hermeneutica, gadamer e heidegger

Upload: primolevi

Post on 04-Feb-2018

233 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    1/23

    Hermenutica filosfica: entre Heidegger e Gadamer!

    Philosophical Hermeneutics: Between Heidegger and Gadamer!

    Luiz Rohden1

    Professor Dr. do Curso e do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Unisinos.

    Pesquisador do CNPq

    E-mail: [email protected]

    [...] trata-se de dons e talentos diferentes. Em primeiro lugar, eu no tenho naturalmente aquela potncia

    mental prodigiosamente audaz com a qual Heidegger filosofava. Sempre disse que uma das diferenas

    fundamentais entre Heidegger e eu reside na escrupulosidade da interpretao. (Gadamer apud Dutt, 1998,

    p. 59)

    A filosofia hermenutica coisa de Gadamer.(Heidegger apudGrondin, 2001, p. 21)

    Resumo: Refletiremos neste artigo sobre temas e questes filosficas relativas concepo de

    hermenutica da facticidadecunhada por Heidegger e de hermenutica filosficadesenvolvida porGadamer. Alm de explorar alguns fios comuns que tecem o projeto filosfico de ambos,

    propusemo-nos aprofundar as idiossincrasias da hermenutica filosficacom o escopo de assinalar

    algumas rupturas relativas filosofia heideggeriana. Contudo, como objetivo ltimo, visamos

    fundamentar a tese de que a hermenutica se alimenta e se justifica plenamente do tensionamento

    dialtico-dialgico entre as duas perspectivas abordadas, segundo o pressuposto de que uma possui

    como horizonte de fundo a metafsica e a outra a filosofia prtica nos moldes propostos pelo

    estagirita.

    Palavras-chave:Hermenutica, Facticidade, Metafsica, Filosofia Prtica, Heidegger, Gadamer.

    1Autor dos livros: Arte retrica de Aristteles; Hermenutica filosfica; Interfaces da hermenutica.Estetrabalho recebeu o apoio do CNPq

    14

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    2/23

    Abstract: This article discusses philosophical topics and issues related to the view of the

    hermeneutics of facticity coined by Heidegger and of the philosophical hermeneutics developed by

    Gadamer. Besides exploring some common threads that form the philosophical project of both

    thinkers, it elaborates on the idiosyncrasies of philosophical hermeneutics in order to point out some

    ruptures with Heideggers philosophy. Ultimately, however, the article intends to underpin thethesis that hermeneutics is fully nurtured and justified on the basis of the dialectical-dialogical

    tensioning between the two approaches discussed, according to the assumption that one perspective

    is developed against the backdrop of metaphysics and the other one against the backdrop of

    practical philosophy as proposed by Aristotle.

    Keywords:hermeneutics, facticity, metaphysics, practical philosophy, Heidegger, Gadamer.

    15

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    3/23

    Podemos dizer que as pesquisas sobre hermenutica so ainda relativamente

    incipientes se comparadas com o andamento de outras abordagens filosficas. Sintoma

    dessa incipincia a vigncia de imprecises relativas s distines entre a hermenutica

    cunhada por Heidegger e a desenvolvida por Gadamer.

    verdade, sim, que ambas comungam de muitos conceitos, mas verdade tambm

    que so propostas filosficas distintas. Com relao ao mtodo filosfico parece que

    Heidegger , por assim dizer, mais analtico, aristotlico, ao passo que Gadamer pauta-se

    pelo dialgico, dialtico, socrtico-platnico. Embora o projeto filosfico gadameriano no

    seja compreensvel nem factvel sem a contribuio de Heidegger, ele possui

    especificidades e uma originalidade que precisa ser levada em conta quando nos

    adentramos no terreno da hermenutica. Da que, sem a pretenso de esgotar a questo,

    fazendo um recorte na histria da filosofia, propusemo-nos explicitar algumasaproximaes e distanciamentos entre a proposta hermenutica de ambos.

    Assim, ao explicitarmos e aprofundarmos algumas idiossincrasias relativas

    identidade e s diferenas entre ambos, projetamos justificar nossa hiptese de que da

    tenso dialtica de fundo entre essas duas perspectivas que se nutre a hermenutica

    filosfica. Pressuposto e corolrio disso nossa tese de que a hermenutica filosfica de

    Gadamer extrapola as limitadas interpretaes que pretendem aloc-lo na obra de

    Heidegger ou tomam-na como simples repetio do mestre. Na verdade, Gadamer foi um

    discpulo de Heidegger no sentido autntico do termo na medida em que o superou e

    conferiu uma identidade prpria hermenutica. E, finalmente, projetamos justificar,

    inclusive, a necessidade de ler-se esta ltima luz da proposta heideggeriana a fim de

    recuperar, reconstruir e reelaborar um projeto mais amplo de hermenutica, ou seja, de

    metafsica marcada pela facticidade, de modo que ela [hermenutica gadameriana] no seja

    reduzida nem sucumba a uma filosofia prtica.

    Para alcanar esse escopo, articularemos nossa reflexo em torno de trs

    abordagens: inicialmente desvendaremos aspectos marcantes dos primeiros encontros de

    Gadamer com Heidegger (1); a seguir explicitaremos aspectos comuns entre a

    hermenutica de ambos e apresentaremos a apropriao crtica de questes heideggerianas

    por parte do discpulo (2); e, ao final, aprofundaremos diferenas [distines e rupturas] da

    proposta gadameriana em relao heideggeriana (3). Nosso objetivo precpuo de cunho

    16

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    4/23

    especulativo de modo que os dados e os conceitos sero apresentados em funo das

    hipteses de investigao apontadas no pargrafo precedente.

    1. Encontros marcantes com Heidegger

    [...] tinha o temor de que no fosse suficiente o que estava fazendo, de que a seus olhos fosse trivial ou de

    que ele o houvesse dito bem melhor ainda, ou de algo semelhante. (Gadamer apud Grondin, 2001, p. 356)

    Em 1992, Paul Natorp apresentou a Gadamer o manuscrito de Heidegger

    Interpretaes de Aristteles,assinalando com isso o incio da presena marcante em sua

    vida (Gadamer, 1996, pp. 248-249). Em 1923, Gadamer assistiu todos os cursos de

    Heidegger, totalizando cinco (Grondin, 2001, p. 141).2

    Aps haver prestado exame de doutorado, em 1922, com a teseDas Wesen der Lust

    nach den platonischen Dialogen, no ano de 1925 iniciou seus estudos sobre filologia

    clssica prestando exame em 1927, com um trabalho sobre a poesia de Pndaro, tendo P.

