globais, das empresas multinacionais e de
pases como a China e a ndia, mais elevadas e positivas7.
2.3 Renascena africana no sculo XXIA frica caminha mais clere e autoconfiante. Caminhar
o continente, ao longo dos prximos anos, nas trilhas do
7 Ver alguns livros meus e de colegas brasileiros a respeito da formao da frica contempornea, bem como das relaes do Brasil com a frica mais recente: SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Formao da frica contempornea. So Paulo: Editora da Universidade de Campinas/Atual, 1987; Idem, O lugar da frica: a dimenso atlntica da poltica exterior do Brasil. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1996; Idem (Org.), CPLP Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa: ao poltica e solidariedade. Braslia: IBRI, 2001; Idem, frica e o Brasil: o Frum de Fortaleza e o relanamento da poltica africana do Brasil no governo Lula. In: COELHO, Pedro Mota; SARAIVA, Jos Flvio Sombra (Orgs.). Frum Brasil-frica: Poltica, Cooperao e Comrcio. Braslia: IBRI, 2004, p. 295-307; Idem, frica parceira do Brasil atlntico. Belo Horizonte: Fino Trao Editora, 2012. SARAIVA, Jos Flvio Sombra; CERVO, Amado Luiz (Orgs.). O crescimento das relaes internacionais do Brasil. Braslia: IBR, 2005.
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cinquentenrio de sua liberdade poltica. Essa foi a mensagem
de Adis Abeba e das discusses mais interessantes do
Congresso Pan-Africanista que l se realizou, em maio de
2013, entre tantos intelectuais da frica e de fora dela8.
Dois fatos carregam simbolismos positivos no incio do
sculo XXI. Ambos se comunicam, na ideia de uma renascena
no incio do sculo XXI. Em primeiro lugar, completou-se, em
2007, o meio sculo da independncia da Costa do Ouro
(Gana de hoje), a primeira da frica negra, liderada por
NKrumah, em 1957. O segundo so as comemoraes dos
cinquenta anos da OUA, hoje UA, ocorridas em 2013.
Entre esses dois fatos simblicos, outros chamam a
ateno. O ano de 2008 inaugurou uma sequncia de atos
e reflexes acerca do lugar da frica no mundo, fora e
dentro do continente. As mensagens so de algum otimismo
cauteloso. O ano de 2011 foi o da projeo do Banco
Mundial e seu relatrio relativo s oportunidades do Brasil
na frica subsaariana9. Dados novos e ricos embalam uma
oportunidade de alargamento da operao Sul-Sul da frica,
por meio da ampliao do comrcio e do investimento, em
fase de crescimento econmico mtuo.
Iniciativas polticas e culturais convocam a comunidade
internacional para compartilhar o renascimento africano,
embora no mais aquele das nascentes independncias em
fins dos anos 1950 e incio da dcada de 1960, povoadas
8 SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Five periods in the history of Brazil-Africa relations: A particular way of building Brazilian Pan-Africanism and the weight of History. In: PANAFRICANISM AND AFRICAN RENAISSANCE. BEING PAN-AFRICAN. Addis Ababa, Ethiophia, May 17, 18 and 19, 2013.
9 BANCO... . Ponte sobre o Atlntico. Brasil e frica Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento. Washinghton: BIRD; Braslia: IPEA, 2011.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
por rancores anti-coloniais, romantismos revolucionrios e
jarges de libertadores ingnuos. Nem o renascimento
ps-apartheid alardeado pelo governo de Pretria, embora a
frica do Sul esteja na moldura mais ampla do que qualifico
de renascimento africano. Tambm no se est falando do
renascimento poltico dos anos 1960 e 1970, que j ficou
para trs, nos debates recorrentes das elites africanas entre
as ideias de Senghor e Cabral10. Esse assunto foi discutido,
em parte, no incio desse captulo.
A mensagem da frica clara ao mundo. O continente
no quer remoer o passado cata de culpados. Quer
caminhar para frente. O renascimento do incio do sculo
XXI mais altrusta, evidencia outra forma de renascer, mais
eficaz que a anterior, mais pragmtica, a fazer referncia a
outras formas obliteradas de africanidade pelos discursos
polticos engendrados pelas ideologias da Guerra Fria e
do nacionalismo terico e poltico da primeira gerao
das independncias. H um outro renascimento, novos
consensos, com outras referncias culturais, polticas e
sociais, com resultantes a serem alcanadas no mundo que
vem a.
cones da profundidade de campo histrico da frica
(para utilizar as imagens de Abdel Malek11 e C. A. Diop) vm
sendo trazidos para a discusso do futuro do continente.
10 Ver SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Formao da frica Contempornea. So Paulo: Atual/Unicamp, 1987, p. 6-16. Ver tambm os debates clssicos propostos por HOUNTONDJI, Paulin J. Sur la philosophie africaine. Paris: Maspero, 1980; BALOGUN, Ola. Honorat Aguessy, Path Diagne, Alpha Sow. In: BALOGUN, Ola et al. Introduo cultura africana. Lisboa: Edies 70, 1977.
11 ABEL-MALEK, Anouar. Sociologia del imperialismo. Ciudad de Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1977.
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esse, a ttulo de exemplo, o caso da releitura de Tombuctu,
cidade antiqussima nas margens do rio Nger, que se
revitalizou h anos como memria do classicismo africano,
mas tambm como lugar do presente da cultura africana e
da imaginao de um devir poltico soberano e altrusta do
continente12.
Apesar das dificuldades do Mali de hoje, ante o ataque
aos escritos de Tombuctu por terroristas religiosos, a
pesquisa segue na busca de documentos clssicos da
cultura africana dos Grandes Lagos.
