[hermenêutica] hermenêutica jurídica e(m) crise - uma exploração hermenêutica da construção...

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S914h Streck, Lenio Luiz Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lenio Luiz Streck. — Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 264p.; 16x23 cm. ISBN 85-7348-103-X 1. Direito. 2. Dogmática jurídica. I. Título. CDU 34 índices para catálogo sistemático Direito Dogmática jurídica (Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB 10/652)

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  • S914h Streck, Lenio LuizHermenutica jurdica e(m) crise: uma explorao hermenutica

    da construo do Direito / Lenio Luiz Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

    264p.; 16x23 cm.

    ISBN 85-7348-103-X

    1. Direito. 2. Dogmtica jurdica. I. Ttulo.

    CDU 34

    ndices para catlogo sistemtico

    DireitoDogmtica jurdica

    (Bibliotecria responsvel: Marta Roberto, CRB 10/652)

  • Lenio Luiz Streck

    HERMENUTICA JURDICA E(M) CRISE

    Uma explorao hermenutica da construo do Direito

    Alivraria/

    DO ADVOGADO / editora

    Porto A legre 1999

  • Lenio Luiz Streck, 1999

    Reviso de Rosane Marques Borba

    Capa, projeto grfico e diagramao de Livraria do Advogado / Valmor Bortoloti

    Gravura da capa extrada do livro O amor do censor - ensaio sobre a ordem dogmtica, de Pierre Legendre

    Direitos desta edio reservados por Livraria do Advogado Ltda.

    Rua Riachuelo, 1338 90010-273 Porto Alegre RS

    Fone/fax (051) 225 3311 E-mail: [email protected]

    Internet: www.liv-advogado.com.br

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

  • Quando as guas da enchente derrubam as casas, e o rio transborda arrasando tudo, quer dizer que h muitos dias comeou a chover na serra, ainda que no nos dssemos conta

    E r a c l io Z e p e d a

    Agradecimentos que se impem

    O presente livro resultado de projeto de pesquisa patrocinado pela UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, atravs do Curso de Mestrado em Direito, ligado ao Centro de Cincias Jurdicas e Sociais. Agradeo tambm o apoio recebido da Direo do Centro: Profs. Jos Bernando Ramos Boeira, Diretor; Clvis Gorczevski, Pr-Diretor Administrativo, e Floriano Mller Neto, ex-Diretor. Tambm foram importantes alguns interlocutores, como Albano Marcos Pepe (Recife) e os meus alunos da disciplina Hermenutica Jurdica, do Curso de Mestrado em Direito. Um especial agradecimento ao bacharelando-pesquisador Douglas Bernardes Wayss, bolsista da UNISINOS, cuja participao no projeto foi de fundamental importncia.E para Rosane e Malu, que sabem por qu.

  • O autor desenvolve em seu livro elementos centrais para uma hermenutica jurdica que sirva de vetor e de moldura para todo o debate sobre a mudana de paradigma no universo jurdico. Hermenutica perde aqui seu significado de rotina e de capa formal que vinha reforar a aplicao conservadora da dogmtica jurdica. Hermenutica passa a nos remeter a uma nova matriz de racionalidade, em que se possa desenvolver toda crtica ao direito vigente e todo esforo na construo de um horizonte novo para pensarmos os fundamentos do conhecimento jurdico.

    Quem acompanhou o nascimento do paradigma hermenutico seguiu em muitos passos o desenvolvimento da hermenutica clssica e se deixou empolgar pelo novo trazido pela filosofia hermenutica de Heidegger e pela hermenutica filosfica de Gadamer, de um lado, e quem se aprofundou nas teorias contemporneas do significado e da linguagem e nas diversas direes desenvolvidas pelas discusses lingsticas e da pragmtica, de outro lado, pode avaliar o que o autor conseguiu articular no seu livro, a partir da filosofia atual da linguagem, na explorao da construo do direito.

    No simplesmente repetir o autor quando se procura ver na sua hermenutica crtica o instrumento de ruptura do objetivismo ingnuo em que se funda toda construo jurdica na sua viso positivista, partindo da relao sujeito-objeto na fundamentao do conhecimento. A grande novidade da obra de STRECK nos leva para um territrio situado alm das ontologias ingnuas que em geral sustentam a dogmtica jurdica at hoje e lhe do, assim, um irrenuncivel carter ideolgico.

    Somente quando percebemos que tudo se funda na linguagem, que direito linguagem, que seu funcionamento desliza sobre pressupostos lingsticos, que comeamos a perceber os contornos da profunda inovao que traz para a cincia e a filosofia do direito e para a hermenutica jurdica, essa obra surpreendente.

    Mas o autor nos leva um passo adiante e com ele nos situa diante do desafio mais criativo: no direito, a hermenutica filosfica nos leva a uma resoluo da crise da representao atravs da superao das teorias da conscincia. Todo o contedo epistmico do direito at agora era apresentado atravs de mltiplas e aleatrias epistemologias jurdicas baseadas nas teorias da representao e orientadas na fudamentao, no esquema da relao sujeito-objeto.

    LENIO STRECK nos remete a um universo em que a hermenutica se refere ao mundo prtico, o mundo da pr-compreenso, em que j sempre somos no mundo e nos compreendemos como ser-no-mundo

  • a partir e na estrutura prvia de sentido. ela que nos carrega e dela que surgimos enquanto estrutura que nos precede e toda teoria da conscincia chega tarde com sua pretenso de fundar. A linguagem torna-se a o meio especulativo a partir do qual se determina a lingisticidade de todo o nosso conhecimento.

    Uma vez estabelecida tal matriz lingstica que, ao mesmo tempo, nos sustenta, na qual nos movemos e de quem nunca somos proprietrios, temos as condies para a instaurao do dilogo. Todo conhecimento jurdico situado inovadoramente pelo autor no quadro dessa matriz.

    nesse contexto que o livro passa a definir sua forma e sua dinmica interna. no quadro da matriz hermenutico-lingstica que ento ter que ser compreendida a condio essencial do direito na sua relao com a sociedade. S assim a soluo para sua crise se apresentar com um potencial de constante reviso e ajustamento.

    A crise do direito crise de fundamento, e STRECK nos mostra isso atravs da crtica do paradigma que sustentou o direito at agora, introduzindo o paradigma hermenutico-lingstico em que situa o direito e a todos os que com ele trabalham, no universo do sentido e da compreenso.

    O direito no trabalha com objetos, no opera com normas ob- jetificadas, no se confronta com pessoas coaguladas em coisas, nem maneja a linguagem como instrumental rgido de retrica. O direito se sustenta na palavra plena, produz sentido, dialoga na sua aplicao, desde que a hermenutica nos mostrou que "somos um dilogo"-

    O autor no nos apresenta simplesmente as teorias da compreenso e da interpretao e filsofos como Heidegger e Gadamer, que esto, entre outros, na base de sua discusso. Ele luta por encontrar um caminho para o problema da hermenutica jurdica que circule no discurso contemporneo. Ele sabe da tarefa da filosofia que consiste em clarear expresses lingsticas e manter uma viso sobre o todo de nosso compreender, que tambm autocompreenso e autocrtica.

    Mas, para alm duma simples questo lingstica, o autor redes- cobriu o lugar propriamente filosfico - que a questo do sentido e do significado - e que se estabelece, no desde um sujeito soberano e um discurso dogmtico, mas assume a sua historicidade como um acontecimento. desse acontecimento que nos fala a hermenutica existencial quando fala na histria do ser. a partir dela que podemos compreender os limites da interpretao e, ao mesmo tempo, as condies da filosofia hermenutica que nos d as bases para a

  • hermenutica filosfica, em que aprendemos a escutar aquilo "que para alm de ns, para alm do que queremos e fazemos, acontece conosco".

    Porto Alegre, janeiro de 1999.

    E r n il d o St e in

  • SumrioApresentao - Eros Roberto G r a u ..................................................................................... 13

    Notas introdutrias .............................................................................................................. 15/

    1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas damodernidade - da necessidade de uma crtica da razo cnica no Brasil . . . 19

    2. O Estado Democrtico de Direito e a (des)funcionalidade do Direito:os obstculos representados pelo paradigma do modo (modelo) de produo de Direito e do paradigma epistemolgico da filosofia da con scin cia ........................................................................................................................... 31

    3. A no-recepo da viragem lingstica no modelo interpretativovigorante no B r a s i l ........................................................................................................... 47

    3.1. A crise de paradigma (de dupla face) e o sentido comum terico dosjuristas como horizonte de sentido da dogmtica ju rd ica................................ 51

    4. Dogmtica e ensino jurdico: o dito e o no-dito do sentido comum terico- o universo do silncio (eloqente) do imaginrio dos ju r is ta s ................... 63

    5. A fetichizao do discurso e o discurso da fetichizao: a dogmticajurdica, o discurso jurdico e a interpretao da l e i ............................................ 715.1. A fetichizao do discurso jurdico e os obstculos realizao dos

    direitos: uma censura sign ificativ a ...................................................................... 715.2. O processo de (re)produo do sentido jurdico e a busca do

    "significante primeiro ou de como a dogmtica jurdica ainda no superou o paradigma da filosofia da conscincia ...................................... 73

    5.3. O sentido da intepretao e a interpretao do sentido ou de como adogmtica jurdica (continua) interpreta(do) a lei ...................................... 75

    5.3.1. Voluntas legis versus voluntas legislatoris: uma discussou ltrap assad a........................................................................................................... 78

    5.3.2. As lacunas (axiolgicas) do Direito ............................................................... 825.3.3. Os princpios gerais do D ir e ito ......................................................................... 865.3.4. As tcnicas de interpretao: a hermenutica normativa bettiana e a

    preocupao na fixao de regras interpretativas.O mtodo em d e b a te ............................................................................................ 88

    5.3.5. A hermenutica e a dogmtica jurdica no Brasil: as diversasalternativas interpretao de cunho tradicional...................................... 93

  • 6. A filosofia e a linguagem ou de como tudo comeou com "o C r t ilo " ................ 976.1. A primeira filosofia de Aristteles: o nascimento da metafsica .............1026.2. O longo caminho at o sculo XX - a continuidade da tradio

    metafsica e as reaes busca da essncia e da coisa em s i ...................... 105

    7. Hamann-Herder-Humboldt e o "primeiro" giro lingstico - as fontes gadamerianas do sculo XIX e a linguagem como abertura e acessoao m u n d o .......................................................................................................................... 119

    8. Saussure e o (re)nascimento da lingstica. Peirce e seu projeto semitico - primeiridade, secundidade e terceiridade. Os caminhos para a invaso da filosofia pela linguagem. Rumo linguagem como abertura do mundo. . . 1258.1. O projeto semiolgico de Sau ssu re ......................................................................1268.2. O projeto semitico-pragmtico de Charles S. P e ir c e ...................................129

