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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes Curso de Letras Bacharelado com ênfase em Estudos da Tradução Da hermenêutica à tradução: as idéias sobre tradução de Schleiermacher segundo os pressupostos de sua teoria da compreensão Evelyn G. Petersen de Barros CURITIBA 2009 7

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Setor de Ciências Humanas, Letras e ArtesCurso de Letras

Bacharelado com ênfase em Estudos da Tradução

Da hermenêutica à tradução: as idéias sobre tradução de Schleiermacher segundo os pressupostos de sua teoria da compreensão

Evelyn G. Petersen de Barros

CURITIBA2009

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EVELYN GRASIELA PETERSEN DE BARROS

Da hermenêutica à tradução: as idéias sobre tradução de Schleiermacher segundo os pressupostos de sua teoria da compreensão

Monografia apresentada por Evelyn G. Petersen de Barros para o curso de Letras Bacharelado Port. Alemão com Ênfase nos Estudos da Tradução

Orientação: Maurício Mendonça Cardozo

CURITIBA2009

8

Introdução

O pressuposto tácito deste trabalho repousa na hipótese de que as teorias de

interpretação e compreensão de textos podem ser relacionadas, em alguma medida, com o

discurso sobre a atividade tradutória do mesmo período. Tal pressuposto considera a tradução

um caso especial de interpretação, que pode servir de indicador do ‘dogma’ hermenêutico

vigente.

Tendo isso em vista, nosso objetivo é estabelecer uma relação entre esses domínios a

partir da obra de Friedrich Schleiermacher1, de modo a avaliar a medida em que essa relação

se concretiza, ou seja, quais os aspectos das suas idéias sobre tradução estão em consonância,

ou em contraste com a sua hermenêutica. Seu ensaio “Sobre os diferentes métodos da

tradução”, escrito em 1813, constitui a reflexão mais sistemática sobre o tema no

Romantismo, e sua obra sobre hermenêutica, possivelmente um dos tópicos que mais o

ocuparam durante toda a sua vida, é responsável pelo conceito moderno de uma hermenêutica

de viés filosófico que questiona as condições da compreensão, cuja tradição foi seguida por

Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer.

A fim de contextualizar a discussão, este trabalho acompanha o desenvolvimento de

duas abordagens da atividade interpretativa: uma que a considera um sistema de regras e

outra como uma teoria da compreensão. Relacionamos a primeira acepção ao tipo de

interpretação que surge como uma forma de disciplina na Renascença e se desenvolve através

da Filologia Clássica ao longo do Iluminismo, e que, de um modo geral procurava resgatar

através do comentário textual e reconstituição filológica, o significado original do texto. A

segunda acepção define a tradição da Hermenêutica Moderna inaugurada por Schleiermacher,

a qual, vinculada a uma teoria geral da interpretação, procura superar a dimensão meramente

metodológica da hermenêutica clássica. Tais abordagens serão exemplificadas com a

apresentação das idéias sobre tradução correntes no mesmo período, e culminarão com uma

1 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslau, em 1768 e morreu em Berlin em 1834. Pertencente a uma família de pastores protestantes, foi educado numa comunidade moravita, iniciando em 1785 seus estudos de Teologia. Em Leben Schleiermachers, biografia escrita por Dilthey, esse descreve a produção do autor como sendo representada por duas fases: uma primeira intuitiva, e uma segunda crítica. Na primeira fase, que corresponde ao período em que havia entrado em contato com o grupo de românticos, dentro dos quais encontrava-se Friedrich Schlegel, publica várias obras sobre religião; na segunda fase, a qual é considerada seu período mais profícuo, surgem suas obras sobre dialética e hermenêutica. Ele mesmo um tradutor reconhecido, traduziu os diálogos de Platão, cujo famoso prólogo marcou decisivamente os estudos platônicos.

9

análise comparativa mais detida dos textos mais importantes de Schleiermacher sobre a

hermenêutica, e o já referido ensaio “Sobre os diferentes métodos de tradução”.

Este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro fornece um panorama geral na

forma de uma breve história do pensamento hermenêutico na Alemanha durante os séculos

XVIII e XIX. Na primeira parte do primeiro capítulo serão apresentados alguns pensadores

representativos da teoria hermenêutica iluminista e as respectivas teorias tradutórias do

período. Na segunda parte, o mesmo procedimento será adotado, com a apresentação do

contexto geral do Romantismo, algumas vertentes na teoria da compreensão e alguns aspectos

da teoria tradutória da época. O segundo capítulo será dedicado inteiramente à hermenêutica

de Schleiermacher, o qual irá servir de pano de fundo para as reflexões do terceiro capítulo,

no qual realizamos uma leitura do ensaio sobre tradução de Schleiermacher, à luz de sua

teoria hermenêutica apresentada no capítulo anterior.

10

CAPÍTULO 1: Hermenêutica e Tradução na Alemanha nos séculos XVIII e XIX.

1.1 Hermenêutica e tradução no Iluminismo

La morale uniforme en tout temps, en tout lieu.C’est la loi de Platon, de Socrate, e la vôtre.De ce culte éternel la Nature est l’apôtre.Cette loi souveraine en Europe, au Japon,Inspira Zoroastre, illumina Solon.2

Voltaire

O desenvolvimento da hermenêutica esteve desde o Humanismo até pelo menos a

metade do Iluminismo atrelado ao método histórico-crítico de interpretação e compreensão

utilizado pela teologia (hermeneutica sacra) e filologia clássica (hermeneutica profana)3, cuja

finalidade era divisar, seja no texto bíblico ou no texto literário, um sentido original através de

um procedimento de correção quase cartesiana.

A própria definição da hermenêutica enquanto metodologia de interpretação que guia

e orienta o comentário exegético está associada à exegese bíblica.4 A doutrina protestante da

sola scriptura, inaugurada por Lutero, representou um forte impulso para o desenvolvimento

da hermenêutica ao romper com a tradição doutrinal da Igreja Católica, detentora da

autoridade na interpretação das Escrituras, assumindo a defesa do caráter inequívoco do texto

bíblico, considerado sui ipsius interpres. O ressurgimento do interesse pelos estudos dos

clássicos no mesmo período da Reforma foi outro fator que contribuiu para o

desenvolvimento da hermenêutica, em função da criação de procedimentos crítico-filológicos

(Ars Critica) cujo objetivo era a reconstrução do texto original e o estabelecimento de sua

autenticidade.

A continuação dessa crítica filológica ao longo do século XVIII, somado ao

desenvolvimento do racionalismo, tornou-se um importante instrumento para o

desenvolvimento subseqüente das teorias sistemáticas de interpretação, as quais foram,

2 Em La religion naturelle3

3

A jurisprudência é outra área que emerge no período Renascentista, e também desempenhou um papel relevante na história da hermenêutica. Este aspecto, entretanto, não será contemplado neste trabalho.

4 É provável que o primeiro registro da palavra “hermenêutica” como título de livro tenha ocorido na obra de J.C Danhauser, Hermenêutica sacre sive methodus exponendarum sacrarum litterarum, publicada em 1654. (Cf. Hermenêutica de Richard Palmer, 1969, p. 44).

11

durante a Auflklärung, governadas pelas disciplinas da retórica, lógica e semiótica. A

interpretação bíblica tornou-se inseparável dos métodos da filologia clássica5, a qual havia

estendido seus métodos histórico-gramaticais à teologia, e ambas passaram a preconizar o uso

da razão natural, da reconstrução histórica e da análise gramatical como um meio para atingir

os significados ocultos no texto.

Durante o Iluminismo, portanto, a hermenêutica torna-se uma área da filosofia. Assim

como Aristóteles em Peri Hermeneia, os filósofos iluministas viam as questões da

hermenêutica como pertencentes ao domínio da lógica, e, segundo a meta de sistematizar todo

o conhecimento humano, afirmavam que a sua atividade repousava em regras e princípios

válidos de aplicação geral para todos os campos de conhecimento que dependiam da

interpretação6 (MUELLER-VOLLMER, 1988, p. 8). A fim de fornecer uma imagem geral da

hermenêutica setecentista, falaremos brevemente sobre a filosofia de Christian Wolff e

Chladenius, bastantes representativos do estágio da história da hermenêutica abordado neste

capítulo.

Wolff7

A discussão de Christian Wolff sobre o problema hermenêutico encontra-se em vários

capítulos de seu trabalho sobre lógica. Segundo o filósofo, o sentido do texto só pode ser

avaliado diante da sua comparação com a intenção do autor8, a qual não se relaciona com a

5 De modo que, “o sentido verbal das Escrituras fosse determinado do mesmo modo como é considerado noutros livros”, de acordo com Ernesti. apud Richard Palmer, Hermenêutica, 1969, p. 48. A contradição presente na pretensão antidogmática da interpretação protestante da Bíblia foi flagrada por autores como Semler, Michaelis e Ernesti, os quais introduziram processos histórico-gramaticais na interpretação bíblica. Esses autores apontaram para o fato de que a interpretação protestante não conseguira escapar ao próprio dogmatismo, afinal pressupõe a Bíblia como uma unidade, ou seja, também procura um princípio hermenêutico que sirva de guia. (Cf. Gadamer, Verdade e Método; Palmer, Hermenêutica; Joseph Bleicher, Hermenêutica Contemporânea.)

6 Cabe destacar que o apelo ao universalismo da Hermenêutica Moderna, inaugurada por Schleiermacher e seguida por Gadamer e Heidegger difere radicalmente do apelo generalizante da hermenêutica iluminista. Para Schleiermacher, a hermenêutica deveria se preocupar com seus próprios fundamentos.

7 Christian von Wolff (1679 - 1754) foi um filósofo da universidade de Halle, um dos mais importante pensadores alemães entre Leibniz e Kant.

8 A noção de intenção autoral (Absicht) da forma como foi usada por Wolff e Chladenius, possui um sentido psicológico diferente daquele encontrado atualmente, e tampouco poderá ser associado à expressão da individualidade do autor, como o fizeram os românticos. Cf. Kurt Mueller- Vollmer: The Hermeneutic Reader: Texts of the German Tradition from the Enlightenment to the Present. Continuum International Publishing Group, 1988

12

expressão de sua personalidade, e sim com o gênero especifico de escrita que ele pretende

produzir, carregando, portanto, uma denotação essencialmente genérica e objetiva. Por

conseqüência, Wolff discute os diferentes tipos e gêneros de escritos históricos de acordo com

o tipo de intenção específica que o governa: a intenção da história natural, da história da igreja

ou a da história secular. Julgar um livro a partir de sua intenção autoral, portanto, significa

julgar se o autor foi ou não bem sucedido em atender as exigências genéricas do discurso

escolhido (MUELLER-VOLLMER, 1988, p. 9). Para Wolff, o significado de certa passagem

não era visto como um problema, visto que os recursos lingüísticos deveriam sempre

transmitir a intenção do autor, desde que usados corretamente. A compreensão, portanto, era

tida como um fato garantido, sendo a incompreensão meramente casual, fórmula que será

submetida a uma inversão por Schleiermacher, conforme veremos adiante, no segundo

capítulo.

Chladenius9

Para Chladenius, dependiam da interpretação a poesia, a retórica, a história e todas as

‘ciências do belo’. Inspirando-se em Wolff e outros lógicos, Chladenius desenvolveu de um

modo sistemático os princípios e as regras que governavam a interpretação10, cujo objetivo era

atingir uma compreensão completa e perfeita do enunciado, escrito ou falado. Segundo o

filósofo, constitui tarefa da hermenêutica descrever os métodos presentes no exercício

compreensivo, assim como mostrar seus obstáculos. Esta compreensão, para Chaldenius,

poderia ser alcançada de dois modos: ao atingir a intenção do autor, através da adequação do

discurso ao gênero, do mesmo modo como em Wolff, e através da reflexão despertada no

intérprete a partir das palavras do autor, visto que ambos compartilham os mesmos princípios

racionais. Ou seja, para Chladenius, as expressões verbais poderiam ser objetivamente

‘transferidas’, visto que as ‘regras da razão’ eram consideradas imutáveis e, portanto,

asseguravam a estabilidade do significado. Assim como Wolff, Chladenius acreditava que,

caso uma afirmação fosse construída de modo coerente e racional, de acordo com as regras

9 Johann Martin Chladenius ( 1710 - 1759) foi um teólogo e historiador alemão. Luterano ortodoxo, esteve ligado ao racionalismo de Wolff e é considerado o fundador da interpretação (Auslegung) dos escritos históricos.

10 Especialmente em sua obra Einleitung zur richtigen Auslegung vernünftiger Reden und Schriften. (Introdução à correta interpretação de Discursos e Textos racionais).

13

apropriadas do discurso, não haveria qualquer obstáculo para a compreensão do intérprete

(MUELLER-VOLLMER, 1988, p. 6)11. Como diz Vollmer,

Para Chladenius, assim como para a mentalidade iluminista no geral, o fundamento para a interpretação e compreensão corretas residia na própria razão, e, sendo incorporada ao texto, era compartilhada pelo autor e leitor.12

(ibidem, p. 7)13.

A transmissão e compreensão da unidade e conteúdo da tradição, vista como

exemplar, são as metas principais dessa hermenêutica clássica, cuja aplicação era determinada

pelo significado original do seu objeto de investigação, o qual deveria ser comunicado, ou

seja, demonstrado, através do comentário ou da tradução, os quais eram vistos como a

transmissão de um conteúdo racionalizável. A interpretação confundia-se, portanto, com a

explicitação de um conteúdo previamente existente.