Outra fonte do renascimento emerge de uma historiografia
adaptativa e rica de Heinrich Barth, revista na obra recente
de Mamadou Diawarq, Paulo Fernando de Moraes Farias
e Gerd Spittler13. Surge tambm da recuperao da obra
medieval de Ibn Khaldun, como seu Muqaddimah, escrito em 1377, bem como, alguns sculos depois, da obra de
Edward Blyden (1822-19112), diplomata e professor, um
fundador da Libria, homem de Estado.
12 Ver FARIAS, Paulo Fernando de Morais.Tombuctu, a frica do Sul e o idioma de renascena africana. II CNPI, 2 e 3 de maro de 2007. Paulo Farias que lembra que por definio, o atual idioma da Renascena Africana se refere tanto ao presente quanto ao passado, dentro e fora das fronteiras da frica do Sul, o pas onde tem sido proclamado. tambm de Paulo Farias outras duas ideias lapidares para o debate em curso: primeiro, o papel dos cronistas de Tombuctu na inveno do esquema no tem sido reconhecido, porque a funo que lhes imposta pelos discursos posteriores outra. As crnicas passaram a ser vistas sobretudo como testemunhas de uma grandeza saheliana perdida, que simboliza o futuro a ganhar. As tenses sociais e audcias intelectuais da Tombuctu do sculo XVII so substitudas pela imagem de um classicismo africano estereotipado; segundo, todo discurso de renascena corre o risco de mitificar o passado. Mas esse risco no inevitvel, e subtrair-se a ele tambm uma maneira de preservar a capacidade crtica em relao ao presente e aos caminhos para o futuro.
13 DIAWARA, Mamadou; FARIAS, Paulo Fernando de Moraes; SPITTLER, Gerd. Heinrich Barth et lAfrique. Kln: Rdiger Kppe Verlag, 2006.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Animados por um conjunto de atividades acadmicas,
polticas e culturais, os africanos relembram, em vrias
partes do continente, o soleil des indpendances dos anos 1960, mas em especial passam em revista os descaminhos
de vrias experincias de importao de modelos, como as
reformas estruturais conduzidas pela genialidade liberal,
os planos de reestruturao conduzidos pelos economistas
do Ocidente ou mesmo a cpia em papel carbono do
socialismo real e do modelo do partido nico de matriz
stalinista.
Os 54 Estados nacionais da frica passaro em revista, de
forma crtica, nos prximos anos, a evoluo mais recente
das cinco dcadas de autonomia jurdica, ainda que na
poltica apenas de forma relativa, pois necessitam preparar
parte das paredes de suas casas para uma insero mais
altaneira na ordem internacional do sculo XXI14. Afinal,
esse o balano dos que vocalizaram a Conferncia Pan-
-Africanista de Adis Abeba em maio de 2013.
O renascimento tambm pe a frica na cena internacional
pragmtica. Est-se a falar de quase um quarto da superfcie
do planeta (22,5% das terras do globo), com 30 milhes de
quilmetros quadrados, com 10% da populao do mundo,
mas que dever dobrar at 205015.
14 Modelar o balano dos trinta anos da independncia da frica realizado por Douglas Rimmer, em 1991, com prefcio da Princesa Diana, em nome do Royal African Society britnico. Ver RIMMER, Douglas (Ed.). Africa 30 Years 0n. London: James Currey, 1991. Indicava j aquele documento do incio dos anos 1990 que a frica necessitaria voltar-se para si mesma, para dentro, para sair de suas crises.
15 Vale aqui lembrar que os africanos sero, na segunda metade do sculo XXI, um conjunto de pessoas em torno de 1,3 bilho de pessoas, aproximadamente. Tomando-se em conta a grande populao de idosos e o baixo crescimento vegetativo na ltima dcada na China, bem como o modesto crescimento populacional da ndia, a frica, passando os outros dois pases, ser a regio mais populosa do mundo, no final do sculo XXI.
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Senhora de recursos minerais globais, a frica fonte
de cobia por 66% do diamante do mundo, 58% do ouro,
45% do cobalto, 17% do mangans, 15% da bauxita, 15% do
zinco e de 10% a 15% do petrleo. So aproximadamente
trinta os recursos minerais do mundo que a frica guarda
em seu subsolo. Mas s participa de 2% do comrcio
mundial e possui apenas 1% da produo industrial global.
H, portanto, um enorme desafio de elevao desses itens.
Em outras palavras: cultura, poder e economia comeam
a caminhar de forma organizada para os africanos que
vivem na frica do sculo XXI. A frica quer resolver seus
problemas econmicos e sociais, ao lado da governana
democrtica, ainda crtica em alguns pases do continente.
Os africanos no querem que seu continente do sculo
XXI seja lido como fonte da imaginao poltica dos outros,
mesmo de seus descendentes nas Amricas, apenas como um
lugar sagrado do passado, de dvidas histricas espalhadas
por todo o mundo e do dilogo global dos afrodescendentes
informando a noo da dispora. Embora tais temas sejam
relevantes, no so as prioridades do momento vivido pelas
sociedades africanas no novo sculo.
Em meados da primeira dcada do novo sculo, as
amarras da velha colonizao cedem lugar s iniciativas das
lideranas africanas. H uma percepo que se generaliza
de crescente responsabilidade das elites domsticas com
o encaminhar do futuro. A ideia do aproveitamento de
oportunidades inditas abertas pela quadra histrica da
primeira dcada do sculo XXI permeia o novo discurso
interno da inteligncia africana.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Com efeito, h um novo mapa africano, no aquele
desenhado pelos colonizadores de antes, mas no menos
inquietante ante a fora incontestvel de seus desenhistas.
