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  • 7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica

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    HERMENUTICA, NEOCONSTITUCIONALISMO E O PROBLEMA DADISCRICIONARIEDADE DOS JUZES

    Lenio Luiz Streck1

    1. As demandas de um novo paradigma

    Indubitavelmente, o novo constitucionalismo que exsurge a partir do segundo ps-

    guerra - recebe da teoria neoconstitucionalista os aportes necessrios para uma confluncia de

    teses e posturas aptas para a realizao do direito. Por isso, de pronto possvel dizer que a

    teoria neoconstitucionalista paradigmtica porque ultrapassa a tese de que o direito se basta.

    No , assim, uma nova forma ou uma verso sofisticada de positivismo que, agora

    (constitucionalismo do segundo ps-guerra) sairia da lei para um texto fundante: as

    Constituies. No se trata de um novo legalismo ou super legalismo. O legalismo

    forjou-se inicialmente como expressso da politicidade do direito, a partir da prescrio do

    poder soberano, legitimando-se per se, mas, ao mesmo tempo se auto-limitando. Em um

    segundo momento, a legalidade tornou-se fato poltico, tornando o direito instrumento das

    estratgias polticas. Os acontecimentos histricos, entretanto, fizeram com que no bastasse

    alterar o fundamento de validade do direito. Se isso fosse suficiente, o legalismo seria

    transformado em constitucionalismo ou, melhor dizendo, o constitucionalismo seria um

    legalismo de nvel superior.

    Explicando melhor essa problemtica: o neoconstitucionalismo uma resposta a outro

    tipo de poder ilimitado: o do Estado Corporao (Garcia-Pelayo), o Estado Social

    burocrtico (Ferraloji), que se autonomiza do indivduo em seu momento operacional, que se

    formou durante o entre guerras e cujo paroxismo foi representado pelos estados nazi-facistas.

    Isto o neoconstitucionalismo: uma tcnica ou engenharia do poder que procura dar resposta

    a movimentos histricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitucionalismoliberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo). Por isso o neoconstitucionalismo

    paradigmtico; por isso ele ruptural; no h sentido em trat-lo como continuidade, uma vez

    que seu motivo de luta outro. Do mesmo modo, no h como tentar compatibilizar

    neoconstitucionalismo e positivismo jurdico porque e isso ressaltado por Oto mesmo o

    primeiro constitucionalismo era contrrio ao positivismo, como nos lembra Nicola Matteucci.

    A questo direito-moral outra coisa. Da que e no tenho receio de afirmar - essa postura

    massificada que v no neoconstitucionalismo uma mutao do positivismo jurdico (sic) para

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    nele introduzir a moral atravs de discursos corretivos/adjudicadores, mostra-se sobremodo

    equivocada,porque no entende essa "motivao historica" da qual ele tributrio. Claro, na

    medida em que todas estas posturas so caudatrias das teorias analticas lato sensu, elas no

    do conta do "destino" que a histria nos impe. E isso a hermenutica pode nos mostrar

    muito bem, revolvendo o cho lingstico da histria, a partir de uma reconstruo

    institucional do Estado, do direito e da poltica.

    Nessa linha, seguindo a matriz terica da hermenutica filosfica (na leitura que

    proponho desde Hermenutica Jurdica em Crise 8. Edio - e Verdade e Consenso 3. Ed

    - ), preciso dizer mais. Com efeito, o neoconstitucionalismo por tudo o que ele representa

    efetivamente transformou-se em um campo extremamente frtil para o surgimento das mais

    diversas teorias (que se pretendem) capazes de responder s demandas desse novo paradigmajuspoltico-filosfico. Das teorias do discurso fenomenologia hermenutica, passando pelas

    teorias realistas, os ltimos cinqenta anos viram florescer teses com objetivos comuns no

    campo jurdico: superar a concepo do direito entendido como um modelo de regras,

    resolver o problema da incompletude das regras, solucionar os casos difceis (no abarcados

    pelas regras) e a (in)efetividade dos textos constitucionais, nitidamente compromissrios e

    principiolgicos, comprometidos com as transformaes sociais.

    Considero esse novo constitucionalismo, portanto, como proporcionador de umaverdadeira revoluo copernicana no plano da teoria do direito e do Estado. O novo

    constitucionalismo que aqui ser denominado de neoconstitucionalismo2 representa a real

    possibilidade de ruptura com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista,

    formal-burgus), a partir de uma perspectiva normativa e, por vezes, fortemente diretiva

    1 Doutor e Ps-Doutor em Direito;Professor da UNISINOS-RS e da UNESA-RJ; Procurador de Justia-RS;Coordenador da parte brasileira do Acordo Internacional CAPES-GRICES (UNISINOS-Faculdade de Direito deCoimbra).2 O texto no pretende discutir o significado de neoconstitucionalismo. A doutrina acerca da matria exuberante (no Brasil, entre outros, veja-se Ecio Oto e Suzanna Pozzolo, em seu Neoconstitucionalismo epositivismo jurdico, Belo Horizonte, Del Rey, 2006). Nesse sentido, no assume relevncia nos limites destasreflexes a classificao em neoconstitucionalismo ideolgico, terico ou metodolgico (essa classificao feita por COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo. Um anlises metaterico. In:CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalimo(s). Madrid: Trotta, 2003), isso porque, a um s tempo, oneoconstitucionalismo ideolgico, pois ala a Constituio a elo conteudstico que liga a poltica e o direito(aqui se poderia falar no aspecto compromissrio e dirigente da Constituio, que , assim, mais do que normacom fora cogente, representa um justificao poltico-ideolgica); terico, porque estabelece as condies depossibilidade da leitura (descrio) do modelo de constitucionalismo e dos mecanismos para superao dopositivismo (papel dos princpios enquanto resgate da moral expungida do direito pelo positivismo, problemticaque deve ser resolvida a partir dessa teoria do direito e do Estado); metodolgico, na medida em que ultrapassa

    a distino positivista entre descrever e prescrever o direito, sendo que, para tal, reconecta direito e moral (o queocorre sob vrios modos, a partir de teses como a co-originariedade entre direito e moral ou o papel corretivoque a moral assumiria neste novo modelo de direito). Em sntese, neoconstitucionalismo significa ruptura, tantocom o positivismo como com o modelo de constitucionalismo liberal. Por isso, o direito deixa de ser reguladorpara ser transformador. Trata-se, pois, de uma questo paradigmtica.

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    (especialmente em terrae brasilis), valendo lembrar, nesse sentido, a determinao

    constitucional, em textos constitucionais de Portugal, Espanha, Brasil, Colombia, para citar

    apenas alguns, de efetivao dos direitos fundamentais-sociais). Ora, a tradio

    (compreendida no sentido estipulado por Gadamer) nos mostra que, definitivamente, no

    havia espao para o mundo prtico no positivismo. No havia espao para a discusso de

    conflitos sociais, que no eram assunto para o direito. Sendo mais especfico: isso no era

    pauta para a Constituio e, portanto, no era pauta para o direito.

    Diante desse novo paradigma, as diversas teorias jusfilosficas tinham (e ainda tm)

    como objetivo primordial buscar respostas para a seguinte pergunta: como construir um

    discurso capaz de dar conta de tais perplexidades, sem cair em decisionismos e

    discricionariedades do intrprete (especialmente dos juizes)?3 A libertao do direito dequalquer fundamento metafsico deslocou o problema dessa fundamentao (legitimidade)

    para outro ponto: as condies interpretativas. E nisso residir a diferena dos diversos

    enfoques. A toda evidncia, trata-se de opes paradigmticas.

    Essas indagaes e perplexidades demandam novos paradigmas, que, por sua vez,

    exigem novas formas de compreenso. Tais questes j podiam ser percebidas no

    neopositivismo, fonte para a construo de metalinguagens4 e discursos analticos, e que

    centrou suas crticas s insuficincias da linguagem natural (ordinria), propondo, comocontraponto, a construo de uma linguagem artificial, para assegurar, assim, a neutralidade

    cientfica. A razo disso que a linguagem natural no se apresentava confivel para abarcar

    as complexidades do discurso cientfico.

    Sob outro vis, apontando igualmente para as insuficincias da tradio, Habermas vai

    propor uma teoria comunicativa capaz de superar a linguagem sistematicamente distorcida

    da tradio. Ou seja, para Habermas, a linguagem da tradio no se mostra(va) adequada

    para a compreenso das formas de comunicao sistematicamente distorcidas por estaproporcionadas. Por isso, pretendeu superar a razo prtica pela razo comunicativa. Em

    sentido contrrio, Gadamer resgata o valor da tradio, colocando a pr-compreenso

    3 difcil caracterizar as teses decisionistas (discricionrias). Aqui parece adequada e essa posio aquiadotada a noo forte de discricionariedade cunhada por Dworkin (Taking Rights Seriously. Massachusetts:Harvard University Press, 1978), para criticar as posturas positivistas. De qualquer modo, assim como difcilfazer um quadro acerca de (todas) as modalidades de positivismo, tambm complexo delinear as posturasdecisionistas, que vo desde o normativismo kelseniano, que atribui ao juiz, nos casos difceis, um poderabsoluto, at as tese da escola de direito livre e do realismo norte-americano, passando por Herbert Hart (TheConcept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1997) alvo principal das crticas de Dworkin. A partir de tais

    autores e posturas, forjou-se um enorme contingente de concepes que tm no esquema sujeito-objeto o seusuporte epistemolgico (embora isso no seja confessado por um considervel nmero de posturas quepretendem criticar o positivismo jurdico).

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    (Vorverstndnis) como condio de possibilidade. Mas, registre-se, h um algo a mais na tese

    hermenutico-gadameriana, ao dizer que essa pr-compreenso est eivada de faticidade, do

    modo prtico de ser no mundo que Heidegger havia percebido para superar a metafsica

    representacional. Veja-se a importncia da revoluo proporcionada por Heidegger ao mostrar

    que a filosofia hermenutica, condio de possibilidade para, mais tarde, levar Gadamer a

    dizer, tambm de forma revolucionria, em seu Wahrheit und Methode, que a hermenutica

    filosfica, no mtodo(logia).