    9. A viragem lingstica da filosofia e o rompimento com a metafsica ou decomo a linguagem no uma terceira coisa que se interpe entre o sujeito e o ob jeto ............................................................................................................................. 1379.1. A constituio de uma razo lingstica como condio de

    possibilidade para o rompimento com a filosofia da conscincia . . . . 1409.2. A generalizao do giro lin g s tico .................................................................. 1499.3. Nem verdade emprica e nem verdade absoluta: a hermenutica

    como o estabelecimento das condies do m u n d o ......................................152

    10. A interpretao do Direito no interior da viragem lingstica ......................15510.1. A semitica e a hermenutica filosfica: abrindo caminho para uma

    hermenutica jurdica crtica ............................................................................15810.1.1. A Semitica ju rd ica............................................................................................15910.1.2. A hermenutica filosfica: a importncia de Heidegger e Gadamer . 16810.1.3. A hermenutica jurdica gadameriana: a tarefa criativa do Direito . 18510.2. Hermenutica versus crtica: uma questo se c u n d ria ............................ 18910.3. A hermenutica jurdico-filosfica e o rompimento hermenutico com

    os "conceitos-em-si-mesmos-das-normas" e o crime de "porte ilegalda fala" .................................................................................................................... 198

    11. Hermenutica jurdica e(m) crise: caminhando na direo de novosparadigmas - aportes finais........................................................................................... 20511.1. A modernidade, seu legado e seu resgate......................................................20511.2. O labor dogmtico: uma (nova) forma de diviso do trabalho? . . . . 20711.3. Dogmtica e Hermenutica: A tarefa da (razo) crtica do Direito . . . 20911.4. Hermenutica jurdica e a relevncia do horizonte de sentido

    proporcionado pela Constituio e sua principiologia............................ 21411.5. A nova postura hermenutica: instrumento (ferramenta) para a

    explorao hermenutica da construo ju r d ic a ......................................228

    Bibliografia 253

  • Apresentao

    LENIO LUIZ STRECK faz a autntica crtica do Direito neste livro que tenho a honra de apresentar. Ademais, o fenmeno jurdico nele se apresenta como fora viva, como um plano da realidade social que . Por isso mesmo se pode dizer que o ritmo da linguagem do Autor, solta e livre, assim se manifesta porque referida a essa fora viva, plena de movimento.

    Muito se escreveu, e ainda se escreve, nesta ltima dcada do sculo, a propsito da crise do Direito, apresentada agora, definidamente - e sobretudo entre ns, brasileiros - sob feio particular, vale dizer, como crise do Poder Judicirio.

    inegvel a existncia dessa crise. No podemos deixar de apontar, contudo, duas evidncias. Uma, a de que essa peculiar "crise do Direito" no , originariamente, dele, seno de que o produz,0 Estado. Vivemos, nesta ltima dcada, sob deliberado processo de enfraquecimento do Estado, patrocinado pelos governos neoliberais globalizantes dos Presidentes Collor e Cardoso. O Exame das propostas frustradas de reforma constitucional pretendidas pelo primeiro e daquelas logradas pelo segundo evidencia a identidade de valores nos programas de um e de outro. Ora, obtida a fragilizao do Estado, todos os seus produtos passam a exibir as marcas dessa fragilizao. O Direito que imediatamente conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos ser "posto" pelo Estado no apenas porque seus textos so escritos pelo Legislativo, mas tambm porque suas normas so produzidas pelo Judicirio.1

    Em segundo lugar, cumpre observar que a fragilizao do Poder Judicirio atende a interesses bem marcados dos Executivos fortes, que se nutrem de projetos desdobrados de uma ntida transposio, hoje, dos quadros do privado para os do pblico, do individualismo possessivo. Penso podermos afirmar que, se de um lado o capitalismo j no padece do temor da contestao social, os executivos j1 Permito-me remeter o leitor aos meus Direito posto e direito pressuposto, 2- edio, Malheiros Editores, So Paulo, 1998 e La doble desestructuracin y la interpretacin dei derecho, mencionado na bibliografia indicativa por LENIO s t r e c k .

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 13

  • no tm pejo de violar as Constituies e de violentar as exigncias de harmonia entre os Poderes. A Amrica Latina tem sido profusa e generosa em exemplos...

    O desconforto provocado por essa crise coloca os estudiosos do Direito sob o desafio do descobrimento de caminhos que conduzem produo de justia material, no mnimo a uma reeticizao do Direito.

    LENIO STRECK cria suas prprias trilhas nessa busca, penetrando fundo pela anlise da linguagem, especialmente da "viragem lingstica da filosofia", at alcanar, intensamente tambm, a semitica e a hermenutica filosfica, que abrem o caminho para uma hermenutica jurdica crtica, no bojo da qual se pe em dinamismo uma razo crtica do Direito.

    Visualizada como processo de produo de sentido, a interpretao apresenta-se ento como ponto de partida desde o qual no apenas a crtica feita, mas tambm se pode empreender a construo de uma razo emancipatria para o Direito. O Direito, note-se bem, um discurso constitutivo na medida em que designa/atribui significados a fatos e palavras, como mostra CARLOS CRCOVA.

    A concepo da interpretao como um processo criativo - que, de outra forma, tomo quando a qualifico de alogrfica - conduz no apenas a uma nova hermenutica, mas a um novo conjunto de possibilidades de produo de justia material.

    Da a importncia deste livro. Necessitamos de novas trilhas, voltadas reconstruo de conceitos, critrios e princpios, indispensveis superao da crise - o livro de LENIO LUIZ STRECK abre caminhos que devem, necessariamente, ser percorridos.

    Tiradentes, janeiro de 1999.

    E ros Roberto G rau

    14 Lenio Luiz Streck

  • Notas introdutrias

    As presentes reflexes pretendem discutir a crise do Direito, do Estado e da dogmtica jurdica, e seus reflexos na sociedade. Com efeito, preparado/engendrado para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, o Direito e a dogmtica jurdica (que o instrumentaliza) no conseguem atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa (J. E. Faria). O paradigma (modelo/modo de produo de Direito) liberal-indivi- dualista-normativista est esgotado. O crescimento dos direitos tran- sindividuais e a crescente complexidade social (re)clamam novas posturas dos operadores jurdicos.

    Da a necessidade de (re)discutir as prticas discursivas/argu- mentativas dos juristas, a partir do questionamento das suas condies de produo, circulao e consumo. Isto porque, como diz Veron, "entre as lies de Marx, uma mister no abandonar: ele nos ensinou que, se se souber olhar bem, todo produto traz os traos do sistema produtivo que o engendrou. Esses traos l esto, mas no so vistos, por 'invisveis'. Uma certa anlise pode torn-los visveis: a que consiste em postular que a natureza de um produto s inteligvel em relao s regras sociais de seu engendramento".

    O enorme fosso existente entre o Direito e a sociedade, que institudo e instituinte da/dessa crise de paradigma, retrata a incapacidade histrica da dogmtica jurdica (discurso oficial do Direito) em lidar com a realidade social. Afinal, o establishment jurdico-dog- mtico brasileiro produz doutrina e jurisprudncia para que tipo de pas? Para que e para quem o Direito tem servido?

    Esse hiato e a crise de paradigma do modelo liberal-individua- lista-normativista retratam a incapacidade histrica da dogmtica jurdica em lidar com os problemas decorrentes de uma sociedade dspar como a nossa. Na verdade, tais problemas so deslocados no e pelo discurso dogmtico, estabelecendo-se uma espcie de transparncia discursiva. Pode-se dizer, a partir das lies de A. Sercovich, que o discurso dogmtico dominante transparente porque as seqncias discursivas remetem diretamente "realidade", ocultando as

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 15

  • condies de produo do sentido do discurso. A este fenmeno podemos denominar de fetichizao do discurso jurdico, dizer, atravs do discurso dogmtico, a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstrada das condies (histrico-sociais) que a engendra(ra)m, como se a sua condio-de-lei fosse uma propriedade "natural".

    Parte-se, pois, da premissa de que as prticas argumentativas do judicirio, da dogmtica jurdica e das escolas de Direito so consubstanciadas pelo que se pode denominar de sentido comum terico dos juristas ou campo jurdico (Warat-Bourdieu), o qual insere-se no contexto da crise do modelo de Direito de cunho liberal-indi- vidualista. Essa crise do modelo (dominante) de Direito (ou modo de produo de Direito) institui e instituda por uma outra crise, aqui denominada/trabalhada como crise do paradigma epistemolgico da f i losofia da conscincia, ainda (pre)dominante no modo-de-fazer-herme- nutica no interior do campo jurdico vigorante no Brasil.

    Isto porque as prticas hermenutico-interpretativas vigoran- tes/hegemnicas no campo da operacionalidade - incluindo a doutrina e jurisprudncia - ainda esto presas dicotomia sujeito-objeto, carentes e/ou refratrios viragem lingstica de cunho pragmatista-onto- lgico ocorrida contemporaneamente, onde a relao passa a ser sujeito- sujeito. Dito de outro modo, no campo jurdico brasileiro, a linguagem ainda tem um carter secundrio, uma terceira coisa que se interpe entre o sujeito e o objeto, enfim, uma espcie de instrumento ou veculo condutor de "essncias" e "corretas exegeses" dos textos2 legais.

    Da a necessidade da elaborao de uma crtica hermenutica jurdica tradicional - ainda (fortemente) assentada no paradigma ob- jetificante da filosofia da conscincia - atravs dos aportes aproximati- vos da semitica (teoria geral da significao) e da hermenutica filosfica, com nfase na segunda, pela qual o horizonte do sentido dado pela compreenso (Heidegger) e ser que pode ser compreen2 Com Eros Roberto Grau, fao a distino entre texto (jurdico) e norma (jurdica). Isto porque o texto, preceito ou enunciado normativo alogrfico. No se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estar completo quando o sentido que ele expressa produzido pelo intrprete, como nova forma de expresso. Assim, o sentido expressado pelo texto j algo novo, diferente do texto. a norma. A interpretao do Direito faz a conexo entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicao particular: ou seja, opera sua insero no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretao. E a ordem jurdica, em seu valor histrico concreto, um conjunto de interpretaes, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposies (textos, enunciados) uma ordem jurdica apenas potencialmente, um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) o resultado da tarefa interpretativa. Ver, para tanto, La doble desestruturacin y la interpretacin dei derecho. Barcelona, Editorial M.J. Bosch, SL, 1998, pp.67 e segs. (grifos do autor).

    16 Lenio Luiz Streck

  • dido linguagem (Gadamer), onde a linguagem no simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado e onde a interpretao faz surgir o sentido.