Desfilam em Abuja, Adis Abeba, Lagos, Luanda, Cartum,
Pretria, Cairo ou Maputo autoridades chinesas, norte-
-americanas, brasileiras, agentes de empresas multinacionais
e organizaes no governamentais.
Atores internacionais de toda ordem, cada vez menos as
organizaes no governamentais humanitrias dos pases
ricos e cada vez mais atores econmicos e estratgicos
globais, querem dividir, com os africanos, balanos e
projees que j se preparam, no seio dos institutos
africanos e mundiais, acerca da ltima fronteira territorial
da internacionalizao econmica do capitalismo.
H, portanto, uma relao biunvoca, mas tambm
dialtica, entre o interno e o externo. H um lado desejvel:
que a frica supere as velhas tenses advindas do relativo
atraso em aspectos sociais e nas mtricas educacionais.
Esse o lugar do discurso do renascimento africano das
primeiras dcadas das independncias. Mas h outro: a
preocupao de que novos arranjos entre as elites locais
e internacionais no tragam a autonomia decisria nem o
desenvolvimento sustentvel ao continente.
O lcus do discurso do novo renascimento africano est
nas palavras do intelectual e professor nigeriano Claude Ak
(1939-1996), em seu ensaio Democracy and Development in Africa, quando lembrou que a grande preocupao com a frica no o que a levou ao subdesenvolvimento. A hora
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de colocar na agenda a conciliao da democracia com uma
verdadeira agenda social e poltica do desenvolvimento.
Preocupam-se alguns desses africanos que a internacio-
nalizao crescente do continente africano, ante seu carter
exgeno, perpetue-se com novas mscaras. A preocupao
legtima do ilustre intelectual africano vai ao ponto focal.
Como diminuir a distncia mental e real, produzida pelos
prprios governantes de grande parte dos Estados africanos
modernos, os abismos sociais e polticos que separam ricos
de pobres, elite de povo, na frica das prximas dcadas do
sculo XXI?
Notam-se desde j at mesmo reaes de agentes
econmicos, polticos e intelectuais africanos contra a lgica
de sua internacionalizao. Alguns criticam que, sob o
manto de uma nova partilha africana, governantes liberais
e democrticos estariam mantendo formas de dominao e
perpetuando de estratificao social.
Esse sobressalto veio tona recentemente por meio
de vrias vozes da inteligncia africana, como o filsofo
senegals Yoro Fall. Tambm chamou a ateno Ali
Mazrui, um dos mais prestigiados politlogos africanos
contemporneos, para o fato de que a frica est busca de
sua prpria Doutrina Monroe, da frica para os africanos16.
Para Mazrui, at a reduo de conflitos armados
internos ou que envolvem relaes internacionais na
frica no pode dar-se por solues puramente exgenas.
16 Ali Mazrui alertou para esse problema na abertura da conferncia internacional Democracy and Peace: Dialogue between Africa and Latin Amrica, Jos Univerity, Ibadan University, em Abuja, 2000, conferncia a qual tive a honra de participar como membro da delegao latino-americana.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Os africanos necessitam solues domsticas e dirigidas
por novo consenso entre povo e elites locais. Provoca-nos
abertamente o velho mestre da arte poltica africana ao
lembrar que a paz na frica deve ser um tema dos africanos,
e no sua extenso para atores internacionais. Ele chega a
falar em certa Pax Africana17.
Mesmo com esses esforos de elevao do status e da vontade prpria africana, o continente ainda escrutinado
sob todas as ticas, positivas e negativas, s vezes
simultaneamente. Alguns ainda condenam a frica a um
eterno desterro e consideram seu passado como mera
preparao de uma obra civilizatria inconclusa do Ocidente.
A decorrncia dessa lgica ainda segue em parte da
historiografia e da sociologia nacionalista africana. A ideia
que todos os males de hoje adviriam, ento, de um pecado
original, o do colonialismo e suas consequncias. esse
o raciocnio que amarra a reconstruo do passado a um
presente infrtil, plasmado pelo afropessimismo que
vigorou at pouco e que ainda persegue mentes cultas e
especializadas nos assuntos africanos em vrios centros de
estudos estratgicos no mundo, mesmo no Brasil.
Vale lembrar que h ainda uma velha marcha erigida
na m leitura da obra hegeliana, a qual o professor Paulo
Fernando de Moraes Farias recentemente reviu e criticou na
Universidade de Birmingham, Inglaterra. Exageros j foram
impetrados nesse movimento. A ausncia de razo crtica,
herdeiras elas do discurso hegeliano, empurrou bastante a
17 MAZRUI, Ali. Foreword. In: LAUREMONT, Ricardo R. (Ed). The causes of war and the consequences of peacekeeping in Africa. Portsmounth: Heinemann, 2002. p. xi.
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cincia e a opinio pblica, nas ltimas dcadas, ao discurso
da inviabilidade da frica. o plano escatolgico plasmado
por imagens, autores e meios da corrente afropessimista
dos anos 1990.
Teses vm sendo utilizadas, nessas bases esquemticas,
e em vrias partes do mundo, na lgica da marginalidade
africana e de sua modesta importncia para o quadro geral
da ao externa dos Estados e das relaes internacionais
do sculo XXI.
Esse autor pensa exatamente o contrrio do
afropessimismo atvico. A frica jamais foi marginal, no
passado nem no presente. O conceito da marginalidade
africana insustentvel, terica e empiricamente. No so
apenas os africanos que se insurgem contra essa escatologia,
mas a massa de literatura atualizada acerca dos desafios
africanos no xadrez da poltica internacional. So autores
africanistas como Jean-Franois Bayart, assim como Ian Taylor
e Paul Williams, no livro intitulado Africa in International Politics: External Involvement on the Continent18, os que abrem a crtica contra a escatologia antiafricana nos temas
da poltica internacional para o incio do sculo XXI. Eles,
como o autor deste livro, em poucas palavras, gostam de
desconstruir o discurso da marginalidade da frica.