    Friedlnder, E. Lommatzch e Heidegger como examinadores. Apenas ento Heidegger3se

    mostrou satisfeito com os xitos e a capacidade filosfica4 de Gadamer, oferecendo-se

    ento para orient-lo na habilitao acadmica em filosofia. Surpreso, Gadamer aceitou seu

    convite e sob sua orientao escreveu o trabalho Interpretao do Philebo de Plato,

    2 Sobre isso ele mesmo diz-nos em Auto-apresentao de Hans-Georg Gadamer (concludo em 1975)(Gadamer, 2002, pp. 545-580): Mas o mais importante aprendi-o de Heidegger. Recordo-me sobretudo do

    primeiro seminrio em que participei. Foi no ano de 1923, ainda em Friburgo, sobre o livro VI da tica aNicmaco. A phronesis, a Arete da razo prtica, allo eidos gnoseos, um gnero de conhecimentodiferente (p. 552); Heidegger me mostrou que esse novo solo de filosofar dialtico comum a Plato eAristteles no s sustenta a doutrina aristotlica das categorias como tambm pode explicar seus conceitosde dynamis e de energeia (p. 553); Isso porque a interpretao dos gregos por Heidegger implicava um

    problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo (p. 554); Mas Plato continuou sendoo centro de meus estudos (p. 555); Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodolgico:esclarecer a funo da dialtica platnica a partir da fenomenologia do dilogo e a doutrina do prazer e suasformas de manifestao mediante uma anlise fenomenolgica dos dados da vida real (p. 556).3Em carta a Lwith, em 1923, Heidegger teceu o seguinte comentrio sobre Gadamer: [...] um tal doutorGadamer [...] passa alguns dias conosco na cabana [...] muito versado, muito inteirado das falaesacadmicas, muito impressionvel, seu pai reitor em Marburgo [...] repete conceitos e frases de outros; pormest to desamparado com seu mestre (Heidegger apud Grondin, 2001, p. 153).4O xito do exame de 20 de julho de 1927 foi um ponto de virada importante na carreira acadmica deGadamer. Havia adquirido um slido conhecimento de base que dali em diante permitir-lhe- ia estar alturados melhores de sua disciplina, que ao largo de uma dcada seria tanto a filosofia como a filologia clssica(Grondin, 2001, p. 173); ou seja, o fato de que Gadamer havia conseguido impor-se em outra disciplina era

    para Heidegger uma prova de seu talento e independncia. Queria ter discpulos desta classe (Grondin, 2001,p. 174).

    17

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    5/23

    publicado em 1931 em verso revisada com o ttuloA tica dialtica de Plato. Heidegger

    apreciou e elogiou a interpretao que seu discpulo fez da proposta de tica de Plato

    (Grondin, 2001, pp. 187-188).

    Passados alguns anos, o prprio Heidegger lamentou e se assombrou com a demora

    de Gadamer em escrever um livro passando a cobrar isso dele. 5Sobre a tardia apario de

    Verdade e mtodo [1960], afirmou: sempre tinha a desgraada sensao de que Heidegger

    me espiava por cima dos ombros (Gadamer apud Grondin, 2001, p. 491). Alm desse

    fator, por assim dizer psicolgico, ele confessou que durante muito tempo o escrever

    constitua um verdadeiro tormento (Gadamer apudGrondin, 2001, p. 491). Por isso, por

    muitos anos, dedicou-se interpretao de obras poticas e publicaes pedaggicas e,

    por mais meritrias e necessrias que fossem na situao de ento, o fato que Gadamer

    se evadiu, com elas,

    da crescente presso de oferecer uma obra prpria. Ademais,durante muito tempo no se

    considerou altura de semelhante tarefa. Seu lado forte nunca havia sido a construo

    conceitual, seno a concretizao fenomenolgica, na conversao e na dedicao

    histria. Foi justamente este dom da conversao hermenutica o que desenvolveu em sua

    obra principal em forma de uma hermenutica geral.(Grondin, 2001, p. 355, os itlicos

    so meus)

    Enfim, a propsito da nossa reflexo, retomemos aqui a pergunta que Grondin fez a

    Gadamer: sua relao com Heidegger , naturalmente, uma relao muito complexa [...]

    dependendo da perspectiva, pode-se consider-lo como um seu aperfeioador, ou sua

    hermenutica como uma alternativa a Heidegger. Em que consiste a sucesso e em que

    consiste a concepo antagnica? Como o senhor v, em geral, a sua relao com

    Heidegger? (Grondin apud Almeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 219). Embora

    Gadamer tenha respondido, rapidamente, a essa questo, assumimos aqui como tarefafilosfica elaborar nossa resposta pergunta em questo, a partir do nosso horizonte,

    explorando duas linhas de investigao: por um lado explicitaremos fios comuns que

    entrelaam os projetos de ambos e, por outro, aprofundaremos dimenses distintas e

    rupturas do discpulo para com seu mestre.

    18

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    6/23

    2. Identidade: apropriao de temas e questes heideggerianas

    Entre Husserl e Heidegger e Hegel(Gadamer apud Kusch, 2001, p. 251)

    inquestionvel a vigncia de muitos temas e proposies filosficas desenvolvidas

    por Heidegger na hermenutica desenvolvida por Gadamer. patente tambm a admirao

    desse para com aquele como nos revelou em entrevista a Grondin:

    Heidegger no pode ser deixado de lado em minha trajetria [...] Fui admirador de

    Heidegger [...] O que eu mais agradeo a Heidegger, foi ele me ter forado a estudar

    filologia clssica; pois, atravs disso, aprendi a acompanhar mais disciplinadamente a

    tendncia a ele peculiar, a saber, aquela de mostrar, a partir da lngua, o que propriamente

    a gnese de conceitos [...] eu admirava a imaginao e a fora do seu pensar. (Gadamer

    apudAlmeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 220)6

    Isso corroborado pela afirmao de M. Kusch (2001, p. 254): indubitavelmente o mais

    eminente dos filsofos alemes que se basearam em Husserl e Heidegger.

    Sobre a hermenutica da facticidade. Ao explorarmos a presena da filosofia de

    Heidegger em Gadamer vem-nos, primeiramente, mente as reflexes que o primeiro

    elaborou em torno do que ele designou de hermenutica da facticidade.7Resumidamente,

    ela trata de uma espcie de luta contra a autoalienao em nome de um estar desperto

    humanoe que deveria caracterizar todo labor filosfico de modo que

    a tarefa da hermenutica fazer acessvel, em seu carter ntico, a existncia prpria em

    cada caso existncia em questo, faz-la partcipe dela mesma, investigar a autoalienao

    5Dizia Heidegger (apudGrondin, 2001, p. 356) ento: Gadamer deve escrever uma vez um livro.6Nela Gadamer ainda comentou: Eu nunca havia acreditado que ele ousasse jamais entrar na poltica. Queno tinha talento para isso, era por demais evidente. Por isso, no me surpreendi muito de que isto fracassasse.-me tambm bastante claro que Heidegger foi seduzido ao seu erro poltico atravs daquela sua previso dodomnio da revoluo industrial sobre a humanidade. Isto, ele o viu muito bem. De fato, nesse ponto, omenino campons de Messkirch foi muito mais vidente que ns que, no sendo camponeses, desde cedovimo-nos adestrados no e para o clima da civilizao (apudAlmeida, Flickinger, & Rohden, 2000, pp. 220-221).