    Por isso, o processo de produo do sentido (daquilo que sentido/pensado/apreendido pelo sujeito) do discurso jurdico, sua circulao e seu consumo, no podem ser guardados sob um hermtico segredo, como se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretao dos textos legais so as suas condies de produo, as quais, devidamente difusas e oculta(dfl)s, "aparecem" como se fossem provenientes de um "lugar virtual", ou de um "lugar fundamental". Ora, as palavras da lei no so unvocas; so, sim, plurvocas, questo que o prprio Kelsen j detectara de h muito. Por isto, necessrio dizer que, pelo processo interpretativo, no decorre a descoberta do "unvoco" ou do "correto" sentido, mas, sim, a produo de um sentido originado de um processo de compreenso, onde o sujeito, a partir de uma situao hermenutica, faz uma fuso de horizontes a partir de sua historicidade. No h interpretao sem relao social.

    Procura-se demonstrar, enfim, que a lei e o saber do Direito constituem um nvel de relaes simblicas de poder (Warat). Conseqentemente, visando a superar a crise de paradigma de dupla face antes delineada, faz-se necessrio um trabalho de interrogao sobre o discurso jurdico, utilizando a lei e o saber contra eles mesmos, fazendo deles um lugar vazio, onde o sujeito necessariamente no seja (ou necessite ser) um transgressor, mas, sim, o protagonista que legitima a democracia (Warat).

    Buscando apresentar um ferramental para a interpretao do Direito, releva notar que o fio condutor destas reflexes o "mtodo" fenomenolgico, visto, a partir de Heidegger,3 como "interpretao ou hermenutica universal", dizer, como reviso crtica dos temas centrais transmitidos pela tradio filosfica atravs da linguagem, como destruio e revolvimento do cho lingstico da metafsica ocidental, mediante o qual possvel descobrir um indisfarvel projeto de analtica da linguagem, numa imediata proximidade com a praxis humana, como existncia e faticidade, onde a linguagem - o sentido, a denotao - no analisada num sistema fechado de referncias, mas, sim, no plano da historicidade. Enquanto baseado no mtodo hermenutico-lingstico, o texto procura no se desligar da existncia concreta, nem da carga pr-ontolgica que na existncia j vem sempre antecipada.3 Para tanto, ver Stein, Ernildo. A questo do mtodo na filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. Porto Alegre, Movimento, 1983, pp.100 e 101.

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 17

  • 1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas da modernidade - da necessidade de uma crtica da razo cnica no Brasil

    No momento que o mundo varrido por uma fustigante onda neoliberal, inexorvel que a questo da funo do Estado e do Direito seja (re)discutida, assim como as condies de possibilidades da realizao da democracia e dos direitos fundamentais em pases recentemente sados de regimes autoritrios, carentes, ainda, de uma segunda transio (Guillermo 0'Donnell). O (dominante) discurso neoliberal - atravessado/impulsionado pelo fenmeno da democracia delegativa4 adjudica sentidos em nosso cotidiano, tentando convencer-nos de que a modernidade acabou. Pois justamente neste contexto que estas reflexes se inserem, buscando a construo de um discurso que aborde criticamente o papel do Direito, do discurso jurdico e a justificao do poder oficial por meio do discurso jurdico em face da problemtica da relao Direito-Estado-Dogmtica Jurdica.

    Para as elites brasileiras, a modernidade acabou. Tudo isto parece estranho e ao mesmo tempo paradoxal. A modernidade nos legou o Estado, o Direito e as instituies. Rompendo com o medie- vo, o Estado Moderno surge como um avano. Em um primeiro4 Segundo 0'Donnell, a transio de regimes autoritrios para governos eleitos democraticamente no encerra a tarefa de construo democrtica: necessria uma segunda transio, at o estabelecimento de um regime democrtico. A escassez de instituies democrticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vrios pases que saram recentemente de regimes autoritrios - particularmente da Amrica Latina - caracterizam uma situao em que, mesmo no havendo ameaas iminentes de regresso ao autoritarismo, difcil avanar para a consolidao institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existncia de um tipo peculiar de democracia em que a delegao prevalece sobre a representao, denominada pelo autor de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano. Consultar 0'D onnell, Guillermo. Democracia delegativa? In: Novos Estudos Cebrap, n.31, out/91, pp. 25 e segs.

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 19

  • momento, como absolutista e depois como liberal, mais tarde o Estado transforma-se, surgindo o Estado Contemporneo sob as suas mais variadas faces. Essa transformao decorre justamente do acirramento das contradies sociais proporcionadas pelo liberalismo. Lembra Pereira e Silva5 que esse "Estado intervencionista no uma concesso do capital, mas a nica forma de a sociedade capitalista preservar-se, necessariamente mediante empenho na promoo da dominuio das desigualdades socioeconmicas. A ampliao das funes do Estado, tornando-o tutor e suporte da economia, agora sob conotao pblica, presta-se a objetivos contraditrios: a defesa da acumulao do capital, em conformidade com os propsitos da classe burguessa, e a proteo dos interesses dos trabalhadores." Alm disto, bom frisar que "o intervencionismo estatal tambm se constitui em defesa do capital contra as insurreies operrias, opondo-se iluso de igualdade de todos os indivduos diante da lei".6

    Nessa linha, vem bem a propsito o dizer de Boaventura de Souza Santos, para quem esse Estado, tambm chamado de Estado Providncia ou Social,7 foi a instituio poltica inventada nas sociedades capitalistas para compatibilizar as promessas da Modernidade com o desenvolvimento capitalista. Este tipo de Estado, segundo os neoliberais, foi algo que passou, desapareceu, e o Estado simplesmente tem, agora, de se enxugar cada vez mais. Para os neoliberais,

    5 Cfe. Pereira e Silva, Reinaldo. O mercado de trabalho humano. So Paulo, LTr, 1998, p.45.6 Idem, ibidem. Ver tambm Carvalhosa, Modesto. Direito Econmico. So Paulo, Revista dos Tribunais, 1973, p.100.7 Sobre Estado Social, sua crise e suas transformaes, ver: Garca-Pelayo, Manuel. Las transformaciones dei Estado contemporneo. Madrid, Alianza Editorial, 1997; Cape- 11a, Juan Ramn. Fruta prohibida. Una aproximacin histrico-teortica al estdio dei derecho y dei Estado. Madrid, Editorial Trotta, 1997; Leal, Rogrio Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Poltico na Modernidade. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997. Sempre bom registrar que a Repblica de Weimar, na "fase experimental aps a Primeira Grande Guerra, iniciou a implantao dos direitos sociais, tambm chamados de direitos de segunda gerao. Em outros pases, explica Capella, como a Gr-Bretanha, Frana e Itlia, teriam que aguardar ainda um quarto de sculo. Nos anos trinta, nos EUA, mediante mtodos no-legislativos, foi dado um passo para o reconhecimento dos direitos dos mais fracos, porm, apesar de ser a ptria do New Deal, os trabalhadores norte-americanos nunca tiveram a cobertura de direitos sociais dos trabalhadores da Europa ocidental (se aproximaram dos trabalhadores europeus por um brevssimo momento, durante a administrao Johnson, no final dos anos setenta). Em contrapartida, outros aspectos das polticas keynesianas se iniciaram nos Estados Unidos nos anos trinta, enquanto na Europa os trabalhadores tiveram que esperar at o final da segunda guerra mundial. Cfe. Capella, op. cit., p. 172. Tambm Rosanvallon, Pierre. A crise do estado-providncia. Goiania, Editora UNB, 1997, pp. 38 e segs.

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  • complementa o mestre portugus, ele (o Estado) , agora, uma instituio anacrnica, porque uma entidade nacional, e tudo o mais est globalizado.

    A globalizao neoliberal-ps-moderna coloca-se justamente como o contraponto das polticas do welfare State.8 Aparece como a nova face/roupagem do capitalismo internacional. Nesse contexto, Arruda Jr.9 chama a ateno para o fato de que estamos diante de um frenesi terico e prtico representado pelos discursos apocalpticos antimodernos, onde a globalizao neoliberal vista como sinnimo de modernizao. Na verdade, acrescenta, o que nos vendido como prova de modernidade d os claros sinais de uma barbrie, a barbrie neoliberal que, a ttulo de guardar identidade com a filosofia ps-moderna, traz como resultado sinais de retorno pre-modernidade, perigo para o qual tambm alerta Andr-Nol Roth,10 ao denunciar que a globalizao nos empurra rumo a um modelo de regulao social neofeu- dal, atravs da constatao do debilitamento das especificidades que diferenciam o Estado moderno do feudalismo: a) a distino entre esfera privada e esfera pblica; b) a dissociao entre o poderio poltico e o econmico; e c) a separao entre as funes administrativas, polticas e a sociedade civil. Para Roth, o carter neofeudal da regulamentao social reside em parte nessa evoluo e em parte em uma leitura pessimista da forma decisria - a infinidade de foros de negociaes descentralizados - sugerida pelo direito reflexivo (de cunho autopoitico).

    8 "A lgica geral da competio globalizante inequivocamente concentradora. Da no apenas fuses, mas, sobretudo, a excluso de grandes massas de trabalhadores da possibilidade de insero apta no mundo econmico, o desemprego e a precari- zao do trabalho, a desigualdade social crescente mesmo nos pases em que o desemprego comparativamente reduzido, e os indicadores exibem sade e pujana econmica - em suma, aquilo que alguns tm chamado de 'brasilianizao' do capitalismo avanado. No caso brasileiro, acresce o fato de que nos inserimos mais precariamente no jogo, no s porque j somos o Brasil da pesada herana escravista e do fosso social, mas tambm porque nossas fragilidades nos tornam vtimas preferenciais, sempre prontas a surgir como 'bola da vez' nas perversidades da dinmica transnacional." Cfe. Reis, Fbio Wanderlei. As reformas e o mandato. In Folha de So Paulo, 28 mar 98, pp. 1-3. Sobre globalizao, ver, tambm, Metforas de la globalizacin, de Otvio Ianni, in Revista de Cincias Sociales. Quilmes, Universidad Nacional, Mayo de 1995, pp. 9-19.9 Consultar Arruda Jr, Edmundo Lima. Neoliberalismo e Direito. Paradigmas na crise global e Neoliberalismo, e Reforma do Estado e Modernidade. In Direito e sculo XXI: ordem e conflito na onda neoliberal ps-moderna. Rio de Janeiro, Luam, caps. II e III.10 Roth, Andr-Nol. O direito em crise: fim do Estado Moderno? In: Direito e globalizao econmica - implicaes e perspectivas. Jos Eduardo Faria (org). So Paulo, Malheiros, 1996, pp. 16 e segs.