2.4. O mundo caminha para a fricaO mundo est atento frica como sempre estiveram as
grandes potncias e as ex-metrpoles. O peso da frica na
18 TAYLOR, Ian; WIILLIAMS, Paul (Eds.). Africa in International Politics: External Involvment on the Continent. London: Routledge, 2004.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
Guerra Fria no se circunscreveu a ser margem do sistema
internacional.
E hoje o sistema de Estados, as instituies multilaterais,
as grandes empresas e os produtores de cultura esto
acompanhando, de perto, a reinsero africana na poltica
internacional. Relatrios e cenrios vm sendo lanados
com profecias otimistas acerca das escolhas polticas e do
novo perfil de desenvolvimento social que a frica requer.
Essas tendncias eram naturais, assim como as avaliaes
produzidas pelo Royal African Society, no Reino Unido, j nos anos 1960. Mas aumentou em quantidade e qualidade
nos anos mais recentes.
Um dos mais novos documentos do incio do sculo
XXI o interessantssimo trabalho, com fins estratgicos,
organizado pelos professores Samantha Power (da Univer-
sidade de Harvard) e Anthony Lake (da Georgetown University), em fins de 2006, ladeando o ex-secretrio de Estado assistente para frica dos Estados Unidos, Chester
Crocker. Lanado em 2007 pelo afamado Council of Foreign Relations, dos Estados Unidos, nele se nota perfeitamente a retomada da prioridade africana na poltica externa norte-
-americana19.
More than Humanitarianism o ttulo da estratgia norte-americana fala por si ao lanar as bases conceituais
dos norte-americanos para a frica de Clinton a Obama. A
segunda visita de Obama frica (a trs pases: Senegal,
frica do Sul e Tanznia), em junho de 2013, demonstra,
19 COUNCIL OF FOREIGN RELATIONS, More than Humanitarianism: A Strategic US Approach towards Africa. Washington: Council on Foreign Relations, 2007.
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mais uma vez, a continuidade dos planos norte-americanos
na nova frica.
Quais so seus elementos centrais de continuidade?
Pragmatismo mais do que humanitarismo, ampliao da
diversificao no campo da energia, cooperao com os
governos democrticos e ocupao de espaos na luta
contra o terrorismo so as linhas gerais de trabalho para
hoje e aparentemente para os prximos anos da presena
dos Estados Unidos na frica.
Outros trabalhos sobre a frica do sculo XXI esto sendo
desenvolvidos pelos chineses. A universidade chinesa tem
se mostrado hbil na elaborao estratgica para a frica. E
j vinha essa estratgia da China desde o tempo do governo
do primeiro ministro Li Peng, nos fins da dcada de 1980 e
incio dos anos 1990. O marco poltico foi o dia 4 de junho de
1989, ante o drama da Praa da Paz Celestial e o isolamento
imposto pelo Ocidente ao regime poltico de Pequim.
Comeou a a conexo frica-China, por razes mais
polticas que econmicas, que agora, na economia, tem
todas as condies de ser a mais duradoura sobre todos
os demais intentos de qualquer pas, mesmo os Estados
Unidos, de estabelecer bases de cooperao ativa como o
renascimento africano.
A estratgia chinesa explcita e se dedica aos seguintes
itens:
exportao para a frica do modelo chins de
tratamento dos temas da agenda internacional,
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
apresentando-se como uma representante natural
dos pases em desenvolvimento;
exportao de bens industriais e armas e importao
de produtos primrios, particularmente minerais;
participao nas fontes possveis e necessrias
de recursos minerais, estratgicos e de energia
que garantam a sustentabilidade do crescimento
econmico chins;
investimentos em engenharias de infraestrutura
de aeroportos, estradas, entre outros parques de
modernizao urbana e logstica da frica.
Os mtodos para realizar esses objetivos so mltiplos.
Variam dos investimentos, emprstimos e doaes
cooperao tcnica e tecnolgica, alm de exerccio de
cooptao poltica das elites africanas. O ambiente poltico da
cooperao abraa o econmico como parte da engenharia
estratgica elaborada empiricamente. A raiz foi, de fato, no
incio, o isolamento poltico do regime chins depois do
evento de 4 de junho de 1989 e a solidariedade conferida
por grande maioria dos governos na frica, depois de serem
cortejados com recursos chineses. Obviamente essa matriz
foi evoluindo gradualmente ao capitalismo chins com
presena global, a conformar-se a segunda grande economia
do mundo e a maior potncia exportadora da Terra.
Foi o primeiro-ministro Li Peng quem coordenou toda
a operao de aproximao com os governos africanos.
Vrios desses governantes da frica de ento aceitaram os
argumentos da China e se moveram no xadrez internacional
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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ao lado dos lderes chineses. Para exemplificar, a China
oferecia, em 1988, cerca de US$ 60 milhes de ajuda direta
a trinta pases da frica. Em 1990, depois do apoio dos
governos africanos ao regime de Pequim, os pases africanos
receberam j a soma de US$ 374 milhes. Hoje os volumes,
j bilionrios, que os chineses investem na frica so parte
da explicao da emergncia de uma nova frica.
Embora predominantemente econmica, a presena
chinesa na frica origina-se da poltica e seguir tendo uma
forte conotao poltica e estratgica. As palavras de Li Peng,
em 12 de maro de 1990, na chegada a Pequim de imensa
delegao de chefes de Estados africanos foram claras.