    19

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    7/23

    com a qual a existncia est castigada. Na hermenutica se esboa para a existncia a

    possibilidade de voltar-se sobre si mesma e de compreender-se a si mesma. (Grondin, 2001,

    pp. 147-148)

    Em Ser e Tempo, Heidegger aprofundou a noo de hermenutica da facticidade,

    isto ,da existncia humana fctica, constatvel, o que contribuiu enormemente para que

    a hermenutica se tornasse, aos poucos, em uma verdadeira koinda filosofia (Gadamer

    apud Grondin, 2001, p. 26). Essa apropriao da noo de facticidade marcou

    decisivamente a hermenutica de Gadamer que, por sua vez, conferiu-lhe uma concepo

    dialgica e tica que pode considerar-se j com uma correo hermenutica a Heidegger

    (Grondin, 2001, pp. 184-185). Diante do fato de que o prprio Heidegger acabou por

    abandonar e, inclusive, rechaar essa terminologia, seu discpulo teceu o seguintecomentrio:

    Heidegger foi o primeiro a abrir-nos os olhos para o fato de que neste assunto ns temos

    que o abordar relativamente ao conceito de Ser. Sem dvida Dilthey, Bergson e Aristteles

    contriburampara que Heidegger pudesse pensar o ser no horizonte do tempo e a partir da

    mobilidade da existncia humana, que se desenvolve em direo ao seu futuro e provm de

    sua origem. Desse modo fez do compreender um existencial, isto , uma determinao

    categorial bsica de nosso ser-no-mundo. (Gadamer apudDutt, 1998, pp. 26-27)

    No bojo, pois, da noo de facticidade encontra-se explicitado e justificado o tema

    do tempo, isto , da historicidade. Ora, esse trao pertence espinha dorsal da hermenutica

    gadameriana e se encontra desdobrado, de forma patente, no neologismo

    Wirkungsgeschichte [histria efeitual]. Segundo M. Kusch, em certo sentido, a

    historicidade dos seres humanos consiste em que eles no so nada mais do que um

    elemento sem poder no curso da histria de modo que, assim, analogamente noo

    heideggeriana do Ser como determinante da condio humana, os seres humanos so

    ocasionalmente caracterizados por Gadamer como estando sob a tutela da histria (Kusch,

    7 Obra publicada: Heidegger, M., Ontologie (Hermeneutik der Faktizitt). Band 63. Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 1995. Traduo espanhola: Ontologa: Hermenutica de la facticidad. Traduccin deJaime Aspiunza. Madrid: Alianza Editorial, 2008.

    20

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    8/23

    2001, p. 256). Constata-se, sim, uma espcie de tutela, pois no temos controle total sobre a

    tradio, de maneira que somos determinados, em grande parte, por ela.

    Vinculado ao tema da facticidade, Gadamer desenvolveu a noo de fuso de

    horizontes [Horizontverschmelzung] segundo a qual o intrprete, em seu encontro com a

    tradio, marcado pela temporalidade ao mesmo tempo em que instaura um horizonte

    mais amplo. Ora, ao falar

    mais precisamente da fuso de horizonte do intrprete com o horizonte do texto, levanta-se

    a questo sobre quem o agente ou o sujeito autor da ao de fundir. Em alguns contextos,

    a resposta de Gadamer [...] parece ser que a fuso de horizontes, longe de ser de autoria do

    intrprete, obra da tradio ou, mais especificamente, da linguagem [...] aqui,

    naturalmente, somos lembrados das afirmaes de Heidegger de que a linguagem fala por

    ns e que ns deveramos aceit-la como nossa mestra. (Kusch, 2001, pp. 256-257)

    Dito de outro modo, Gadamer parece estar dizendo que o horizonte dos intrpretes

    nunca estabelecido por eles. Os intrpretes dependem da tradio, porque todos os seus

    interesses com relao a certas questes e repostas a determinado texto so pr-delineadas

    pela histria efeitual [Wirkungsgeschichte] (Kusch, 2001, p. 257) no que, em parte, tem

    razo. Contudo, ao aplicarmos as noes de fuso de horizonte e de histria efeitual ao

    modelo estrutural do jogo filosfico, percebemos que a determinao sempre relativa

    visto que, para jogar, o sujeito precisa se submeter s suas regras mas necessita tambm

    agir, criar jogadas instaurando algo novo que no existia nem poderia ser previsto a priori.

    Sobre a crtica ao iluminismo.Podemos dizer que ambos se encontram na esteira

    dos filsofos crticos do iluminismo, ou seja, da absolutizao do poder da razo clara e

    objetiva, embora a crtica de Heidegger cincia moderna, tcnica, parea ser mais

    contundente e incisiva que a de seu discpulo, para quem

    o iluminismo no pode ser considerado uma concepo errada do lugar dos seres humanos

    na histria. Afinal, o iluminismo destacou o papel do sujeito-agente e sua tarefa de libertar-

    se da tradio e do preconceito, isto , sua tarefa de determinar sua prpria histria. Em

    plena concordncia com a viso heideggeriana do iluminismo, Gadamer sugere em alguns

    lugares que a meta de sua hermenutica filosfica uma reabilitao do preconceito e da

    21

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    9/23

    autoridade e acusa o iluminismo de ter um preconceito contra o prprio preconceito.

    (Kusch, 2001, p. 257)

    Importa aqui deixar claro que a crtica e a desconfiana de Gadamer no se dirige

    nunca contra a cincia mesma, porque ela uma necessidade, mas contra a fascinao, o

    deslumbramento e o aturdimento que provoca sua divinizao. O metodicamente

    controlvel s abarca uma nfima parte de nossa experincia de vida (Grondin, 2001, p.

    376). A crtica de Heidegger em relao tcnica, aos olhos, de Gadamer, foi formulada

    corretamente: ele tem razo quando diz que no a tcnica o perigo, mas a fascinao que

    advm dela. a essa que se precisa ultrapassar (Gadamer apudAlmeida, Flickinger, &

    Rohden, 2000, p. 221).

    Sobre o conceito de verdade. Ambos estiveram s voltas com o conceito de verdadeprocurando desvencilh-lo de uma viso e entendimento cientficos. Em entrevista a C.