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  • Evidentemente, a minimizao do Estado em pases que passaram pela etapa do Estado Providncia ou welfare state tem conseqncias absolutamente diversas da minimizao do Estado em pases como o Brasil, onde no houve o Estado Social,n O Estado interventor- desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta funo social, foi - especialmente no Brasil - prdigo (somente) para com as elites,12 enfim, para as camadas mdio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional os monoplios e os oligoplios da economia e, entre outras coisas, construindo empreendimentos imobilirios com o dinheiro do fundo de garantia (FGTS) dos trabalhadores, fundo esse que, em 1966, custou a estabilidade no emprego para os milhes de brasileiros! Exemplo disto que,

    11 Segundo Bonavides, baseado em Kaegi, in Die Verfassungsals Rechtliche Grundord- nung des Staates, 1948, pp. 94 e segs, "sendo o Estado social a expresso poltica por excelncia da sociedade industrial e do mesmo passo a configurao da sobrevivncia democrtica na crise entre o Estado e a antecedente forma de sociedade (a do liberalismo), observa-se que nas sociedades em desenvolvimento, porfiando ainda por implant-lo, sua moldura jurdica fica exposta a toda ordem de contestaes, pela dificuldade em harmoniz-la com as correntes copiosas de interesses sociais antagnicos, arvorados por grupos e classes, em busca de afirmao e eficcia. Interesses ordinariamente rebeldes,transbordam eles do leito da Constituio, at fazer inevitvel o conflito e a tenso entre o estado social e o Estado de Direito, entre a Constituio dos textos e a Constituio da realidade, entre a forma jurdica e o seu contedo material. Disso nasce no raro a desintegrao da Constituio, com o sacrifcio das normas a uma dinmica de relaes polticas instveis e cambiantes. Cfe. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. So Paulo, Malheiros, 1996, p. 435.12 A caracterizao da nossa elite vem afligindo uma corte de ensastas, nossos e de fora, os quais no chegam a uma relativa concordncia, dizem Houaiss e Amaral. Segundo os autores, o pressuposto aceito de forma geral: 1) um territrio precioso, 2) flora, fauna e clima esplndidos, 3) um autoctonato de fcil superao, 4) uma consolidao lingstica quase miraculosa, 5) a gestao de uma cultura popular e grafa rica e emocionante, 6) uma expanso demogrfica rara, pela multiplicao, pela miscigenao tolerante e pela democracia emprica convivial. Eliminando os pontos positivos, restam, ao cabo dos quase cinco sculos de operao Brasil, os enigmas: a dvida social crescente - fome, ensino miservel, ausncia de terra (guardada como "poupana") para os aptos a trabalh-la, trabalho no campo preferentemente para a exportao, a importao preferentemente para gudio dos exportadores. As chamadas elites brasileiras, bem pensadas, parecem ter tido, excelente ou sobre-exce- lentemente, o mais puro sentido de autodefesa e sobrevivncia: 1) aos trancos e barrancos, embora souberam reter para si o mximo dos bens materiais; 2) souberam harmonizar-se com os donos do mundo; conseguiram manter "seu " povo admiravelmente manietado, pela escravido, pelo genocdio, pela ignorncia, pela superstio - j que a terra lhes fo i compensatoriamente to generosa, que raros foram os Palmares e os Canudos e os Caldeires em que criaram, embora efmeras, suas ptrias de eleio possvel. Cfe. Houaiss, Antonio e Amaral, Roberto. Modernidade no Brasil: conciliao ou ruptura. Petrpolis, Vozes, 1995, p. 56.

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  • enquanto os reais detentores/destinatrios do dinheiro do FGTS no tm onde morar (ou se moram, moram em favelas ou bairros distantes), nossas classes mdio-superiores obtiveram financiamentos (a juros subsidiados) do Banco Nacional da Habitao (sic) - depositrio dos recolhimentos do FGTS - para construir casas e apartamentos na cidade e na praia... Isso para dizer o mnimo!

    No Brasil, a modernidade tardia e arcaica.13 O que houve (h) um simulacro de modernidade.14 Como muito bem assinala Eric Hobs- bawn, o Brasil "um monumento negligncia social", ficando atrs do Sri Lanka em vrios indicadores sociais, como mortalidade infantil e alfabetizao, tudo porque o Estado, no Sri Lanka, empenhou-se na reduo das desigualdades.15 Ou seja, em nosso pas as promessas da modernidade ainda no se realizaram. E, j que tais promessas no se realizaram, a soluo que o establishment apresenta, por paradoxal que possa parecer, o retorno ao Estado (neo)liberal. Da que a ps-modernidade16 vista como a viso neoliberal. S que existe um13 Chamando a ateno para o fato de que as sociedades exigem que o poder retome as funes de rbitro na soluo das injustias, Touraine diz que a Amrica Latina, como as demais regies do mundo, ingressa num novo perodo de sua histria. At o presente, nenhum de seus pases, nem mesmo o Chile, foi capaz de implementar um plano global de progresso econmico e social, e tal situao no pode durar. No se trata mais de livrar a economia de vnculos paralisantes, mas ao contrrio de reintegrar a atividade econmica ao conjunto da vida social e reforar as intervenes do poder poltico. Cfe. Touraine, Alain. Ecos da ausncia do Estado. In Folha de So Paulo, 17.11.96, pp.5-11.14 A expresso de Vieira, Jos Ribas. Teoria do Estado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1995.15 Consultar Hobsbawn, Eric. A era dos extremos. Trad. de Marcos Santarrita. Companhia das Letras, 195.16 Como diz bem Guerra Filho, compremos a briga com os que se dizem "ps-modernis- tas", dizer, aqueles que usarem a expresso normativamente, condenando quem no compartilha com seu iderio, o qual termina sendo o iderio ou ideologia dominante, aquela que teria restado com o "fim das ideologias" e o "fim da histria", a qual se alia doutrina neoliberal, no terreno poltico-econmico. Como contraponto, possvel entender a ps-modernidade em sentido inverso. Desse modo, Willis diz que a ps-modernidade est no sentido de se resgatar uma periodizao, algo que o modernismo, por definio, impede - o atual, o presente, sempre moderno. Na segunda metade do sculo em curso, estaramos vivendo na ps-modernidade, devido ao modo radicalmente diverso como se organiza, econmica e politicamente, a sociedade egressa da modernidade, como uma correlata mudana no conjunto de crenas e pressuposies que formam a mentalidade dos que a compem, bem como pela natureza dos problemas que nela se apresentam. Tem-se a falncia da idia de que o conhecimento cientfico forneceria ao sujeito a verdade sobre os objetos que se colocavam diante dele. H uma revalorizao de formas pr-modernas, como a retrica, enquanto doutrina do discurso razovel e persuasivo e da hermenutica, com seu intuito de compreender, mais do que explicar, como tambm o surgimento de novas formas de pensar, como a interdisciplinariedade, a postura cientfica crtica

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  • imenso dficit social em nosso pas, e, por isso, temos que defender as instituies da modernidade contra esse neoliberalismo ps-moderno.17 Da vir a propsito o dizer de Boaventura Santos,18 para quem o Estado no pode pretender ser fraco: "Precisamos de um Estado cada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalizao neoliberal". E acrescenta: "Fica evidente que o conceito de um Estado fraco um conceito fraco. (...) Hoje, foras polticas se confrontam com diferentes concepes de reforma". Por isto, conclui, no possvel, agora, organizar politicamente a misria e a excluso, produzidas de modo desorganizado e desigual tanto globalmente quanto nos contextos nacionais: "Nunca os includos estiveram to includos e os excludos, to excludos".

    evidente, pois, que em pases como o Brasil, em que o Estado Social no existiu, o agente principal de toda poltica social deve ser o Estado. As polticas neoliberais, que visam a minimizar o Estado, no apontaro para a realizao de tarefas antitticas a sua natureza. Veja-se o exemplo ocorrido na Frana, onde, recentemente, aps um avano dos neoliberais, a presso popular exigiu a volta das polticas tpicas do Estado Providncia. J em nosso pas, ao contrrio disto, seguimos na contramo, dizer, quando pases de ponta rediscutem e questionam a eficcia (social) do neoliberalismo, caminhamos, cada

    e as investigaes psicoanalticas. Cfe. Guerra Filho, Willis Santiago. Ps-modernis- mo, ps-positivismo e o Direito como Filosofia. In: O Poder das Metforas: homenagem aos 35 anos de docncia de Luis Alberto Warat. Jos Alcebades de Oliveira Jr. (org). Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1998, pp. 61 e segs.17 Em reao ao neoliberalismo, foi publicada, recentemente, sob o ttulo "o neoliberalismo na Amrica Latina", a Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da Amrica Latina, na qual esse importante setor da Igreja Catlica acentua que "mediante o processo de globalizao da economia, esse modo de compreender a pessoa humana penetra nos nossos pases, transmitindo contedos simblicos de grande capacidade de seduo. Graas ao domnio sobre os meios de comunicao social, destroem-se as razes da identidade das culturas locais, que no contam com fora suficiente para comunicar a sua prpria mensagem". O documento denuncia, tambm, que, muito embora o problema da misria e da desigualdade social na Amrica Latina tenha razes em uma longa histria de modelos de crescimento econmico desigual e excludente, v que "nos ltimos anos, esta situao se fundamenta numa forma particular de fazer economia, chamada neoliberalismo, que penetra a poltica e invade toda a vida social". Mais ainda, acentuam os jesutas que "fazer oposio ao neoliberalismo significa, antes de tudo, afirmar que no existem instituies absolutas, capazes de explicar ou conduzir a histria humana em toda a sua complexidade.(...)Significa, finalmente, denunciar as ideologias totalitrias, pois elas, quando conseguiram se impor, s apresentaram como resultado, injustia, excluso e violncia". O neoliberalismo na Amrica Latina. Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da Amrica Latina - documento de trabalho. So Paulo, Edies Loyola, 1996, pp. 13, 18 e 19. (grifei).18 Cfe. Souza Santos, Boaventura. Boaventura defende o Estado forte. In: Correio do Povo. Seco Geral. Porto Alegre, 6 de abril de 1998, p. 9.

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  • vez mais, rumo ao "Estado absentesta", "minimizado", "enxuto" e "desregulamentado" (sic), ao ponto de um dos lderes do PFL- Partido da Frente Popular, Sen. Jorge Bornhausen, que apia o governo Fernando Henrique Cardoso, declarar, no jornal Folha de So Paulo do dia 10.12.98, que se fazia urgente o desmonte do Estado (sic), dei- xando-o absolutamente mnimo, propondo, inclusive, a venda da Petrobrs, do Banco do Brasil e da Caixa Econmica Federal... este, pois, o dilema: quanto mais necessitamos de polticas pblicas, em face da misria que se avoluma, mais o Estado, nico agente que poderia erradicar as desigualdades sociais, se encolhei

    Tudo isto acontece na contramo do que estabelece o ordenamento constitucional brasileiro, que aponta para um Estado forte, inter- vencionista e regulador, na esteira daquilo que, contemporaneamente, se entende como Estado Democrtico de Direito. O Direito recupera, pois, sua especificidade. No Estado Democrtico de Direito, ocorre a secularizao do Direito. Desse modo, razovel afirmar que o Direito, enquanto legado da modernidade - at porque temos uma Constituio democrtica - deve ser visto, hoje, como um campo necessrio de luta para implantao das promessas modernas.