Falou Li Peng de uma nova ordem poltica internacional
que deveria significar que todos os pases so iguais e
deveriam respeitar os outros com relao a suas diferenas
no sistema poltico e na ideologia. Para o lder chins, os
pases capitalistas do centro e as democracias ocidentais
no podem interferir nos assuntos domsticos dos pases
em desenvolvimento, especialmente avanar poder poltico
em nome de direitos humanos, liberdade e democracia20.
Outros pases se moveram para a frica. Um deles
a Frana, uma das maiores investidoras individuais no
conjunto da economia africana21. H preocupaes da Frana
tanto na rea comercial quanto na rea da cooperao direta
20 Apud TAYLOR, Ian. The all-weather friend? Sino-African interaction in the twenty-first century. In: TAYLOR, Ian; WILLIAMS, Paul,, op. cit., p. 87.
21 GAYE, Adama. Chine-Afrique: le dragon et l1autruche. Paris: LHarmattan, 2006; SUSBIELLE, Jean-Franois. La conqte pacifique de lAfrique. In: ______. Chine-USA: la guerre programe. Paris: Ed. Gnrale First, 2006. p. 231-232; TENESSO, Armand. La nouvelle destine de lAfrique. Paris: LHarmattan, 2006.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
da China com regimes polticos na frica que desrespeitam
o captulo dos direitos humanos. Daniela Kroslak estudou
essa matria de forma mais detalhada, com nfase ao tema
do envolvimento militar da Frana naquele continente22.
O fato objetivo que, desde 1990 e renovando-se
em 2000, com a criao do Frum de Cooperao frica-
-China, no qual oitenta ministros de Estado africanos foram
levados de Pequim rea industrial de Guandong para
verem o colosso do crescimento industrial chins, passando
pela segunda edio, em novembro de 2006, do Frum de
Cooperao, alm da terceira visita do presidente Hu Jintao
frica em fevereiro de 2007 , a China desembarcou na
frica de forma estrutural. difcil andar em qualquer rua
comercial de qualquer pas africano que no esteja inundada
por produtos chineses. No h capital na frica sem uma
obra pblica imponente feita com recursos chineses. No h
infraestrutura importante de aeroportos e estradas que no
tenha uma mo chinesa.
Em semelhana ao modelo do nacional-desenvolvimentismo
brasileiro dos anos 1970 e 1980, mesmo no perodo militar,
pode-se dizer que o Brasil teve uma diplomacia cooperativa
e no confrontacionista com o continente africano. Quase
a seguir o mesmo modelo brasileiro de antes, a China dos
ltimos anos buscou a frica sem truculncia, violncia ou
presuno de superioridade. Em alguma medida, a prpria
22 KROSLAK, Daniela. Frances policy towards Africa. In: TAYLOR, Ian; WILLIAMS, Paul, op. cit., p. 61-82.
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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China executa meios que fazem lembrar aspectos do Brasil
na frica.23
H, portanto, uma frica em crescente internacionalizao
e nada marginal. Ela est no centro de uma concorrncia
fortssima de interesses e interessados de vrias partes
do globo. Se os investimentos externos diretos crescem de
forma consistente, oriundos tanto das grandes empresas
financeiras quanto das produtivas, tambm verdade que
esses investimentos esto dirigidos por certa lgica de fora
para dentro.
2.5. A frica para os africanos Mas no se traa o futuro da frica apenas de fora para
dentro. Os africanos esto reivindicando e construindo
autonomia decisria. Buscam solues nacionais para
seus desafios na rea social e da cidadania. O controle
do Estado e sua orientao para o crescimento econmico
e o desenvolvimento sustentvel so a boa novidade no
continente.
Tornaram-se os lderes africanos refratrios noo de
fim do Estado e de governana global vendidas para a
frica como soluo mgica. Desejam falar de transio de
modelo para uma forma mais logstica de construo do
desenvolvimento, com democracia e mais incluso social.
Passaram a operar em novas bases conceituais no perodo
23 Ver o incio de avaliao desse movimento do Brasil em artigo relativo conferncia que preparei para evento anterior organizado pelo Ministrio das Relaes Exteriores: SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Moambique em retrato 3x4: Uma pequena brecha para a poltica africana do Brasil. In: II CONFERNCIA NACIONAL DE POLTICA EXTERNA E POLTICA INTERNACIONAL, 2 de maro de 2007. Seminrio Preparatrio frica. 2007.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
ps-Guerra Fria, ante as crises gerais do capitalismo em seu
centro histrico, a prpria Europa, as quais j a partir de
2013 envolvendo grandes pases emergentes, como o Brasil
de 2015.
O encerramento do grande ciclo dos conflitos abertos e
militarizados internos exemplo da vontade poltica africana
nova de renascer e orientar as energias para projetos mais
produtivos. Engajaram-se os africanos nos programas voltados
para as metas do milnio e querem modificar os indicadores
sociais previstos para serem alcanados em 2015.
Administrar, de dentro para fora, as ambies
internacionais geradas pelos planos estratgicos emergentes
exigir dos africanos uma noo de domesticao da
internacionalizao da economia, pela via do fortalecimento
do Estado democrtico e da responsabilidade fiscal e
macroeconmica mais ampla. Esse quadro tambm exigir
das lideranas africanas a capacidade de reduzir tendncias
pragmticas e danosas que caminham juntas com a ambio
poltica.
H, nesse sentido, um ambiente mais positivo.
A mais importante iniciativa nesse sentido, emblemtica da
autoconfiana que se espraia no seio da inteligncia poltica
do continente, foi o lanamento da Nova Parceria para o
Desenvolvimento Africano (Nepad), em 2001. Ao reivindicarem
a capacidade de construo de seu futuro, as lideranas
africanas esto atraindo para si a responsabilidade de
superao do grau marginal de insero ao qual o continente
foi submetido na dcada de 1990. Buscar um lugar mais
altivo, menos subsidirio na globalizao assimtrica atual,
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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o argumento central do contorno do desenho estratgico
que a Nepad significa. Esse aspecto ser mais desenvolvido
no captulo IV deste livro.