Tradução

Destacamos o fato de que aspectos da hermenêutica de Wolff e Chaldenius possuem

um caráter essencialmente normativo, ao indicarem não apenas o modo como os livros devem

ser lidos, mas como deveriam ser escritos. A teoria da tradução do mesmo período assumirá,

do mesmo modo, um contorno normativo, ao orientar a atividade tradutória de acordo com as

regras e normas vigentes de gosto e estilo.

No século XVIII, a noção de tradução conciliava o ideal de formação da época

(Bildung), identificado pelo interesse generalizado em aperfeiçoar e enriquecer a língua

materna, com as concepções de língua e poesia. Como nos diz Pohling14, para os iluministas, 11 Mueller-Vollmer também faz referência à noção de ponto-de-vista inaugurada por Chaldenius. Segundo ela, o fato de uma observação diferir de outra, não significa que elas estejam em desacordo, mas apenas refletem o ponto-de-vista de cada intérprete, os quais, não obstante, ainda observam o mesmo evento. Embora coincida com a noção perspectivista moderna, Chlaudenius não pode ser considerado um relativista, visto que para ele o significado era imutável, e inquestionável; o que era relativizado era a atitude do observador e não do objeto observado.

12 For Chladenius, as for the enlightened mind in general, the grounds for a correct interpretation and for understanding resided in reason itself. It was shared by writer and reader and was found embodied in the text.

13 Todas as traduções desta monografia são da autora. O trecho do texto original estará transcrito em nota de rodapé.

14 POHLING, Heide: “Sobre a história da tradução” in Escola Tradutológica de Leipzig, 2008, país, editora, tradutores e no final pág 63.

14

almejar um valor de originalidade para a tradução era o preceito máximo. Para tanto, os

tradutores do período pretendiam assimilar completamente um ideal racional válido de poesia,

visto que para eles o sentido universal subjacente às formas era mais importante do que

questões ligadas à autoria e a historicidade da obra. De acordo com Peter Szondi15

A questão de como outra pessoa, um estranho, pode ser compreendido é desconhecido na hermenêutica do Iluminismo, pois ela considera os textos não a expressão de seus autores mas sim a explicação de uma terceira coisa, o objeto do trecho. Tanto o autor quanto o intérprete concordam quanto a esta terceira coisa.16 (SZONDI, 1995, p.11)

A proposta de apropriação do logos do texto, correspondente ao que Szondi se refere

como sendo o terceira coisa, e que excluía a forma, considerada extrínseca e casual, reflete-se

no interesse didático dos iluministas no conteúdo do original – o qual era compreendido como

sendo a “soma das questões úteis e interessantes” (SCHADEWALDT apud 1927:289

POHLING, p. 64) – ou seja, na sua reprodução fiel (POHLING, 1971, p. 64). Segundo

GOTTSCHED,

(...) nenhum tradutor tem a liberdade de abreviar seu original, tampouco, quando algo lhe desagrada, pode substituí-lo conforme sua fantasia, de modo que lhe pareça melhor. Pois queremos saber o que o autor disse e pensou, não o que o tradutor considera bom ou o que ele quis dizer ao escrever certa passagem da obra. Outra coisa, porém, é fazer uma tradução livre ou a imitação de uma obra. Pois nesse caso pode-se levar em conta os pensamentos e idéias e, conforme o juízo pessoal de cada um, colocar algo próprio no lugar de outro (FRÄNZEL 1914:46 apud Ibidem, p. 65).

Trata-se de uma declaração no mínimo curiosa, na medida em que Gottsched, ao

mesmo tempo em que impõe ao tradutor a exigência de fidelidade ao pensamento do autor,

também concede àquele o direito de realizar modificações ao seu bel prazer. Esta dualidade

pode ser tomada como um reflexo da própria discrepância aparente entre teoria e prática

existentes na época, visto que, conforme nos aponta Pohling, ao lado destas vozes exortativas

de um apoio maior no original, começaram a aparecer concepções que indicavam o conceito

15 SZONDI, Peter, Introduction to Literary Hermeneutics. Peter Szondi (1929-1971) foi um filólogo e crítico literário húngaro, especializado em literatura comparada.

16 The question as to how another person, a stranger, can be understood is unknown to Enlightenment hermeneutics, because it considers texts not as the expression of their authors but as the latter’s explanation of a third thing, the object of the passage. Author and interpreter agree on this third thing.

15

de originalidade, assim como traduções que primavam pela uniformidade lingüística e

estilística, alcançada através de correções arbitrárias, complementações e variações

(POHLING, 1971, p. 66).

Embora a prática de um estilo de tradução livre – o mesmo apregoado pelas belles

infideles francesas e imitation inglesa – pareça estar em discordância com a exigência de

reprodução do conteúdo original, devemos destacar que, para os iluministas, o modo mais

adequado de expor o original era através deste tipo de tradução normativa, na qual a

apropriação deveria se dar segundo o gosto da época e de normas plenamente válidas, como

se estivessem oferecendo uma tradução aos leitores como um original nacional. Esta

contradição também é reveladora do fato de que os iluministas talvez não reconhecessem o

pressuposto dogmático de sua hermenêutica, e por conseqüência, da sua teoria tradutória –

que se baseava em um método essencialmente normativo e a-histórico17 –, justamente porque

pressupunham a independência e autonomia do ponto de vista do intérprete/tradutor. Esse

original, expressão de uma razão universal, preserva-se imutável e indiferenciado, a despeito

da época e da convenção formal pela qual se exprime, considerada secundária e acessória18.

Longe de tentarmos estabelecer uma conexão estreita e simétrica entre a prática

tradutória do período e sua hermenêutica – de fato tal relação exigiria uma análise mais

exaustiva e elaborada – destacamos, entretanto, o fundo comum que orienta ambas as

atividades, fundamentada numa noção de interpretação como explicação, ou transmissão de

um conteúdo racionalizável.

Distantes do historicismo romântico, que associa os produtos espirituais com o espírito

de sua época (Zeitgeist) e cultura, os iluministas acabaram por assumir um método cujo

objetivo implícito era a supressão da distância história e dos empecilhos formais que velavam

o conteúdo. A razão absoluta está aquém das diferenças, consideradas acidentais, e é a elas

subjacente. Como veremos, o Romantismo romperá com o dogma da razão universal com seu

apelo ao caráter de singularidade de cada cultura individual. A universidade das ‘regras da

razão’, cede lugar à confrontação de várias leituras, e o autor (Verfasser) que procurava se

adequar ao conteúdo de seu assunto, torna-se o autor ‘criador’ (Schriftsteller) de seu próprio

17 Entendemos o conceito de a-historicidade, como o nivelamento de características específicas de determinadas culturas e épocas à noção de razão universal e atemporal.

18A estética neoclássica não vê a forma e o conteúdo como um todo orgânico, o que ocorrerá no Romantismo.

16

discurso. O elemento unificador não será mais a razão universal, mas um Ideal projetado para

além, que dependerá das diferenças, consideradas essenciais, para se realizar.

1.2 Hermenêutica e tradução no Romantismo

Das Glück der Sterblichen will die Verschiedenheit19

Albrecht von Haller

Em oposição à realidade uniforme e estática dos iluministas – para lançar mão de um

clichê histórico –, o movimento Romântico que desponta no final do século XVIII terá como

uma de suas principais características o elogio da diversidade e da expressão individual. À

noção neoclassicista de um hipotético estado de perfeição formal manifesto num número

limitado de gêneros, assim como da existência de um denominador estético comum

compartilhado pela humanidade em todas as épocas, sucede a valorização romântica pela

manifestação exaustiva da diversidade, considerada inerente à natureza e à natureza humana.

Arthur LOVEJOY, ao reconhecer nesta mudança de ênfase do unitarismo para a

diversificação a característica mais significativa e singular da revolução romântica, nota que

Devemos também lembrar que no final do século XVIII a ordem cósmica passara a ser concebida não como uma diversidade infinita estática, mas como um processo de crescente diversificação.20 (LOVEJOY, 1960, p. 296)

A imensa multiplicação de gêneros e formas poéticas, a aceitação da legitimidade

estética do genre mixte e o esforço em reconstruir na imaginação a vida interior diferenciada

de outros povos cultural e temporalmente remotos são algumas das expressões tipicamente

românticas deste apelo ao diversitarismo.

Como aponta Kurt Mueller-Vollmer21, a primazia da criação imaginativa da nova

poética romântica sobre o antigo sistema de regras e convenções, assim como a sua abertura

para a apropriação de obras de outras literaturas nacionais, fez com que os românticos 19 Em Versuch Schweizerischer Gedichte

20 “by the late eighteenth century, we must also recall, the cosmical order was coming to be conceived not as an infinite static diversity, but as a process of increasing diversification”. LOVEJOY, Arthur: cap. X: “Romanticism and the principle of plenitude” in The great chain of Being, Harper Torchbooks, 1960.

21 “Language theory and the art of understanding” in The Cambridge History of Literary Criticism, 2000, pg. 171

17

dirigissem sua atenção às questões da linguagem – o meio poético por excelência –,

colocando-as em contraste não somente com a estética neoclássica, mas também com as

teorias de linguagem provenientes desse período. A nova estética criada por autores como

Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1874), Friedrich (1772-1829) e August Wilhelm

Schlegel (1767-1845) e Novalis (1772-1801) abriu novas dimensões e resultou na exigência

de novos esforços ao pensamento hermenêutico. Os românticos, portanto, passaram a articular

teorias lingüísticas que fossem adequadas aos seus esforços, levantando questões como a da

origem da linguagem22, sua relação com o pensamento, sua função comunicativa, o problema

da compreensão, o fenômeno da variedade lingüística e a atividade tradutória. O tratamento

dessas questões se orientou tanto por uma tendência mística-especulativa, representada

especialmente pela reflexão de Friedrich Schlegel e Novalis, quanto pela pretensão científica-

objetiva de Schleiermacher e Willhelm von Humboldt. Segundo Mueller-Vollmer,

A preocupação da hermenêutica girava em torno da idéia do autor como criador e da obra de arte como uma expressão de seu “eu” criativo. Em consonância com os poetas e filósofos da época, os hermeneutas desenvolveram a concepção da unidade orgânica de uma obra, apoiados numa noção de estilo em que a forma é inerente à obra. Além disso, aderiram ao conceito de natureza simbólica da arte, o qual criou a possibilidade de infinitas interpretações. A antiga tarefa de interpretar e explicar os textos, subitamente apareceu sob uma nova luz. Ainda mais importante que as idéias em torno da nova estética foi a virada transcendental que os teóricos românticos operaram no pensamento hermenêutico – especialmente F. Schlegel, Schleiermacher e Wilhelm von Humboldt 23. (grifo nosso). (VOLMMER, 1988, p. 9)

É preciso situar a obra de Schleiermacher no contexto destas novidades culturais do

novo programa romântico, em que a crítica e a tradução eram duas das ferramentas da sua

22 É preciso ressaltar que o tema da Ursprache foi bastante debatido entre os românticos dentro de três noções principais: antropológico-especulativa (que estuda o desenvolvimento da linguagem desde a infância); histórico-especulativa (associada à lingüística comparada) e metafísica (em que a teoria da linguagem está associada à um sistema filosófico). Ver cf. BÄR, Jochen A.: Sprachreflexion Der Deutschen Fruhromantik: Konzepte Zwischen Universalpoesie Und Grammatischem Kosmopolitismus Mit Lexikographischem Anhang, pgs. 85, 86, 1999.

23 “hermeneutics concerned itself with the idea of the author as creator and of the work of art as an expression of his creative self. In harmony with the poets and philosophers of the period, hermeneutic thinkers advanced the conception of the organic unity of a work, subscribed to a notion of style as the inner form of a work and adhered to a concept of the symbolic nature of art which gave rise to the possibility of infinite interpretations. The ancient task of interpreting and explicating texts suddenly appeared in a new and pristine light. Even more important than the ideas of the new aesthetics was the transcendental turn hermeneutic thinking underwent in the hands of the Romantics theorists – particularly F. Schlegel, Schleiermacher und Alexander von Humboldt”. .

18

busca incessante pela essência original das obras literárias. O exame que Antoine

Berman24(2002) realiza da revolução crítica promovida especialmente por Friedrich Schlegel

e Novalis, ajuda-nos a sinalizar o estado em que se encontrava a mentalidade romântica do

início do século XIX25.

De acordo com Berman, a problemática do sujeito infinito kantiano é desdobrada

pelos românticos no medium da arte e da poesia, num espaço de “intensa reflexão da obra

ausente, desejada ou por vir” (BERMAN, 2002, p. 128) que não é filosófico e tampouco o da

simples criação poética, mas uma mistura de ambos. O espaço da especulação romântica

movimenta-se dentro do ideal da Universalapoesie de Schlegel, em que se pretende uma

fusão da totalidade dos gêneros e formas poéticas, a qual consiste num tipo de reflexão

sincrética cuja operação é incessante e infinitizante. Para Schlegel e Novalis, a linguagem

dependia inteiramente da poesia, pois só através dela a linguagem poderia atingir uma

‘significação pura’, de uma linguagem universal, afastada de seu sentido ‘natural’ e ‘comum’:

A única teoria que a Athenäum pode dar da linguagem é a de uma linguagem potencializada, romantizada, linguagem “pura.” (ibidem p. 175).

