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  • 8/2/2019 A_Atualidade_do_Debate da crise paradigmtica - Lenio Streck

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    A ATUALIDADE DO DEbATE DA CRISE PARADIGmTICA DO

    DIREITO E A RESISTNCIA POSITIVISTA

    AO NEOCONSTITUCIONALISmO

    lenio luiz stReCk*

    Palavras-chave: Direito positivo. Crise paradigmtica do Direito. Neoconstituciona-lismo.

    Embora o avano que as diversas posturas crticas tm representado no cam-po da teoria do direito e do direito constitucional, torna-se necessrio, ainda, rear-mar uma velha questo, sobre a qual venho me debruando, mormente a partir daConstituio de 19: a crise de paradigmas que atravessa o imaginrio dos juristas.

    Com eeito, passados dezoito anos, a crise est longe de ser debelada. Como tenho re-erido em vrios textos principalmente em Hermenutica Jurdica e(m) Crise: umaexplorao hermenutica da construo do direito1 , a crise possui uma dupla ace:de um lado, uma crise de modelo de direito (preparado para o enrentamento de con-fitos interindividuais, o direito no tem condies de enrentar/atender s demandas

    1 STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) Crise. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

    * Ps-doutorado em Direito Constitucional e Hermenutica (Lisboa). Doutor e Mestre em Direito do Estado(UFSC). Proessor Titular dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Ps-Graduao em Direito daUNISINOS/RS. Proessor Visitante da Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenador do Acordo Internacio-nal Capes-Grices entre a UNISINOS e a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Proessor Convidado

    da UNESA/RJ. Proessor Visitante da Universidade de Lisboa. Proessor Visitante da Universidad de Valladolid-ES. Membro Conselheiro do Instituto de Hermenutica Jurdica (IHJ). Procurador de Justia (RS).

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.

    RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    de uma sociedade repleta de confitos supraindividuais), problemtica de h muito

    levantada por autores como Jos Eduardo Faria; de outro, a crise dos paradigmasaristotlico-tomista e da losoa da conscincia, o que signica dizer, sem medo deerrar, que ainda estamos rens do esquema sujeito-objeto.

    Fundamentalmente, essa crise de dupla ace sustenta o modo exegtico-posi-tivista de azer e interpretar o direito. Explicando melhor: se, de um lado, parte con-sidervel do direito ainda sustenta posturas objetivistas (em que a objetividade dotexto sobrepe-se ao intrprete, ou seja, a lei vale tudo, espcie de consolidao doparaso dos conceitos do ormalismo de que alava Hart); de outro, h um conjun-

    to de posies doutrinrio-jurisprudenciais assentadas no subjetivismo, segundo oqual o intrprete (sujeito) sobrepe-se ao texto, ou seja, a lei s a ponta do iceberg,isto , o que vale so os valores escondidos debaixo do iceberg (sic). A tarea crti-co-revolucionria do intrprete seria a de descobrir esses valores submersos...O aspecto crtico estaria no ato de que o barco do positivismo bateria contra osvalores submersos!

    Isto tem sido assim porque, com sustentao em Kelsen e Hart (para alar ape-nas destes), passando pelos realistas norte-americanos e escandinavos, construiu-se,com o passar dos anos, uma resistncia ao novo paradigma de direito e de Estadoque exsurgiu com o segundo ps-guerra. O novo constitucionalismo que exige umanova teoria das ontes, uma nova teoria da norma e um novo modo de compreen-der o direito ainda no aconteceu, com a necessria sucincia, em terrae brasilis.Ainda no compreendemos o cerne da crise, isto , que o novo paradigma do direitoinstitudo pelo Estado Democrtico de Direito nitidamente incompatvel com a velhateoria das ontes2, com a plenipotenciariedade dos discursos de undamentao, susten-tada no predomnio da regra e no desprezo pelos discursos de aplicao, e, fnalmente,com o modo de interpretao undado (ainda) nos paradigmas aristotlico-tomista e

    da flosofa da conscincia. Assim, a teoria positivista das ontes vem a ser superadapela Constituio; a velha teoria da norma ceder lugar superao da regra peloprincpio; e o velho modus interpretativo subsuntivo-dedutivo undado na relaoepistemolgica sujeito-objeto vem a dar lugar ao giro lingstico-ontolgico, un-dado na intersubjetividade.

    Trata-se, pois, de trs barreiras plena implementao do novo paradigmarepresentado pelo Estado Democrtico de Direito. Essas barreiras ncam razes na

    2 Talvez o exemplo mais contundente acerca desse problema ocasionado pela (ainda) no superada teoria dasontes a interpretao que o Supremo Tribunal Federal deu ao texto que estabelece a garantia undamentalao mandado de injuno. Para a Suprema Corte brasileira, o dispositivo constitucional no auto-aplicvel,carecendo, pois, de interpositio legislatoris.