O mais importante aqui informar que a Nepad no foi
feita de fora para dentro da frica. Nem um plano onrico
como o Plano de Lagos de 1980 ou limitado como o Programa
Africano de Recuperao Econmica de 1986. A Nepad tem
carter indito, abrangente, social e cidado, como o Plano
Marshall foi para a reedificao da Europa depois da Segunda
Guerra. Abstraindo certa licenciosidade potica, um bom lema
til, pois, comunicao da Nepad ao mundo. O lema, em
ingls africano, apresentado de forma contundente: African leadership and African ownership.
O texto de lanamento fala por si, ao situar a plataforma
conceitual na qual a Nepad ainda deseja florescer, uma
vez que seu primeiro tempo de experincia se estende at
o ano de 2016, em um apanhado de projetos vinculados
ao conjunto dos Objetivos do Milnio, da Organizao das
Naes Unidas (ONU). Assim informa a redao da Nepad o
pacto de uma frica para os africanos:
A frica ps-colonial herdou Estados fracos e economia disfuncionais que foram agravados ainda por uma liderana fraca, pela corrupo e m governana em muitos pases. Esses dois fatores, conjugados s divises causadas pela Guerra Fria, minaram o desenvolvimento de governos responsveis em todo o continente24.
24 NEPAD Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano, (Documento oficial de lanamento) Lisboa: Nepad, 2001, pargrafo 22.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
O reconhecimento de que o Estado tem um papel central
no desempenho do crescimento, no desenvolvimento
sustentvel e na implantao de programas de reduo
de pobreza, anotados pelos chefes de Estado na frica
de 2001, ainda um sonho. Mas, a dimenso utpica das
novas vontades expressadas pelos africanos move a vida
deles para uma nova agenda poltica da qual a frica no
poder mais se afastar. Essas foram, em alguma medida,
as mensagens que deixou o lder africano Nelson Modela, o
homem que demonstrou que era possvel uma nova frica.
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IIIAs relaes internacionais e a frica
3.1. As novas condies internacionais do incio do sculo XXI
As condies internacionais da passagem do sculo XX
para o sculo atual foram favorveis insero internacional
da frica. O continente j configura continuidade de uma
dcada de superao, em comparao com as quatro dcadas
anteriores, de baixa continuidade econmica, fraturas na
formao dos Estados nacionais, pssimos ndices sociais.
O crescimento econmico em ciclo recente trouxe alguma
consistncia estrutural modernizao daquele continente
de 30 milhes de quilmetros quadrados, gerador de fato
indito histria recente dos jovens Estados africanos,
nascidos do primeiro ciclo de independncias no fim dos
anos 1950 e incio da dcada de 1960.
Os registros quantitativos e qualitativos produzidos
pelas agncias internacionais e pelos prprios gestores
dos 54 Estados africanos produziram evidncias empricas
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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do argumento inicial. Economistas, governos e empresas
chinesas e norte-americanas, e mesmo balanos brasileiros
de empresas e rgos de governo, confirmaram a quadra
histrica alvissareira a que assistimos recentemente.
Hoje h, aproximadamente, 1 bilho e alguns milhes de
habitantes no continente africano. a terceira concentrao
demogrfica da Terra, depois da China e da ndia. Os cerca de
800 milhes de africanos que habitam as paragens da frica
subsaariana, abaixo do Saara, ou frica dita negra, avanam.
Depois de dcadas de agruras, como comentado no captulo
anterior, esses africanos de hoje assistiram, mesmo com
crises estruturais e dificuldades histricas no campo da
assimetria social e dependncia econmica das metrpoles
de antes, um sopro de esperana de normalizao de suas
vidas.
A frica vem se apresentando como a ltima fronteira
do capitalismo global. Em Adis Abeba, a celebrao dos
cinquenta anos da OUA, hoje UA como se notou na
imprensa internacional de maio de 2013 colocou a frica
no centro da ateno da sociedade internacional.
Abriu-se a oportunidade para, por meio do crescimento
econmico, buscar-se a normalizao poltica, ampla
cidadania, pacificao dos conflitos domsticos e entre
Estados. a frica que quer ser parte do mundo no campo
da cidadania, da mitigao de pobreza e at mesmo de
superao do modelo de exportao de commodities, em favor de agregao s cadeias produtivas globais no campo
tecnolgico e da inovao.
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
As perguntas persistem, como Nelson Mandela gostava
de suscitar. Qual o contexto da real e imaginria elevao
da frica na sociedade internacional do sculo XXI? O que
desejam os africanos de hoje no mundo cosmopolita e
sincrtico que se cria? Ser possvel evoluir para projetos
alentados de crescimento social e civilizatrio de seus
habitantes? Como se far a nova governana democrtica na
frica? O problema exclusivamente educacional? Qual ser
o lugar da frica no sculo XXI?
Parte das respostas, como lembrava Madiba (forma
afetuosa com a qual os sul-africanos se referem a Nelson
Mandela, um de seus nomes de nascimento na cultura
tembu), atm-se evoluo interna das relaes entre as elites desses mesmos Estados africanos25. Autores
africanos e africanistas de todo o mundo vm chamando
a ateno para essa responsabilidade endgena de classes
ascendentes da frica.
Mas a outra parte das respostas s indagaes
acima lanadas tambm esto vinculadas s prprias
transformaes globais da primeira dcada do sculo XXI.