Como veremos, a tradução, para os românticos da Athenäum, corresponde a uma reduplicação

deste movimento reflexivo romântico sobre a obra, na qual a linguagem familiar, cotidiana, é

mergulhada em um “longínquo incompreensível” (ibid. p. 177), porém pleno de sentido, e

elevada a uma condição de absoluto.

Faremos uma breve descrição da hermenêutica de Friedrich Schlegel e Wilhelm von

Humboldt, pelo fato de ilustrarem, respectivamente, o aspecto especulativo e científico da

hermenêutica romântica, a qual não pode ser vista dissociada da reflexão crítica e poetológica,

por um lado, e do estudo da linguagem, por outro26.

24 Antoine Berman (1942-1991) é um teórico francês da tradução, tradutor de obras em alemão e em espanhol. O autor se inscreve na tradição tradutória de Friedrich Schleiermacher, tendo traduzido para o francês o ensaio “Sobre os diferentes métodos da tradução” e “A tarefa do tradutor” de Walter Benjamin.

25 BERMAN, Antoine: Capítulos 5 e 6: “Revolução romântica e versatilidade infinita” e “Linguagem de natureza e linguagem de arte” in A prova do estrangeiro – Cultura e tradução na Alemanha Romântica, 2002. Pgs.125 -185.26 A reflexão de Wilhelm Schlegel sobre a linguagem coincide com a divulgação do novo projeto romântico no círculo de Iena e sua extensão em Berlin, a qual se situa entre 1775 a 1810 (cf. Kurt Mueller-Vollmer, The hermeneutic reader, 1988, pg. 11). Segundo Antoine Berman, os irmãos Schlegel apenas desempenharam seu papel como filólogos, colaborando com o desenvolvimento da ciência da linguagem no período posterior à Athenäum, a partir de 1808, quando Friedrich Schlegel publica Über der Sprache und Weisheit der Indier (Sobre a sabedoria e a língua dos indianos). Nosso foco, entretanto, será a obra produzida no final do século XVIII e os primeiros anos do século XIX.

19

Friedrich Schlegel27

Muitos autores confirmam a dívida de Schleiermacher para com Friedrich Schlegel28

no que diz respeito aos fundamentos de sua teoria hermenêutica29. Sua ‘filosofia da filologia’,

desenvolvida na coleção de fragmentos intitulada Zur Philologie (escritos entre os anos de

1797 e 1798) foram amplamente discutidas pelo grupo de Iena, e em alguns aspectos,

assemelham-se à hermenêutica filológica praticada por Wolf e Ast30, pelo fato de

introduzirem a hermenêutica como um dos componentes da erudição clássica, junto com a

crítica textual e a gramática. Para Schlegel esses dois últimos componentes – os quais outrora

foram considerados como sendo o fundamento da filologia – não precedem a atividade

hermenêutica, mas com ela formam um ‘todo’ interdependente31(LEVENTHAL, 1994, pp.

266-274). Ou seja, por um lado, as ‘categorias’ de leitura utilizadas na interpretação do texto

não poderiam ser provenientes do próprio ‘objeto’ da interpretação, visto que tais categorias

eram constituídas a partir do entrecruzamento de várias outras leituras e experiências; por

outro, não havia como aplicar “kantianamente” categorias “puras” à filologia, pois a filosofia

se constitui também a partir de seu contexto histórico32.

Ao colocar em questão a possibilidade de um fundamento prévio para a filologia,

Schlegel se vale de um tipo de compreensão circular típico da tradição hermenêutica, a qual

27 Karl Wilhelm Friedrich von Schlegel (1772 - 1829), foi um poeta, crítico, filósofo e tradutor alemão. Era o irmão mais novo de August Wilhelm Schlegel.

28 Schlegel e Schleiermacher eram amigos íntimos, o que demonstra o projeto conjunto de tradução da obra completa de Platão, que afinal acabou ficando ao encargo apenas de Schleiermacher.

29 Cf. LEVENTHAL, Richard: Disciplines of Interpretation e Sprachreflexion Der Deutschen Fruhromantik: Konzepte Zwischen Universalpoesie Und Grammatischem Kosmopolitismus Mit Lexikographischem Anhang . Schlegel e Schleiermacher eram amigos íntimos, o que demonstra o projeto conjunto de tradução da obra completa de Platão, que afinal acabou ficando ao encargo apenas de Schleiermacher.

30 Com os quais Schleiermacher irá polemizar em seus Discursos Acadêmicos de 1829, conforme veremos no capítulo seguinte.

31 Na época de Christian Gottlob Heyne, a gramática era considerada o fundamento e o pressuposto tanto da atividade hermenêutica quanto crítica: é preciso dominar a gramática antes de partir para uma interpretação dos textos.

32 Sobre a hermenêutica de Schlegel: cf. LEVENTHAL, Robert S.; Capítulo 8: “Friedrich Schlegel’s Hermeneutic Philology and the Eclipse of the Aesthetic Culture” in Disciplines of interpretation, 1994, pgs. 258-281.

20

será retomada por Schleiermacher e desenvolvida por Heidegger e Gadamer33: não há, na

verdade, um fundamento prévio, e sim uma interdependência entre as partes – um movimento

oscilante entre o contexto histórico e a ampliação da compreensão –, e que significa um não-

acabamento da tarefa compreensiva, um eterno projetar-se à frente numa aproximação de um

Ideal totalizante34.

Por isso, para Schlegel, o exercício compreensivo só poderia ser exercido com aquelas

obras de natura “semiótica”, as quais associava aos textos clássicos de natureza artística ou

histórica (e como veremos adiante, Schleiermacher estabelece um tipo de hierarquia

semelhante ao considerar como tradutor genuíno somente aquele que debruça sobre obras de

natureza artística ou científica). Nestas obras, a linguagem – antecipando a formulação de

Humboldt – funcionaria como uma “presentação formativa” (bildende darstellung) dos

objetos, significados e idéias, e, portanto, ‘poética’ em sua essência: o mundo existe através

de um processo de simbolização, e a linguagem jamais deixa de ser poética em alguma

medida. Esta noção de incompletude e tarefa progressiva, assim como da poetização do

mundo, ilustra o elemento metafísico-especulativo na reflexão romântica sobre tradução,

como veremos.

Wilhelm von Humboldt35

A compreensão, para Humboldt, é baseada na linguagem, e está relacionada à

competência lingüística de quem ouve e de quem fala. Sendo de natureza dialógica, a

compreensão é “construída”, ou seja, o significado não existe ‘por si só’, mas é co-produzido

pelo falante e ouvinte, que compartilham o mesmo sistema lingüístico (uma idéia que se opõe

ao conceito de transporte neutro de significados de uma mente para outra, presente na

33 Respectivamente, nas obras O ser e o tempo e Verdade e Método.

34 Bastante ilustrativo deste aspecto do não-acabamento é o seu conceito de ‘incompreensibilidade’. Para o filósofo a comunicação das idéias jamais ocorre de modo inequívoco e completo, não havendo uma divisão estanque entre a ‘compreensão’ e a ‘incompreensão’. A verdade mais elevada, segundo Schlegel, era comum, e por isso deveria ser sempre repetida de uma maneira inteiramente nova e paradoxal, a fim que de não perder de vista que elas jamais poderão ser exprimidas em sua totalidade. Schlegel enxerga o incompreensível como fator constitutivo da tarefa compreensiva, e enxerga o ato interpretativo como sendo parcial e dependente de constante aperfeiçoamento. (Cf. Leventhal: “On incomprehensibility” in Disciplines of interpretation). Veremos adiante como este valor ‘positivo’ da incompreensão é retomado em Schleiermacher.

35 Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand Freiherr von Humboldt (1767 –1835), linguista e educador alemão, realizou importantes contribuições para a teoria da linguagem e sistema educacional.

21

hermenêutica de Chladenius). Para Humboldt, cada língua constitui uma forma única de ver o

mundo, e por isso, o estudo de outras línguas torna-se uma forma de ganhar uma nova

perspectiva. Esse processo de compreensão poderia se repetir dentro da própria língua, desde

enunciados falados, palavras escritas, até trabalhos de arte e literatura, os quais expressariam a

individualidade de quem os produziu. Assim como Schlegel e Schleiermacher, para Humboldt

a língua era vista como um veículo (Vereinwerk) e produto da sociabilidade (Geselligkeit) de

uma determinada sociedade ou nação. A compreensão só se dá quando os seres humanos

testam a inteligibilidade de suas declarações com outros seres humanos, a compreensão é

problematizada de maneira que todo conhecimento seja controlado por um processo de

construção e reconstrução (MUELLER-VOLLMER, 2000, pp. 170-176).

Este caráter do relativismo lingüístico de pensadores como Schleiermacher, Humboldt

e Schlegel, deve ser considerado com relação ao elemento universalista do idealismo alemão.

As línguas não eram consideradas entidades fechadas em si, mas sua diversidade era a própria

condição para a troca mútua entre as culturas. Para os românticos, o elemento diversitarista,

como foi apontado na introdução, era condição para a realização do ideal da Bildung, ou, num

plano mais metafísico, de ‘plenitude do cosmos’. Schlegel, por exemplo, mesmo assimilando

o historicismo de Herder, chegou a rejeitar, entretanto, a sua idéia acerca de uma completa

incomensurabilidade entre línguas e culturas, pois nisso enxergava uma limitação ao

movimento contínuo em direção ao Todo. O próprio Humboldt e sua concepção de um

protótipo lingüístico universal subjacente às línguas naturais coloca um desafio às propostas

relativistas36, ao reivindicar um elemento comum de compreensão lingüística presente em

todas as sociedades, o que serviria de base para garantir a objetividade nas ciências

humanas37.

Tradução

É neste contexto romântico do interesse crescente pelos traços típicos dos povos e por

uma perspectiva histórica ampliada, que a tradução aparece ao mesmo tempo como um 36 Sobre a questão do relativismo linguístico em Humboldt, ver cf. Kurt Mueller-Vollmer: “Language theory and the art of understanding, pg. 176” in The Cambridge Companion of Literary Criticism (2000), e Rodrigo Tadeu Gonçalves (tese): Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o relativismo lingüístico e o aspecto criativo da linguagem. (2008), pg. 52-66.

37 Lembramos que algumas décadas mais tarde, a solução de Dilthey para o relativismo imposto por seu próprio historicismo foi o recurso ao Espírito Universal, elemento de unificação de todas as épocas e culturas.

22

desafio e uma resposta ao dilema do hiato entre línguas e culturas38, e como um protótipo da

própria função poética de desenraizar a linguagem de seu lugar origem.

Conforme vimos no primeiro capítulo, a crença na assimilação direta do significado e

a exigência de fidelidade ao original concretizava-se através da adoção de um tipo de tradução

normativa, que ‘interpretava’ o conteúdo original de acordo com os imperativos da própria

convenção cultural. A crítica ao dogma da “razão universal”, a instauração da noção

constitutiva da língua e do nexo histórico pelos românticos, resultado da valorização da

identidade histórica e cultural dos povos, estimulou a retomada do método literal de tradução,

através do qual se pretendia contemplar o original dentro de sua especificidade lingüística e

histórica.

O original, portanto, é entendido em sua relação com a criação individual, cuja

expressão está indissociamente ligada à sua forma lingüística:

A concepção de uma atividade essencial entre conteúdo e forma – defendida explicitamente em diversos lugares e de diversas formas – e, como fundamento do problema da tradução, a identificação da forma de expressão lingüística com o conteúdo das idéias, inseriu a prática tradutória, pela primeira vez na história da tradução, em um contexto científico mais amplo, tratando-a como um fenômeno a ser examinado com base na lingüística e na filosofia da linguagem. (POHLING, 1971, p. 74).

O desafio da tradução, para Humboldt, e também será para Schleiermacher, consistia

em enxergar uma alternativa para o impasse representado pela teoria que concebia o

pensamento e a expressão como indissociáveis. Em a “Introdução a Agamenon”, Humboldt

inicia o texto afirmando se tratar de um poema intraduzível, apelando para o argumento da

incomensurabilidade e impossibilidade de equivalência entre os signos lingüísticos. Logo em

seguida, no entanto, considera a tradução necessária, seja para divulgar a obra estrangeira para

quem não domina o idioma estrangeiro, seja para ‘aumentar a importância e a capacidade de

expressão da própria língua’ (HUMBOLDT, 2001, p. 93)39. Humboldt, assim como os

iluministas, orienta-se segundo a noção de fidelidade ao original, entretanto, tal fidelidade

38 Embora este trabalho se oriente pelo enfoque da ‘história das idéias’ e não da ‘história social e política’, cabe destacar, entretanto, que o crescimento da Alemanha como nação da tradução coincidiu com a superação da condição de servidão à França. Durante o século XVIII os clássicos eram conhecidos através de traduções francesas. Depois de 1870, a literatura alemã adquiriu uma nova consciência, a qual era expressa sempre em relação aos franceses. Em primeiro lugar, desejam os românticos ter suas próprias traduções dos clássicos, e com isso não somente igualar-se aos franceses, mas deixá-los para trás, através de um modo de traduzir que primava pela fidelidade e exatidão. (Cf. PIKULIK, Lothar: “Im Lichte der Aufklärung” in Frühromantic – Epoche; Werke, Wirkung, pg. 20, 2000).39 HUMBOLDT, von Wilhelm: Introdução a Agamenon, Clássicos da teoria da tradução, UFSC, 2001.

23

deverá ser ao espírito característico do autor, e o tradutor deverá assimilar do estrangeiro

algo que sua própria nação não possuía. Visto que o tradutor não pode atingir jamais o

completo sentido do original por estar limitado à sua própria língua, a tarefa da tradução, para

Humboldt, não é definitiva, e deve ser sempre renovada, pois muitas traduções resultariam

numa aproximação cumulativa do original.