    Dutt, Gadamer reiterou seu propsito filosfico assim: o essencial sempre isto: o mtodo

    no define a verdade. No a esgota (Gadamer apudDutt, 1998, p. 54). Essa uma das

    pistas para lermos sua obra e percebermos sua relao com a proposta filosfica de

    Heidegger. elucidativa, para esse propsito, a afirmao de Hintikka: qual a relao

    entre verdade e mtodo? Para Heidegger, no existia nenhum mtodo por meio do qual se

    pudesse alcanar a verdade [...] Pode-se somente estar aberto verdade (Hintikka, 2000, p.

    492) ao passo que, para Gadamer, a relao entre verdade e mtodo no de excluso mas

    de tenso complementar.

    nesse sentido, tambm, que, para Apel e Habermas, Gadamer considerado um

    continuador direto do pensamento heideggeriano e, na melhor das hipteses, caracterizam

    a hermenutica de Gadamer como uma urbanizao da provncia heideggerianavisto que

    ele, num certo sentido, reformula a desajeitada metafsica postal de Heidegger em termos

    mais familiares (Kusch, 2001, p. 259). Em parte sim, mas no assim que a hermenutica

    filosfica de Gadamer deve ser compreendida pois, ao mesmo tempo que urbanizou aprovncia heideggeriana, ele instituiu, gradualmente, sua prpria concepo de

    hermenutica filosfica.

    Sobre o conceito dephrnesis. Outro conceito vital da filosofia de Heidegger o da

    phrnesis de Aristteles e que foi tema de um seminrio ministrado por ele em 1923, o

    qual, por sua vez, causou impacto determinante em Gadamer e passou a tecer seu projeto

    22

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    10/23

    hermenutico (Grondin, 2001, p. 148), de modo que no foi por acaso que escreveu um

    texto intitulado Hermenutica como tarefa terica e prtica (Gadamer, 2002, p. 349).

    Basta um rpido contato com seu projeto filosfico para perceber que conceito dephrnesis

    constitui a espinha dorsal do procedimento e da estrutura da hermenutica filosfica a qual,

    pensamos, pode ser designada como uma filosofia prtica,8 segundo a perspectiva do

    estagirita.

    Enfim, h muitos outros traos prprios da hermenutica filosfica de Gadamer que

    constituem uma apropriao da filosofia de Heidegger. Nosso escopo aqui no de esgotar

    a releitura que o discpulo fez do mestre, mas mostrar algumas verdades hereditrias que

    revelam a intimidade entre ambos. Debrucemo-nos agora sobre as distines e rupturas do

    primeiro em relao ao segundo.

    3.

    Diferenas: distines e rupturas

    Isto no mais Heidegger.9

    O prprio Heidegger, em uma carta a O. Pggeler de 5/1/1973, assinalou uma

    diferena bsica entre ele e seu discpulo: a filosofia hermenutica coisa de Gadamer

    (Heidegger apudGrondin, 2001, p. 21). Com certa ironia e ceticismo ele ps um sinal de

    interrogao pretenso universalizante da hermenutica gadameriana em relao

    filosofia do ser: em Heidelberg est Gadamer que cr poder solucionar tudo com a

    hermenutica (Heidegger apudGadamer, 2004, p. 56).

    Em uma das ltimas entrevistas de Gadamer, Vietta nos apresenta uma breve

    caracterizao psicolgica de ambos que vem a calhar bem com o propsito desse momento

    da nossa reflexo relativa s distines entre ambos:

    [...] quando Heidegger falava, seu olhar frequentemente no se dirigia ao interlocutor. Seuolhar, antes, se abria a essa amplitude de um espao espiritual sobre o qual pensava e desde

    cuja intuio falava. Inclusive quando aclarava um assunto filosfico, como o da

    fenomenologia, seu olhar no se dirigia tanto ao interlocutor quanto a aquela forma

    8 Cf. Rohden, 2008, pp. 137-153). Alis, a propsito disso, tenho a impresso que h um certo grau deparentesco entre hermenutica e certas correntes pragmticas.

    23

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    11/23

    espiritual sobre a qual havia posto os olhos e que pretendia explicar. Com frequncia o

    olhar de Heidegger abandonava o espao do dilogo e oscilava em uma dimenso espiritual

    em relao ao qual abria o dilogo. O olhar de Gadamer, no dilogo, sempre se dirigia ao

    interlocutor. (Vietta apudGadamer, 2004, p. 29)10

    3.1. Com relao ao tema da tradio

    Com relao noo de conscincia histrico-efeitualproposta e desenvolvida por

    Gadamer, Heidegger mesmo considerou-a como no sendo mais heideggeriana (Kusch,

    2001, pp. 255-256). Sabemos tambm que ela est imbricada, em Gadamer, com a noo de

    fuso de horizontese fato de ele conceder

    noo de horizonte uma posio de destaque em sua hermenutica j , naturalmente, um

    claro sinal da influncia de Husserl. Podemos apreciar a desaprovao de Heidegger

    particularmente pelo exame de alguns outros pronunciamentos de Gadamer sobre essa

    noo. Ele no s fala de fuso de horizontes como um evento controlado pela linguagem

    ou pela tradio. Ele tambm fala de ato consciente desta fuso como a tarefa da

    conscincia histrico-efetiva. (Kusch, 2001, p. 260)

    Na esteira de Heidegger, Gadamer confere uma espcie de sujeio tradio noprocesso defuso de horizontes, porm, distingue-se dele e se aproxima mais de Husserl ao

    defender tambm a atuao consciente desta fuso como a tarefa da conscincia

    histrico-efetiva (Kusch, 2001, p. 259) enquanto um processo similar ao do dilogo.

    Assim, para Gadamer, todo encontro com a tradio que ocorre dentro da conscincia

    histrica envolve a experincia de tenso entre o texto e o presente [...] a conscincia

    histrica tem clareza de que ela diferente e, por isso, distingue o horizonte da tradio do

    seu prprio horizonte o que mostra, de acordo com Kusch, a idiossincrasia da posio

    gadameriana sobre fuso dialgica dos horizontes e que suficiente para apontar o que

    9Isso o que Heidegger (apud Kusch, 2001, p. 251) diz sobre a obra Verdade e mtodo.10Na mesma entrevista ainda, Vietta nos relata: os temas sobre os quais conversava com Heidegger em meustempos de estudante giravam em torno da situao da universidade, que Heidegger via criticamente, efrequentemente tambm em torno das perspectivas atuais e futuras de uma sociedade que Heidegger viadominada pela tcnica, por sua imposio [Gestell]. Seu olhar tinha algo de visionrio. Parecia explorar as

    perspectivas de futuro de uma humanidade crescentemente determinada pela tcnica (Gadamer, 2004, p. 30).