    A importncia desse debate est no fato de que o novo paradigma de direito institudo

    pelo Estado Democrtico de Direito proporciona a superao do direito-enquanto-sistema-de-

    regras, fenmeno que (somente) se torna possvel a partir de algo novo introduzido no

    discurso constitucional: os princpios, que passam a representar a efetiva possibilidade deresgate do mundo prtico (faticidade) at ento negado pelo positivismo (veja-se, nesse

    sentido, por todos, o sistema de regras defendido por Kelsen e Hart). Dito de outro modo, esse

    mundo prtico seqestrado metafisicamente pelas diversas posturas epistemo-metodolgicas

    centra-se no teatro do sujeito autocentrado e desdobrado sobre as palavras possveis,

    coerentes, sensivelmente concebveis, proporcionando um grande exorcismo da realidade,

    mantendo-a distanciada, nada querendo saber dela.5

    4 Veja-se que a teoria da norma fundamental kelseniana uma metalinguagem sobre o direito, que , assim, alinguagem-objeto. So ntidas, pois, as influncias do neopositivismo lgico nas teses kelsenianas.5 Cfe. HAAR, Michel. Heidegger e a essncia do homem. Lisboa: Piaget, s/d, pp. 115 e segs. Cabe, aqui, umaexplicao: em face da complexidade/dificuldade para definir as diversas posturas positivistas, no parecedesarrazoado a opo por uma classificao que poderia ser denominada de a contrario sensu, a partir dascaractersticas das posturas consideradas e autodenominadas ps-positivistas, entendidas como as teoriascontemporneas que privilegiam o enfoque dos problemas da indeterminabilidade do direito e as relaes entre odireito, a moral e a poltica (teorias da argumentao, a hermenutica, as teorias discursivas, etc). Ou seja, talvezseja mais fcil compreender o positivismo a partir das posturas que o superam. Autores como AlbertCalsamiglia (CALSAMIGLIA, Albert. Pospositivismo.Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n.21, 1998, pp. 209 e segs.) consideram que a preocupao das teorias ps-positivistas com a indeterminao do

    direito nos casos difceis, ou seja, para os ps-positivistas, o centro de atuao se h deslocado em direo dasoluo dos casos indeterminados (mais ainda, os casos difceis no mais so vistos como excepcionais). Afinal,os casos simples eram resolvidos pelo positivismo com recurso s decises passadas e s regras vigentes. J noscasos difceis se estava em face de uma terra inspita. No deja de ser curioso que cuando ms necesitamosorientacin, la teoria positivista enmudece. Da a debilidade do positivismo ( lato sensu), que sempre dependeude uma teoria de adjudicao, que indique como devem se comportar os juzes (e os intrpretes em geral). Veja-se a pouca importncia dada pelo positivismo teoria da interpretao, sempre deixando aos juzes a escolhados critrios serem utilizados nos casos complexos. Para o ps-positivismo, uma teoria da interpretao noprescinde de valorao moral, o que est vedado pela separao entre direito e moral que sustenta o positivismo.O ps-positivismo aceita que as fontes do direito no oferecem resposta a muitos problemas e que se necessitaconhecimento para resolver estes casos. Alguns so cticos sobre a possibilidade do conhecimento prtico,porm, em linhas gerais, possvel afirmar que existe um esforo pela busca de instrumentos adequados pararesolver estes problemas (Dworkin e Soper so bons exemplos disso). Em acrscimo s questes levantadas por

    Calsamiglia, vale referir o acirramento da crise das posturas positivistas diante do paradigmaneoconstitucionalista, em face da sensvel alterao no plano da teoria das fontes, da norma e das condies paraa compreenso do fenmeno no interior do Estado Democrtico de Direito, em que o direito e a jurisdioconstitucional assumem um papel que vai muito alm dos planos do positivismo jurdico e do modelo dedireito com ele condizente.

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    2. O novo modelo constitucional como remdio contra o seqestro da realidade

    produzido pelo modelo de regras do positivismo

    inegvel que a noo de constitucionalismo social (fora normativa e textos com

    forte contedo diretivo) teve a funo de trazer, para o mbito das Constituies, temticas

    que antes eram reservadas esfera privada. Por isso que que parcela significativa dos textos

    constitucionais surgidos aps a segunda guerra mundial publiciza os espaos antes

    reservados aos interesses privados. E essa publicizao somente poderia ocorrer a partir daassuno de uma materialidade, espao que vem a ser ocupado pelos princpios.

    Com efeito, se o constitucionalismo compromissrio e diretivo altera

    (substancialmente) a teoria das fontes que sustentava o positivismo e os princpios vm a

    propiciar uma nova teoria da norma6 (atrs de cada regra h, agora, um princpio que no a

    deixa se desvencilhar do mundo prtico), porque tambm o modelo de conhecimento

    subsuntivo, prprio do esquema sujeito-objeto (nas suas duas faces, objetivista e subjetivista),

    tinha que ceder lugar a um novo paradigma compreensivo-interpretativo. nesse contexto que ocorre a invaso da filosofia pela linguagem (linguistic turn, que,

    no plano da hermenutica filosfica, prefiro chamar de ontologische Wendung giro

    ontolgico), a partir de uma ps-metafsica (re)incluso da faticidade que, de forma

    inapelvel, mormente a partir da dcada de 50 do sculo passado, atravessar o esquema

    sujeito-objeto, estabelecendo uma circularidade virtuosa na compreenso (hermeneutische

    Zirkel). Destarte, esse dficit de realidade produzido pelas posturas jusfilosficas ainda

    prisioneiras do esquema sujeito-objeto ser preenchido pelas posturas interpretativas,especialmente as hermenutico-ontolgicas, que deixam de hipostasiar o mtodo e o

    procedimento, colocando o locus da compreenso no modo-de-ser e na faticidade (mundo

    prtico), bem na linha da viragem ocorrida a partir de Wittgenstein e Heidegger. Assim, salta-

    se do fundamentar enquanto busca de um fundamentum inconcussum, em direo do

    compreender, onde este o compreender no mais um agir do sujeito, mas, sim, um

    modo-de-ser que se d em uma intersubjetividade. E isso extremamente ruptural.

    6 Para tanto, consultar importante estudo de SANCHIS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderacin. In:CARBONELL, Miguel (Org.).Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

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    Muito embora a relevncia paradigmtica desse fenmeno, um simples passar dolhos

    na operacionalidade do direito e falo aqui na especificidade de terrae brasilis suficiente

    para constatar a cotidiana resistncia exegtico-positivista por parte da dogmtica jurdica,

    ainda sustentada muito mais em decisionismos e discricionariedades do que em discursos que

    procurem efetivamente colocar o direito como uma cincia prtica, destinada a resolver

    problemas (sociais), mormente nesta fase da histria.

    Ou seja, preciso compreender que o direito neste momento histrico no mais

    ordenador, como na fase liberal; tampouco (apenas) promovedor, como era na fase

    conhecida por direito do Estado Social (que nem sequer ocorreu na Amrica Latina); na

    verdade, o direito, na era do Estado Democrtico de Direito, um plus normativo/qualitativo

    em relao s fases anteriores, porque agora um auxiliar no processo de transformao darealidade. E exatamente por isso que aumenta sensivelmente e essa questo permeou, de

    diversos modos, as realidades jurdico-polticas dos mais diversos pases europeus e latino-

    americanos o polo de tenso em direo da grande inveno contramajoritria: a jurisdio

    constitucional, que, no Estado Democrtico de Direito, vai se transformar no garantidor dos

    direitos fundamentais-sociais e da prpria democracia.

    Mas, se, efetivamente, o constitucionalismo do Estado Democrtico de Direito

    objetivou e ainda objetiva resgatar a realidade perdida, de que modo a teoria jurdicatem reagido diante desse fenmeno? Como dar por vencido o modelo subsuntivo, que coloca

    o sujeito isolado do objeto, e que relega a linguagem a uma terceira coisa, dis-posio do

    sujeito cognoscente, a ponto de se delegar ao juiz o poder de solucionar os casos difceis?

    De que modo possvel resolver a inexorvel tenso entre fato e norma, separados

    politicamente pela Revoluo Burguesa e, filosoficamente, pelas duas metafsicas (clssica e

    moderna)?

    Dito de outra forma, at mesmo algumas teorias discursivas, a pretexto de superar asdiversas formas assumidas pelo positivismo jurdico e buscando resolver os problemas da

    impossibilidade de anteviso de todas as hipteses de aplicao prprias de um direito que

    assumia um carter inexoravelmente hermenutico, apostaram na construo de discursos

    (prvios) de justificao/fundamentao (Begrndungsdiskurs), com o que acabaram por

    incorrer na prpria problemtica que pretendiam criticar no positivismo.

    Dito de outro modo: penso que as diversas posturas positivistas, ao desindexarem do

    discurso jurdico o mundo prtico, no encontraram adversrio altura em teses como a teoria

    do discurso habermasiana, que, sob pretexto da morte do sujeito solipsista, acabou por

    deslocar o problema da atribuio de sentido em favor de uma contraftica situao ideal de

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    fala, cuja funo a de servir de justificao prvia ao procedimento de adequao entre a

    faticidade e a validade e, assim, superar a tenso entre fato e norma.

    No fundo, no houve grandes alteraes em relao ao mago das teorias jurdicas

    arraigadas ao esquema sujeito-objeto. Discursos de justificao prvia (Begrndungsdiskurs)

    construo terica das teorias discursivas (especialmente Gnther e Habermas) procuram

    ultrapassar a deciso de origem, para atingir todas as situaes semelhantes futuras. Ao

    mesmo tempo, para evitar decisionismos decorrentes de ativismos judiciais, tais teorias

    buscam aliviar o juiz da carga representada pelos problemas da fundamentao da norma que

    aplica, isto , a racionalidade da deciso (discurso de aplicao Anwendungsdiskurs) do juiz

    j no depende do fundamento racional dessa norma, porque este problema j vem

    resolvido por um discurso de fundamentao (anterior).Isso, no entanto, no ocorre impunemente. Afinal, se fosse possvel uma lei (um texto

    jurdico transformado em uma norma) prever todas as suas hipteses de aplicao, estar-se-ia

    em face do fenmeno da entificao metafsica dos sentidos. Isso, entretanto, no se corrige

    com discursos de adequao, como propem Klaus Gnther e Jrgen Habermas, que nada

    mais fazem do que reconhecer a impossibilidade filosfica daquilo que sustenta a sua prpria

    tese.

    preciso compreender que nos movemos numa impossibilidade de fazer coincidirtexto e sentido do texto (norma), isto , movemo-nos numa impossibilidade de fazer coincidir

    discursos de validade e discursos de adequao. neste ponto que se d o embate entre

    hermenutica (filosfica) e a(s) teoria(s) discursiva(s). Objetivamente, no conseguimos

    atingir um saber que possa abranger todos os modos de aplicao dos textos jurdicos de uma

    vez. Em outras palavras, a objetividade conteria as hipteses aplicativas, em que o texto

    conteria a norma, ou, melhor ainda, o texto (a regra) conteria todas as normas (hipteses de

    aplicao) possveis.Se trabalhamos no interior de um paradigma (o paradigma da ontologische Wendung)

    no qual o direito assumiu um carter hermenutico, que decorre da prpria caracterstica que

    marcou o direito a partir do segundo ps-guerra, em que visivelmente a tradio nos mostra o

    papel interventivo da jurisdio constitucional, ento a preocupao de qualquer teoria

    jurdica deve estar voltada ao enfrentamento das conseqncias desse fenmeno.