Essa noção de aproximação imperfeita do original está presente em Friedrich e August

Schlegel e Novalis, para os quais tradução era uma metáfora, uma categoria conceitual; tais

autores enxergavam o mundo em termos de tradução. Em um fragmento da revista Athenäum

F. Schlegel escreve que “eu só posso demonstrar que entendi um autor se eu agir em seu

espírito, se eu puder traduzi-lo e modificá-lo de uma porção de maneiras sem que ele perca

sua individualidade”. Para A.W Schlegel, a tradução era o meio pelo qual a Alemanha

poderia se apoderar de todas as obras-primas da literatura, devendo ser, portanto, progressiva,

e jamais definitiva. Para Novalis, toda literatura já é uma tradução, e todas as coisas poderiam

ser traduzidas através de seus três métodos de tradução40. Ele considera a tradução como um

modo de produzir literatura, e talvez até mais raro e mais difícil. A tradução torna-se um meio

de criar uma unidade a partir da pluralidade, conforme as aspirações da Universalpoesie.

Huyssen41 cunha o termo “übersetzerisch” para designar uma noção de tradução

universalizante presente no primeiro romantismo. Cada ato de comunicação parece envolver

algum tipo de tradução, e todo processo parece exigir um tipo de ‘mediação’, um tradutor

colocado entre seus dois fins. Segundo o autor, "Toda poesia, tanto para Novalis quanto para

os irmãos Schlegel, está sujeita à reprodução e à tradução. Esse talvez seja o resultado mais

40 “Uma tradução é, seja gramatical, ou modificadora, ou mítica. Traduções míticas são traduções no mais alto estilo. Expõem o caráter puro, perfeito e acabado da obra de arte individual. Não nos dão a obra de arte efetiva, mas o ideal dela. Ainda não existe, ao que creio, nenhum modelo inteiro dela. No espírito de muitas críticas e descrições de obras de arte encontram-se porém claros traços. É preciso para isso uma cabeça, onde espírito poético e espírito filosófico se interpenetraram em sua inteira plenitude. A mitologia grega é em parte uma tal tradução de uma religião nacional. Também a madona moderna é um tal mito.Traduções gramaticais são as traduções no sentido costumeiro. Exigem muita erudição – mas apenas aptidões discursivas. As traduções modificadoras requerem, se devem ser genuínas, o mais alto espírito poético. Resvalam facilmente para o travesti – como o Homero em jambos de Bürguer – o Homero de Pope – as traduções francesas em seu conjunto. O verdadeiro tradutor dessa espécie tem na realidade de ser o próprio artista e poder dar a idéia de todo assim ou assim a seu bel-prazer – Tem de ser o poeta do poeta e assim poder fazê-lo falar segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo. Numa relação semelhante está o gênio da humanidade com cada homem individual. Não meramente livros, tudo pode ser traduzido destas três maneiras.” Cf. NOVALIS, Friedrich von Hardenberg in Pólen, 2001, pg. 72.

41 HUYSSEN, Andreas: Die frühromantische Konzeption von Ubersetzung and Aneignung: Studien zur frühromantischen Utopie einer deutschen Weltliteratur, Zurich, Beitrage zur deutschen Literatur, 1969, pg. 121-225.

24

surpreendente de suas investigações.”42(HUYSSEN, 1969, p. 145). Berman também se refere

a um tipo de tradução generalizada43, da qual a tradução interlínguas representaria um

paradigma.

Como diz Berman, a noção poética da tradução é levada mais em consideração do que

sua dimensão cultural e crítica por estes autores que cultivavam um conceito especulativo da

teoria tradutória (BERMAN, 2002, p. 193). Nesse sentido, a crítica da obra de arte – mais

importante que a própria obra de arte, como diz Benjamin – tinha uma importância mais

elevada que a tradução, por sua capacidade de levar adiante o movimento da consciência em

direção a uma essência idealmente projetada. A tradução, por ser um ato interlingüístico, não

poderia levar adiante este movimento, pois este se esgota na empiricidade da língua.

Percebemos que as idéias sobre tradução no Romantismo Alemão oscilam entre um

enfoque mais científico, baseado nas teorias da linguagem e da compreensão, com Humboldt

e, como veremos, Schleiermacher (cuja teoria não abordamos aqui pelo fato dedicarmos ao

assunto todo o terceiro capítulo), e outro mais especulativo, conforme ilustram os irmãos

Schlegel e Novalis, mais próximo das noções estéticas e filosóficas. A respeito desta mescla

científico-especulativa, comentam Heide Pohling e Antoine Berman:

Uma tentativa de compreender a contribuição do Romantismo Alemão para a tradução e de definir seu conceito de tradução torna clara a mistura problemática da almejada objetividade filológica com uma vaga arbitrariedade subjetiva (POHLING, 1971, p. 77).

Ora, o que se questiona nessa divisão é que a tradução como tal, como ato, não tenha campo próprio claramente delimitado (como trabalho de linguagem e com a linguagem), é que ela esteja ora ao lado da poesia, ora ao lado da filologia. (BERMAN, 2002, p. 184; grifo original).

Tendo em vista este contexto geral das discussões sobre a tradução no Romantismo,

nosso objetivo, a partir deste ponto, é destacar em que medida o discurso sobre tradução de

42“Alle Dichtung ist sowohl fur Novalis als auch für die Bruder Schlegel reproduktiv and also übersetzerisch. Dies ist das vielleicht überraschendste Ergebnis dieser Untersuchungen.”

43 “Em primeiro lugar, eles desenvolveram, com a Enciclopédia, o Witz e a poesia universal progressiva, uma teoria da traduzibilidade generalizada que é a transposição especulativa e fantasista da experiência concreta do campo do transformável. Em segundo lugar, eles propuseram uma teoria da poesia que faz desta uma tradução e, inversamente, faz da tradução um duplo da poesia. Em terceiro lugar, eles obviamente pressentiram que a tradução restrita constituía talvez o paradigma da tradução generalizada, mas obscureceram essa intuição ao privilegiar filosoficamente a tradução generalizada”. Cf. BERMAN, pg. 144-155.

25

Schleiermacher desenvolve os pressupostos da sua hermenêutica, e se o fato daquele não

representar um desdobramento sistemático da última, contribui ou não para as reflexões sobre

o fenômeno tradutório.

26

Capítulo 2: A interpretação como tarefa compreensiva: Schleiermacher e a

Hermenêutica Geral

Wilhelm Dilthey, em seu ensaio “O desenvolvimento da hermenêutica44”, escrito no

início do século XX, celebra Schleiermacher como sendo o fundador da Hermenêutica

Moderna, epíteto sob o qual até hoje é reconhecido45. Sua compreensão do ato interpretativo

sofre uma mudança significativa ao preconizar a transformação das hermenêuticas especiais,

termo por ele designado para descrever os variados métodos interpretativos aplicados a textos

específicos, numa hermenêutica geral, dirigida a qualquer situação comunicativa. O valor

dessa mudança não está associado à criação de mais um modelo interpretativo a ser somado às

demais disciplinas filológicas já existentes, e sim à percepção ampliada da interpretação

enquanto um problema, enquanto um fenômeno recorrente em qualquer forma de diálogo

humano. Essa nova hermenêutica, que agora entende a compreensão como uma “arte”,

orienta-se não mais em direção ao significado do texto, e sim ao entendimento de como se

processa a compreensão. O texto, portanto, passa não mais a ser visto como um resto

filológico a ser reconstituído pela aplicação irrestrita do método, e sim como um componente

de um amplo esquema que revela sua relação com o autor e a totalidade da linguagem.

A dedicação de Schleiermacher pelo estudo da hermenêutica cobre um período de

produção de quase trinta anos, de 1805 a 1833, do qual nos foi legado um extenso material

que inclui uma série de anotações, notas e discursos acadêmicos, realizados para os cursos

regulares que o filósofo ministrava sobre o tema. A história da recepção desse material ao

longo do século XX apresenta diversas mudanças: até a segunda metade desse século, a

imagem que se tinha de Schleiermacher – marcada pelo tipo de psicologismo que orienta a

interpretação textual a partir da intenção do autor e subjetividade do intérprete –, era ainda

aquela governada pela autoridade de Dilthey, cuja visão baseava-se na primeira edição das

obras completas realizada por Lücke logo após a morte do filósofo, em 183446. Apenas em

44 DILTHEY, Wilhelm: Die Entstehung der Hermeneutik, apud LAU,Viktor: Erzählen und Verstehen, pg. 249, 1997.

45 Cabe ressaltar que não é uma visão compartilhada por todos os teóricos. O crítico literário Peter Szondi, por exemplo, considera que a hermenêutica universal concebida como análise da compreensão não começou com Schleiermacher, e sim muito antes, com Chladenius e Meyer. Cf. Szondi: Introduction to literary hermeneutics. Ver também cf. Disciplines of Interpretation de Richard Leventhal, em que o autor atribui a Schlegel as inovações mais decisivas neste campo. 46 Friederich Daniel Ernst Schleiermacher, Sämmtliche Werke, 31 volumes. (Berlin, 1835 – 64)

27

1959, com o aparecimento da nova edição realizada por Heinz Kimmerle, a autoridade de

Dilthey é questionada.47

Na segunda metade do século XX, a obra de Schleiermacher é submetida a uma

renovada interpretação por teóricos de orientação tão distinta quanto Heinz Kimmerle, Peter

Szondi, Frank Manfred e Andrew Bowie. Em linhas gerais, esta nova recepção tende a

combater o rótulo de “psicologismo” ao qual a hermenêutica do filósofo havia sido reduzida,

ressaltando o aspecto da “interpretação gramatical” – antes ignorada em favor da

“interpretação psicológica” –, assim como a atualidade de Schleiermacher no contexto dos

debates contemporâneos.

Selecionamos como ponto de partida o Compêndio, de 1819, e também os Discursos

Acadêmicos – Sobre o conceito de hermenêutica, com referência às definições de F.A Wolf e

ao Compêndio de Ast, escrito em 1829, pelo fato de ser o seu trabalho mais sistemático e

também por incorporar grande parte de sua reflexão anterior, presente nas Notas, de 1805, e

no já referido Compêndio. Não é nossa intenção retraçar o desenvolvimento da Hermenêutica

de Schleiermacher, mas identificar seus aspectos mais gerais e relevantes.

Hermenêutica Geral

No texto dos Discursos Acadêmicos, verificamos o esforço presente desde os

primeiros manuscritos em submeter a hermenêutica da época a um tratamento sistemático

capaz de transformá-la numa allgemeine Hermeneutik (Hermenêutica Geral). O filósofo

aponta para a situação caótica em que se encontrava a hermenêutica cindida em diversos

modelos interpretativos. Segundo ele, todas as regras desses diferentes modelos deveriam se

desenvolver em conjunto, partindo do próprio fato da compreensão, “da natureza da

47

4

Esta nova edição, realizada por Heinz Kimmerle, não buscava alcançar uma unidade e coerência de pensamento como a edição anterior de Lücke, mas sim apresentar a obra de Schleiermacher na ordem em que havia sido produzida. Esta edição apresenta os aforismos produzidos em 1805 e 1809; os manuscritos escritos entre 1809 e 1810; um compêndio em forma de apresentação de 1819; um tratamento separado da segunda parte do compêndio entre 1820 a 1829; os Discursos Acadêmicos de 1929, e finalmente a marginalia produzida entre 1832 a 1833. Manfred Frank complementa o trabalho de Kimmerle em seu Hermeneutik und Kritik, que recebeu uma tradução para o inglês com introdução de Andrew Bowie.

A edição em que nos baseamos é a tradução para o português de uma parte da edição de Kimmerle intitulada Hermenêutica e Crítica: Arte e técnica da interpretação, Editora Vozes, 1999, a qual inclui Os discursos acadêmicos, os manuscritos, e a exposição separada do compêndio.

28

linguagem e das condições fundamentais da relação entre o falante e o ouvinte48”

(SCHLEIERMACHER, 1999, p. 64).

Logo no início dos Discursos (ibidem, p. 25), ao enumerar os modos pelos quais as

tarefas humanas são executadas, Schleiermacher inclui as regras da disciplina como um

desses modos. Dentre tais regras ele identifica a da interpretação, a qual define, numa

primeira acepção, como sendo uma expressão que subsume ”toda compreensão de discurso

estranho (Ibid., p 26)”. Assim define Schleiermacher a interpretação realizada por filólogos e

teólogos, a qual, a despeito de suas observações e informações instrutivas, é incapaz de

fornecer ao intérprete uma diretiva segura que não se limite à coleção de regras particulares.

A idéia de Schleiermacher é que a interpretação,

(...) como metodologia propriamente dita, não somente (...) seja o fruto sempre alcançado dos trabalhos magistrais dos artistas nesse domínio, mas que ela exponha também sob uma forma adequada e científica toda a extensão e as razões de ser do processo.49 (grifo nosso).(idem)

Nessa passagem, já se esboça a tentativa do filósofo em dar um passo adiante no que

diz respeito às tarefas desempenhadas pelas hermenêuticas ‘especiais’, as quais ele relaciona

ao aglomerado de regras interpretativas arranjadas de maneira esparsa e confusa contidas nos

diversos manuais de filologia e sumas teológicas. Os trabalhos de filologia e teologia

tomavam como ponto de partida os problemas específicos de seu objeto central, conseguindo

somente formular regras destinadas a interpretar textos específicos, mas não uma teoria da

hermenêutica que pudesse reivindicar validade para todas as variedades de escrita. As “razões

de ser do processo”, portanto, significava reunir tais regras dentro de uma unidade mais ampla

de explicação que fosse capaz de explicitar o modo de funcionamento da própria

interpretação, e explicitar a compreensão como um requisito para suas operações. O interesse,

agora, residia no exame do ato de compreensão e das condições de sua possibilidade.