    24

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    12/23

    Heidegger deve ter considerado como um desvio crucial de sua prpria filosofia (Kusch,

    2001, p. 260). O fato que, na contramo da proposta filosfica heideggeriana

    [...] o reemprego que Gadamer faz da noo de conscincia, depois de Heidegger ter

    mostrado que esta noo est inevitavelmente vinculada ao esquema sujeito-objeto, precisa,

    aos olhos de Heidegger, ser decepcionante. Contudo, o mais importante que Gadamer

    parece adotar no somente a noo como tambm o prprio esquema obsoleto. (Kusch,

    2001, p. 260)

    Aqui parece que estamos s voltas com uma diferena e um avano do projeto

    gadameriano em relao ao heideggeriano. Podemos dizer que, no esforo titnico de

    Heidegger para superar a metafsica da subjetividade, ele acabou por dissolver a noo de

    sujeito no Ser e, por assim dizer, o impessoalizou. Em nossa opinio, Gadamer retoma, s

    que por outra porta, num outro nvel, a noo sujeito [de conscincia] sem conceder-lhe, na

    polaridade com o objeto, a absolutizao que lhe foi outorgada pela metafsica moderna.

    Tanto o modelo estrutural do dilogo quanto do jogo destronam a absolutizao seja do

    sujeito, seja do objeto, ao mesmo tempo em que os repem no devido lugar, numa relao

    tensional incessante. Gadamer, de fato, retoma e reintroduz, num certo sentido, o esquema

    Sujeito-Objeto, Conscincia-Histria, porm, no encalo de Husserl, desloca a nfase

    tradicional concedida a um dos polos para a relao propriamente dita entre ambos [os

    lados]. Estamos s voltas, pois, com uma diferena entre o mestre e seu discpulo: para o

    primeiro, o esquema em questo , por si s, metafsico em sentido pleno e negativo do

    termo e, portanto, injustificvel do ponto de vista filosfico.

    Ainda com relao ao mesmo tema, de acordo com Kusch, Heidegger dificilmente

    deve ter-se encantado com o argumento de Gadamer [...] de que o esquema sujeito-objeto

    de Husserl mais especulativo que aparenta ser, pois para este,

    sujeito e objeto no esto estritamente opostos: a fenomenologia [de Husserl] procura ser

    uma pesquisa de correlao. Mas isto significa que a relao a coisa mais importante e os

    plos que se estabelecem so contidos dentro dela.... Precisamos somente lembrar que as

    concepes de Heidegger de que nenhuma modificao deste esquema [sujeito-objeto]

    25

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    13/23

    pode superar sua inadequao e de que a dialtica somente pode ocultar. (Kusch, 2001,

    p. 261)

    Ao apropriar-se da proposta husserliana, Gadamer no apenas corrigiu seu mestre

    como tambm a proposta de Husserl, uma vez que, no modelo estrutural do jogo, nem a

    subjetividade nem a transcendentalidade so absolutizadas ou negadas, pelo contrrio, so

    situadas e conservadas relacionalmente e, por isso, potencializadas.

    Gadamer sugere que, longe de estar inevitavelmente presos pela tradio, os

    sujeitos humanos podem, at mesmo diferentemente de Heidegger dissolver a(s)

    tradio(es):por mais que faa parte da natureza da tradio o fato de ela existir somente

    sendo apropriada, faz parte da natureza do homem ser capaz de romper com a tradio, a

    criticar e dissolver (Kusch, 2001, p. 262). Porm, se com isso ele se distancia deHeidegger e se aproxima de Husserl, tambm confere feio prpria epoch husserliana,

    pois no a radicalizou. A epoch hermenutico-dialgica de Gadamer bem menos

    ambiciosa do que a transcendental de Husserl. Gadamer no quer dizer que sejamos

    capazes de libertar-nos de todos os preconceitos; de fato, ele critica o projeto transcendental

    de Husserl e, por outro lado, embora concorde em termos gerais com o conceito

    heideggeriano de Vorhabe (pr-estabelecido) e o crculo hermenutico implicado no Ser-

    no-mundo doDasein, a noo de suspenso dos preconceitos pode facilmente parecer uma

    traio concepo de ser jogado de Heidegger e concepo de linguagem como meio

    universal, com a qual aquela noo est vinculada (Kusch, 2001, p. 263).

    Enfim, em relao ao tema da tradio, Gadamer parece estar mais para Husserl que

    para Heidegger:

    parece haver boas evidncias para supor que a concepo de Gadamer sobre a tradio seja,

    de fato, no apenas influenciada por Heidegger, mas tambm informada por Husserl. Que

    Gadamer reintroduza ao menos at certo ponto a noo de conscincia, bem como adistino sujeito-objeto, que fale da suspenso dos preconceitos e que esteja preocupado

    com a intromisso da racionalidade tecnolgica do mundo prtico da vida, encontra uma

    26

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    14/23

    explicao natural quando se aponta Husserl como uma fonte importante. (Kusch, 2001, p.

    264)11

    3.2.

    Com relao ao tema da linguagem

    Um dos principais fios filosficos que tece o projeto heideggeriano e o gadameriano

    o da linguagem. Para o primeiro, a linguagem joga conosco indicando com isso que ela

    mestra do homem e, portanto, indomvel de maneira que no temos acesso ao mundo

    sobre e acima daquilo que a linguagem revela para ns; ora, Gadamer comunga dessa

    concepo na medida em que trata a linguagem como uma imagem, uma noo que visa

    precisamente apreender a inseparvel unidade de linguagem e mundo (Kusch, 2001, p.

    275).Podemos dizer que a filosofia da linguagem de Gadamer segue Heidegger, sem

    adotar, contudo, sua posio radical, como um todo, uma vez que ela se constitui resultante

    de duas perspectivas distintas: ele desvincula as ideias de Heidegger sobre a linguagem de

    seu pensamento do Ser e, por outro lado, ele usa a noo husserliana de sombreamento

    (Abschattung), a fim de evitar o relativismo lingustico e o kantismo semntico... (Kusch,

    2001, p. 265). Isso no significa que as preocupaes ontolgicas de Heidegger estejam

    ausentes da filosofia da linguagem de Gadamer, afinal ele escreveu extensamente sobre

    esse tpico alm do que a questo do ser (no sentido heideggeriano) e a questo da

    linguagem podem ser tratadas separadamente (Kusch, 2001, p. 265). Ao fazer isso ele

    vinculou o tema da linguagem s questes humanas, da porque no a concebe mais

    prioritariamente como morada do Ser, como propunha seu mestre, mas morada do

    homem. Enquanto medium[no sentido de espao, de lugar] universal de comunicao e de

    compreenso (Hintikka, 2000, p. 487),12a linguagem um modo [humano] de ser partcipe

    do Ser.