    Numa palavra: se o direito um saber prtico, a tarefa de qualquer teoria jurdica,

    hoje, buscar as condies para a concretizao de direitos afinal, insisto, a Constituio

    (ainda) constitui, isto , a Constituio no perde sua principal caracterstica: a de norma

    superior e com perfil que ultrapassa paradigmaticamente a noo de direito liberal e social

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    e, ao mesmo tempo, envidar todos os esforos para evitar decisionismos e arbitrariedades

    interpretativas. Sendo mais claro: contraditria qualquer perspectiva jus-interpretativa

    calcada na possibilidade de mltiplas respostas, porque leva, ineroxavelmente, ao

    cometimento de discricionariedades, fonte autoritria dos decisionismos judiciais.

    Trata-se, pois, de entender que, se o primeiro problema metodolgico como se

    interpreta tem uma resposta que est fundamentada na superao do paradigma

    representacional, em que no mais cindimos interpretao de aplicao, o segundo como se

    aplica parece bem mais difcil de resolver, isto , aqui se trata de dar uma resposta talvez ao

    maior desafio do direito nestes tempos de ps-positivismo: como evitar decisionismos,

    ativismos, etc, e alcanar uma resposta correta (adequada constitucionalmente) em cada caso.

    Ou seja, como transformar a Constituio e a sua interpretao em um direito fundamentaldo cidado, no sentido de que o resultado dessa interpretao no seja fruto de um sujeito

    solipsista ou dependente de mtodos igualmente elaborados a partir do (velho) paradigma

    representacional. Este o cerne da discusso hermenutica, pois.

    3. O problema da discricionariedade positivista e sua incompatibilidade com a era dos

    princpios

    Parece no haver dvida mormente aps o debate Dworkin-Hart e de tudo o mais

    que a tradio jusfilosfica nos tem legado no decorrer do sculo XX que o positivismo (nas

    suas mais variadas acepes) est ligado discricionariedade interpretativa (cujas

    conseqncias so decisionismos e arbitrariedades), alm de ser incompatvel com a noo de

    princpio forjada no neoconstitucionalismo. O positivismo, assim, porque no leva em conta o

    modo prtico de ser-no-mundo e essa questo visvel nas caractersticas semntico-

    analticas das diversas teorias que pretendem dar conta da indeterminabilidade do direito possibilita mltiplas respostas (exatamente em face da delegao que dada ao juiz para

    encontrar a resposta nos hard cases).7 Desse modo e a partir disso, parece razovel afirmar

    que essa discricionariedade/arbitrariedade (e sua consequncia, as mltiplas respostas) no

    ser contida ou resolvida atravs de regras e meta-regras que cada vez mais contenham a

    soluo prvia das vrias hipteses de aplicao, isto porque e a resposta aqui deve ser

    peremptria a discricionariedade/arbitrariedade exatamente produto daquilo que

    7 evidncia, esse no o problema da teoria do discurso habermasiana, que, assim como a hermenutica,aceita/adota a tese da existncia de respostas corretas.

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    proporcionou a sua institucionalizao, isto , o positivismo jurdico e suas diversas facetas,

    que sempre abstraram a situao concreta no ato de aplicao.

    A (histrica) discricionariedade positivista embora (historicamente) limitada pelo

    ordenamento jurdico tem proporcionado uma espcie de mundo da natureza

    hermenutico, em que viceja a liberdade interpretativa (veja-se, por todos, o decisionismo

    kelseniano e a discricionariedade admitida por Herbert Hart para a resoluo dos hard cases),

    onde, no fundo, queiramos ou no, cada juiz decide como quer (arbitrariamente), de acordo

    com a sua subjetividade (esquema sujeito-objeto), mesmo porque esses limites do

    ordenamento so limites semnticos, os quais jamais foram obstculo para as pretenses

    positivistas, bastando, para tanto, um exame da incontvel quantidade de smulas (para falar

    apenas nesse tipo deprt--portr) contra-legem e/ou inconstitucionais.Dito de outro modo, as fronteiras textuais, produtos de um direito produzido

    democraticamente e que deveriam estabelecer limites discricionariedade, confinando-a

    nos marcos do ordenamento, acabam sendo ultrapassadas por um aprimoramento gentico

    do positivismo, isto , no satisfeito com uma discricionariedade contida nos marcos do

    ordenamento, o positivismo praticado no Brasil constri diversas maneiras de ultrapassar

    essas fronteiras (veja-se, por exemplo, o argumento, muito utilizado at mesmo por cultores

    de determinadas teorias crticas, de que o texto to-somente a ponta do iceberg, e que, porbaixo dele, esto os valores...; veja-se, enfim, o realismo jurdico, a jurisprudncia de valores,

    etc). Assim, para essa modalidade de positivismo para, aqui, no rejeitar teses de que

    possam existir outros positivismos que no tm na discricionariedade judicial a sua holding

    , h momentos em que o texto jurdico j no satisfaz suficientemente o interesse do

    intrprete (afinal, antes de tudo, o direito instrumento de poder). Como conseqncia, para

    esse tipo de positivismo (ainda dominante em terrae brasilis) o texto jurdico, mesmo que

    produzido democraticamente e em conformidade com a Constituio, transforma-se em umobstculo que deve ser ultrapassado, em nome dos valores, da mens legis, da voluntas legis,

    etc. E assim por diante.

    Esse ir-alm-do-texto, enfim, essa discricionariedade que se transforma em

    arbitrariedade, tem lugar a partir de diversas teorias que colocam na subjetividade do

    intrprete o locus do processo hermenutico, tais como as teorias realistas e axiologistas (por

    vezes, simplesmente voluntaristas) em geral, que, quando lhes interessa, relegam os textos

    jurdicos a um plano secundrio, sob o pretexto de que cabe ao intrprete a descoberta dos

    valores escondidos embaixo do texto. Nesse caso e no faltam exemplos nesse sentido

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    at mesmo os textos constitucionais podem soobrar diante da plenipotenciaridade da

    conscincia do intrprete.

    O resultado disso uma situao incontrolvel at mesmo para esse tipo de

    positivismo, demandando, do seu interior, reaes contra esse ir alm dos marcos do

    ordenamento que deveria demarcar o espao da discricionariedade interpretativa. Explicando

    melhor, mormente porque essa questo est fortemente presente na dogmtica jurdica

    brasileira: se foi calcado no esquema sujeito-objeto que o positivismo ultrapassou os limites

    semnticos do texto8 (aqui no se pode perder de vista o valor da tradio compreendida no

    sentido gadameriano), com uma espcie de retorno metafsica clssica (no confessada,

    evidentemente) que o mesmo positivismo buscar conter esse mundo da natureza

    hermenutico. E o faz atravs de verbetes, enunciados e smulas vinculantes (verso para acivil law dos precedentes da common law), com os quais se pretende abarcar todas as

    hipteses de aplicao de cada texto jurdico.

    A conseqncia disso o sacrifcio da situao concreta. Assim, se no interior do

    modelo positivista de aplicao do direito parece impossvel impedir que os juzes decidam

    como queiram porque, afinal, obedecem apenas sua subjetividade (esquema sujeito-

    objeto) , o prprio positivismo elabora conceitualizaes prvias (espcie de discursos de

    fundamentao prvios elaborados sem os pressupostos exigidos pela teoria do discursohabermasiana) acerca do sentido dos textos jurdicos, buscando, desse modo, combater os

    excessos decorrentes do prprio modelo. Em outras palavras, o positivismo travando um

    combate consigo mesmo.

    Eis a o paradoxo. Essa viravolta do positivismo contra si mesmo fruto de uma

    espcie de adaptao darwiniana, que funciona a partir da elaborao de conceitos jurdicos

    com objetivos universalizantes, utilizando, inclusive, os princpios constitucionais. Ou seja, os

    princpios constitucionais, que deveriam superar o modelo discricionrio do positivismo,passaram a ser anulados por conceitualizaes, que acabaram por transform-los em regras (a

    conceitualizao de um princpio petrifica seu sentido).

    Ora, se os diversos mecanismos que buscaram resolver a multiplicidade de demandas

    no tiveram xito at hoje e todos eles possuem um perfil que busca colocar em segundo

    plano a substancialidade do direito , porque est sendo atacada to-somente a contradio

    secundria do problema. Ou seja, se as mltiplas respostas e a discricionariedade (ausncia de

    controle na interpretao e nas decises judiciais) esto ligadas ao positivismo (em suas

    8 Veja-se, nesse sentido, o papel da jurisprudncia de valores e do realismo jurdico norte-americano eescandinavo.

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    diversas matizes) e isso que gera o caos no sistema jurdico parece que a resposta est

    para alm do positivismo e de sua ratio essendi.

    Trata-se, pois, de examinar essa complexa problemtica a partir de um cmbio

    paradigmtico, que envolve, certamente, um salto da subsuno compreenso, do esquema

    sujeito-objeto para a intersubjetividade, da regra para o princpio e, fundamentalmente, do

    positivismo para o neoconstitucionalismo, conseguindo-se, assim, uma resposta adequada

    para o terceiro9 problema que envolve a metodologia contempornea: em face do carter

    hermenutico assumido pelo direito nesta quadra da histria (paradigma do Estado

    Democrtico de Direito) e em face da indeterminalidade do direito, quais so as possibilidade

    que temos para encontrar respostas corretas, evitando-se tanto os objetivismos quanto os

    subjetivismos interpretativos?

    4. A tarefa de uma hermenutica crtica: construir as condies para efetivar a

    Constituio (que no esgotou sua tarefa) e evitar discricionariedades interpretativas,

    superando distines estruturais (dualismos metafsicos).

    Contra o objetivismo do texto ou do sentido previamente dado ao texto (posturas

    normativistas-semanticistas) e o subjetivismo (posturas axiolgicas lato sensu quedesconsideram ou relativizam o texto) do intrprete, cresce o papel da hermenutica filosfica

    e seu antirelativismo. Embora o avano e a importncia das teorias do discurso para o

    enfrentamento das demandas de um universo de direito ps-positivista, em que a jurisdio

    assume especial relevncia, pela necessidade de controlar a indeterminabilidade das normas

    que no conseguem por impossibilidade filosfica abarcar as diversas hipteses de

    aplicao, a hermenutica filosfica, adaptada ao que venho denominando de Crtica

    Hermenutica do Direito

    10

    , pretende ir alm dos discursos prvios de fundamentao trazidospelas teorias discursivas como soluo para o problema da subjetividade (e, portanto, da

    discricionariedade) do juiz.