Num aforismo de 1805, Schleiermacher, em um de seus primeiros comentários sobre a

hermenêutica, declara que

Só aquilo a que Ernesti chama subtilitas intelligendi (acuidade da compreensão) pertence genuinamente à hermenêutica. A explicação, em vez

48SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E: “Discursos Acadêmicos – Sobre o conceito de hermenêutica, com referência às indicações de F.A Wolf e ao Compêndio de Ast” in Hermenêutica – Arte e técnica da interpretação, 1999, pg. 64.49

29

de arte da “compreensão” vai transformar-se imperceptivelmente em arte de formulação retórica50. (SCHLEIERMACHER, apud Palmer, 1969, p. 92)

O que é bastante representativo, pelo fato de destacar a hermenêutica como arte da

compreensão, ao invés de associá-la à arte da explicação, a qual se prestaria somente ao papel

de clarificar os problemas práticos na interpretação dos diferentes tipos de texto51.

Conforme indica o subtítulo dos Discursos Acadêmicos – Sobre o conceito de

hermenêutica, com referência às definições de F.A Wolf e ao Compêndio de Ast –

Schleiermacher parte das considerações dos filólogos F.A Wolf e Friedrich Ast, os quais

considera os mais fecundos na área da filologia, a fim de acrescentar a essas a sua própria

contribuição sobre o problema52.

A hermenêutica filológica de Ast e Wolf pode ser considerada um produto típico do

Romantismo alemão, no sentido de estar relacionada com a busca de um estabelecimento de

identidade com a Antiguidade Clássica e de recorrer à subjetividade enquanto estratégia

interpretativa. Ela também já se distingue do tipo de hermenêutica praticada no Iluminismo,

no sentido em que a compreensão do autor substitui a explicação de passagens “obscuras”.

Ast, por exemplo, tenta resolver o problema da compreensão diante do estranho ou

“obscuro”, ao postular algo que seja comum a todos: o espírito. Como nos diz Palmer, “Para

Ast, o objetivo essencial é captar “espírito” da Antiguidade, revelado com nitidez na herança

literária (PALMER, 1969, p. 84)”. Inspirado provavelmente pela idéia de Espírito do Povo

(Volkgeist) de Herder, Ast busca através do estudo das obras clássicas, atingir a unidade

maior de espírito que dê origem às obras individuais e dessa forma cumprir o objetivo

pedagógico de se assemelhar aos gregos. Visto que a hermenêutica de Ast aplica-se somente

às obras do passado, o problema da distância temporal entre o intérprete e a obra é resolvido

em função da natureza a-histórica e atemporal do espírito: compreender um texto agora

significa compreender o autor e sua relação com o texto, significa a re-criação (Nachbildung)

50 “Eingentlich gehort nur das zur Hermeneutik was Ebing subtilitas inteligendi nennt. Denn die (subtilitas) explicanti sobald sie mehr ist als die äussere Seite des Vertehens ist wiederum ein Object Der Hermeneutik und gehort zur Kunst des Darstellens”.

51 Neste aspecto Schleiermacher está consonância com Wolfgang Iser, o qual, ao definir o “espaço liminal” associa a interpretação antes a um ato performático do que um ato explicativo. (Cf. ISER, Wolfgang: “Interpretation as Translatability” in Range of interpretation, 2001, pg. 7.)

52 Entretanto, conforme já foi salientado, a hermenêutica de Schleiermacher começou a ser elaborada antes do surgimento da hermenêutica de Wolf e Ast, já nos aforismo de 1805.

30

do que foi criado. Na individualidade da obra estariam, portanto, as marcas do espírito da

totalidade (Geist des Ganzen), ponto central de toda a vida. Segundo Ast,

Só podemos captar corretamente a complexa unidade do espírito da antiguidade se captarmos as suas revelações individuais em obras antigas individuais, e por outro lado, o Geist de um autor individual não pode ser captado se não o colocarmos na relação que sustenta [com o todo].53 (AST GGHK 179; VI 44 apud PALMER, 1969, p. 86)

Wolf, por sua vez, quem Schleiermacher considera “a genialidade mais livre” da

filologia, em contraposição ao estilo filosófico de Ast, é quem formula uma hermenêutica

enquanto uma ciência de regras específicas para cada área do conhecimento, as quais teriam a

tarefa de resolver as dificuldades lingüísticas e históricas levantadas pelos textos antigos.

Nele também se expressa o mote romântico subjetivista da congenialidade ao preconizar a

decifração do pensamento do autor como um dos objetivos da hermenêutica. O intérprete,

nesse caso, deverá ser capaz de entrar em sintonia com outros pensamentos e possuir a

aptidão para o diálogo, de modo a “captar o pensamento do autor como ele desejaria ter

captado” (Ibid., p. 89).

O que Ast e Wolf possuem em comum ao tratar da ‘hermenêutica’, é o fato de ambos a

considerarem juntamente com as demais disciplinas da crítica e da gramática, ou um apêndice

ou um estudo introdutório da filologia. A limitação desses dois filólogos, segundo

Schleiermacher, consiste no fato de que entendem a tarefa da hermenêutica apenas quando se

trata de compreender um escritor ou decifrar um texto artístico numa língua estrangeira,

quando na verdade essa tarefa deveria ser estendida a toda conversação, discurso imediato e

escritos dos mais variados tipos, de maneira que “(...) em todo lugar onde houve(sse) qualquer

coisa de estranho, na expressão do pensamento pelo discurso, para um ouvinte, h(averia) ali

um problema que apenas pode(ria) se resolver com a ajuda de nossa teoria.”

(SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 31). A hermenêutica, portanto, não deveria servir

apenas como um simples organon filológico das obras clássicas, e sim satisfazer a todos os

domínios da linguagem onde a incompreensão ocorresse, seja numa língua estrangeira ou na

própria língua.

53 Nesta passagem é possível perceber que Ast não enxerga no círculo a pré-condição para a compreensão, e sim uma contradição que pode ser eliminada.

31

Reproduzimos aqui uma passagem de Schleiermacher em que essa idéia da

hermenêutica enquanto disciplina geral fica bastante clara:

Sim, (...) a hermenêutica não deve estar limitada meramente às produções literárias; pois eu me surpreendo seguidamente no curso de uma conversação [familiar] realizando operações hermenêuticas, quando eu não me satisfaço com o nível ordinário da compreensão, mas procuro discernir como, em um amigo, pode se dar a passagem de uma idéia à outra (...). Tais fatos (...) manifestam bastante claramente (...) que a solução do problema, para o qual nós estamos procurando justamente a teoria, não depende absolutamente de que o discurso esteja fixado para os olhos através da escrita, mas ocorre sempre onde nós temos que apreender pensamentos ou encadeamentos de pensamentos através de palavras (...) Tampouco isto se limita aos casos em que é uma língua estrangeira, mas também na própria língua (...). (Ibid., p. 33)

Schleiermacher não só amplia a função da hermenêutica, mas também a modifica: a

compreensão não se restringe mais à interpretação de textos de outra época ou em outro

idioma, mas se estende a qualquer situação em que não haja um “nível ordinário de

compreensão”, a qual também pode ser encontrada, e.g, em um diálogo, um bilhete ou em

anúncios de jornal. Outra passagem presente em seu Compêndio de 1819, exprime o caráter

diferenciado de sua teoria da compreensão com relação à hermenêutica tradicional:

A prática menos rigorosa da arte [da compreensão] é baseada na hipótese de que a compreensão ocorre como um fato garantido: e expressa de modo negativo o seu objetivo de que “a incompreensão deve ser evitada”. [...] A prática mais rigorosa é baseada por sua vez na hipótese de que a incompreensão ocorre como um fato garantido, e que a compreensão deve ser desejada e buscada a todo o momento54. (Schleiermacher, Compendium,p. 109-110 apud Szondi, p. 116.)

A incompreensão, para Schleiermacher, jamais pode ser completamente eliminada. Ao

contrário da hermenêutica tradicional que relegava a incompreensão a um fator contingencial

e, portanto, enxergava a compreensão como algo já dado, para o filósofo a compreensão é

uma tarefa sem fim, que precisa ser buscada “a todo o momento”, ou seja, as condições de sua

existência precisam ser sempre explicitadas.

54 “The less rigorous practice of the art [at first the manuscript read “the artless practice,” that is, of interpretation] is based on the assumption that understanding occurs as a matter of course: and expresses the goal negatively as a “Misunderstanding is to be avoided.” […] The more rigorous practice is based in the assumption that misunderstanding occurs as a matter of course and the understanding must be willed and sought at every point”.

32

O caráter geral deste tipo de compreensão envolve o entendimento totalizante tanto do

autor quanto da linguagem, os quais são descritos no contexto da teoria da interpretação

técnica (ou psicológica) e gramatical.

Interpretação técnica (ou psicológica)55 e gramatical

Como já foi mencionado, desde que Dilthey concebeu sua Lebensphilosophie

inspirado pela última fase da hermenêutica de Schleiermacher, esse foi lembrado durante a

primeira metade do século XX apenas por sua interpretação psicológica, sendo que a

interpretação gramatical foi redescoberta apenas recentemente, como contendo idéias

relevantes para a hermenêutica contemporânea56. Cabe dedicarmos uma porção deste capítulo

à explicitação desses métodos, pois além de consistirem no fundamento de sua hermenêutica

geral, eles nos serão bastante produtivos para a compreensão dos pressupostos de suas idéias

sobre tradução.

Segundo Schleiermacher, uma obra pode ser considerada particular dentro de dois

contextos. O primeiro seria o domínio da literatura à qual pertence, a qual formaria junto com

obras do mesmo gênero um todo a partir do qual poderia ser compreendida. O segundo seria o

contexto do próprio autor e a sua biografia, cujo conhecimento favoreceria a compreensão de

sua obra. Tais contextos se referem respectivamente à interpretação gramatical, relacionada à

linguagem, e à interpretação técnica/psicológica, relacionada ao pensamento. Para

Schleiermacher, o método técnico/psicológico e gramatical se complementam, pois é

necessário tratar a obra tanto como um constituinte do contexto literário geral quanto algo

ligado ao pensamento do autor57:

Tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com a totalidade da linguagem quer com o pensamento do autor, também em toda compreensão de um discurso há dois momentos: a sua compreensão como algo extraído

55 Inicialmente Schleiermacher empregava o termo interpretação técnica, e em seus últimos escritos passou a adotar interpretação psicológica.

56 Uma possível razão para este tipo de recepção, deve-se possivelmente ao fato de a filosofia da virada do século XIX ter enfatizado a subjetividade e psicologia em contraposição à ênfase excessiva do Positivismo na objetividade. Cf. Szondi, Introduction, pg. 118.

57 A questão do todo e das partes em Schleiermacher, o fato do intérprete buscar as intenções específicas do indivíduo no contexto em que foram declaradas, manifestam a importância atribuída por Schleiermacher em considerar a Hermenêutica junto com a sua Dialética.

33

da linguagem e como um ‘fato’ no pensamento daquele que fala. (SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 31).

A indissociabilidade entre pensamento e linguagem – crença romântica com a qual se

comprometia Schleiermacher – resulta na interdependência entre os dois tipos de

interpretação:

O pensamento e a língua se misturam, e o modo particular de um escritor compreender um assunto se confunde com o modo como o organiza e também com o seu uso da língua. (SCHLEIERMACHER, Compêndio, p. 94).

Ou seja, o discurso individual pode contribuir para o desenvolvimento da linguagem,

ao mesmo tempo em que ela age e atua sobre o autor.

No início do Compêndio de 1819, ao definir a interpretação gramatical,

Schleiermacher menciona duas regras: a primeira delas se refere à determinação de sentenças

em relação a seu contexto lingüístico, que deve ser comum ao autor e ao público. A segunda

diz que o significado de cada palavra deve ser determinado com relação à posição das

palavras ao seu redor. A partir dessas regras Schleiermacher se refere, respectivamente, ao

que seria o ‘contexto geral’, ou sistema lingüístico, e o “contexto imediato”, ou sentença,

salientando a interdependência entre eles. A interpretação gramatical, portanto, mostra-nos a

relação do texto com a sua língua, tanto com relação a outros textos do mesmo gênero, como

na estrutura das frases.

O “valor linguístico” de uma palavra, conforme ele designa, é estabelecido pelas

operações de determinação e exclusão, de modo que cada signo é determinado pela exclusão

daquilo que não constitui seu significado. O signo lingüístico, portanto, não possui valor

universal e não é independente do contexto, e sim determinado por outras partes da frase, por

sua posição na sentença58. Como diz Schleiermacher: “assim como a palavra é um elemento e

uma parte na frase, assim também é a frase no contexto vasto do discurso

(SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 48).”59. Aqui se exprime a concepção de círculo

hermenêutico em Schleiermacher. Para o filósofo, qualquer operação de compreensão

pressupõe a relação do todo com as partes. O encadeamento das palavras e das frases deve ser

compreendido a partir de um determinado ponto de vista, o qual coincide com o

58 Definição que se assemelha ao conceito de relação sintagmática, de Saussure.

59 Schleiermacher exemplifica tal relação referindo-se ao ato de retirar frases de seu contexto original e de incorporá-las a um outro a fim de gerar representações falsas. Cf. ibid. pg. 52.