Essas transformaes agem sobre o contexto africano.
Algumas mudanas projetaram possibilidades para a frica.
Outras transformaes inibem a elevao do continente
africano.
Quais seriam essas transformaes em curso da sociedade
internacional com impactos na formao da frica do sculo
25 SARAIVA, Jos Flvio Sombra. A frica na ordem internacional do sculo XXI: mudanas epidrmicas ou ensaios de autonomia decisria? Revista Brasileira de Relaes Internacionais, 51(1), 2008, p. 87-104. Ver tambm PENNA FILHO, Pio. A frica contempornea: do colonialismo aos dias atuais. Braslia: Hinterlndia, 2009.
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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XXI? As primeiras concluses comeam a chegar e so favorveis
relativamente ao continente africano. A governana nascente
no eminentemente europeia, no possui faceta apenas
norte-americana nem tem seu epicentro apenas nas guas
do Atlntico Norte. No governada apenas pelas sociedades
civis supranacionais. Sequer expressa f inquebrantvel nas
formas de produo e distribuio econmicas baseadas em
princpios liberais. Tem algo de tudo isso, mas no pode ser
definida apenas por esses parmetros. Isso j bom para os
projetos de desenvolvimento dos africanos das novas elites
do sculo XXI.
O presidente Obama produziu pea diplomtica curiosa
e animadora no primeiro semestre de 2011, ao falar ao
Parlamento britnico. Enterrou politicamente as escolas
acadmicas do realismo poltico e das teorias que foram
ensinadas por dcadas nas academias dos Estados Unidos.
Encerrou, no discurso, o ciclo do ensino da hegemonia
americana nos fatos e na formao dos conceitos de relaes
internacionais. Esse discurso, naturalmente, no converge
com as aes e projetos da poltica norte-americana. Tanto
na frica como no mundo, h certa linha de continuidade
dos interesses e valores dos Estados Unidos no mundo.
Em todo caso, h que se anotar que o mandatrio norte-
-americano atual, mesmo em fim de mandato, no estampa
a autoconfiana na pax americana de Bush pai e reconhece os limites dos sonhos de Bush filho. Ainda que em campanha
em favor de seu Partido Democrata, e animado com a
prxima eleio presidencial que no mais poder postular,
reconhece Obama as dificuldades. Sabe que a projeo
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
global da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (Otan)
e das economias ocidentais, sob a liderana dos Estados
Unidos, est reduzida, em parte pela elevao de grandes
Estados continentais, portadores de massa territorial, peso
demogrfico e escala econmica propulsora voltada para o
novo ciclo do crescimento econmico no mundo.
Emerge a governana sincrtica do sistema internacional.
Ela multipolar, dirigida por grandes Estados, do Ocidente e
do Oriente, ancorada em valores mltiplos e conduzida por
coalizes graduais e afinidades eletivas. Movem-se por meio
de dinmicas nas quais os interesses nacionais das novas
potncias no se subordinam automaticamente s regras
e normas do antigo Grupo dos 8 (G8) ou do Conselho de
Segurana da ONU, que funciona como certo diretrio ps-
-modernista.
A governana sincrtica um sistema hbrido. O peso
das velhas potncias e dos rgos econmicos, como o FMI
e o Banco Mundial, compartilhado com grupos de pases
tais como aqueles que compem o Brics. H tambm a
insero de novos atores, como as empresas multinacionais
do Sul em processo ampliado de internacionalizao. Vide
os casos chins, brasileiro e indiano.
No campo da segurana internacional, a governana
sincrtica torna difcil o caminhar rumo aos antigos
consensos. J no se aprovam sanes e intervenes no
sistema internacional sem o apoio dos emergentes. Os
casos da interveno no Iraque e a caa ao governante da
Lbia contrastam com os conceitos de soluo pacfica de
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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controvrsias, esses mais prprios ao Brics e s percepes
do Sul das relaes internacionais.
A China, que atrai e repele tais emergentes, a depender do
aspecto em discusso na agenda da governana sincrtica,
modelo de crescimento econmico. O Pacfico seu eixo
dinmico preferencial. O entorno chins, antes influenciado
pelo modo de produo norte-americano, j se subordina
ao modelo de baixos salrios e aumento da jornada de
trabalho nas fbricas. So outros valores, no exatamente
os do welfare state patrocinados pela histria da elevao econmica, social e poltica da Europa. Isso ainda no se
conformou na frica, ao contrrio das dificuldades de pases
emergentes, como o Brasil de 2015.
Em sntese, as novas condies da temperatura e
presso das relaes internacionais do incio do sculo,
especialmente as de ordem econmica, fizeram tremer
ou animar lideranas africanas, a depender da posio.
A preocupao inicial era a de que a crise econmica global
se espraiaria nas periferias do capitalismo, portanto na
frica, de forma sequencial, em efeito domin, a seguir o
compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo
norte-americano e em seus pares europeus.
Nesse sentido, mesmo com um crescimento quantitativo
e qualitativo, a frica, por no estar s no mundo, dever
se mover em certos parmetros que so tambm fluidos,
incompletos, oriundos das transformaes das relaes
internacionais em curso. O peso da China na frica explica
isso. Os Estados Unidos da Amrica voltam a avanar aos
poucos em 2015. O Brasil ainda tem grande possibilidade no
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
continente africano, utilizando o riacho comum denominado
de Atlntico Sul.
3.2. A crise global e a frica resilienteA crise originada na toxidade dos capitais, fato global
mais relevante da segunda metade de 2008, ao migrar para as
atividades produtivas j no final do mesmo ano, aprofundou-
-se e alastrou-se geograficamente. O crescimento global
segue pfio. Tempos de incerteza movem os movimentos
dos jovens europeus desempregados, acostumados que
estavam com o welfare state. O aprofundamento dessas crises desde os primeiros meses de 2009 e a persistncia
da crise global at os dias atuais preocupam e atraem a
ateno das novas elites africanas.