    Como o direito um saber prtico e que deve servir para resolver problemas e

    concretizar os direitos fundamentais-sociais que ganharam espao nos textos constitucionais,

    9 Como j se viu, o primeiro problema como se interpreta e o segundo como se aplica. Ambos so resolvidos,no plano da hermenutica, a partir de sua no ciso, isto , a partir da applicatio.10

    Remeto o leitor para os meus: Verdade e Consenso. Constituio, Hermutica e Teorias Discursivas. Dapossibilidade necessidade de respostas corretas em Direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2007; eHermenutica Jurdica e(m) Crise. 7.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, onde proponho as bases deuma nova crtica do direito.

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    a superao dos obstculos que impedem o acontecer do constitucionalismo de carter

    transformador estabelecido pelo novo paradigma do Estado Democrtico de Direito pressupe

    a construo das bases que possibilitem a compreenso do estado da arte do modus

    operacional do direito.

    O problema da inefetividade da Constituio e tudo o que ela representa no se

    resume a um confronto entre modelos de direito. O confronto , pois, paradigmtico. A

    Constituio ainda possui fora normativa, pois. Penso que o constitucionalismo do Estado

    Democrtico de Direito (guardadas as especificidades de cada pas e de seus respectivos

    estgios de desenvolvimento social e econmico) tem uma fora sugestiva relevante quando

    associado idia de estabilidade que, em princpio, se supe lhe estar imanente.11 Esta

    estabilidade est articulada com o projeto da modernidade poltica, que, sucessivamenteimplementado, respondeu a trs violncias (tringulo dialctico), atravs da categoria

    poltico-estatal: a) respondeu falta de segurana e de liberdade, impondo a ordem e o direito

    (o Estado de direito contra a violncia fsica e o arbtrio); b) deu resposta desigualdade

    poltica alicerando liberdade e democracia (Estado democrtico); c) combateu a terceira

    violncia a pobreza mediante esquemas de socialidade.12 Tenho presente, assim, que o

    papel diretivo da Constituio continua a ser o suporte normativo do desenvolvimento deste

    projeto de modernidade.Na medida em que no resolvemos essas trs violncias e essa questo aparece

    dramaticamente na realidade de pases como Brasil, Colmbia, Venezuela, Argentina, para

    falar apenas destes , mostra-se equivocado falar em desregulamentao do Estado e

    enfraquecimento da fora normativa dos textos constitucionais e, consequentemente, da

    prpria justia constitucional no seu papel de garantidor da Constituio. Na verdade, a

    pretenso que os mecanismos constitucionais postos disposio do cidado e das

    instituies sejam utilizados, eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderespblicos disponham livremente da Constituio. A Constituio no simples ferramenta;

    no uma terceira coisa que se interpe entre o Estado e a Sociedade.

    nesse sentido que assume relevncia uma anlise do problema a partir de uma leitura

    hermenutica. As alteraes do papel do Estado esto ligadas s transformaes do papel do

    direito. Por isso que no h teoria constitucional sem (teoria do) Estado. Se no Estado

    Democrtico de Direito, ao mesmo tempo em que diminui a liberdade de conformao

    legislativa, ocorre um crescimento do espao de atuao da justia constitucional em razo

    11 Ver, para tanto, CANOTILHO, J.J. Gomes. O Estado Adjetivado e a Teoria da Constituio. InteressePblico, Porto Alegre, n. 17, 2003, p. 40.

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    do papel destinado s constituies nesta quadra da histria e institucionalizao da moral

    no direito como demonstrao do fracasso do positivismo e do modelo de regras , parece

    inexorvel a necessidade de colocar efetivos controles no produto final da interpretao do

    direito: a aplicao pelos juzes e tribunais.

    Essa nova configurao nas esferas de tenso dos Poderes do Estado, decorrente do

    novo papel assumido pelo Estado e pelo constitucionalismo, refora, sobremodo, o carter

    hermenutico que o direito assume. Afinal, h um conjunto de elementos que identificam essa

    fase da histria do direito e do Estado: textos constitucionais principiolgicos, a

    previso/determinao de efetivas transformaes da sociedade (carter compromissrio e

    diretivo das Constituies) e as crescentes demandas sociais que buscam no poder judicirio a

    concretizao de direitos tendo com base os diversos mecanismos de acesso justia.Mas isso, toda evidncia, no pode comprometer os alicerces da democracia

    representativa. O grande dilema contemporneo ser, assim, o de construir as condies para

    evitar que a justia constitucional (ou o poder dos juzes) se sobreponha ao prprio direito.

    Parece evidente lembrar que o direito no e no pode ser aquilo que os tribunais dizem

    que . E tambm parece evidente que o constitucionalismo no incompatvel com a

    democracia. Mas, se algum deve dizer por ltimo o sentido do direito no plano de sua

    aplicao cotidiana, e se isso assume contornos cada vez mais significativos em face docontedo principiolgico e transformador da sociedade trazidos pelas Constituies, torna-se

    necessrio atribuir um novo papel teoria jurdica.

    Ou seja, se o positivismo fracassou com a antidemocrtica delegao em favor dos

    juzes para a deciso dos casos difceis, no parece apropriado que o advento do

    constitucionalismo principiolgico possa ser compreendido a partir daquilo que sustentou o

    velho modelo: o esquema sujeito-objeto, pelo qual casos fceis eram solucionados por

    subsuno e casos difceis por escolhas discricionrias do aplicador.Conseqentemente, no se pode substituir a discricionariedade (subjetivista), que

    sustentou o positivismo, por um novo tipo de discricionariedade, que fosse admitida teria

    um terreno muito mais frtil para se instalar nesta quadra do tempo, uma vez que, vistos a

    partir de uma perspectiva metafsica, os princpios possuem textura bem mais aberta que o

    velho modelo de regras do positivismo. neste ponto que a teoria do direito deve dar um

    salto, adequando-se ao novo perfil assumido pelo direito (que ser sempre um direito

    constitucional). Por isso a relevncia do trplice problema metodolgico antes delineado:

    interpretao, aplicao e a (im)possibilidade de alcanar respostas corretas em direito.

    12 Idem, ibidem.

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    Se as concepes metafsicas sobre o direito esto sustentadas na atribuio de

    sentidos in abstracto e por isso sustentam a possibilidade da existncia de mltiplas

    respostas , porque a interpretao ocorre em etapas, cindindo/separando a interpretao da

    aplicao, como se fossem mundos distintos. Ora, exatamente neste ponto que reside o

    diferencial entre a hermenutica e as diversas teorias discursivo-procedurais. Em outras

    palavras, a incindibilidade entre interpretar e aplicar que ir representar a ruptura com o

    paradigma representacional-metodolgico. E o crculo hermenutico que vai se constituir

    em condio de ruptura do esquema (metafsico) sujeito-objeto, nele introduzindo o mundo

    prtico (faticidade), que serve para cimentar essa travessia, at ento ficcionada na e pela

    epistemologia. Definitivamente, no h como isolar a pr-compreenso.

    Negar a possibilidade de que possa existir (sempre) para cada caso uma respostaconformada Constituio portanto, uma resposta correta sob o ponto de vista

    hermenutico , pode significar a admisso de discricionariedades interpretativas, o que se

    mostra antittico ao carter no-relativista da hermenutica filosfica e ao prprio paradigma

    do novo constitucionalismo principiolgico introduzido pelo Estado Democrtico de Direito,

    incompatvel com a existncia de mltiplas respostas.

    possvel e necessrio dizer, sim, que uma interpretao correta e a outra

    incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porquepodemos fazer afirmaes dessa ordem.E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreenso os conceitos interpretativos no

    resultam temticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrrio, determinam-se

    pelo fato de que desaparecem atrs daquilo que eles fizeram falar/aparecer na e pela

    interpretao. Aquilo que as teorias da argumentao ou qualquer outra concepo teortico-

    filosfica (ainda) chamam de raciocnio subsuntivo ou raciocnio dedutivo nada mais do

    que esse paradoxo hermenutico, que se d exatamente porque a compreenso um

    existencial (ou seja, por ele eu no me pergunto porque compreendi, pela simples razo deque j compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre chegue tarde).

    Uma interpretao correta quando desaparece, ou seja, quando fica objetivada

    atravs dos existenciais positivos, em que no mais nos perguntamos sobre como

    compreendemos algo ou por que interpretamos dessa maneira e no de outra: simplesmente, o

    sentido se deu (manifestou-se), do mesmo modo como nos movemos no mundo atravs de

    nossos acertos cotidianos, conformados pelo nosso modo prtico de ser no mundo. Fica sem

    sentido, destarte, separar/cindir a interpretao em easy cases e hard cases.

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    4.1. A indevida distino entre casos fceis e casos difceis

    Da a necessidade de deixar claro que a crise dos modelos interpretativos no autoriza

    que as teorias da argumentao ou outras teorias procedurais venham a se constituir em uma

    espcie de reserva hermenutica, que somente seria chamada colao na insuficincia da

    regra, isto , quando se estiver em face de casos difceis (hard cases). Casos fceis (easy

    cases) e casos difceis (hard cases) partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo

    que lhes condio de possibilidade: a pr-compreenso (Vorverstndnis). Esse equvoco de

    separar easy cases de hard cases cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teorias

    discursivo-argumentativos, valendo citar, por todos,13 Alexy14 e Atienza15. O que tm em

    comum o fato de que, nos hard cases, consideram que os princpios (critrios) para solv-losno se encontram no plano da aplicao, mas, sim, devem ser retirados de uma histria

    jurdica que somente possvel no plano de discursos a priori (no fundo, discursos de

    fundamentao prvios). Tambm Dworkin faz indevidamente essa distino entre casos

    fceis e casos difceis. Mas o faz por razes distintas. A diferena que Dworkin no

    desonera os discursos de aplicao dos discursos de fundamentao, que se doprima facie.

    Na verdade, a exemplo de Gadamer, ele no distingue discursos de aplicao de discursos de

    fundamentao, assim como no separa interpretao e aplicao.Acreditar na distino (ciso) entre casos simples (fceis) e casos difceis (complexos)

    pensar que o direito se insere em uma suficincia ntica, isto , que a completude do

    mundo jurdico pode ser resolvida por raciocnios causais-explicativos, em uma espcie de

    positivismo da causalidade. Pensar assim esquecer que essa metafsica da causalidade

    apenas uma etapa necessria para chegarmos aos entes.