34

conhecimento do “todo”, de modo que operamos apenas com uma compreensão provisória,

que vai se ampliando na medida em que avançamos no texto. O sentido particular é dado a

partir do contexto mais geral no qual se insere, e esse, por sua vez, se constitui daqueles

mesmos elementos aos quais dá sentido. Isto é, a compreensão não é formulada a partir da

fusão do intérprete com um ponto de vista universal, conforme ocorria na hermenêutica

iluminista, mas ela passa pelo crivo da linguagem, e opera-se numa dialética interdependente

entre o todo e as partes.

A interpretação técnica/psicológica, por sua vez, deve ser entendida na sua relação

com a totalidade da linguagem, por um lado, e com a totalidade do indivíduo e sua vida, por

outro. A finalidade desta modalidade interpretativa é a completa compreensão do estilo do

autor.

O filósofo irá conceber dois períodos nos quais o processo criativo se engendra: o

primeiro seria destinado à germinação da forma literária e enriquecimento da língua a partir

da força produtiva do artista, enquanto do segundo faria parte a cristalização dessas formas e

sua subseqüente adoção por outros escritores. O conhecimento dessas duas fases, de acordo

com Schleiermacher, é fundamental para o intérprete que pretenda reconstruir da melhor

forma possível a “evolução interior da atividade compositora do escritor” (ibid., p. 39), de

modo a entender “o autor melhor do que ele mesmo se compreendeu” (ibid., p. 50) – topos

romântico também repetido por Fichte, Kant e Schlegel60.

É importante ressaltar a implicação para a hermenêutica ao propor um conhecimento

do autor que a ele escapa. Vimos que com Chladenius e Wolff, a busca pela intenção autoral

tinha a ver com a constatação pelo leitor/intérprete quanto à adequação do discurso do autor

com o gênero do texto, ou seja, autor e intérprete deveriam concordar com o conteúdo do

texto, e mantinham uma relação de subordinação com a autoridade por ele representada. Para

a hermenêutica romântica, a questão da intenção autoral terá outro significado. De acordo

com Peter Szondi,

A compreensão, para Schleiermacher, não é idêntica, portanto, ao recurso à intenção autoral do modo como era na hermenêutica iluminista (...). Em

60

6

Segundo Gadamer, é bem provável que Schleiermacher tenha sido o primeiro a levar em consideração uma fórmula que reivindique com tanta ênfase a superioridade do intérprete sobre seu objeto. Segundo o autor, Fichte e Kant tinham um propósito bem diferente quando pronunciaram esta fórmula, o qual dizia respeito ao desejo da filosofia racionalista de superar as contradições numa tese através de uma maior clareza conceitual. Cf. Gadamer, Verdade e Método, pg. 267.

35

oposição à hermenêutica iluminista (...), a concreção lingüística correspondente ao objeto de interpretação será o próprio discurso ou a escrita, e não o significado, o sensus ou os vários sensus de uma passagem. (SZONDI, 1995, p. 121)61

A elevação do papel do leitor/intérprete como aquele que conhece melhor o autor do

que ele próprio não significa nada menos do que um severo deslocamento da antiga ênfase na

autoridade do texto; a ênfase agora reside contexto histórico e gramatical que torna possível a

reconstituição do processo criativo do autor.

Portanto, considera-se um momento fundamental na interpretação a percepção da

relação do autor com as formas literárias estabelecidas, a fim de se visualizar a atividade do

escritor, ou seja, o quanto a forma literária fixa entra em conflito com a sua originalidade

pessoal, ou o quanto o escritor é delas dependente. É nesse aspecto que a interpretação

técnica/psicológica deve vir acompanhada da interpretação gramatical, pois é preciso partir

da totalidade da língua e da compreensão do discurso a fim superar qualquer dificuldade

gramatical, a fim de comparar vários escritores para saber de que modo um progrediu mais

que outro. Como diz Szondi,

Os conceitos de interpretação técnica e gramatical de Schleiermacher (…) lançam uma base para a compreensão do que é próprio do indivíduo, e também do que é próprio da história, através do medium da linguagem assim como das formas e gêneros literários.62 (SZONDI, p. 118).

Na interpretação técnica, portanto, o aspecto individual da criação, o estilo particular,

só poderia ser identificado no contexto da análise histórica e gramatical. Antes que este

método se desenvolvesse em direção à interpretação psicológica, cujo interesse reside mais

na vida interior do autor, Schleiermacher enfatizava que a interpretação deveria atingir

completamente tanto o método gramatical quanto o técnico, não sendo dois tipos de

interpretação diferentes, e sim complementares.

A crença da época no gênio individual e no caráter congenial da interpretação deve ter

influenciado Schleiermacher em seus últimos escritos sobre a interpretação psicológica, 61 “Understanding for Schleiermacher thus is not identical with recourse to authorial intention, as it was for Enlightenment hermeneutics (…). In opposition to Enlightenment hermeneutics (…), it is speech or writing itself, the linguistic concretion, that is the object of interpretation and not the meaning, the sensus or the various sensus, of a passage.”

62“In Schleiermacher’s concepts both of grammatical and of technical interpretation (…) a basis is established for an understanding of what is individually specific, but also of what is historically specific, in the medium of language as well as in literary forms and genres.”

36

presentes dos Discursos Acadêmicos e na marginalia produzida entre 1832-3. Para a

mentalidade romântica, a novidade criativa especialmente iluminadora consistia nas

fabulações desse gênio, que imprimia novo vigor ao seu tempo ao se projetar para além da

tradição herdada e reproduzida.

Numa passagem dos Discursos Acadêmicos, Schleiermacher afirma que “(...)

contribuem para a compreensão do todo, menos enquanto ele é orgânico e vivo na língua, mas

enquanto ele fixou um momento gerador fecundo de seu autor e o trás à exposição”

(SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 52). Nesse sentido, Schleiermacher era consoante à

idéia de Wolf de que a investigação histórica e a análise gramatical, a despeito de serem

processos fundamentais para a compreensão dos clássicos, careciam da complementação do

método psicológico, somente através do qual se poderia apreender, de modo intuitivo, o

espírito do autor. Conforme Schleiermacher,

Então, não importa somente (...) a reunião e a ponderação minuciosa dos momentos históricos, mas nisso adivinhar o modo de combinação individual de um autor, o qual teria, sendo diferente, na mesma posição histórica e na mesma forma de exposição, oferecido um resultado diferente (ibid. p. 35; grifo nosso).

Nessa citação encontramos algumas das razões pelas quais Schleiermacher foi

associado ao modelo da hermenêutica psicologista: o que ele sugere, e que para nós hoje soa

como carecendo de fundamentação, é a possibilidade de se elevar o sujeito a uma esfera de

incondicionalidade, como se as contingências de ordem histórica desempenhassem um papel

inferior (embora não nulo) ao próprio imperativo individual. Este é um tipo de psicologismo

fortemente atacado pela Hermenêutica do século XX, já preocupada com a questão da fusão

dos horizontes e história efeitual63. Aqui fica nítido que o fato de Wolf e Schleiermacher

dissociarem, ao menos em algum grau, o indivíduo do seu contexto histórico específico,

implicava a exigência da complementaridade da interpretação psicológica, cuja tarefa é

considerada mais fundamental, e cuja ênfase substitui a noção de que “a interdependência

entre a interpretação técnica e gramatical torna sua igualdade evidente”. Segundo o

Schleiermacher da interpretação psicológica, mesmo o intérprete mais hábil e competente

com relação a todos os conhecimentos adequados à língua e à situação histórica da época, não

63 Cf. Gadamer: “A extensão da questão da verdade à compreensão nas ciências de espírito”, in Verdade e Método, 2008, a partir da pg. 241.

37

teria sucesso em atingir a concepção exata do processo criativo do autor caso não pudesse

apreender, intuitivamente, sua vida interior.

A transição da interpretação técnica para a psicológica, segundo Peter Szondi,

representou mais uma mudança de ênfase, visto que Schleiermacher mantém basicamente o

mesmo conceito (SZONDI, 1995, p. 131): enquanto na interpretação técnica, a ênfase residia

na questão do estilo individual como sendo um modo particular de composição e um fator que

modificava a língua, na interpretação psicológica ela reside na vida individual como um todo.

Gadamer, por sua vez, lamenta a transição e considera que Schleiermacher caíra numa má

metafísica, desistindo assim da possibilidade mais fértil de uma hermenêutica

verdadeiramente centrada na linguagem64.

O período da hermenêutica de Schleiermacher que a recepção da segunda metade do

século XX pretende resgatar é justamente aquele em que o filósofo considerava a linguagem e

pensamento como indissociáveis, e enxergava mesmo os processos psíquicos ainda à luz da

linguagem. Sua percepção de que “tudo o que se pressupõe em hermenêutica é apenas

linguagem e é também só linguagem aquilo que encontramos na hermenêutica

(SCHLEIERMACHER apud Palmer, 1969, p. 98)” e que “o lugar a que pertencem os outros

pressupostos objetivos e subjetivos tem que ser encontrado através (ou a partir) da

linguagem”(idem), reforça a atualidade de sua ‘primeira hermenêutica’ e sua afinidade com a

filosofia da linguagem do século XX.

A contribuição da hermenêutica de Schleiermacher, portanto, reside no abandono da

visão do texto como uma unidade fechada, visto que a compreensão, ao ampliar-se

indefinidamente em seu movimento circular entre o geral e o específico, constitui-se sempre

tarefa não acabada. Como veremos, é possível verificar em alguns momentos de seu discurso

sobre a tradução, a circularidade estabelecida pela relação dialética entre o contexto histórico

e criação individual, o que constitui o elemento ‘hermenêutico’ de sua teoria tradutória.

64 Cf. Gadamer, Verdade e Método, 2008, pgs. 254-270). Palmer compartilha a mesma opinião (cf. Hermenêutica, 1969, pgs. 97-103).

38

3. A tradução segundo a hermenêutica: Sobre os diferentes métodos de Tradução

Até aqui, vimos como o pensamento sobre tradução, que se desenvolveu no início do

século XIX na Alemanha, esteve associado tanto ao projeto estético romântico expresso pela

filosofia da Progressivepoesie, quanto à emergência das questões filológicas e das teorias de

linguagem. Schleiermacher, assim como Humboldt, são os principais pensadores a tratar o

problema da tradução dentro de uma pretensão científica, fazendo uso das teorias de

linguagem disponíveis na época. Como diz Steiner, “o vocabulário e moldura metodológica

com os quais Herder, Schleiermacher e Humboldt discutem a teoria da tradução são

obviamente novos. O debate sobre a traduzibilidade é agora aberta e inteiramente parte da

epistemologia”65. (STEINER, 2005, p. 287).

Segundo Berman, pode-se dizer que a conferência realizada por Schleiermacher na

Academia Real das Ciências de Berlim intitulada “Sobre os diferentes métodos da tradução”

constitui um capítulo das pesquisas do filósofo no domínio da hermenêutica. Nosso objetivo é

justamente divisar as questões de fundo teórico que constituem o discurso de tradução de

Schleiermacher, especialmente aquelas associadas à sua teoria da compreensão. Com isso

pretendemos avaliar em que medida Schleiermacher se valeu de pressupostos hermenêuticos

ao falar sobre a tradução, e em que medida também sua teoria da tradução representa um

descompasso com relação ao avanço representado por sua teoria hermenêutica.

Schleiermacher inicia o texto apontando para a tradução como um fenômeno a um só

tempo interlinguístico e intralingüístico, recorrente tanto na tradução de uma língua

estrangeira quanto de um discurso de um contemporâneo que compartilhe o mesmo idioma,

cuja forma de expressão individual seja distinta da nossa66. Esta noção universalizante de

tradução, longe de subscrever algo semelhante ao universo pan-semiótico de Novalis e

Schlegel, aponta para uma dimensão essencialmente hermenêutica. A idéia de que a tradução

65 STEINER, George: Depois de Babel.

66 “Se, de um lado, pessoas que, em princípio, estão separadas pelo diâmetro da terra podem entrar em contato, se as produções de uma língua morta há muitos séculos podem ser incorporadas a uma outra; assim, nós, do outro lado, nem podemos sair do campo de uma só língua para encontrar o mesmo fenômeno (...) freqüentemente precisamos traduzir o discurso de um outro que é igual a nós, porém de personalidade e mentalidade diferentes, quando sentimos que as mesmas palavras teriam um sentido vem diferente na nossa boca ou ao menos um valor mais forte ou mais fraco que na dele e que, se quiséssemos expressar à nossa maneira o mesmo que ele expressou, utilizaríamos palavras e locuções totalmente diferentes?”. SCHLEIERMACHER: “Sobre os diferentes métodos de tradução” (doravante SMT), 2001, pg. 27.

39

não se limita à mediação entre dois idiomas separados geográfica ou historicamente, podendo

ocorrer também dentro de um mesmo idioma, numa conversa entre contemporâneos de

classes sociais distintas, ou mesmo ente dois semelhantes, é a própria tarefa geral que ele

atribui à sua nova hermenêutica, que não se limita à compreensão de obras clássicas ou em

língua estrangeira, mas se estende a ‘toda forma de diálogo humano’. A consciência da

historicidade inerente ao discurso e da estrutura dialogal da compreensão está presente

quando aponta para a distinção entre as próprias formas individuais de expressão, ao dizer que

“às vezes, os nossos próprios discursos devem ser traduzidos depois de um certo tempo, se

quisermos que continuem sendo nossos” (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 29). Ou seja, há a

pressuposição de que o discurso é sempre deslocado de seu lugar de origem, precisando por

isto ser recomposto ‘depois de um certo tempo’ ao seu contexto, a fim de ser compreendido.