    A toda evidncia, no se est, com isto, abrindo mo das lutas polticas,19 via Executivo e Legislativo, e dos movimentos sociais. importante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso pas, h at mesmo uma crise de legalidade, uma vez que nem sequer esta cumprida, bastando, para tanto, ver a inefetividade dos dispositivos da Constituio. De pronto, deve ficar claro que no se pode confundir Direito positivo com positivismo, e dogmtica jurdica com dogmatismo, e tampouco se pode cair no erro de opor a crtica (ou "o" discurso crtico) dogmtica jurdica. Por isto, no tenho dvidas em concordar com Warat quando afirma que a dogmtica jurdica pode indagar, criar e construir. Dito de outro modo, o Direito no pode (mais) ser visto como sendo to-so19 Nessa linha, relevante trazer colao o dizer de Tarso Genro, que, fazendo uma crtica ao parlamento, que "parece ter sido terceirizado" e aos tribunais superiores que "aceitam o estupro de um governo que s governa pela exceo", prope um novo contrato social: "No (precisamos) de um novo 'pacto social', que sempre foi um embuste das elites em horas de aperto poltico, mas de 'contrato' que d base formao de uma nova maioria, na sociedade e no parlamento, para colocar o Estado a servio da construo da nao. Um contrato social que viabilize a insero soberana, interdependente e cooperativa do pas na ordem globalizada e que oriente uma sociedade integrada nacionalmente por um mercado interno de massas. Esse novo contrato social dever ter como participantes os que querem establizar econmica e politicamente o pas e subordinar o Estado sociedade, retirando-o do domnio do capital financeiro e dos seus burocratas, a servio apenas dos prprios interesses. In: Por um novo contrato social. Folha de So Paulo, Tendncia/Debates, opinio 1, 02.08.98.

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  • mente uma racionalidade instrumental. Como diz o historiador ingls E.P. Thompson,20 o direito importa e por isso que nos incomodamos com toda essa histria.

    Da a pergunta: como pode o Estado, nesse contexto, atuar, intervir, para (comear a) resgatar essa imensa dvida social? O quadro desolador. Com efeito, nossas classes dirigentes continuam na modernidade arcaica. Com uma indstria que s dispe de mercado se a renda for concentrada para viabilizar a demanda; uma agricultura eficiente, mas voltada para a exportao, em um pas onde 380 mil crianas morrem de fome a cada ano; megalpolis que so incapazes de oferecer os servios para os quais elas deveriam existir; estrutura de transporte urbano nos moldes dos pases ricos, mas que condena, por falta de dinheiro, milhes de pessoas a caminhar, como andarilhos medievais, os quilmetros entre suas pobres casas e o trabalho; e obriga aqueles que tm acesso modernidade, ao desperdcio de tempo em engarrafamentos que seriam desnecessrios em um sistema de transporte eficiente. Enfim, a modernizao vista independentemente do bem-estar coletivo. Obtem-se um imenso poder econmico, mas ele no consegue resolver os problemas da qualidade de vida. Constroem-se estruturas sociais que, ao se fazerem modernas, mantm todas as caractersticas do que h de mais injusto e estpido.21

    As promessas da modernidade s so aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social! Pesquisa recente mostra que os excludos so 59% da populao do

    20 Ver, para tanto, Thompson, Edward Palmer. Senhores e Caadores. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 356 e segs. Segundo o historiador ingls, "a retrica e as regras de uma sociedade so muito mais que meras imposturas. Simultaneamente podem modificar em profundidade o comportamento dos poderosos e mistificar os destitudos do poder. Podem disfarar as verdadeiras realidades do poder, mas ao mesmo tempo podem refrear esse poder e conter seus excessos.(...) No sustento nenhum postulado quanto imparcialidade abstrata e extra-histrica dessas regras. Num contexto de falgrantes desiguldades de classe, a igualdade da lei em alguma parte sempre ser uma impostura. Transplantada, tal como era, para contextos ainda mais desigualitrios, essa lei podia se converter em instrumento do imperialismo. Mas, mesmo a, as regras e a retrica eram uma mscara, foi uma mscara que Gandhi e Nehru tiveram de usar frente de um milho de adeptos mascarados. De forma alguma meus olhos brilham por causa disso.(...) Insisto apenas no ponto bvio, negligenciado por alguns marxistas modernos, de que existe uma diferena entre o poder arbitrrio e o domnio da lei. Devemos expor as imposturas e injustias que podem se ocultar sob essa lei. Mas o domnio da lei em si, a imposio de restries efetivas ao poder e a defesa do cidado frente s pretenses de total intromisso do poder parecem-me um bem humano incondicional".21 Buarque, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, pp. 19 e 20.

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  • pas. Nessa categoria "excludos" esto as pessoas que esto margem de qualquer meio de ascenso social. Na escola, a esmagadora maioria dessas pessoas (86%) no foi alm da 8a srie do I o grau. De todos os segmentos sociais, so os que mais sofrem com o desemprego e a precarizao do trabalho: 19% vivem de "bico" e 10% so assalariados sem registro algum. Como contraponto, o levantamento mostra que a elite se resume a 8% dos brasileiros. Essa elite concentra mais brancos (85%) do que qualquer outro segmento da sociedade. , em conseqncia, o segmento onde h menos negros e pardos.22

    No h, pois, como no dar razo a Leonardo Boff, quando afirma que (essas) nossas elites construram um tipo de sociedade "organizada na espoliao violenta da plusvalia do trabalho e na excluso de grande parte da populao".23 Da a existncia no Brasil de duas espcies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidado, que dispe do sistema, mas a ele no se subordina, e o subintegrado ou subcidado, que depende do sistema, mas a ele no tem acesso.24

    A absoluta maioria da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu "lugar (de)mar- cado". Cada um "assume" o "seu" lugar. Essa maioria, porm, no se d conta de que essa "ordem", esse "cada-um-tem-o-seu-lugar" engendra a verdadeira violncia simblica25 da ordem social, bem para alm de todas as correlaes de foras que no so mais do que a sua configurao movente e indiferente na conscincia moral e poltica. O sistema cultural engendra exatamente um imaginrio no qual, principalmente atravs dos meios de comunicao de massa, se faz uma amlgama do que no amalgamvel. Por isso, por exemplo, possvel - e observe-se a relevncia dessa questo no plano simblico - que o pas mantenha impunemente um apartheid em elevadores sociais e de servio, o que legitima o preconceito social!

    22 Consultar, para tanto, pesquisa Datafolha publicada na Folha de So Paulo de 12 de abr. 1997, 1-12 Brasil.23 Boff, Leonardo. A violncia contra os oprimidos. Seis tipos de anlise. In Discursos sediciosos. RJ, Relume-Dumar, 1996, p. 96.24 Neves, Marcelo. Teoria do direito na modernidade tardia. In Direito e democracia. Ktie Arguello (Org). Fpolis, Letras Contemporneas, 1996, p. 110.25 A represso jamais pode confessar-se como tal: ela tem sempre a necessidade de ser legitimada para exercer-se sem encontrar oposio. Eis por que ela usar as bandeiras da manuteno da ordem social, da conscincia moral universal, do bem- estar e do progresso de todos os cidados. Ela se negar enquanto violncia, visto que a violncia sempre a expresso da fora nua e no da lei - e como fundar uma ordem a no ser sobre uma lei aceita e interiorizada? A relao de fora vai ento desaparecer enquanto tal, ser sempre coberta por uma armadura jurdica e ideolgica". Cfe. Katz e Kahn, s.d, p. 386.

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  • No causa espcie, assim, em nossa "ps-modernidade" midi- tica, que, a exemplo de tantas pessoas, a dubl de atriz e modelo Carolina Ferraz justifique o apartheid nos elevadores de forma bastante solene: "As coisas esto to misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradio, devem ser preservadas. importante haver hierarquia". J a promoter paulista Daniela Diniz, assdua freqentadora das colunas sociais, no "nos deixa esquecer" que "... cada um deve ter o seu espao. No uma questo de discriminao, mas de respeito". Ou seja, para elas - e para quantos mais (!?) - a patulia deve (continuar a) "saber-o-seu-lugar"... Mutatis mutandis, embora de ambas no se pudesse esperar mais do que "tiradas pequeno-sociolgi- cas" desse jaez, a viso de mundo da atriz e da promoter no difere muito da opinio de Ruth Escobar - e desta, pela sua trajetria, se poderia/deveria esperar (bem ou muito) mais - s vsperas da eleio presidencial de 1994, quando disse, em uma reunio de provectas senhoras da elite paulistana, que a disputa eleitoral (entre Fernando Henrique e Lula) se travava entre Sartre e um encanador... Para ela(s), por certo, a opo (ra) entre civilizao e barbrie, ou entre a "boa gente" das elites e a "escumalha" social ...

    Discursos deste quilate no podem (e no devem) nos surpreender, at porque nada mais so do que reprodues do que ocorre cotidianamente ao nosso redor, reforados pelos esteretipos produzidos pela mdia em larga escala.26 Da que, usando como pano de fundo essa discusso, Contardo Calegaris27 procura explicar a atitude e o discurso das classes mdias e mdio-superiores brasileiras acerca desta problemtica: "No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernizao aconteceu pela metade. Nas classes mdias, geralmente a regra o poder moderno sobre e pelas coisas. Podemos comprar

    26 Exemplo marcante disto o "momento cultural ocorrido no programa Hebe Camargo no dia 21 de setembro de 1998, no Sistema Brasileiro de Televiso - SBT, to bem relatado pelo jornalista Fernando Barros Silva, no Caderno de TV da Folha de So Paulo: um determinado grupo musical chamado "Fat Family" (Famlia Gorda). Eram sete integrantes, todos negros, gordos, imensos e felizes. A apresentadora Hebe Camargo, depois de puxar a barba de um deles e alardear (maravilhada!?) para todo o Brasil que o plo (da barba) era duro, pediu a todos que exibissem os dentes diante da platia (e para milhes de telespectadores), porque os dentes dos negros eram lindos, uma gracinha, (bordo caracterstico da apresentadora). Imediatamente, todos obedeceram e, docilmente, mostraram suas gengivas para o pblico, como se estivssemos nos tempos da escravido. Como bem conclui o citado jornalista: "Herana colonial tambm isso. Lembranas da senzala. Vindo de quem vem, no novidade". Ver, para tanto, Folha de So Paulo, TV Folha, 27 de setembro de 1998, p. 2. (grifei)27 Cfe. Calegaris, Contardo. A praga escravagista brasileira. In Folha de So Paulo, Caderno Mais, p. 5.