A crise atingiu a todos? A lgica da divulgao diria de
cada novo ndice econmico apresentado pelas autoridades
governamentais em diferentes partes do planeta deprimiu a
esperana. O fatalismo inicial foi to intenso que alcanou
em proporo a outra lgica perversa que presidiu quadra
histrica relativamente recente: a da euforia triunfalista dos
que decretaram o fim da Histria no incio dos anos 1990 e
o incio do paraso liberal.
Exemplos no andam escassos. A Europa declina, em
especial em suas margens perifricas da Grcia, de Portugal,
da Espanha e da Irlanda. At a Itlia, terceira economia do
euro, sofre. A recesso no Japo de hoje se mantm desde
os nveis dos anos 1970, embora o governo japons tenha
comeado em 2013 uma forte desvalorizao de sua moeda
como forma de competir melhor na crise. No que tange aos
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Jos Flvio Sombra Saraiva
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Estados Unidos da Amrica observa-se alguma inoperncia
e lentido no encaminhar os planos prticos para apoio e
arranjos estratgicos com os grandes pases do continente
africano, embora j exista uma pequena melhora nos ndices
de crescimento e de emprego.
Ao mesmo tempo, na Europa, h emprego declinante,
a empurrar o projeto comunitrio para a xenofobia de
direita, elege, a cada dia, governantes que tm apenas
muito de agenda fiscal e pouco de poltica internacional. A
China, vulnervel diante da dependncia das exportaes
como vetor central de seu PIB, parece que ir crescer mais
lentamente. A Rssia padece em parte com a depreciao de
sua commodity energtica e com a crise cambial. Mas segue potncia global estratgica.
A Amrica Latina no foi exceo. Mantm crescimento
econmico modesto, embora melhor que os PIB dos Estados
Unidos e da Europa. Depois de um elevado crescimento no
incio da crise, a Amrica Latina comea a crescer menos.
E o pleno emprego comea a dar sinais de mudana de
paradigma diante dos custos inflacionrios que voltam e
o desperdcio consumista que levou ao endividamento de
muitas famlias na regio.
Diante das enxurradas de balanos negativos na rea
do emprego e da barragem dos financiamentos do ciclo
virtuoso e das fontes de investimento internacionais, os
cidados comuns j entenderam que a fase urea pode
ter passado. O Brasil, e alguns outros pases da regio, no
entanto, mostraram alguma capacidade de retomada do
crescimento, ainda que de forma discreta. Na Argentina, a
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A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico
poltica partidria reduziu os modestos alicerces econmicos,
na difcil conduo do que chama o novo governo peronista
de um projeto argentino. No caso brasileiro, a quadra de
crescimento modesto entre 2011 e 2014 segue preocupante,
e h o esgotamento das formas pouco agregadas de valor
de sua exportao, ao lado de repiques inflacionrios que
preocupam.
Na frica, houve pnico inicial diante da crise do
capitalismo do centro. Mas logo se percebeu que o
contexto poderia no ser to ruim. A frica no foi atingida,
plenamente, pelo pessimismo atvico daquele primeiro
momento da crise mundial. E aos poucos o otimismo
voltou, particularmente com a permanncia dos nmeros
do crescimento do PIB mdio dos pases africanos em torno
de 5,5% ao ano.
A manuteno desse crescimento, mesmo que um
pouco abaixo da mdia de 5,5% do PIB ao ano, como mdia
continental, ainda poder ser considerado, para os prximos
anos, um grande sucesso. Afinal, foi a nica dcada
realmente de crescimento de riqueza na frica desde a
primeira dcada das independncias.
Na frica, a tendncia parece ter sido um pouco
diferente daquelas vislumbradas nas reas tradicionais
do capitalismo e na parte mais proeminente dos pases
emergentes do Sul. A frica, portanto, ainda no barrou
seu ciclo de crescimento na dcada em curso. Os ndices
de normalizao macroeconmicos so positivos, a gesto
pblica melhorou e as economias africanas no se abateram
como nos grandes do centro do capitalismo.
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60
O continente africano assiste e continua a assistir
ao ciclo de crescimento. o mais sustentvel desde as
independncias do incio dos anos 1960. Parece poder
sustentar posio ante o ciclo de crescimento menor. O
que declinou foi o percentual em fase crtica, nos ltimos
meses de 2008 e incio de 2009, especialmente para aquelas
economias africanas mais ligadas s empresas e negcios
com pases europeus.
A frica naturalmente no est imune aos processos
das relaes internacionais do momento. H problemas de
continuao de grandes programas de desenvolvimento
no campo africano. A retrao chinesa poder ter ainda
algum impacto no continente, particularmente diante das
expectativas das classes mdias africanas que esperavam
mais dos capitais da China. Por outro lado, h outros atores
no campo africano, como os capitais do Golfo Prsico, os
projetos que avanam nos trabalhos da Nepad, ou mesmo
a crescente presena de outros atores internacionais no
financiamento de projetos na frica. A ndia, o Japo e
mesmo o Vietn esto se aproximando bastante dos projetos
de desenvolvimento no continente africano. No entanto, o
avano dos capitais do Golfo Prsico compensou o crdito
e o financiamento infraestrutural dos novos projetos da
Nepad, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentvel
e de incorporao social dos mais vulnerveis.
Apesar do efeito do contgio da febre pessimista, a
frica a parte do planeta que menos fala em crise no
momento. Em parte porque a crise j paisagem duradoura
da geografia africana. O continente foi um laboratrio de