    13 Embora essa questo no esteja explcita em Habermas e Gnther, penso que ambos incorrem nessa ciso.

    Para tanto, valho-me da leitura de Habermas em seus: Teora de la accin comunicativa: complementos yestudios previos. Madrid: Ctedra, 1989; Direito e democracia I e II. Entre Faticidade e Validade. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1997; Reply to may critics. In: THOMPSON, J.; HELD, D. (Eds.). Habermas.Critical Debates. London, 1982; e Gnther em seus: Teoria da Argumentao no Direito e na Moral:

    justificao e aplicao. So Paulo: Landy, 2004; Uma concepo normativa de coerncia para uma teoriadiscursiva da argumentao jurdica. Cadernos de Filosofia Alem, n. 6, So Paulo, Humanitas, Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, 2000. Essa questo por mim enfrentada em Verdade eConsenso, op.cit.14 Cfe. ALEXY, Robert. La idea de una teora procesal de la argumentacin jurdica. In: VALDS, ErnestoGarzn (Org.). Derecho y Filosofa. Alfa, Barcelona-Caracas: Alfa, 1985; Problemas da teoria do discurso.

    Revista do Direito Brasileiro, n. 1, Braslia, UnB, 1996; Derechos fundamentales y Estado ConstitucionalDemocratico. In: CARBONEL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003; Teoria de la

    Argumentacin Jurdica. Teora del Discurso Racional como Teoria de la Fundamentacin Jurdica. Madrid:CEPC, 1997.

    15 Cfe. ATIENZA, Manuel. As razes do direito. Teorias da argumentao jurdica. So Paulo: Landy, 2002;Argumentacin jurdica. In: El derecho y la justicia. Madrid: Trotta, 2000.

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    compreensiva, o caso (que no fcil e nem difcil, mas, sim, um caso) passar ao nvel da

    objetivao e sobre o qual no haver perquirio acerca dos motivos da compreenso. Por

    tais razes, torna-se invivel como querem, v.g., os tericos da teoria da argumentao

    sustentar raciocnios dedutivos (causais-explicativos) para os casos fceis.

    O problema de um caso ser fcil (easy) ou difcil (hard) no est nele mesmo, mas

    na possibilidade que advm da pr-compreenso do intrprete de se compreend-lo. Fosse

    possvel distinguir/cindir (a priori) casos fceis e casos difceis, chegar-se-ia concluso de

    que os casos seriam fceis para determinados intrpretes e difceis para outros...! A questo

    vista de outro modo : fcil ou difcil para quem?

    Portanto, h algo anterior distino: trata-se de uma dobra hermenutica que cada

    caso possui, assim como ocorre com a linguagem (alis, um caso s vem compreensoatravs da linguagem, porque e no devemos esquecer texto evento). Ou seja, uma

    suficincia ntica pode at explicar um caso simples para um intrprete. Entretanto, esse

    mesmo caso pode permanecer como complexo para outro. Conseqentemente, a distino

    entre casos fceis e difceis est na compreenso, portanto, nas condies de possibilidades

    que o intrprete possui de entender os pr-juzos. Se est na compreenso, ento depender de

    uma pr-compreenso, que antecede a designao de ser um caso fcil ou difcil. Da a

    absoluta inadequao de se dizer que os casos fceis se resolvem mediante raciocniosdedutivos (causais explicativos).

    4.2. Da inadequada distino/ciso entre regras e princpios

    Do mesmo modo, tem-se a inadequada compreenso acerca da tenso entre regra e

    princpio, que acaba sucumbindo em mais um dualismo metafsico. A regra no explica; ela

    esconde (a regra no desvela; ela vela). O princpio desnuda a capa de sentido imposta pelaregra (pelo enunciado, que pretende impor um universo significativo auto-suficiente). No

    fundo, o positivismo jurdico no conseguiu ainda nem sequer superar a metafsica clssica,

    circunstncia facilmente perceptvel em setores importantes da doutrina jusfilosfica que a

    sustentam, acreditando que a palavra da lei (regra) designa no a coisa individual, mas a

    comum a vrias coisas individuais, ou seja, a essncia captvel pelo intrprete. Por outro lado,

    as posturas positivistas tambm no superaram a metafsica moderna, o que se pode perceber

    pelas posies assumidas por considervel parcela dos juristas que a pretexto de

    ultrapassar a literalidade do texto, coloca no sujeito a tarefa essencialista de descobrir

    os valores escondidos debaixo da regra, isto , na insuficincia da regra construda a

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    partir da conscincia de si do pensamento pensante entra em cena o intrprete com a sua

    mente privilegiada (veja-se, nisso, a imbricao dos dois paradigmas metafsicos) para

    levantar o vu que encobre o verdadeiro sentido da regra (sic).

    Eis a novidade: por trs de cada regra, passa a existir um princpio. Enquanto as

    insuficincias provocadas pela limitao prpria das regras eram superadas pelas teorias da

    argumentao e correlatas (mas sempre ainda atreladas a teses axiolgico-subjetivas), atravs

    do manuseio das incertezas da linguagem, o paradigma que supera esse modelo, sustentado no

    novo constitucionalismo (neoconstitucionalismo), passa a ter na aplicao dos princpios e

    no na sua ponderao como quer, por exemplo, Alexy o modo de alcanar respostas

    adequadas constitucionalmente (respostas hermeneuticamente corretas/verdadeiras), evitando

    a descontextualizao do direito e a ciso do que incindvel: fato e direito, texto e norma,palavra e coisa, interpretao e aplicao, enfim, os diversos dualismos que sustentam o

    modelo positivista-metafsico do direito. Desnecessrio lembrar que a aplicao dos

    princpios aqui especificada diz respeito applicatio gadameriana, o que nos remete,

    necessariamente, faticidade, ao modo prtico de ser no mundo, diferena ontolgica

    (ontologische Differentz). Portanto, no se est substituindo a regra pelo princpio ao

    sustentar a aplicao destes no lugar da regra. Essa iluso poderia levar concluso de que

    essa aplicao poderia se dar nos moldes alexianos.Numa palavra e permito-me insistir , importante notar que essa distino entre regra

    e princpio deve ser vista luz do paradigma hermenutico, sob pena de no ser

    compreendida e provocar confuses. Estar equivocado aquele que achar que se trata da

    distino obtida pelo critrio forte, que v nos princpios uma estrutura lgica diferenciada

    daquela percebida nas regras (dado A deve ser B). Essa diferena, a rigor, somente ser

    percebida no plano apofntico, quando criamos um mnimo de entificao necessria para

    transmitir mensagens. Neste plano e apenas neste podemos dizer que o princpio(independente da sua forma textual), diferentemente das regras, traz consigo a carga de uma

    filosofia prtica, razo pela qual acaba sendo, no mais das vezes, associado aos valores. Nesse

    contexto, os princpios representariam a tentativa de resgate de um mundo prtico abandonado

    pelo positivismo. As regras, por outro lado, representariam uma tcnica para a

    concretizao desses valores (sic), ou seja, meios (condutas) para garantir um estado de

    coisas desejado. Mas, convm notar que essa distino somente poder ser feita no plano

    apofntico, no tendo sentido se entendida como uma analtica constituidora de sentido. No

    plano hermenutico, h a pr-compreenso como condies de possibilidade, que impede a

    distino estrutural entre regras e princpios.

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    Distinguir regra e princpio no pode significar que as regras sejam uma espcie de

    renegao do passado e de seus fracassos e nem tampouco que os princpios traduzam o

    ideal da boa norma. Ora, regra e princpio so textos, donde se extraem normas. Regras (se

    se quiser, preceitos) produzidas democraticamente podem/devem, igualmente, traduzir a

    institucionalizao da moral no direito. A distino regra-princpio no pode significar,

    assim, maior ou menor grau de subjetividade. Isso equivocado e proporciona mal-

    entendidos. Se assim o fosse, os princpios no representariam uma ruptura com o mundo de

    regras. Mas regras no so boas nem ms; carregam, inegavelmente, um capital simblico

    que denuncia um modelo de direito que fracassou: o modelo formal-burgus, com suas

    derivaes que cresceram sombra do positivismo jurdico. E isso no pode ser olvidado.

    neste contexto que deve ser compreendida a diferena entre regra e princpio. Oprincpio no a norma da regra; tambm a regra no um ente disperso no mundo

    jurdico, ainda sem sentido. A diferena que sempre h uma ligao hermenutica entre

    regra e princpio. Isso fundamental para a compreenso do problema. No fosse assim e no

    se poderia afirmar que atrs de cada regra h um princpio. Esse princpio, que denominamos

    instituidor, na verdade, constitui o sentido da regra na situao hermenutica gestada no

    Estado Democrtico de Direito. Essa a especificidade; no um princpio geral do direito,

    um princpio bblico, um princpio (meramente) poltico. No fundo, quando se diz que entreregra e princpio h (apenas) uma diferena (ontolgica, no sentido da fenomenologia

    hermenutica no original, ontologische Differentz), porque regra e princpio se do, isto ,

    eles acontecem (na sua norma) no interior do crculo hermenutico. H sempre, pois, um

    engendramento significativo (um Ereignis significativo).

    Em sntese, necessrio entender que, diante do conceitualismo provocado pelo

    imprio das regras em um mundo de subsunes e dedues que nada mais fazem do que

    reforar a subjetividade (discricionariedade) do intrprete, os princpios constitucionaisingressam no cenrio jurdico para superar esse paradigma da deduo (causalista-

    explicativo), que se move ainda no plano da teoria do conhecimento (esquema sujeito-objeto).

    Portanto, para as posturas positivistas ainda inseridas nesse modelo, a questo no

    s metodolgica, mas, sim, ontolgica no sentido clssico, que o paradigma da objetivao;

    nesse paradigma, h uma questo de mtodo uma posio ontolgico-metafsica. Move-se,

    pois, no campo do fundamentar. Em outras palavras: h um fundamento objetivamente

    ontolgico e disso resulta o mtodo positivista. Nisso est assentado o paradigma positivista.

    Positivismo, subjetivismo (filosofia da conscincia), discricionariedade (que redunda em

    arbitrariedades) esto umbilicalmente ligados (sem desconsiderar a importncia para o

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    positivismo jurdico das teorias semnticas assentadas no paradigma objetivistametafsico-

    clssico).17 E por tais razes que o mtodo positivista exclui o hermenutico e a pr-

    compreenso. Quem est preso a esse paradigma incapaz de entrar no campo do

    compreender, fixando-se na fundamentao de carter objetificante. O mtodo , por

    excelncia, a forma de objetificao metafsica.