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  • o trabalho de um outro, seus servios, mas no dispomos de seu corpo. Mas na relao entre as classes mdias e as classes ditas eufemisticamente no-favorecidas o poder ainda poder sobre os corpos, construdo no modelo da escravatura. As classes mdias brasileiras no abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da populao do pas. No por razes econmicas: a manuteno do escravagismo caseiro um pssimo negcio que estrangula o mercado interno. Foi por tradio ou por gosto atvico escravocrata". Por isso, diz Calegaris, tanta violncia no Brasil: o ladro brasileiro no est s pedindo posse de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos ...! So eles que " bom possuir". E (de forma irnica) Calegaris acrescenta: "a violncia (na sociedade) j reverte se os elevadores de servio forem suprimidos".

    Tudo isto encaixa-se, pois, em uma espcie de razo cnica brasileira. Invertendo a famosa frase de Marx dita em o Capital: "Sie ivissen das nicht, aber sie tun es", que significa "disso eles no sabem, mas o fazem", Peter Sloterdijk nos ajuda a explicar a frmula dessa razo cnica traduzida no comportamento de nossas classes dirigentes: "eles sabem muito bem o que esto fazendo, mas fazem assim mesmo''.28 Nossas classes dirigentes e o establishment jurdico sabem o que est ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que historicamente vm fazendo.29 Vem bem a propsito disso o dizer de Jurandir Costa Freire,30 para quem "hoje aposentamos os Rosseau. Em vez de

    28 Ver, para isso, Sloterdijk, Peter. Kritik der zynischen Vernunft. Frankfurt, 1983, citado por Zizek, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In Um mapa da ideologia. Zizek, Slavoj (Org). Rio de Janeiro, Contraponto, pp. 312 e 313. Registre-se que Zizek alerta para o fato de que necessrio fazer uma distino entre "sintoma" e "fantasia, para mostrar como a idia de estarmos vivendo mima sociedade ps-ideolgica um pouco apressada demais. E explica: "A razo cnica, com todo o seu despreendimento irnico, deixa intacto o nvel fundamental da fantasia ideolgica, o nvel em que a ideologia estrutura a prpria realidade social".29 Inmeros exemplos podem ser trazidos para mostrar a razo cnica brasileira. Um deles ocorreu durante a campanha eleitoral de 1998, em que o ministro da Previdncia Social, Vandeck Ornelas, mandou 17,6 milhes de cartas para os segurados do INSS. Na missiva, Ornelas defendia a reforma da Previdncia. Pura propaganda eleitoral, com o custo de R$ 4,9 milhes. Examinando a matria, o Tribunal Superior Eleitoral condenou o ministro. A pena aplicada: R$ 19,2 mil. Da a indagao do jornalista Fernando Rodrigues: " ou no um caso tpico em que valeu a pena correr o risco? Foram R$ 4,9 milhes por apenas R$ 19,2 mil, (isto) na hiptese de o STF confirmar a multa". E complementa Rodrigues: "O pecadilho de Ornelas nos remete a um problema maior. Uma espcie de escudo invisvel - como o do comercial da pasta de dente - parece separar a populao da realidade do pas. Absurdos acontecem. Todos vem. Mas tudo consentido, tolerado." In: O crime compensa. Folha de So Paulo, p. 1-2. 29.08.98.30 Costa, Jurandir Freire. A devorao da esperana no prximo, in Folha de So Paulo, 22.09.96, Caderno Mais, p. 8.

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 29

  • utopias, (existem os) manuais de auto-ajuda, psicofrmacos, cocana e teraputicas diversas para os que tm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicncia ou religiosismo fantico para os que apenas sobrevivem".

    30 Lenio Luiz Streck

  • 2. O Estado Democrtico de Direito e a (des)funcionalidade do Direito: os obstculos representados pelo paradigma do modo (modelo) de produo de Direito e do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia

    Em nosso pas, no h dvida de que, sob a tica do Estado Democrtico de Direito - em que o Direito deve ser visto como instrumento de transformao social -, ocorre uma desfuncionalidade do Direito e das Instituies encarregadas de aplicar a lei. O Direito brasileiro e a dogmtica jurdica31 que o instrumentaliza est assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua prpria funcionalidade!32 Ou seja, no houve ainda, no plano hermenutico, a

    31 Entendo serem absolutamente atuais e pertinentes as crticas que Warat faz dogmtica jurdica. Segundo ele, no mbito da dogmtica jurdica, sob o manto protetor de uma linguagem ingenuamente descritiva, os juristas que detm a fala autorizada no mbito da dogmtica jurdica obtm modalidades prescritivas. Desse modo, a dogmtica jurdica cumpre a importante funo de reformular o direito positivo, sem provocar uma inquietude suspeita de que esteja realizando esta tarefa. Assim, o jurista dogmtico constri um discurso aparentemente cientfico mas que, no fundo, est prenhe de categorias pseudo-explicativas, que encobrem a cosmologia valorativa com a qual se pretende, em realidade, a reproduo da ordem social. Com seu trabalho, acrescenta Warat, a dogmtica consegue, para o Direito, que o valor retrico adquira uma aparncia analtica, e o interesse, uma aparncia de legalidade. Warat, Luis Alberto. Introduo geral ao direito II. Porto Alegre, Fabris, 1995, pp. 22 e segs. Da o necessrio registro de que as crticas deste texto so dirigidas, evidncia, dogmtica jurdica no-garantista, que no questiona as viscissitudes do sistema jurdico, reproduzindo esta injusta e desigual ordem social. Ou seja, as crticas aqui feitas ressalvam e reconhecem os importantes contributos crticos - e no so poucos - construdos/elaborados ao longo de dcadas em nosso pas.32 possvel, de certo modo, traar um paralelo da crise (de paradigma) de modelos jurdicos que vm acontecendo no Brasil ps-Constituio de 1988 e o que ocorreu na Alemanha dos anos 20, quando do advento da Constituio de Weimar. L, como aqui, um velho e superado modo de fazer/interpretar o Direito representa(va) um obstculo implantao do novo modelo de Direito e Estado traduzido na nova ordem

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 31

  • devida filtragem - em face da emergncia de um novo modo de produo de Direito representado pelo Estado Democrtico de Direito - desse (velho/defasado) Direito, produto de um modo liberal-individualista-normativista de produo de direito, entendendo-se como modo de produo de Direito, para os limites desta abordagem, a poltica econmica de regulamentao, proteo e legitimao num dado espao nacional, num momento especfico, que inclui:

    a) o modo com que a profisso jurdica e a prestao de seus servios so organizados;

    b) a localizao de papis entre as vrias posies no campo jurdico (praticantes, aplicadores da lei, guardies da doutrina, acadmicos, etc.);

    constitucional. Naquele perodo, os juristas pertencentes Associao dos Professores de Direito Pblico da Alemanha (Rudolf Smend, Karl Schmitt, H. Heller e Triepel, para citar alguns deles) estavam convencidos que o instrumental at ento existente era incapaz de interpretar os direitos fundamentais previstos na nova Constituio. A Teoria Geral do Estado vigorante, baseada, por exemplo, em Jelli- neck, era insuficiente para entender o carter social-intervencionista da nova Carta. A partir disto, passam a trabalhar a idia de que, para superar o paradigma at ento vigente, necessrio entender o Direito no somente pelo Direito, mas tambm pelo Poltico. H uma juno entre o jurdico e o poltico (1926 - Triepel). Smend (1928), na obra A teoria da Constituio, refora a idia de estudar concretamente a Constituio. A Constituio no apenas o documento para organizar o Estado. Demonstra, ento, que a Constituio tem a funo de teoria da integrao. H uma natureza poltica-social da Constituio; no se pode mais continuar a lidar com a dicotomia sociedade/Estado. Smend influenciou tambm na interpretao constitucional, demonstrando que a Constituio necessita de mtodos de interpretao especficos, porque no se pode interpretar a Constituio com os mtodos de Direito Privado, ultrapassando, assim, Savigny. Importante tambm foi a contribuio de Heller, mormente pela obra A soberania. Karl Schmitt levou a questo da importncia do poltico mais longe que todos, negando a prpria especificidade do jurdico, conspirando, desse modo, contra a Constituio de Weimar. Um problema foi tangenciado por estes juristas, com exceo de Heller: a questo democrtica. Cfe. Jos Ribas Vieira, texto indito, "O direcionamento da teoria constitucional e os reflexos nos direitos fundamentais", conferncia proferida no Curso de Mestrado em Direito da UNISINOS-RS, em 20.10.98. De qualquer sorte, importa registrar, para os limites e objetivos desta abordagem, que, enquanto na Alemanha, em face da nova Constituio, o problema da crise de modelos logo fo i colocada/enfrentada, no Brasil, passados dez anos da promulgao da Constituio, esse questionamento ainda no est colocado de forma suficiente, continuando a ser dominante o modelo de Direito de perfil liberal-individualista-normativista, que nega, por exemplo, a aplicao das normas programticas e dos princpios da nova Constituio. Ou seja, a questo relacionada a crise de modelos (ou do que nesta obra tambm denomino de crise do modo de produo de Direito) tem sido colocada de forma ainda muito tmida no plano da Teoria Geral do Estado e da doutrina constitucional de nosso pas.

    32 Lenio Luiz Streck

  • c) o modo com que o campo produz o habitus, incluindo variaes na educao e a importncia das vantagens sociais (antecedentes e relaes pessoais) para o recrutamento no campo;

    d) as modalidades para a articulao da doutrina preponderante e os modos com que estas incidem em relaes entre jogadores e posies;

    e) o papel que os advogados, juntamente com os protagonistas globais e regimes transnacionais representam num dado campo jurdico;

    f) a relao entre regulamentao e proteo; e,g) o modo dominante de legitimao.33Assim, a partir disso, pode-se dizer que, no Brasil, predomi

    na/prevalece (ainda) o modo de produo de Direito institudo/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tcio*4 ou onde Caio o agente/autor e Tcio (ou Mvio), o ru /vtima. Assim, se Caio (sic) invadir (ocupar) a propriedade de Tcio (sic), ou Caio (sic) furtar um botijo de gs ou o automvel de Tcio (sic), fcil para o operador do Direito resolver o problema. No primeiro caso, a resposta singela: esbulho, passvel de imediata reintegrao de posse, mecanismo jurdico de pronta e eficaz atuao, absolutamente eficiente para a proteo dos direitos reais de garantia. No segundo caso, a resposta igualmente singela: furto (simples, no caso de um botijo; qualificado, com uma pena que pode alcanar 8 anos de recluso, se o automvel de Tcio (sic) for levado para outra unidade da federao).