    11 E sobre isso ainda no diz o mesmo autor: finalmente, precisa-se mencionar que Gadamer procura asuspenso dos preconceitos filosficos com o auxlio de textos de Plato, Aristteles, Leibniz, Kant e Hegel.Esta uma lista de nomes que Heidegger consideraria insuficiente, pois o preconceito ou pressuposto maisfundamental, aos olhos de Heidegger, a interpretao do Ser como presena, uma interpretao

    predominante no pensamento filosfico de Plato a Hegel (Kusch, 2001, p. 264).12Sobre o uso deste termo, ver Parte III de Gadamer, 1997 e seus textos sobre linguagem em sua GesammelteWerke, especialmente os vols. II, IX e X.

    27

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    15/23

    Do que se disse possvel apreender a relao ntima entre linguagem e dilogo em

    Gadamer, como nos atesta C. Dutt:

    [...] diferena de Heidegger, voc no tem a inteno de criar uma nova conscincia do

    dilogo e uma nova conscincia da compreenso do ser, mas explicitar a ideia j existente

    do que um dilogo. Por isso incorpora em seu discurso o que em nossos discursos

    quotidianos dizemos sobre a compreenso e a conversao. Em um pequeno texto

    autobiogrfico, voc expe uma rplica famosa expresso da Carta sobre o humanismo

    que considero ilustrativa neste sentido: me segue parecendo verdade [...] que a linguagem

    no s a casa do ser, mas tambm a casa do homem, na qual vive, se encontra com outros,

    se encontra com o outro. (Dutt, 1998, p. 58)

    As distines relativas s concepes de linguagem de ambos revelam-se na

    abordagem ao conceito de Dasein. A questo absolutamente central na compreenso de

    Heidegger que permeia toda sua filosofia estampa-se na questo quem Dasein?, ou

    seja, Dasein um ser humano individual, ele/ela um ser humano situado em um contexto

    histrico e incondicionado pela tradio, ou Dasein uma natureza humana universal

    kantiana? e um contato inicial com a obra de Heidegger revela o tom impessoal

    atribudo aoDasein;porm, em contraste, o que Gadamer est nos dizendo pode ser dito

    assim:Daseinest vivo e bem sob a roupagem da nossa tradio (Hintikka, 2000, p. 492).Da porque h uma imbricao to ntima entre linguagem e dilogo em Gadamer para

    quem o homem no apenas compreende o Ser mas se compreende compreendendo-se e

    compreende-o [Ser] no confronto com o[s] outro[s]. Numa perspectiva, o Dasein parece

    no possuir sangue, ossos e, noutra, ele tomado como um sujeito histrico mas que no se

    satisfaz com sua situao uma vez que, no dilogo, est sempre procura da coisa mesma,

    daquilo que move toda inquirio filosfica e que constitui a busca metafsica. Ao dialogar,

    os parceiros no apenas reproduzem a [sua] realidade mas a recriam saltando dela e

    voltando a ela mais universais, visto que o dilogo possibilita um alargamento de

    horizontes que os aproxima, em linguagem platnica, dos deuses e, portanto, mais

    prximos da vida plena.

    O trabalho de habilitao de Gadamer intituladoInterpretao do Philebo de Plato

    j continha muitos prenncios

    28

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    16/23

    da hermenutica posterior e da interpretao que Gadamer ia fazer de Plato. Neste sentido,

    chama ateno sua escolha, j naquele momento, do Philebo, um dilogo tardio, porm no

    qual Scrates desempenha um papel preponderante que revela at que ponto seguiu sendo

    vivo o motivo da pergunta pelo bem na dialtica tica de Plato. O acento desta dimenso

    tica, da busca socrtica, se opunha, desde logo, a uma verso puramente conceitual da

    dialtica platnica, que se orientava pelo modelo de anlise conceitual (aristotlico). A

    participao na prtica dialgica ou hermenutica se tornou assim uma chave e no

    somente em um adorno da filosofia platnica. Com isso, Gadamer pode tambm

    relativizar a vigncia da crtica de Plato por parte de Aristteles. O Philebo se pergunta por

    uma vida mista, que era o nico mbito onde se podia encontrar o humanamente bom, e

    demonstrava em que medida Plato e Aristteles se encontravam em um mesmo terreno.

    (Grondin, 2001, pp. 184-185)

    Desse modo, de acordo com palavras de Kusch, deveramos observar que no

    artificial argumentar que a descrio de Gadamer acerca do dilogo hermenutico , de

    fato, uma descrio de um mtodopara obter a verdade (Kusch, 2001, p. 261), ou, pelo

    menos, se trata de um modelo estruturalpara compreend-la e explicit-la de modo mais

    apropriado que o mtodo cientfico moderno. Para o Heidegger da ltima fase, a verdade

    enquanto uma disputa entre clareira e ocultamento determinada pelas diferentesmensagens que o Ser envia para a linguagem. Gadamer, de fato, abre mo dessa noo de

    verdade, apesar de, ocasionalmente, referir-se ideia de que a linguagem nos revela a

    verdade, porm, alm disso, ele mesmo tambm mencionou (em comentrio pessoal) que

    sempre permaneceu comprometido com a noo de verdade como correspondncia apesar

    de nunca ter abordado esta noo de forma explcita (Kusch, 2001, p. 266).13 Se para

    Heidegger, com certa razo, no h mtodo que nos possibilite acessar a verdade, para

    Gadamer h modelos estruturais [como dilogo, crculo, jogo]14 que contribuem para

    compreend-la e explicit-la afinal, ela tambm histrica sem porm esgot-la.

    verdade que Heidegger no estava interessado primordialmente em questes como

    a procura de conhecimento mas com a questo do ser, a questo da metafsica, ou seja,

    13E sobre isto ainda de acordo com Kusch (2001, p. 266), o silncio de Gadamer sobre a noo clssica deverdade teria, assim, seu paralelo na frase de Frege: o que verdadeiro considero ser indefinvel.14Sobre isso, ver Rohden, 2002.

    29

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    17/23

    no possua interesse imediato em preencher conceitos mas em ocasies para reflexo

    filosfica. Diferentemente, Gadamer possua tal interesse via dialtica (Hintikka, 2000, p.

    496), dilogo e hermenutica enquanto filosofia prtica. Dito de outro modo, ao

    incorporarem a filosofia prtica do estagirita em seus projetos, sublinhando sempre a

    importncia da sabedoria prtica, sob a forma de phrnesis aristotlica, Heidegger olha

    em direo fsica e metafsica [...] em direo ontologia. Gadamer, ao contrrio,

    permanece obstinadamente fiel sabedoria prtica aristotlica (Greisch, 2000, p. 448).

    Por outro lado, Gadamer justifica que a linguagem especulativa no sentido de que

    nunca somos os mestres de nossa linguagem, mas somente os receptores da verdade que

    ela revela, e tambm porque uma infinidade de relaes, isto , toda a rede de relaes

    semnticas, est presente em uma estrutura finita, em uma sentena ou em uma palavra,

    porm o ponto essencial por que

    a relao entre linguagem e o mundo uma unidade hegeliana de identidade e diferena.