    4.3. A ponderao como repristinao da discricionariedade positivista: a diferena

    entre hermenutica e teoria da argumentao jurdica

    Se no positivismo os casos difceis eram deixados a cargo do juiz resolver de

    forma discricionria (com as conseqncias histricas de que j falei anteriormente), emtempos de ps-positivismo e naquilo que se denominou de teoria(s) da argumentao

    jurdica(s), os hard cases passaram a ser resolvidos a partir de ponderaes de princpios.

    Quando os princpios entram em conflito, devem ser ponderados, diz, por todos, Alexy,

    sustentando, assim, a tese da hierarquizao axiolgica. O problema saber como feita essa

    escolha...!

    Penso, aqui, que o calcanhar de aquiles da ponderao e, portanto, das diversas

    teorias argumentativas reside no deslocamento da hierarquizao ponderativa em favor dasubjetividade (assujeitadora) do intrprete, com o que a teoria da argumentao, como

    sempre denunciou Arthur Kauffman, no escapa do paradigma representacional. No fundo,

    volta-se ao problema to criticado da discricionariedade, que, para o positivismo (por todos,

    Kelsen e Hart), resolvido por delegao ao juiz. Assim, tambm nos casos difceis de que

    falam as teorias argumentativas, a escolha do princpio aplicvel repristina a antiga

    delegao positivista (na zona da franja, em Hart ou no permetro da moldura, em Kelsen),

    cabendo ao intrprete dizer qual o princpio aplicvel, isto , tal como no positivismo, cabe aojuiz decidir nas zonas de incertezas e das insuficincias nticas, para usar aqui uma

    expresso que faz parte do repertrio que identifica a dobra da linguagem (Stein-Streck)

    que sustenta a ausncia de ciso entre harde easy cases.

    A ponderao, modo simples, acaba por repetir a idia da subsuno. Mesmo que

    como prope Alexy devam ser feitas frmulas e critrios de hierarquizao, isso no livra a

    17 Desnecessrio lembrar o papel das smulas vinculantes, que cumprem exatamente esse papel de objetificao.

    evidente que isso no privilgio das smulas, uma vez que, em terrae brasilis, de h muito o direitocontenta-se com um conjunto deprt--posters significativos, por intermdio dos quais o senso comum tericopretende estabelecer previamente as diversas hipteses de aplicao de um texto, transferino o problema dainterpretao do direito para o plano dos discursos de fundamentao, fortificando, assim, os diversos dualismosmetafsicos.

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    ponderao das armadilhas do velho problema da metodologia, to bem criticada e superada

    por Gadamer em Wahrheit und Methode. A ponderao de que trata a teoria da argumentao

    estar baseada em um mtodo, que, a par de ser construdo, solipsisticamente, pelo prprio

    intrprete, nada mais ser do que uma terceira coisa que se interpe entre um sujeito e um

    objeto. Afinal, sempre possvel perguntar acerca das condies de possibilidade que existem

    para afirmar que este critrio para fazer a ponderao melhor que o outro. Ou, de outro

    modo, qual o fundamento de validade do critrio? E volta-se ao trilema de Mnschausen.

    Veja-se que at adeptos da teoria da argumentao, como Pietro Sanchis, admitem que o

    juzo de ponderao implica uma margem (considervel) de discrcionariedade. Pergunta-se,

    ento: qual a distncia da at a arbitrariedade interpretativa (ou, se quiser, do

    decisionismo)?Eis aqui a diferena entre a hermenutica e a teoria da argumentao: enquanto esta

    compreende os princpios (apenas) como mandados de otimizao, portanto, entendendo-os

    como abertura interpretativa, o que chama colao subjetividade do intrprete, quela

    parte da tese de que os princpios introduzem o mundo prtico no direito, fechando a

    interpretao, isto , diminuindo ao invs de aumentar o espao da discricionariedade do

    intrprete. Claro que, para tanto, a hermenutica salta na frente para dizer que, primeiro, so

    incindveis os atos de interpretao e aplicao (com o que se supera o mtodo) e, segundo,no h diferena estrutural entre hard cases e easy cases.

    nesse contexto, isto , por acreditar na existncia de hard cases e easy cases e,

    sobremodo, por dispensar a pr-compreenso antecipadora, a teoria da argumentao

    utiliza-se do princpio da proporcionalidade como chave para resolver a ponderao, a

    partir das quatro caractersticas de todos conhecidas. Como a proporcionalidade s

    chamada colao em caso de necessidade de ponderao (so os casos difceis), ao

    intrprete que caber hierarquizar e decidir qual o princpio aplicvel. Ora, se, ao fim eao cabo, ao intrprete que cabe hierarquizar (e escolher) o princpio aplicvel, a pergunta

    que fica : qual , efetivamente, a diferena entre o intrprete ponderador e o intrprete

    positivista-discricionarista?

    Claro que a Teoria da Argumentao Jurdica mormente a de Alexy responder

    que h um conjunto de critrios que devero sempre balisar a escolha. Mas, pergunto, qual a

    diferena desses critrios (ou frmulas) dos velhos mtodos de interpretao, cujo calcanhar

    de aquiles na feliz expresso de Eros Grau e Friedrich Mller (ra) exatamente no ter um

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    critrio para difundir qual o melhor critrio, que, em outros palavras, comparei, em textos

    anteriores, com a ausncia/impossibilidade de um Grundmethode?18

    Portanto, neste ponto h que se dar razo a Habermas e aos adeptos de sua teoria,

    sobre as suas crticas ao uso discricionrio da ponderao e ponderao discricionria

    (alis, a prpria ponderao passa a ser, por si s, instrumento para o livre exerccio da

    relao sujeito-objeto). Assim, por exemplo, quando se est dizendo que uma lei x

    inconstitucional porque fere o prioncpio da proporcionalidade, na verdade, antes disso, a lei x

    inconstitucional porque, por certo, violou um determinado princpio constitucional. Na

    verdade, esto corretas as crticas de Habermas de que no se deve ponderar valores, nem em

    abstrato, nem em concreto. Por isso, a proporcionalidade no ser legtima se aplicada como

    sinnimo de eqidade. Proporcionalidade19 ser, assim, o nome a ser dado a necessidade decoerncia e integridade de qualquer deciso (aqui h uma aproximao de Habermas com

    Dworkin).

    6. A resposta correta como remdio contra a discricionariedade. Aportes finais em

    tempos de ps-positivismo.

    De tudo o que foi exposto, penso que uma reflexo que aponte para a superao doimaginrio jurdico-positivista necessita dos pressupostos hermenuticos, que apontam para a

    superao do esquema sujeito-objeto, assim como dos diversos dualismos prprios dos

    paradigmas metafsicos objetificantes (clssico e moderno). preciso, portanto, insistir nisso.

    Conscincia e mundo, linguagem e objeto, sentido e percepo, teoria e prtica, texto e

    norma, vigncia e validade, regra e princpio, casos simples e casos difceis, discursos de

    justificao e discursos de aplicao: esses dualismos se instalaram no nosso imaginrio

    sustentados pelo esquema sujeito-objeto.Frente ao estado da arte representado pelo predomnio do positivismo, que sobrevive a

    partir das mais diversas posturas e teorias que se sustentam, de um modo ou de outro, no

    predomnio do esquema sujeito objeto problemtica que se agrava com uma espcie de

    protagonismo do sujeito-intrprete (especialmente juzes e tribunais) em pleno paradigma da

    intersubjetividade penso que, mais do que possibilidade, a busca de respostas corretas em

    direito uma necessidade.

    18 Cf. STRECK, Lenio Luiz.Hermenutica Jurdica E(m) Crise, op. cit.19 Ao invs da proporcionalidade, que acaba sendo utilizada como uma panacia para resolver qualquerproblema, parece mais indicado utilizar as suas duas faces: a proibio de excesso (bermassverbot) eproibio de proteo deficiente (Untermassverbot).

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    Por isso, a resposta correta que venho propondo uma simbiose entre a teoria integrativa

    de Dworkin e a fenomenologia hermenutica (que abarca a hermenutica filosfica). Dito de

    outro modo, trata-se de enfrentar o estado de natureza hermenutico em que o

    discricionarismo positivista transformou o sistema jurdico. A liberdade na interpretao

    dos textos jurdicos proporcionada pelo imprio das correntes (teses, teorias) ainda

    arraigadas/prisioneiras do esquema sujeito-objeto tem gerado esse estado de natureza

    interpretativo, representado por uma guerra de todos os intrpretes contra todos os

    intrpretes...! Cada intrprete parte de um grau zero de sentido. Cada intrprete reina nos

    seus domnios de sentido, com seus prprios mtodos, metforas, metonmias, justificativas,

    etc. Os sentidos lhe pertencem, como se estes estivessem a sua disposio, em uma espcie

    de reedio da relao de propriedade (neo)feudal. Nessa guerra entre os intrpretes afinal, cada um impera solipsisticamente nos seus domnios de sentido reside a morte do

    prprio sistema jurdico.

    A resposta correta uma metfora, como o juiz Hrcules de Dworkin tambm o .

    Afinal, metforas servem para explicar coisas. Isso, evidncia, implica pensar esse modelo

    dentro de suas possibilidades. Com efeito, metfora so criadas porque se acredita que um

    determinado fenmeno poder ser melhor explicado a partir da explicao j consolidada de

    um outro fenmeno, ou seja, a operao com que transferimos significados no-sensveispara imagens ou remetemos elementos sensveis a esferas no-sensveis20. Portanto, se

    considerarmos que essa distino fundamental entre sensvel e no-sensvel no existe, a

    colocao da metfora representa uma atitude tipicamente metafsica, induzindo o agente a

    compreend-la como um ponto de partida universal.

    Contudo e essa advertncia reveste-se de fundamental relevncia, para no gerar

    malentendidos , se a metfora for pensada dentro das limitaes de uma linguagem

    apofntica, que ter sempre como pressuposto a dimenso hermenutica da linguagem, elapermitir, a exemplo do neologismo, uma aproximao entre o dito e o fenmeno j

    compreendido, uma vez que nela encerra, como j foi visto, um grau de objetivao

    minimamente necessrio. A metfora entendida, assim, como a possibilidade, a partir da

    diferena ontolgica, de ligar significantes e significados. A metfora significa a

    impossibilidade de sinonmias perfeitas.

    A metfora da resposta correta ser, desse modo, a explicitao de que possvel

    20 Cf. STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena. Iju: Uniju, 2002, p. 69 e segs. O conceito tradicional demetfora pode ser aplicado, v.g., s smulas vinculantes e aos enunciados pr--porter proto-sumulares queconformam a cultura jurdica dominante, porque pretendem estabelecer explicaes prvias de outros fenmenos

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    atravessar o estado de natureza hermenutica (lembremos o estado de natureza de outra

    metfora, a de Hobbes, em seu Contrato Social) instalado no direito. A metfora nos mostra

    que, ao nos situarmos no mundo, isso no implica um genesis (grau zero) a cada enunciao.