    Ou seja, nos casos apontados, a dogmtica jurdica coloca disposio do operador um prt--porter significativo contendo uma resposta pronta e rpida! Mas, quando Caio (sic) e milhares de pessoas sem teto ou sem terra invadem/ocupam a propriedade de Tcio (sic), ou quando Caio (sic) participa de uma "quebradeira" de bancos, causando desfalques de bilhes de dlares (como no caso do Banco Nacional, Bamerindus, Econmico, Coroa-Brastel, etc.), os juristas s

    33 O conceito de modo de produo de direito aqui trabalhado de Dezalay e Trubek, op. cit., que se baseiam, de certo modo, no conceito de modo de produo de direito formulado por Boaventura de Souza Santos.34 Uma observao necessria: os personagens "Caio, Tcio, Mvio(a)" so aqui utilizados como uma crtica aos manuais de Direito, os quais, embora sejam dirigidos - ou deveriam ser - a um sistema jurdico (brasileiro!) no interior do qual proliferam Joos, Pedros, Antonios e Joss, Marias, Terezas, teimam (os manuais) em continuar usando personagens "idealistas/idealizados", desconectados da realidade social. Registre-se que at mesmo no provo do MEC os personagens Caio e Tcio (re)apareceram...

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 33

  • 1conseguem "pensar" o problema a partir da tica forjada no modo liberal-individualista-normativista de produo de Direito.

    Como respondem os juristas a esses problemas, produtos de uma sociedade complexa, em que os conflitos (cada vez mais) tm um cunho transindividual? Na primeira hiptese, se a justia tratar da invaso/ocupao de terras do mesmo modo que trata os conflitos de vizinhana, as conseqncias so gravssimas (e de todos conhecidas...!). Na segunda hiptese (crimes de colarinho branco e similares), os resultados so assustadores, bastando, para tanto, examinar a pesquisa realizada pela Procuradora da Repblica Ela Castilho,35 cujos dados do conta de que, de 1986 a 1995, somente 5 dos 682 supostos crimes financeiros apurados pelo Banco Central resultaram em condenaes em primeira instncia na Justia Federal. A pesquisa revela, ainda, que 9 dos 682 casos apurados pelo Banco Central tambm sofreram condenaes nos tribunais superiores. Porm - e isso de extrema relevncia - nenhum dos 19 rus condenados por crime do colarinho branco fo i para a cadeial

    A pesquisa em questo ressalta, ainda, que o nmero de 682 casos apurados extremamente pfio, em face dos milhares de casos de crimes do colarinho branco que ocorrem a todo ano no pas\ E os crimes contra o meio ambiente, como so tratados? Como funciona o Direito nas relaes de consumo, mormente quando se percebe que a televiso brasileira, que deveria ser um veculo para transmitir cultura e educao (art. 221 da Constituio Federal), transformou-se em um "bingo ps-moderno"? No temerrio afirmar que, a partir de um exame cuidadoso, pouqussimas concesses de canais de televiso e de rdio passariam pelo crivo das disposies elencadas no aludido art. 221.

    A crise do modelo (modo de produo de Direito) se instala justamente porque a dogmtica jurdica, em plena sociedade trans- moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem ntidos em nossos Cdigos (civil, comercial, pena, processual penal e processual civil, etc.). Esta a crise de modelo (ou modo de produo) de Direito, dominante nas prticas jurdicas de nossos tribunais, fruns e na doutrina. No mbito da magistratura - e creio que o raciocnio pode ser estendido s demais instncias de administrao da justia -, Faria36 aponta dois fatores que contribuem para o agravamento dessa problemtica: o excessivo indivi

    35 Consultar Castilho, Ela Volkmer de. O controle penal dos crimes contra o sistema financeiro nacional. Belo Horizonte, Del Rey, 1998.36 Faria, Jos Eduardo. O Poder Judicirio no Brasil, op. cit., pp. 14 e 15.

    34 Lenio Luiz Streck

  • dualismo e o formalismo na viso de mundo: esse individualismo se traduz pela convico de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivduo esto acima dos direitos da comunidade; como o que importa o mercado, espao onde as relaes sociais e econmicas so travadas, o individualismo tende a transbordar em atomismo: a magistratura treinada para lidar com as diferentes formas de ao, mas no consegue ter um entendimento preciso das estruturas socioeconmicas onde elas so travadas. J o formalismo decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e impessoais, justificados em norma da certeza jurdica e da "segurana do processo". No preparada tcnica e doutrinariamente para compreender os aspectos substantivos dos pleitos a ela submetidos, ela enfrenta dificuldades para interpretar os novos conceitos dos textos legais tpicos da sociedade industrial,.principalmente os que estabelecem direitos coletivos, protegem os direitos difusos e dispensam tratamento preferencial aos segmentos economicamente desfavorecidos".

    No surpreende, pois, que institutos jurdicos importantes como o mandado de injuno e a substituio processual,37 previstos na nova Constituio, assim como a tutela antecipatria contra o

    37 O mandado de injuno foi recebido pela comunidade jurdica como sendo talvez o mais importante instituto jurdico j introduzido no direito brasileiro. Afinal de contas, inspirado no writ o f ittjuction do direito anglo-americano, foi, aqui, alado categoria de norma constitucional, in verbis: "Art. 52, LXXI - Concerder-se- mandado de injuno sempre que a falta de norma regulamentadora torne invivel o exerccio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade, soberania e cidadania." Lamentavelmente, em sucessivos julgamentos, o Supremo Tribunal Federal redefiniu o instituto, dizendo que, ao contrrio do que pregavam importantes setores da doutrina brasileira, o mandado de injuno no concedia ao Judicirio a prerrogativa de, no caso concreto, na ausncia de norma regulamentadora, atribuir o direito ao cidado impetrante, elaborando a norma tout court. No fundo, o MI foi transformado em uma espcie de ao de inconstitucionalidade por omisso subsidiria, com o que perdeu a sua eficcia. Para tanto, ver Streck, Lenio Luiz. O mandado de injuno no direito brasileiro. Anlise crtica. Rio de Janeiro, Edies Trabalhistas, 1991. J a substituio processual prevista no art. 8, III, da Constituio Federal, foi redefinida mediante a edio do enunciado 310, do Tribunal Superior do Trabalho. Referido enunciado (smula), desdobrado em oito itens, estabelece, de forma absolutamente inconstitucional, que "o art. 8a, inciso III, da Constituio da Repblica, no assegura a substituio processual pelo Sindicato", e, entre outras coisas, diz que, "em qualquer ao proposta pelo sindicato como substituto processual, todos os substitudos sero individualizados na petio inicial...". Apesar Tia' flagrante ofensa Constituio, at hoje permanece vlida e eficaz no sistema jurdico ptrio. Sobre a crtica a esse enunciado e ao papel de violncia simblica que as smulas exercem no sistema, consultar Streck, Lenio Luiz. Smulas no direito brasileiro. Eficcia, poder e funo. 2 Ed. rev. e ampl. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1998.

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 35

  • Poder Pblico,38 tenham sido redefinidos e tornados ineficazes pelo establishment jurdico-dogmtico. Um indignado comentrio do juiz de direito de So Paulo, Jos Roberto Lino Machado, ilustra bem essa problemtica: "No h emprego para os pobres. No h moradia para os pobres. Mas os juristas insistem em defender a intangibili- dade da propriedade dos bens de produo e de terras no utilizadas para nenhum fim social com a nica inteno especulativa ou por simples inrcia de seu proprietrio. As grandes corporaes e as instituies financeiras impem suas clusulas e condies aos consumidores, mas, por inqua ou unilateral que seja a condio, a iniqidade e a unilateralidade esto cobertas pelo ato jurdico (mas no seria de indagar-se, em tais casos, se a clusula notoriamente injusta aperfeioou-se com a assinatura do ato ou se, ao contrrio, por ser imposta pela parte forte e por ser injusta, jamais de aperfeioou?"39

    Estamos, assim, em face de um srio problema: de um lado temos uma sociedade carente de realizao de direitos e, de outro, uma Constituio Federal que garante estes direitos da forma mais ampla possvel. Este o contraponto. Da a necessria indagao: qual o papel do Direito e da dogmtica jurdica neste contexto? Segundo

    38 O artigo I a da Lei 9.494/97, fruto de medida provisria proveniente do Poder Executivo, proclama ser aplicvel tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Cdigo de Processo Civil o disposto nos arts. 5a e seu pargrafo nico e 7- da Lei 4.348, de26 de junho de 1964, no art. P e seu 4 da Lei 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1, 32 e 4 da Lei 8.347, de 30 de junho de 1992. Conseqncia disto, a partir de ento tornou-se impossvel, por exemplo, via tutela antecipada, buscar o fornecimento de remdios e tratamentos de sade de qualquer tipo - s para citar as reas mais frgeis da Repblica - reivindicados em aes com fundamento no art. 196 da Constituio Federal, que diz que a sade um direito de todos e um dever do Estado... Em face da negativa de juizes em aplicar o citado dispositivo, por consider-lo inconstitucional, o Poder Executivo ingressou com uma Ao Declaratria de Constitucionalidade. Por maioria de votos, vencidos integralmente os ministros Marco Aurlio e Carlos Velloso e, parcialmente, o Min. Jos Nri da Silveira, o plenrio do Supremo Tribunal deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, com eficcia ex nunc e com efeito vinculante, at final julgamento da ao, a prolao de qualquer deciso sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pblica, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucio- nalidade do art. 1 da Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, sustando, ainda, com a mesma eficcia, os efeitos futuros dessas decises antecipatrias j proferidas contra a Fazenda Pblica. Este um dos serissimos problemas decorrentes do assim denominado efeito vinculante da ao declaratria de constitucionalidade. Com isto, tornou-se impossvel qualquer concesso de tutela antecipada contra a Fazenda Pblica. Os prejuzos para a sociedade so incomensurveis, mormente se levarmos em conta que a tutela antecipada era o principal sustentculo das aes civis pblicas, cujo ru, na grande maioria dos casos, o Poder Pblico.39 Cfe. Machado, Jos Roberto Lino. Funo social do jurista: uma viso crtica. In Justia e democracia 2. So Paulo, RT, 1996, p. 166.