    Por um lado, a linguagem no idntica ao mundo, mas, por outro, o mundo no aparece

    fora da linguagem [...] a linguagem e o mundo no podem ser desvinculados um do outro.

    As relaes semnticas entre linguagem e mundo so como que Aufgehoben: realmente

    existem, so preservadas mas tambm esto destrudas por ns, por no termos nenhum

    acesso a elas. (Kusch, 2001, pp. 272-273)

    Sobre sua opo por Plato e Hegel e concomitante crtica ao seu mestre, ele se pronunciou

    nos seguintes termos: fui admirador de Heidegger [...] e ainda hoje, eu diria, meu primeiro

    livro, A tica dialtica de Plato, est ainda por demais amarrado ao esquema defendido

    ento por Heidegger; Plato a apenas um preparador de Aristteles. Hoje, eu diria que

    ele, com isso, no faz justia a Plato, de modo que no enxergou o que Hegel percebeu

    (Grondin inAlmeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 220). Visto assim, Gadamer est mais

    para o projeto hegeliano, ao passo que Heidegger se distancia dele; o primeiro assume omtodo dialtico-dialgico platnico e o segundo o analtico-conceitual aristotlico. De

    Hegel, Gadamer incorporou a proposta fenomenolgico-dialtica, histrica, sem a

    pretenso de construir um sistema fechado. Com relao a esse ponto, lembramos que

    nossa pesquisa versa sobre a hiptese de explicitar e justificar uma proposta sistemtica

    aberta, em construo, movente a partir da filosofia de Gadamer na medida em que

    30

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    18/23

    assimilou a Fenomenologia do Esprito de Hegel sem a pretenso de encerr-la no

    Absoluto.

    3.3. Sobre as rupturas com Heidegger

    A originalidade e a fora do pensamento de Heidegger fizeram sombra sobre os

    filsofos que estiveram sua volta, inclusive Gadamer. As diferenas dos que se lhe

    aproximavam foram escamoteados ou no receberam a luz dos holofotes acadmicos ou

    sucumbiram ante a fora da sua filosofia. Apesar disso, h rupturas entre o discpulo e seu

    mestre, mesmo que no sejam muito contundentes ou claras.

    Ao falar de sua caminhada intelectual, Gadamer afirmou que havia na filosofia de

    seu mestre uma falta de preciso conceitual, ou seja, ela era permeada por uma espcie detrao poetizante vago (Gadamer, 1996, p. 249). Em entrevista a C. Dutt afirmou:

    [...] se trata de dons e talentos diferentes. Em primeiro lugar, eu no tenho naturalmente

    aquela potncia mental prodigiosamente audaz com a qual Heidegger filosofava. Sempre

    disse que uma das diferenas fundamentais entre Heidegger e eu reside na escrupulosidade

    da interpretao. Eu tenho interpretado com maior precauo que Heidegger. Pois eu fico

    frustrado se no defendo o correto. (Gadamer apudDutt, 1998, p. 59)

    Poucos meses antes da morte de Gadamer, em entrevista concedida a Vietta,

    evidencia-se uma crtica clara e radical a Heidegger: ... uma coisa certa: nunca pensou nos

    demais. Sempre filosofou a fim de alcanar sua prpria tranquilidade em relao ao fim,

    morte, a Deus (Gadamer, 2004, p. 34) sobre o que, com razo, o entrevistador comentou:

    esta a crtica a umsolipsismo fundamental de Heidegger, solipsismo que a hermenutica

    [...] tentou superar pela primeira vez (Gadamer, 2004, p. 20). De certa maneira isso

    explica a coragem e a dedicao de Heidegger em filosofar, prioritariamente, pelosilencioso hbito de escrever enquanto que, em Gadamer, visvel sua dificuldade para tal

    e sua preferncia pelo uso da palavra oral, dialogada. Pode-se dizer que Heidegger

    filosofava escrevendo e da sua intensa produo de obras sistemticas, enquanto que

    Gadamer preferia filosofar dialogando do qual resultaram ensaios e poucos trabalhos

    sistemticos exceo de sua tese de doutorado e Verdade e mtodo I.

    31

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    19/23

    Ao lado disso, tem-se at a impresso de que Heidegger pensa o Ser em funo da

    morte com certa razo para o presente e Gadamer o faz em funo do dilogo com a

    tradio, com o passado, em razo do sentido e significado do bem para a vida presente. O

    mrito do primeiro est em seu esprito arrojado, provocador, intuitivo diante do qual seu

    discpulo pode ser tido como mais conservador, conciliador, prtico. Num certo sentido,

    verdade que Heidegger pode ser tido como um pensador teolgico e sua filosofia apresenta

    paralelos ntimos com a teologia especulativa ao passo que Gadamer subsumiu-a na sua

    concepo de experincia esttica enquanto experincia da obra de arte.

    Diferentemente de Heidegger que lutou parte de sua vida contra a prpria

    incredulidade, a questo central para Gadamer se tratava do homem que compreende o

    outro (Gadamer, 2004, p. 39). Isso ficou estampado na sua conhecida afirmao segundo a

    qual a possibilidade de que o outro tenha razo a alma da hermenutica (Gadamer apudGrondin, 1991, p. 160).15Aqui encontramos espelhada a vigncia de duas verdades, pelo

    menos: o outro levado a srio e o , de tal forma, que ele pode, inclusive, ter razo; esta

    possibilidade no anula a existncia daquele [eu] que se pe no caminho da compreenso

    da verdade. Da porque, diferente de Heidegger que, em sua busca pela linguagem

    autntica, minimizou o valor da linguagem cotidiana, Gadamer joga e leva a srio os outros

    jogos de linguagem e acolhe a opinio comum (Dutt, 1998, p. 57), a argumentao do

    outro, de modo que o investigador no apenas afetado, mas inclusive transtornado,

    conscientemente, pelo processo compreensivo.

    4. Concluses

    Enfim, com Gadamer aprendemos e sustentamos que a essncia do comportamento

    hermenutico consiste em no se guardar nunca, para si, a ltima palavra (Gadamer apud

    Almeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 211), e, por isso, o melhor que podemos fazer

    emitir nossa palavra sem pretenso de que seja definitiva, absoluta ou a ltima sobre as

    idiossincrasias da hermenutica heideggeriana e gadameriana assim como sobre o

    tensionamento constante e entrecruzamento dialtico que deve haver entre ambas. Nossa

    palavra, ao modo do itinerrio de Hermes, apenas mais uma, em continuidade ao profcuo

    32

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    20/23

    dilogo, interminvel, acerca das diferenas e identidades entre as propostas filosficas em

    questo.