    Dito de outro modo, pela resposta correta compreendida nos moldes aqui delimitados

    estabelece-se a convico (hermenutica) de que h um desde-j-sempre (existencial) que

    conforma o meu compromisso minimamente objetivado(r), uma vez que, em todo processo

    compreensivo, o desafio levar os fenmenos representao ou sua expresso na

    linguagem, chegando, assim, ao que chamamos de objetivao, como sempre nos lembra

    Ernildo Stein.

    Mas e aqui vai uma advertncia indispensvel , a ruptura com o estado de natureza

    hermenutico no se dar atravs de uma delegao em favor de uma instncia ltima, isto ,um abrir mo do poder de atribuir sentidos em favor de uma espcie de Leviat

    hermenutico, como parece ser o caso da institucionalizao da simplista idia das smulas

    vinculantes ou de outros mecanismos vinculatrios (v.g., Leis 8.038, 9.756 e 11.277, para

    falar apenas destas).

    Dito de outro modo, se a resposta para a fragmentao do estado de natureza medieval

    foi a delegao de todos os direitos em favor do Leviat representado pela soberania absoluta

    do Estado (o Estado Moderno absolutista superou, desse modo, a forma estatal medieval), nahermenutica jurdica de cariz positivista a resposta para o imprio dos subjetivismos,

    axiologismos, realismos ou o nome que se d a tais posturas que colocam no intrprete (juiz,

    tribunal) o poder discricionrio de atribuir sentidos no pode ser, sob hiptese alguma, a

    instaurao de uma supra-hermeneuticidade ou a delegao dessa funo para uma super-

    norma que possa prever todas as hipteses de aplicao, que, mutatis, mutandis, a

    pretenso ltima das smulas vinculantes. Assim, contra o caos representado pelos

    decisionismos e arbitrariedades, o establishmentprope um neo-absolutismo hermenutico.E isso recrudece a crise, longe de debel-la.

    Nesse sentido, parece no haver dvidas de que a admisso de mltiplas respostas a

    cada caso est relacionada, antes de tudo ao contrrio do que sustentam os juristas no ao

    caso concreto por todos to reverenciado, mas, sim, ao conceitualismo da regra, que pretende

    abarcar (todas) as possveis situaes de aplicao de forma antecipada, independente

    do mundo prtico, da situao ftica. Aqui, o caso concreto acaba sendo exprimido para

    dentro desse conceito, que, assim, no passa de uma capa de sentido com pretenses

    a partir da explicao consolidada de um, isoladamente, como se o problema do direito se resumisse validade(prvia) dos discursos.

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    universalizantes. De um lado, isso que acontece. Mas h tambm outra parte dos juristas,

    que pretende superar o problema desse semanticismo sem ser-no-mundo. Trata-se daqueles

    para os quais o caso concreto tem a funo ideolgica de servir para a exemplo do realismo

    jurdico e suas derivaes abrir uma nova cadeia de sentidos, como se o intrprete partisse

    de um grau zero de sentidos. Como resultado, so ignorados, sob os mais argumentos mais

    voluntaristas e voluntariosos, os prprios limites de sentido e o sentido dos limites que se

    encontram minimamente entificados (se se quiser, solidificados em uma tradio) nos textos

    jurdicos produzidos democrticamente sob o plio do Estado Democrtico de Direito. Para

    ser mais simples: escudado no caso concreto, diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa...O

    problema saber como se procede no caso seguinte...! Soobram, pois, no somente os textos

    jurdicos produzidos democraticamente, mas a prpria democracia, uma vez que passamos aser refns dessa batalha de sentidos que se d entre os os diversos sujeitos solipsistas

    detentores, cada um, de um feudo interpretativo.

    Na verdade, nesse mundo positivista, o que conta o enunciado, isto , todas as

    outras formas de linguagem e todos os outros modos de dizer do objeto de anlise se resumem

    ao enunciado, que fica dis-posio do sujeito-intrprete. Esse fenmeno, alis, embora sob

    outra motivao, muito bem explicada por Gadamer, para quem a possibilidade de mltiplas

    respostas est calcada no logos apofntico, cuja funo significar o discurso, isto , aproposio cujo nico sentido a de realizar o apofainesthai, o mostrar-se do que foi dito.

    uma proposio terica no sentido de que ela abstrai de tudo que no diz expressamente. O

    que constitui o objeto da anlise e o fundamento da concluso lgica apenas o que ela

    prpria revela pelo seu dizer.21 Ora, na medida em que sempre h um dficit de previses, as

    posturas positivistas delegam ao juiz uma excessiva discricionariedade (excesso de

    liberdade na atribuio dos sentidos), alm de dar azo tese de que o direito (apenas) um

    conjunto de normas (regras). Em conseqncia, transforma-se a interpretao jurdica emfilologia, forma refinada de negao da diferena ontolgica. E tambm no se pode, a

    pretexto de superar o problema da arbitrariedade (subjetivista-axiologista) do juiz, desoner-

    lo da tarefa de elaborao de discursos de fundamentao, como querem, por exemplo,

    Habermas e Gnther.

    A resposta correta que no nica e nem uma entre vrias22 luz da hermenutica

    (filosfica)23 ser a resposta hermeneuticamente correta para aquele caso, que exsurge na

    21 Cfe. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Ergnzungen Register. Hermeneutik II. Tbingen:Mohr, 1990, pp.193 e 194.22 Nesse sentido, ver meu Verdade e Consenso, op. cit.

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    sntese hermenutica da applicatio. Essa resposta propiciada pela hermenutica dever, a toda

    evidncia, estar justificada (a fundamentao exigida pela Constituio implica a obrigao de

    justificar) no plano de uma argumentao racional, o que demonstra que, se a hermenutica

    no pode ser confundida com teoria da argumentao24, no prescinde, entretanto, de uma

    argumentao adequada (vetor de racionalidade de segundo nvel, que funciona no plano

    lgico-apofntico). Afinal, se interpretar explicitar o compreendido (Gadamer), a tarefa de

    explicitar o que foi compreendido reservado s teorias discursivas e, em especial, teoria da

    argumentao jurdica. Mas esta no pode substituir ou se sobrepor quela, pela simples razo

    de que metdico-epistemolgica.

    Nesse sentido, a tese da resposta constitucionalmente adequada (ou a resposta correta

    para o caso concreto) pressupe uma sustentao argumentativa. A diferena entrehermenutica e a teoria argumentativo-discursiva que quela trabalha com uma justificao

    do mundo prtico, ao contrrio desta, que se contenta com uma legitimidade meramente

    procedimental. Isto , na teoria do discurso, a pragmtica convertida no procedimento.

    Mutatis, mutandis, trata-se de justificar a deciso25 (deciso no sentido de que todo

    ato aplicativo e sempre aplicamos uma de-ciso). Para esse desiderato, compreendendo

    o problema a partir da antecipao de sentido (Vorhabe, Vorgriff, Vorsicht), no interior da

    virtuosidade do circulo hermenutico, que vai do todo para a parte e da parte para o todo, semque um e outro sejam mundos estanques/separados, fundem-se os horizontes do intrprete

    do texto (insista-se, texto evento, texto fato, texto no um mero enunciado lingstico).

    Toda a interpretao comea com um texto, at porque, como diz Gadamer, se queres dizer

    algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentido exsurgir de acordo

    com as possibilidades (horizonte de sentido) do intrprete em diz-lo, donde pr-juzos falsos

    acarretaro graves prejuzos hermenuticos.

    Atravs do circulo hermenutico, faz-se a distino entre pr-juizos verdadeiros efalsos, a partir de um retorno contnuo ao projeto prvio de compreenso, que tem na pr-

    compreenso a sua condio de possibilidade. O intrprete deve colocar em discusso os seus

    23 A partir da leitura que fao da filosofia hermenutica e da hermenutica filosfica, proponho uma CrticaHermenutica do Direito. Ver, para tanto, meus Hermenutica Jurdica e(m) Crise, op. cit.; e Verdade eConsenso, op. cit.24 H uma ntida diferena entre a tese da resposta correta a ser dada pela hermenutica filosfica e o tipo deresposta proposta a partir das teorias do discurso e da argumentao. Assim, embora minha concordncia emrelao inviabilidade da nica resposta correta, no possvel, porm, concordar com as crticas referida

    tese feitas luz da teoria da argumentao jurdica, exatamente pelo no abandono, por parte destas, dasubsuno e, portanto, do esquema sujeito-objeto (pelo menos, se assim se quiser, para os easy cases).25 A justificativa condio de possibilidade da legitimidade da deciso. Nesse sentido, guardadas asespecificidades da operacionalidade do direito na common law e na civil law, remeto o leitor a Dworkin, em seuUma Questo de Princpio. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p 238.

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    pr-juizos, isto , os juzos prvios que ele tinha sobre a coisa antes de com ela se confrontar.

    Os pr-juizos no percebidos enquanto tais nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a

    tradio. No perceber os pr-juizos como pr-juizos alienam o intrprete, fazendo-o refm

    da tradio ilegtima. A compreenso tem nsita a permanente tenso entre coisa e intrprete.

    Por conseguinte, compreender no um ato reprodutivo (Auslegung), e, sim, um ato

    produtivo, de dar sentido coisa (Sinngebung). Interpretar ser, assim, explicitar uma

    possibilidade verdadeira do texto compreendido. Interpretar iluminar as condies sobre as

    quais se compreende, para usar as precisas palavras de Gadamer.

    Na verdade, essa explicitao o espao epistemolgico da hermenutica. Explicita-

    se as condies pelas quais se compreendeu. A hermenutica no afasta a epistemologia.

    Entretanto, o que no possvel fazer confundir os nveis nos quais nos movemos. A

    separao entre o epistemolgico e o nvel concreto no o mesmo que dividir o

    transcendental e o emprico. Em muitos momentos, a hermenutica introduz o elemento

    epistemolgico, se assim se quiser dizer. A posio hermenutica no pretende eliminar

    procedimentos. Ela j sempre compreende essa circunstncia, porque capaz de analisar

    filosoficamente os elementos da pr-compreenso. Ou seja, quando explicito o (j)

    compreendido, esse processo se d no nvel lgico-argumentativo, e no filosfico. E, insista-

    se: filosofia no lgica. Pela hermenutica, fazemos uma fenomenologia do conhecimento.