    36 Lenio Luiz Streck

  • Morais, o Estado Democrtico de Direito, teria (tem?) a caracterstica de ultrapassar no s a formulao do Estado Liberal de Direito, como tambm a do Estado Social de Direito - vinculado ao Welfare State neocapitalista - impondo ordem jurdica e atividade estatal um contedo utpico de transformao da realidade. O Estado Democrtico de Direito, ao lado do ncleo liberal agregado questo social, tem como questo fundamental a incorporao efetiva da questo da igualdade como um contedo prprio a ser buscado garantir atravs do asseguramento mnimo de condies mnimas de vida ao cidado e comunidade. Ou seja, no Estado Democrtico de Direito a lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ao concreta do Estado, tendo como mtodo assecuratrio de sua efetividade a promoo de determinadas aes pretendidas pela ordem jurdica.40 ! '

    O Estado Democrtico de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realizao do Estado Social. nesse sentido que ele um plus normativo em relao ao direito promovedor-intervencio- nista prprio do Estado Social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem, no plano normativo, como conseqncia ou fazendo parte da prpria crise do Estado Providncia. Desse modo, se na Constituio se coloca o modo, dizer, os instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira geraes, via institutos como substituio processual, ao civil pblica, mandado de segurana coletivo, mandado de injuno (individual e coletivo) e tantas outras formas, porque no contrato social - do qual a Constituio a explicitao-- h uma confisso de que as promessas da realizao da funo social do Estado no foram (ainda) cumpridas.

    Por isso, possvel sustentar que, no Estado Democrtico de Direitpj_h_-ou deveria haver - um sensvel deslocamento do centro de decises do Legislativo e do Executivo para o Judicirio. "O processo judicial que se instaura mediante a propositura de determinadas aes, especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou de dimenso constitucional - ao popular, ao civil pblica, mandado de jnjuno, etc. - torna-se um instrumento permanente da cidadania".41 Pode-se dizer, nesse sentido, que no Estado Liberal, o centro de deciso apontava para o Legislativo (o que no proibido

    40 Cfe. Morais, Jos Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996, pp. 67 e segs. (grifei)41 Cfe. Guerra Filho, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Ps-Moderna. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p.36. Tambm do mesmo autor, Direito Constitucional e democracia. In Direito e democracia, op. cit., p. 209.

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 37

  • permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar polticas pblicas e sustentar a interveno do Estado na economia; j no Estado Democrtico de Direito, o foco de tenso se volta para o Judicirio. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tenso passou para o Poder Executivo, no Estado Democrtico de Direito h uma modificao desse perfil, lnrcias do Executivo e falta de atuao do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judicirio, justamente mediante a utilizao dos mecanismos jurdicos previstos na Constituio que estabeleceu o Estado Democrtico de Direito.

    O Estado Democrtico de Direito depende(ria) muito mais de uma ao concreta do Judicirio do que de procedimentos legislativos e administrativos.42 Claro que tal assertiva pode e deve ser rela- tivizada, mormente porque no se pode esperar que o Judicirio seja a soluo (mgica) dos problemas sociais. O que ocorre que, se no processo constituinte optou-se por um Estado intervencionista, visando a uma sociedade mais justa, com a erradicao da pobreza etc., dever-se-ia esperar que o Poder Executivo e o Legislativo cumprissem tais programas especificados na Constituio. Acontece que a Constituio no est sendo cumprida. As normas-programa da Lei Maior no esto sendo implementadas. Por isto, na falta de polticas pblicas cumpridoras dos ditames do Estado Democrtico de Direito, surge o Judicirio como instrumento para o resgate dos direitos no realizados. Por isto a inexorabilidade desse "sensvel deslocamento" antes especificado.

    Em face do quadro que se apresenta - ausncia de cumprimento da Constituio, mediante a omisso dos poderes pblicos, que no realizam as devidas polticas pblicas determinadas pelo pacto constituinte -, a via judiciria se apresenta como a via possvel para a realizao dos direitos que esto previstos nas leis e na Constituio. Assim, naquilo que se entende por Estado Democrtico de Direito, o Judicirio, atravs do controle da constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistncia s investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a ineficcia dos direitos individuais ou sociais. Dito de outro modo, a Constituio no tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante funo de proteger os direitos j conquistados. Desse modo, mediante a utilizao da principiologia constitucional (explcita ou implcita), possvel combater alteraes feitas por maiorias polticas eventuais, que,42 A respeito, consultar Rocha, Leonel Severo. A democracia em Rui Barbosa. O projeto poltico liberal-racional. Rio de Janeiro, Liber Juris, 1995, pp. 137 e 153.

    38 Lenio Luiz Streck

  • legislando na contramo da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade. Veja-se, nesse sentido, a importante deciso do Tribunal Constitucional de Portugal, que aplicou a clusula da "proibio do retrocesso social", inerente /imanente ao Estado Democrtico e Social de Direito: "...a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigao positiva, para se transformar ou passar tambm a ser uma obrigao negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfao ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realizao dada ao direito social" (Acrdo n. 39/84 do Tribunal Constitucional da Repblica Portuguesa).

    Evidentemente que isto leva em conta uma concepo de Constituio como espao de regulao garantidor das relaes democrticas entre o Estado e a Sociedade (Ribas Vieira), devendo ser entendida "precisamente como zona ms o menos segura de medicin, aparte de la habitual entre legalidad y legitimacin, tambin - ms radicalmente y vinculado a todo ello - entre legitimidad y justicia" (Elias Diaz).

    No Brasil, alguns exemplos mostram a viabilidade da tese do deslocamento do centro de decises acima especificado. Segundo a Constituio Federal (art. 205), a educao direito de todos e dever do Estado e da famlia, tanto que o ensino fundamental obrigatrio e gratuito, segundo estabelece o Estatuto da Criana e do Adolescente, art. 5 4 ,1, cabendo ao municpio atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educao fundamental infantil (art. 211, 2Q, e art. 60 das disposies transitrias da CF). Isto aliado ao fato de que a Constituio estabelece, entre os objetivos fundamentais da Repblica, a construo de uma sociedade justa e solidria, garantindo o desenvolvimento, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais (art. 3e). E se faltarem vagas na rede pblica, pergunta o Juiz de Direito Urbano Ruiz? Pois na cidade de Rio Claro, o Promotor de Justia ingressou com uma ao civil pblica (instrumento do Estado Democrtico de Direito) para obrigar a municipalidade a cri-las, para que no ano letivo de 98 nenhuma criana ficasse fora da escola, sob pena de multa diria, alm de responsabilizar penalmente o prefeito, que poderia ser destitudo do cargo e ficar inabilitado para o exerccio de cargo ou funo pblica por cinco anos. O juiz determinou, liminarmente, a criao das vagas. No hocive contestao por parte da prefeitura. Esse fato, complementa Ruiz, mostrou que possvel utilizar o Judicirio para o desenvolvi

    Hermenutica Jurdica e(m) Crise 39

  • mento de polticas pblicas, ou seja, por meio dele possvel exigir das autoridades que cumpram seus deveres, que tomem atitudes.43

    Na mesma linha, demonstrando o novo perfil do Poder Judicirio - no mais como mero assistente e, sim, intervencionista, em face do deslocamento de tenso j delineado anteriormente - vale referir a deciso prolatada pelo magistrado Ivo Dantas,44 no processo n. 1.404/88 - JCJ do Recife, tendo como pano de fundo os direitos sociais previstos no art. 7a da Constituio Federal. Segundo a sentena, " primeira vista tem o empregador o poder potestativo de despedir, mormente se entendermos o inciso I do art. 7e de forma isolada. Contudo, a primeira lei da Hermenutica no sentido de nenhum artigo, inciso, pargrafo ou alnea podero ser entendidos de forma isolada; devem, sim, ser interpretados sob a tica sistmica, tanto inter, quanto intra-sistemicamente. Ademais, os princpios prprios da Interpretao Constitucional devero estar obrigatoriamente presentes. Assim, a despedida arbitrria, alm dos ressarcimentos pecunirios previstos no art. 1 0 ,1, do ADTC, passa a ser informada pelos PRINCPIOS FUNDAMENTAIS do art. l e, III e IV, bem como pelo art. 193, ambos da Constituio vigente. Nos Princpios Fundamentais, v-se, ento, que o Estado Democrtico de Direito Brasileiro tem por fundamento, entre outros, o trabalho como valor social. Ora, o valor social no pertence nem ao empregado, nem ao empregador, mas, sim, sociedade como um todo. Ela no poder, dia aps dia, receber em seu seio pessoas que, sem motivo e por simples fundamentao no poder de despedir, percam o emprego sem motivo justificado, como, alis, entendem, alm da Alemanha, os sistemas italiano, espanhol e portugus."

    Outros casos poderiam ser aqui elencados, como as aes civis pblicas obrigando o fornecimento de remdios a pessoas portadoras de doenas crnicas e a construo de locais condizentes para abrigo de menores.45 Embora ainda reduzido o nmero de aes e providncias desse quilate, em alguns pontos se pode perceber a atitude do Ministrio Pblico e do Judicirio em sua feio intervencionista/ transformadora. evidente que no se pode pretender que o Judicirio passe a ditar polticas pblicas lato sensu ou que passe a exercer funes executivas e nem a Constituio - com todo o aparto jurdico colocado diposio do Ministrio Pblico e do Judicirio -

    43 Cfe. Ruiz, Urbano. Democratizar o judicirio. In: Folha de So Paulo, Cotidiano, pp. 3-2.44 Cfe. Dantas, Ivo. Princpios constitucionais e interpretao constitucional. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998, pp. 40 e 41.45 A esse propsito, ver nota n. 372.

    40 Lenio Luiz Streck

  • permitiria tal situao. Basicamente, a mudana de postura dos operadores jurdicos, agindo em vrias reas de polticas pblicas deixadas ao largo pelo Poder Executivo, j por si s provoca(ria) discusses que leva(ria)m os Poderes Legislativo e Executivo reformulao de suas linhas de atuao, mormente no que concerne s prioridades oramentrias. Ou seja, o Direito, nessa linha, passa(ria) a ser utilizado no como instrumento de reduo de complexidades ou reproduo de uma dada realidade, e sim, como um mecanismo de transformao da sociedade.46

    De todo modo, cabe ressaltar que essa questo no nova. Com efeito, Rocha, analisando o pensamento poltico de Rui Barbosa, chama a ateno para o fato de que, j na perspectiva de Rui para a Constituio de 1891, o Judicirio, rgo de controle da constitucionalidade, seria uma espcie de fiador das instituies e propiciador do acesso s demandas individuais. A perspectiva de Rui chamada por Rocha de "democracia juridicista", forma poltica na qual o direito de reivindicar os direitos nos tribunais seja a todos assegurada.

    Se correta a tese do deslocamento do centro de decises antes delineada (relativizada ou no), como explicar a ineficcia do sistema judicirio no Brasil? Ou seja, com todos estes mecanismos disposio - princpios constitucionais amplos e dirigentes, aes coletivas das mais variadas (ao civil pblica, mandado de segurana coletivo, mandado de injuno coletivo, ao popular, etc.) - como justificar a quase46 A perspectica transformadora do Direito, utilizada nestas reflexes, coloca-se em rota de coliso com as teorias sist