    Dito isso, a reflexo que encetamos corrobora a hiptese de que m filosofia

    aquela que absolutiza um filsofo e sua filosofia, afinal de contas a crena cega sempre

    sintoma de decadncia e fraqueza filosfica, pois o reino do dogmatismo e, portanto, do

    totalitarismo, lugar para fracos e incompetentes se autoafirmarem e se escusarem de

    emitir uma palavra pessoal sobre questes humanas. No confronto dialtico-dialgico que

    procuramos estabelecer entre Heidegger e Gadamer, aprendemos a lidar no apenas com o

    mesmo, mas com o outro, com o diferente, o que constitui sempre um fator de risco, mas

    tambm de riqueza e de plenitude. Isso justifica nossa posio segundo a qual o filosofar se

    erige, por um lado, sobre a anlise aguda em relao realidade e, por outro, sobre o

    esforo dialgico incessante para emitir a palavra mais apropriada possvel acerca domundo tal como ele se nos apresenta cientes de que, ao nosso final, sempre ficar algo de

    no dito quando dizemos algo (Gadamer apudAlmeida, Flickinger & Rohden, 2000, p.

    211).

    Contudo, isso no nos isenta de emitir, guisa de concluso, trs observaes finais.

    Pensamos que, de modo similar filosofia grega que se alimenta da tenso dialtica entre

    Plato e Aristteles, a hermenutica filosfica tem sua plenitude na conjuno dialtica

    entre os projetos filosficos de Heidegger e de Gadamer. Ambos nos brindam propostas

    metodolgicas e leituras prprias sobre o real, afinal de contas, a filosofia no constitui um

    bloco monoltico ou uma crena, pois continua sendo tecida sob diferentes perspectivas

    temporais e espaciais nas quais estamos imersos e das quais nos esforamos para emergir.

    Chamamos ateno para a ingenuidade da alocao da proposta gadameriana, tout court, no

    mundo heideggeriano, como se aquela constitusse uma simples repetio deste. Gadamer

    foi um discpulo autntico na medida em que se apropriou de algumas grandes intuies do

    seu mestre, mas tambm conferiu marca prpria ao seu labor, superando-o em alguns

    aspectos.

    Nossa leitura tem por escopo justificar a hiptese de que Gadamer interpreta

    Heidegger seja porque sua filosofia sustenta e completa a hermenutica filosfica, mas,

    talvez, tambm porque com ele, seja possvel metamorfosear Hegel com um sistema

    15Die Mglichkeit, dass der Andere Recht hat, ist die Seele der Hermeneutik. Esta obra foi traduzida pela

    33

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    21/23

    mesmo que implcito aberto, contingente, finito, em movimento e construo incessante.

    Bem, aqui j no sabemos mais se esta era a proposta gadameriana; contudo, ela nossa e

    assumimos o labor de reinterpretar Gadamer a fim de mostrar que, com Heidegger,

    possvel justificar que a hermenutica filosfica uma verso da metafsica hodierna

    dialtica, movente, histrica o que, por um lado, nos aproxima e, por outro, tambm nos

    distancia de Hegel.

    Enfim, estou s voltas com ambos h mais de uma dcada, mas com uma dedicao

    redobrada hermenutica gadameriana. Partindo do pressuposto de que uma adeso cega,

    incondicional a um ou outro implica numa crena e, por consequncia numa postura

    dogmtica, antifilosfica, assumi uma postura filosfica que procura costurar um texto

    prprio com ambos: de Gadamer fico com a postura dialgico-dialtica e o filosofar

    enquanto uma filosofia prtica nos moldes do estagirita; contudo, confesso que apenas essaperspectiva prtica no me satisfaz e o que lhe falta encontro no projeto metafsico,

    visionrio e intuitivo do seu mestre. Assim, desse modo, nos jogamos entre ambos com o

    escopo de jogar nosso jogo assumindo seus riscos com suas riquezas, afinal de contas, o

    filosofar, como o Viver no ? muito perigoso. Porque ainda no se sabe. Porque

    aprender-a-viver que viver, mesmo (Rosa, 1958, p. 550).

    Referncias

    Almeida, C. L. Silva de, Flickinger, H-G., & Rohden, L., (Orgs.). Hermenutica filosfica;

    nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs.

    Dutt, C. (Ed.). (1998). En conversacin con Hans-Georg Gadamer. Presentacin y

    traduccin de Teresa Rocha Barco. Madrid: Tecnos.

    Gadamer, H-G. (1996).Mis aos de aprendizaje. Barcelona: Herder.

    Gadamer, H-G. (1997). Verdade e Mtodo I. Rio de Janeiro: Vozes.

    editora Unisinos sob o ttuloIntroduo hermenutica filosfica.

    34

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    22/23

    Gadamer, H-G. (2000). Retrospectiva dialgica obra reunida e sua histria da efetuao

    Entrevista de Jean Grondin com Hans-Georg Gadamer. In Almeida, C. L. Silva de,

    Flickinger, H-G., & Rohden, L., (Orgs.). Hermenutica filosfica; nas trilhas de Hans-

    Georg Gadamer (pp. 203-222). Porto Alegre: Edipucrs.

    Gadamer, H-G.(2002). Verdade e mtodo II. Rio de Janeiro: Vozes.

    Gadamer, H-G. (2004). Hermenutica de la Modernidad. Conversaciones com Silvio

    Vietta. Madrid: Minima Trotta.

    Greisch, J. (2000). Le phnomne du jeu et ls enjeux ontologiques de lhermneutique.

    Revue Internationale de philosophie, 54(213), 447-468.

    Grondin, J. (1991). Einfhrung in die Philosophische Hermeneutik. Darmstadt: Wiss.

    Buges.

    Grondin, J. (2001).Hans-Georg Gadamer. Una biografa. Barcelona: Herder.

    Heidegger, M. (1989). Ser e Tempo. Parte I. Petrpolis: Vozes.

    Heidegger, M. (2008). Ontologa: Hermenutica de la facticidad. Traduccin de Jaime

    Aspiunza. Madrid: Alianza Editorial.

    Hintikka, J. (2000). Gadamer: squaring the hermeneutical circle. Revue Internationale de

    Philosophie, 54(213), 487-497.

    Kusch, M. (2001). Linguagem como clculo versus linguagem como meio universal. So

    Leopoldo: Ed. Unisinos.

    35

  • 7/21/2019 Hermeneutica, Gadamer e Heidegger

    23/23

    Rohden, L. (2002). Hermenutica filosfica; entre a linguagem da experincia e

    experincia da linguagem. So Leopoldo: Ed. Unisinos.

    Rohden, L. (2008). Hermenutica enquanto filosofia prtica. In L. Rohden, Interfaces da

    hermenutica (pp. 137-153). Caxias do Sul: UCS.

    Rosa, J. G. (1958). Grande serto: veredas(2a ed.). Rio de Janeiro: Jos Olympio.

    Recebido em 20/09/2011.

    Aprovado em 06/12/2011.