Este aspecto geral da tradução aplicada a todos os tipos de discurso não é levado

adiante por Schleiermacher, que declara não querer “entrar em tudo que pertence a esse

campo amplo” mas sim tratar “primeiramente da tradução de uma língua estrangeira para

outra”(idem).

Schleimermacher distingue a tarefa do “intérprete” (Dolmetscher), associada à

oralidade, daquela exercida pelo “tradutor genuíno”, associada à escrita. O “intérprete” exerce

seu ofício no domínio da vida comercial, na qual a ‘tradução’(referida nesse contexto por

Schleiermacher como ‘transposição’, pelo fato de a equivalência entre os termos ser realizada

sem dificuldade, de uma forma quase mecânica) possui uma finalidade geralmente burocrática

ou meramente informativa, não representando, portanto, grandes desafios. Aqui, quanto

menos se distancia do original, e quanto mais se atua como ‘órgão receptor do objeto e se

segue a ordem local e temporal’, mais próximo se estará da “interpretação”, sendo que o

tradutor de artigos de jornal e relatos de viagem é equiparado ao intérprete oral, pela essência

de sua tarefa. O tradutor genuíno, por sua vez, exerce seu ofício no domínio da ciência e da

arte, aonde a ‘irracionalidade’ das línguas invade todos os elementos, tornando o tipo de

equivalência presente na tarefa do intérprete impossível. (SCHLEIERMACHER, SMT, p.

32).

Neste aspecto, é no mínimo curioso que Schleiermacher reduza de modo tão

peremptório a tradução realizada fora da esfera dos textos artísticos e filosóficos à mediação

por um tipo de equivalência automática. Como vimos nos Discursos Acadêmicos, a

40

hermenêutica era operada sempre que não se ‘atingisse o nível ordinário de compreensão67’.

Ou seja, mesmo que se admita ser o texto artístico ou filosófico detentor de desafios

tradutórios mais elevados, isso não deveria relegar o trabalho do ‘intérprete’ a uma categoria

de mera equivalência, afinal, qualquer trabalho de tradução pressupõe a operação de um

empenho interpretativo de algum tipo. Disto Schleiermacher demonstrava estar consciente,

pois em seus Compêndios sobre hermenêutica de 1809 e 1810, anteriores ao seu ensaio sobre

tradução, já contemplavam a interpretação como uma tarefa geral existente até mesmo no

diálogo humano.

Esta hierarquia estabelecida entre os tipos de tradução, de acordo com a natureza do

material com que lidam – neste caso, obras artísticas e filosóficas ou documentos comerciais e

jurídicos –, apresenta, no entanto, uma certa correspondência com um de seus fragmentos, em

que diz que os textos artísticos apresentam um índice mais elevado de significação, enquanto

que, por exemplo, em uma conversa sobre o tempo, este índice seria mais reduzido (ibid., p.

39). De fato, Schleiermacher avalia a tarefa do tradutor e do intérprete em termos de graus

distintos de aproximação e afastamento. Por exemplo, o intérprete pode se aproximar do

tradutor genuíno ao interpretar negociações em que ‘novas relações jurídicas são

determinadas’, o que exigiria o desempenho, ao menos em partes, de uma competência

associada ao tradutor genuíno. De qualquer forma, Schleiermacher admite a possibilidade de

um processo de equivalência em certo tipo de ‘tradução’ (na terminologia dele, interpretação).

Para Schleiermacher, quanto mais se tenha exercido a atividade criativa do autor em

sua livre combinação e impressão, mais se estará operando num domínio superior de arte,

carecendo o tradutor de habilidades especiais para realizar o seu trabalho. De acordo com o

filósofo, “o objeto não domina mais de forma alguma, mas é dominado pelos pensamentos e

pelo espírito, muitas vezes ele só surge através da enunciação e ao mesmo tempo só existe

com ela”. Aqui o filósofo diferencia o discurso do objeto, e por outro lado aproxima

pensamento e ‘discurso’. ‘Objeto’, para Schleiermacher, aqui se refere àquelas convenções e

regras de uso comuns a todas as culturas, do qual a palavra apenas representa um signo

arbitrário e que não impõe, na interpretação, desafios maiores à busca de expressões

equivalentes. Por outro lado, a opacidade entre as línguas, e conseqüentemente, os desafios e

exigências maiores impostas ao tradutor, se dariam mais naqueles domínios da arte e da

67 Schleiermacher, Discursos, pg. 33. Cf.,acima, pg. 30.

41

ciência em que o pensamento formaria uma unidade com o discurso. Para Schleiermacher, a

tradução se distingue totalmente da interpretação pelo seguinte fato:

Sempre que o discurso que ela [a tradução] deve expressar não estiver ligado a objetos ou situações exteriores que estão bem diante dos olhos, onde, pois, o enunciador pensa mais ou menos espontaneamente e pretende pronunciar-se, o enunciador está em dupla relação com a língua, e seu discurso só será bem entendido à medida que essa relação for bem compreendida. (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 39).

Ou seja, sempre que ocorrer um uso mais ‘abstrato’ da linguagem, haverá uma ‘dupla’

relação com língua, pois a equivalência semântica só era possível entre pensamento e

‘objetos’, e não pensamento e ‘discurso’. Isso decorre do fato de que cada pessoa é “dominada

pela língua que fala”, não sendo possível pensar nada que estivesse fora dos seus limites,

embora, por outro lado, pudesse moldar e influenciar a língua à sua maneira caso pensasse de

uma ‘maneira livre e independente’. Aqui, como já foi referido, está presente o paradigma

romântico da língua como elemento constitutivo da estrutura da consciência, assim como do

enunciado como expressão da individualidade de quem o produziu.

Todo discurso elevado, para o filósofo, deve apresentar esse duplo aspecto: o modo

como o enunciador é moldado pela língua, e o modo como essa é moldada e produzida pelo

enunciador68. É necessário compreender esta relação mútua a fim de perceber qual das formas

predomina no discurso, se força da língua, ou a inventividade do enunciador:

(...) só se entende o discurso como ação do enunciador quando, ao mesmo tempo, se sente onde e como a força da língua o dominou, para onde (...) os raios do pensamento o direcionaram, onde e como, em suas formas, a fantasia vagueante foi preservada. (...) só se entende o discurso como um produto da língua e como expressão de seu espírito quando, à medida que se sente, por exemplo, que somente um heleno poderia pensar e falar dessa forma (...). (ibid., p. 39).

O que Schleiermacher faz é justamente aplicar os princípios de interpretação

gramatical e interpretação técnica de sua hermenêutica, no sentido em que procura identificar

a compreensão do discurso conforme esse foi influenciado pela língua, e a compreensão do

discurso enquanto um produto do indivíduo pensante, o que significa determinar o aspecto

68 Neste aspecto Schleiermacher aproxima-se de Schlegel, na medida em que os textos de natureza estética ou filosófica representam um objeto mais desafiador e produtivo para a hermenêutica.

42

criativo em meio ao domínio da convenção lingüística. No Compêndio encontramos a

seguinte afirmação:

Tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com a totalidade da linguagem quer com o pensamento do autor, também em toda compreensão de um discurso há dois momentos: a sua compreensão como algo extraído da linguagem e como um ‘fato’ no pensamento daquele que fala. (cf. acima, p. 32).

Lembremos que os dois tipos de interpretação deveriam ser empregados em conjunto,

a fim de relacionar o discurso produzido pelo indivíduo dentro da totalidade da língua.

Neste ponto Schleiermacher destaca a dificuldade do papel do tradutor que deve lidar

com “produções de uma língua estranha”, considerando que a compreensão daquela relação já

é difícil quando realizada na mesma língua69. Há aqui uma vaga sugestão da tradução como

reduplicação da tarefa interpretativa, um corolário hermenêutico produtivo para a reflexão

tradutória, mas que Schleiermacher, como veremos, não mostra interesse em desenvolver.

Segundo Schleiermacher, só aquele que tiver se “apoderado da arte de compreender através

do conhecimento preciso de toda a vida histórica de um povo e da apresentação de algumas

obras de seus autores poderá desejar transmitir a seus compatriotas a igual compreensão das

principais obras da arte e da ciência (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 39)”. Poderíamos lançar

a hipótese de que o filósofo considera como pré-requisito da prática da tradução o domínio

dos métodos interpretativos, ou da ‘arte de compreender’, antes de se enfrentar os problemas

específicos colocados pela tradução. De qualquer forma, no que se refere aos problemas

específicos da interpretação gerados pela tradução de uma língua estrangeira, Schleiermacher

irá se ocupar quase exclusivamente com uma única questão, qual seja, a da opacidade entre as

línguas. Ecoando o persistente ceticismo romântico quanto à possibilidade uma ‘morada do

ser fora da língua’, o filósofo afirma que o tradutor não consegue oferecer nada além do que a

si próprio e a própria língua dos leitores ao esforçar-se em captar o espírito do autor.

Após questionar se tradução não seria um “ato tolo”, pelo fato dos ‘meios’ dos quais o

tradutor dispõe serem insuficientes, Schleiermacher inicia sua argumentação em direção a

uma solução do problema. Inicia falando sobre os tipos de tradução existentes, que tentam

travar conhecimento com as obras de línguas desconhecidas. Esses seriam a imitação e a

paráfrase, as quais abandonam a idéia de tradução apresentada pelo filósofo. Tais formas não

69 “Quanto mais não será elevada, quando produções de uma língua estranha estiverem em jogo!”. SMT, pg. 39

43

estão relacionadas com o verdadeiro sentido da arte e da língua, e tentam afastar ou evitar as

dificuldades presentes na empresa tradutória.

A paráfrase, utilizada para a linguagem científica, tentaria dominar a irracionalidade

presente nas línguas de maneira mecânica, ao acrescentar complementos limitados ou

ampliados àquelas palavras não existentes no idioma da tradução. Deste modo o conteúdo

seria apresentado de maneira limitada, mas a impressão estaria sendo negligenciada. Portanto,

neste procedimento, nem o espírito da língua traduzida nem o espírito da língua original

conseguem aparecer. A imitação, por sua vez, utilizada no ramo das belas artes, curva-se ante

a irracionalidade das línguas e reconhece a impossibilidade de reprodução de uma obra de arte

de uma língua para outra, de modo que a impressão é salva, mas a identidade da obra não,

sendo que o imitador não permite uma união entre o autor da obra e o leitor

(SCHLEIERMACHER, ibid., 41-42). Esses dois procedimentos, entretanto, apenas são

mencionados enquanto demarcadores de limite para o assunto do qual o filósofo pretende

tratar, pois não cabem dentro do conceito mais rigoroso de tradução associado à ampliação do

campo de ação de uma obra-prima sobre os leitores da língua do tradutor.

É partir deste ponto que Schleiermacher apresenta o que para ele constitui os dois

únicos modos de traduzir, empregados pelo tradutor que pretenda ‘conduzir o leitor a uma

apreciação tão completa quanto possível (do autor da língua original), sem tirá-lo da língua

materna'. (ibid., p. 43). Tais modos constituem em deixar o autor intacto e levar o leitor até o

ele, ou deixar o leitor intacto, e levar o autor até ele. No primeiro caso, o tradutor pretende

transmitir a mesma imagem, ou impressão que ele mesmo teve através do conhecimento da

língua de origem da obra; no segundo o tradutor produz um texto em sua própria língua da

forma como o autor produziria se falasse o mesmo idioma que ele (ibid., p. 45).

Schleiermacher considera dispensável discorrer sobre a tradução literal e livre, visto que os

dois métodos incorporam tal discussão.

Sobre o método de levar o autor até o leitor (também conhecido como domesticador,

ou etnocêntrico)70, o qual, segundo ele, é considerado o mais prestigiado e a mais

freqüentemente empregado, o tradutor deve manter o ‘zelo pela limpeza e perfeição da língua,

seguir a mesma leveza e naturalidade estilísticas louvadas em seu autor da língua

original’(ibid., p. 63). Em suma, deverá mostrar o autor da mesma maneira como este teria

70 Lawrence Venutti e Antoine Berman foram os autores que trabalharam, respectivamente, com os termos ‘tradução domesticadora’ e ‘tradução etnocêntrica’.

44

discursado no idioma do tradutor (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 65). A conclusão de

Schleiermacher, é que este método não passa de uma forma de imitação ou paráfrase

disfarçada, visto que indissociabilidade entre pensamento e expressão representaria um

obstáculo intransponível na tentativa de se ‘traduzir na forma como o autor mesmo tivesse

escrito se ele falasse a língua do tradutor’, empreendimento que considera fútil e vazio. Para o

filósofo, não há como ignorar a força formadora da língua, ‘que é uma coisa só com as

particularidades do povo, já que todo o saber é formado com e através da língua’.71

Sobre o método estrangeirizante, ou seja, aquele que procura dar ao leitor a impressão

da obra original, Schleiermacher comenta que é preciso primeiramente definir qual

compreensão da língua original que se quer imitar. Deve haver a sensação de

incomensurabilidade entre o pensamento do tradutor e a língua estrangeira a fim de que a

tradução se justifique.(ibid., p.47). Aqui, Schleiermacher se vale do exemplo hipotético do

tradutor que, plenamente familiarizado com a língua estrangeira e nela sentindo-se tão à

vontade quanto na língua materna, não conseguiria apresentar ou atingir sua compreensão,

tornado nulo o valor da tradução. É um caso bastante curioso, e bastante típico da crença

romântica na ampliação do seu horizonte espiritual a partir da escalada pelas diferenças.