    No uma coisa concreta. , sim, a descrio da autocompreenso que opera na compreenso

    concreta.

    Mais do que fundamentar uma deciso, necessrio justificar (explicitar) o que foi

    fundamentado. Fundamentar a fundamentao, pois. Ou ainda, em outras palavras, a

    fundamentao (justificao) da deciso, em face do carter no procedural da hermenutica e

    em face da mediao entre o geral e o particular (o todo e a parte e a parte e o todo) na tomada

    de decises prticas (aqui reside a questo da moral, porque a Constituio agasalha em seu

    texto princpios que traduzem deontologicamente a promessa de uma vida boa, uma sociedade

    solidria, o resgate das promessas da modernidade, etc) faz com que nela na fundamentao

    do compreendido o intrprete (juiz) no possa impor um contedo moral atemporal ou

    ahistrico, porque o caso concreto representa a sntese do fenmeno hermenutico-

    interpretativo.

    Por outro lado, parece despiciendo referir que a resposta correta no , jamais, uma

    resposta definitiva. Do mesmo modo, a pretenso de se buscar a resposta correta no possui

    condies de garant-la. Corre-se o risco de se produzir uma resposta incorreta. Mas o fato de

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    se obedecer a coerncia e a integridade do direito, a partir de uma adequada suspenso de pr-

    juzos advindos da tradio, j representa o primeiro passo no cumprimento do direito

    fundamental que cada cidado tem de obter uma resposta adequada a Constituio .

    Hermeneuticamente e na medida em que o tempo o nome do ser e a distncia temporal

    sempre um aliado e no um inimigo a resposta correta (sempre) provisria, at porque h

    uma dialtica entre velamento e desvelamento. O ser se vela e se desvela. A linguagem

    proporciona descobertas e encobrimentos. Por isso, os enunciados lingsticos que descrevem

    o direito no so o lugar da resposta correta, mas a resposta correta ser o lugar dessa

    explicitao, que, hermeneuticamente, no se contentar com uma fundamentao de

    carter a priori dos discursos de fundamentao.

    Na era das Constituies compromissrias e sociais, enfim, em pleno ps-positivismo,uma hermenutica jurdica capaz de intermediar a tenso inexorvel entre o texto e o sentido

    do texto e dar conta do mundo prtico no pode continuar a ser entendida como uma teoria

    ornamental do direito, que sirva to somente para colocar capas de sentido aos textos

    jurdicos. No interior da virtuosidade do crculo hermenutico, o compreender no ocorre por

    deduo. Conseqentemente, o mtodo (o procedimento discursivo) sempre chega tarde,

    porque pressupe saberes tericos separados da realidade.

    Numa palavra: mundo mundo pensado. E a filosofia hermenutica; no lgica.As coisas s so na medida em que so compreendidas. Quando falo em rupturas

    paradigmticas quero falar de profundas alteraes no modo de entender o mundo. Ora,

    nesse contexto que preciso ter presente que o novo paradigma neoconstitucional (e,

    portanto, nos propsitos destas reflexes, ps-positivista) consubstancia e proporciona um

    deslocamento do plo de tenso do solipsismo (Selbstsichtigkeit) das decises do judicirio

    em direo esfera pblica de controle dessas decises. E disso o campo jurdico (dominante)

    no se d (e at hoje no se deu) conta, isto , no compreende que o constitucionalismo doEstado Democrtico de Direito deve ser compreendido no contexto da ruptura paradigmtica

    ocorrida no campo da filosofia.Dito de outro modo, o direito no est imune ao pensamento

    que move o mundo. Conseqentemente, a derrocada do esquema sujeito-objeto (ponto fulcral

    das reflexes das teorias democrticas que vo desde as teorias do discurso hermenutica)

    tem repercusso no novo modelo de Estado e de Direito exsurgido a partir do segundo ps-

    guerra. Por isso, o novo constitucionalismo dessa quadra da histria condio de

    possibilidade para a superao do positivismo; e, por isso, ps-positivista.

    No interior dessa ruptura paradigmtica cujos efeitos so profundamente

    revolucionrios para o direito , o sujeito solipsista (Selbstschtiger) d lugar

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    intersubjetividade. O solipsismo proporciona/proporcionou uma privatizao de sentidos

    (afinal, a conscincia de si do pensamento pensante). Da a pergunta: de que modo um/esse

    sujeito, que se sustenta (fundamentum inconcussum) individual e egoisticamente, pode vir a

    compreender a sua prpria anttese? Ora, o modelo formal-burgus (liberal-individualista e

    tudo o que dele decorreu) foi concebido a partir e pelo sujeito solipsista. por tais razes que

    a derrocada do modelo de direito e de Estado demanda um novo sujeito, mas um sujeito que

    j no possa dominar os sentidos, como se fossem propriedade sua, enfim, como se os

    sentidos fossem produtos de sua cosncincia individual. Dito de outro modo, indispensvel

    compreender que o novo paradigma neoconstitucionalista (ps-positivista) exige uma

    construo intersubjetiva de sentidos. O que parece difcil de ser entendido no campo jurdico

    que, no modelo fruto do imprio da subjetividade, o sujeito que se assenhora dosespaos em que se do os sentidos l/interpreta o mundo atravs destes (seus) territrios

    significativos. Ou seja, o esquema sujeito-objeto uma forma de impedir a penetrao do

    nvel discursivo forjado intersubjetivamente nos espaos pblicos. Para assim agir, o sujeito

    do esquema s-o toma posse da linguagem (para ele, apenas uma terceira coisa) e constri

    blindagens contra a manifestao hermenutica dos fenmenos.26 E essa terceira coisa que

    possibilita a entificao dos sentidos (veja-se o congelamento de sentidos feita pelo sentido

    comum terico), colocando-se como barreira contra a transcendncia27

    (lembremos dosdiversos dualismos que povoam o discurso jurdico).

    Para uma melhor compreenso dessa fenomenologia, basta que examinemos alguns

    sintomas (positivistas) dessa no recepo do paradigma da intersubjetividade no e pelo

    direito. Com efeito, quando j de h muito est anunciada a morte do sujeito (da subjetividade

    assujeitadora filosofia da conscincia), parece que, no mbito do direito, tal notcia no

    surtiu qualquer efeito. Continuamos a apostar nesse sujeito do esquema metafsico sujeito-

    objeto e, portanto, no deslocamento do polo de tenso dos sentidos em favor do sujeitodiscricionrio. Para exemplificar, veja-se que o Cdigo de Processo Penal sustenta-se no

    modelo inquisitivo, pelo qual o juiz toma decises de ofcio prises, diligncias, busca de

    provas etc (h at mesmo recursos de ofcio); o Cdigo de Processo Civil fruto de repetidas

    apostas no procedimento que tem o sujeito-juiz como protagonista recordemos, aqui, o

    26 Isso fica ntido pela seguinte questo: o discurso dogmtico, refm do esquema sujeito-objeto, provoca ovelamento do sentido do ser autntico do direito; no fundo, o discurso jurdico-dogmtico nadifica as

    possibilidades transformadoras e emancipatrias do direito exsurgente do neoconstitucionalismo.27 A transcendncia entendida no sentido da fenomenologia hermenutica. Nesse sentido, o princpio pode serentendido como a transcendncia da regra. por tais razes que venho sustentando que entre regra e princpiono h uma distino estrutural e sim apenas uma diferena, que ontolgica (evidentemente, estou falando daontologische Differentz).

  • 7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica

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    papel da escola instrumentalista do processo , com a funo de adaptar o procedimento

    correta aplicao da tcnica processual, reconhecendo-se ao julgador o poder de adequar (sic)

    o mecanismo s especificidades da situao, utilizando-se, para tal, de sua sensibilidade e

    seu sentido do justo (considere-se, ainda, que as sucessivas reformas foram transferindo as

    decises colegiadas para o monocratismo);28 no direito civil, parcela considervel dos juristas

    aposta nas clusulas gerais, que, em face de sua abertura, dariam maior possibilidade para o

    juiz buscar o justo concreto (sic), o que nada mais do que reforar a velha

    discricionariedade positivista; no direito penal, basta uma leitura do artigo 59, para

    compreendermos a dimenso da cognio (metafsica) a ser feita pelo aplicador, sem

    considerar a ontologia clssica que sustenta a(s) teoria(s) do delito; no direito tributrio, o

    sujeito liberal-individualista continua a ser mesmo nesta quadra da histria o protagonistade uma contraposio Estado-Sociedade (como se ainda vivssemos no sculo XIX), cuja

    leitura/interpretao feita, no raras vezes, a partir de regras que superam princpios

    constitucionais (sic); por ltimo, na teoria do direito, em nome da ponderao e esse o

    problema fulcral, v.g., da teoria da argumentao jurdica , abre-se um campo profcuo para

    o exerccio de discricionariedades (que levam arbitrariedades) e decisionismos, sob os

    auspcios dos diversos graus de proporcionalidades, alm da defesa da distino lgico-

    estrutural entre casos simples (que seriam solucionados por deduo ou subsuno- sic) ecasos complexos (para os quais so chamados colao os princpios). Isso para dizer o

    mnimo.

    De todo modo, nisso tudo h um ponto comum. Est-se diante de um novo princpio

    epocal. Na verdade, se o ltimo princpio epocal da era das duas metafsicas foi a vontade do

    poder (Wille zur Macht),29 o novo princpio, forjado na era da tcnica, transforma o direito em

    uma mera racionalidade instrumental (lembremos, sempre e novamente, as escolas

    instrumentalistas do processo...!). Manipulando o instrumento, tem-se o resultado. Ao finaldessa linha de produo, o direito (ser) aquilo que (ess)a vontade do poder quer que seja.

    28 Parece que a comunidade jurdica esquece que, cada vez que se pretende processualizar mais o sistema,ocorre uma diminuio do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal. Na verdade, essaprocessualizao entendida como a construo de mecanismos que visam desafogar os Tribunais esimplificar o procedimento acaba por no produzir maiores possibilidade de acesso justia, participao das partes, etc, e, sim, to-somente reforam o poder decisrio do condutor do processo (desculpemminha insistncia no tema, mas esse sujeito o Selbstschtigerde que tanto venho falando), que transformadono nico protagonista (para quem tem dvidas, recomendo que frequente sees de Turmas e Cmaras dosTribunais, assista o julgamento dos agravos decorrentes das decises monocrticas, etc). No fundo, as reformasque buscam efetividades quantitativas acabam funcionando como o direito do consumidor: sob pretexto de oproteger, coloca-se sua disposio telefones 0800...29 Lembremos, pois, o eidos platnico, a ousia aristotlica, o ens creaturaquiniano, o cogi