Conforme vimos em sua hermenêutica, a compreensão não é mais tida como algo garantido,

como era para os iluministas, visto que a ‘incompreensão’ é inserida de um modo positivo, no

sentido de se buscar a construção da compreensão a todo instante. Na tradução, ao que parece,

a compreensão não só não é algo garantido, como há a exigência que ela não seja, a fim de

que a própria tradução se justifique enquanto uma prática de assimilação do elemento

estrangeiro. Gadamer, numa passagem proposta à explicação da fórmula hermenêutica de se

“entender melhor o autor do que ele mesmo”, faz um comentário que bem poderia se aplicar a

compreensão de Schleiermacher da tradução estrangeirizante:

Quem aprende a compreender a linguagem de um texto escrito em um idioma estrangeiro deverá adquirir uma consciência expressa das regras gramaticais e da forma de composição desse texto, recursos de que o autor lançou mão sem se dar conta, porque mora nessa língua e em suas mediações técnicas. (GADAMER, 2008, p. 264)

Embora Schleiermacher não acredite na possibilidade de se “compreender a linguagem

de um texto escrito em um idioma estrangeiro” a partir da assimilação dos seus recursos, é

71 “Em ninguém a língua fica montada apenas mecânica e externamente com mediante cintas”. In SMT, pg 67.

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justamente esta familiaridade que possui o autor com a própria língua, que não deve ser

almejada pelo tradutor. Visto que o leitor da tradução precisa ter a impressão de se deparar

com um texto de um autor estrangeiro, Schleiermacher, portanto, apenas considera válida a

compreensão do tradutor produzida a partir da estranheza.

Para Schleiermacher, a língua é um fenômeno histórico, cujo sentido equivale a um

sentido para sua própria história. A ciência e a arte são aqueles domínios através dos quais a

descoberta da língua é incentivada e aperfeiçoada, ou seja, as concepções geradas sob esses

domínios influenciam fortemente a formação do próprio idioma. Tal organicidade torna

desafiador o trabalho do tradutor, visto que a obra é animada pelo espírito da língua, e

representa a história da própria ‘descoberta’ do idioma. O tradutor, portanto, deverá perceber

quais palavras, quais combinações ainda lhe apareceram à primeira luz da novidade; (...) como elas se insinuaram na língua pela necessidade especial desse espírito [do autor]e por sua forma característica. (ibid., p. 51).

Segundo Schleiermacher, esta “observação determina substancialmente a impressão

que ele [o tradutor] capta” (idem). Comparemos essa compreensão realizada pelo tradutor

com aquela do intérprete. Nos Discursos Acadêmicos temos:

(...) então se deduzirá a intensidade de sua força produtiva [do autor] e sua força na língua, que ele não produziu somente obras isoladas, mas que um tipo fixo na língua nasce em parte com e por ele (...) (SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 40).

É exatamente a mesma articulação implícita do pressuposto de sua interpretação

técnica/psicológica. A percepção por parte do tradutor/intérprete deste ‘acréscimo criativo’

realizado pelo autor, depende da compreensão circular em que o estilo individual é colocado

em contraste com a totalidade da língua e com outras obras do mesmo gênero. Para

Schleiermacher, essas inovações operadas pelo indivíduo são absorvidas pela cultura geral e

acabam por fazer parte de seu estoque comum, imprimem um ‘tipo fixo’ na língua.

Para Schleiermacher, portanto, é tarefa da tradução transplantar a ‘forma característica

do espírito da língua e do autor’ para os leitores. Para transplantar a sensação do estrangeiro a

seus leitores, o tradutor ‘deverá se associar de forma exata às expressões do original

(SCHLEIERMACHER, SMT, p. 57)’. Neste sentido, a tradução estrangeirizante é a mais

46

desafiadora e profícua, porém goza de menos prestígio. Numa crítica ao modo francês de

traduzir, Schleiermacher afirma:

Essas reclamações de que uma tradução assim deveria ser necessariamente prejudicial à pureza da língua e ao seu desenvolvimento tranqüilo foram muito ouvidas. (...) Em todos os casos, dessa difícil tarefa conclui-se que na língua materna dever-se-ia representar o estranho. (ibid., p. 59).

Para o sucesso de tal empreendimento, as traduções estrangeirizantes devem ser

praticadas em massa, pois é necessário que a diferença seja ressaltada de modo determinado a

fim de que o leitor saiba diferenciar a ‘origem helênica da romana, ou a italiana da

espanhola’. Como diz Pohling,

a solução sugerida “de que a tradução traz consigo um certo colorido estranho”, leva a uma abertura problemática das próprias fronteiras lingüísticas: uma língua do tradutor (Übersetzersprache) deveria, portanto, equilibrar as diferenças entre as línguas de tal forma, qe oferecesse ao leitor tantas variantes de um certo alemão de tradutor (Übersetzerdeutch) quantas línguas estrangeiras houvesse. Haveria, portanto, diversas variantes do alemão de tradutor (Übersetzerdeutsch) correspondentes ao número de línguas estrangeiras traduzidas. (POHLING, 1971, p. 77)

Segundo Schleiermacher, o leitor da tradução só poderá ser equiparado ao leitor da

obra original quando aquele

além do espírito da língua, puder intuir e sucessivamente com mais certeza apreender o espírito peculiar ao autor na obra, para o que naturalmente o talento da visão individual é o único órgão, mas para este é indispensável uma massa ainda maior de comparações (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 61).

Como vimos em sua hermenêutica, a comparação entre diversos gêneros da mesma

obra é um requisito da interpretação técnica, necessário para aferição do estilo individual. É

necessário relacionar o autor com as formas literárias estabelecidas, a fim de se visualizar a

atividade do escritor, em que medida sua originalidade emerge do interior da forma literária

fixa (cf. acima, p. 36). Muito embora a ênfase psicologista de Schleiermacher esteja presente

somente em seus Discursos Acadêmicos, a menção que ele faz neste trecho sobre o ‘talento da

visão individual’ poderia aproximá-lo da interpretação psicológica, por enfatizar o aspecto

intuitivo, da congenialidade do intérprete/tradutor.

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Em seguida, o filósofo ressalta que mesmo sendo empregado o mesmo método,

diferentes traduções poderão surgir, sendo que cada uma terá um valor relativo e objetivo por

si, havendo uma complementação mútua (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 63). A

compreensão das obras estrangeiras, assim como certa flexibilidade à língua materna são as

condições para que este tipo de tradução se realize.

O método de tradução estrangeirizante possui, segundo Schleiermacher, a função de

aperfeiçoar a língua alemã através do contato multilateral com o estrangeiro, dada a

predisposição ao estrangeiro do próprio do povo alemão. Reunir todos os tesouros culturais

seria o objetivo da tradução estrangeirizante em grande escala.

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Conclusão

Antoine Berman, em uma nota de A prova do estrangeiro, comenta: “No domínio da

tradução, os limites da teoria hermenêutica – de Schleiermacher a Steiner – parecem ser os

seguintes: dissolver a especificidade do traduzir fazendo dele um caso particular de processo

interpretativo” (BERMAN, 2002, p. 278). Mesmo que Berman admita ser indispensável o

trabalho de interpretação do texto a ser traduzido, segundo ele, constitui uma evidência

enganosa subsumir completamente a tradução a um ato de compreensão, ou seja, nela

enxergar apenas uma aplicação específica da tarefa interpretativa.

Procuramos, neste trabalho, justamente apontar para uma possível correspondência

entre as reflexões operadas no campo da teoria da interpretação e aquelas que contornam o

problema da tradução, de modo a identificar a existência de um “dogma hermenêutico”

comum a ambas as áreas.

Nosso esforço inicial consistiu em apresentar um panorama geral da hermenêutica e da

tradução no Iluminismo e Romantismo alemão, de modo a salientar a transformação de uma

noção compreensiva e seu reflexo no discurso sobre a prática tradutória. Vimos que alguns

pressupostos da hermenêutica iluminista, cuja noção de apropriação de significado estava

ligada à adequação do autor com um conteúdo universal, estão presentes no modo como se

enxergava a tradução, a qual deveria se apropriar do ‘conteúdo significativo’ do original,

adequando-o às convenções do gosto e da época. O dogma hermenêutico comum a esses

domínios, portanto, consiste na crença num significado atemporal e universal subjacente e

aquém da linguagem. Tal exposição serviu para que demarcássemos a ruptura representada

pela revolução romântica com a hermenêutica e prática tradutória prévias, a fim de fornecer o

contexto do qual a obra de Schleiermacher emerge.

Com os românticos, a tarefa compreensiva passa pelo crivo do medium poético por

excelência – a linguagem –, não mais considerada a representação de um conteúdo universal

subjacente, mas o próprio fator constitutivo da compreensão. Enquanto autores como

Friedrich Schlegel e Novalis buscam elevar a linguagem além de seu sentido comum através

de sua depuração poética, sendo a tradução um desdobramento possível desta tarefa,

Humboldt e Schleiermacher buscam, na tradução, contornar o problema do hiato entre as

línguas. Segundo Gadamer, em Verdade e Método: “Devemos ao Romantismo alemão o fato

de ter antecipado a significação sistemática que possui o caráter linguageiro (Sprachlichkeit)

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da conversação em relação a qualquer ato de compreender. Ele nos ensinou que compreender

e interpretar são, no final das contas, uma única e mesma coisa.” (GADAMER, 2008, p.273).

De fato, ao lançar o precedente da ‘estrutura prévia da compreensão’, Schleiermacher

assinala o caráter inacabado de toda interpretação, a qual constitui uma tarefa aproximativa,

dependente de um movimento de ir e vir entre o contexto geral da linguagem e o pensamento

individual. Enquanto a hermenêutica clássica concebe métodos específicos para abordar o que

se julgava universal, Schleiermacher concebe um método universal para abordar o específico.

É possível dizer que o seu discurso sobre tradução se situa no âmbito de sua teoria

hermenêutica, na medida em que questões relativas à compreensão do estilo do autor,

contextualização histórica, comparação entre gêneros e funcionamento da linguagem estão

presentes nos dois âmbitos. Neste sentido, há uma consonância entre discurso sobre tradução

e teoria hermenêutica. Entretanto, o aspecto mais proeminente de seu discurso tradutório, que

é a validação da tradução estrangeirizante como a única forma legítima de se entrar em

relação com outra língua estrangeira, não indica a aplicação de uma lógica compreensiva da

linguagem. De fato, o método estrangeirizante de tradução não só é um corolário do topos

romântico acerca da indissiociabilidade entre língua e pensamento, quanto uma tentativa de

introduzir um elemento que visava uma modificação progressiva da língua, tendo um

propósito eminentemente político.

Como vimos, a acuidade crítica dos românticos em outros domínios teóricos era mais

desenvolvida do que suas idéias sobre tradução, a qual acabava sendo tratada como mais um

item em seu repertório de temas místico-especulativos, ou da sua agenda político-cultural

associada ao ideal da Bildung. Que generalizações teóricas de maior validade não tenham sido

realizadas, portanto, diz respeito ao fato de que nenhum teórico dispensou ao problema da

tradução, então incipiente, os mesmos esforços aplicados em outras áreas do conhecimento,

visto que a tradução tampouco era vista à luz de todas as conseqüências teóricas

desenvolvidas no campo da hermenêutica e da teoria da linguagem. Uma das razões

possivelmente reside no fato de que as questões de tradução tinham um forte apelo cultural-

programático, algo que talvez interessasse mais aos românticos, naquele contexto de guerras

napoleônicas e definição da própria identidade cultural, do que discutir os pressupostos

teóricos da disciplina.

A crença no caráter monolítico da língua é outro obstáculo ao desenvolvimento de sua

teoria tradutória, pois considera que qualquer tipo de tradução que não seja o estrangeirizante

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está fadado a um tipo de compreensão falha, mal-sucedida, reprodutora de um modelo que em

nada contribui lingüística e culturalmente. Tanto o dogma romântico lingüístico quanto a

premência de seu programa político, limitaram uma compreensão maior da tradução, e

permearam de fatores subjetivos a pretensão de objetividade de suas observações.

A dimensão dialogal da hermenêutica de Schleiermacher, na qual a compreensão é

construída a partir de um ‘colocar-se em acordo’ pela linguagem, não se estende às suas idéias

sobre a tradução, dada a impossibilidade de diferentes línguas ‘colocarem-se em acordo’. O

discurso sobre tradução do filósofo, portanto, não constitui um desenvolvimento sistemático

exaustivo de sua hermenêutica, mas em certo ponto, representa uma ruptura com ela, na

medida em que não vê na atividade tradutória um tipo especial de interpretação, mas um

instrumental ampliador da língua e cultura alemãs. Se, por um lado, a unilateralidade da

tradução estrangeirizante, conforme o sentido positivo apontado por Berman, salienta o fato

de que “o modo de leitura ‘normal’ de um texto estrangeiro é o de sua tradução” (BERMAN,

2002, p. 279) por outro, ela representa a recusa de compreender de forma objetiva o problema

da tradução, e, portanto, de reconhecer o seu potencial inesgotável.

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