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    concepo positivista de direito3, que identica texto e norma, vigncia e validade,ignorando a parametricidade ormal e material da Constituio, onte de um novoconstituir da sociedade. Se o positivismo est undado em um mundo de regras que,metasicamente, pretendem abarcar a realidade circunstncia que aasta todaperspectiva principiolgica , torna-se necessrio compreender a origem da dieren-a entre regra eprincpio, porque nela na dierena est novamente a questo que (ou deve ser) recorrente em qualquer teoria que se pretenda crtica e que objetivetransormar o direito em um saber prtico: pela regra azemos uma justicao desubsuno (portanto, um problema hermenutico-losco), que no undo uma

    relao de dependncia, de subjugao, e, portanto, uma relao de objetivao (por-tanto, um problema exsurgente da predominncia do esquema sujeito-objeto); j porintermdio do princpio no operamos mais a partir de dados ou quantidades obje-tivveis, isto porque, ao trabalhar com os princpios, o que est em jogo no mais acomparao no mesmo nvel de elementos, em que um elemento causa e o outro eeito, mas, sim, o que est em jogo o acontecer daquilo que resulta do princpio, quepressupe uma espcie de ponto de partida, que um processo compreensivo.

    3 Nesse sentido, em ace da complexidade/diculdade para denir as diversas posturas positivistas, no parecedesarrazoado a opo por uma classicao que poderia ser denominada a contrario sensu, a partir dascaractersticas das posturas consideradas e autodenominadas ps-positivistas, entendidas como as teoriascontemporneas que privilegiam o enoque dos problemas da indeterminabilidade do direito e as relaes en-tre o direito, a moral e a poltica (teorias da argumentao, a hermenutica, as teorias discursivas, etc). Ou seja, mais cil compreender o positivismo a partir das posturas que o superam. Autores como Albert Casalmiglia(Postpositivismo. Doxa. Cuadernos de Filosoa del Derecho, n. 22, Alicante, 199, p. 209-220) consideram quea preocupao das teorias ps-positivistas com a indeterminao do direito nos casos diceis, ou seja, paraos ps-positivistas, o centro de atuao deslocou-se em direo da soluo dos casos indeterminados (maisainda, os casos diceis no mais so vistos como excepcionais). Anal, os casos simples eram resolvidos pelopositivismo com recurso s decises passadas e s regras vigentes. J nos casos diceis estava-se em ace de

    uma terra inspita. No deja de ser curioso que cuando ms necesitamos orientacin, la teoria positivistaenmudece. Da a debilidade do positivismo (lato sensu), que sempre dependeu de uma teoria de adjudicao,que indicasse como devem se comportar os juzes (e os intrpretes em geral). Veja-se a pouca importnciadada pelo positivismo teoria da interpretao, sempre deixando aos juzes a escolha dos critrios a se-rem utilizados nos casos complexos. Para o ps-positivismo, uma teoria da interpretao no prescinde devalorao moral, o que est vedado pela separao entre direito e moral que sustenta o positivismo. O ps-positivismo aceita que as ontes do direito no oerecem resposta a muitos problemas e que se necessita deconhecimento para resolver estes casos. Alguns so cticos sobre a possibilidade do conhecimento prtico,porm, em linhas gerais, possvel armar que existe um esoro pela busca de instrumentos adequados pararesolver estes problemas (Dworkin e Soper so bons exemplos disso). Em acrscimo s questes levantadaspor Calsamiglia, vale reerir o acirramento da crise das posturas positivistas diante do paradigma neocons-

    titucionalista, em ace da sensvel alterao no plano da teoria das ontes, da norma e das condies para acompreenso do enmeno no interior do Estado Democrtico de Direito, em que o direito e a jurisdioconstitucional assumem um papel que vai muito alm dos planos do positivismo jurdico e do modelo dedireito com ele condizente.

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    Este o estado da arte do modus interpretativo que ainda domina o imagi-nrio jurdico prevalente em parcela considervel da doutrina e da jurisprudnciapraticada no Brasil. Trata-se, undamentalmente, de um problema paradigmtico,bem representado por aquilo que venho denominando baixa constitucionalidade ecrise de dupla ace, ambos enmenos caudatrios de uma espcie de acoplamentodo Trilema de Mnchausen4 ao mundo jurdico brasileiro5. Talvez por isto no causeestranheza comunidade jurdica a recentssima deciso de um juiz ederal que, emresposta aos embargos de declarao em que o advogado questionava o ato de asentena no ter se maniestado sobre a obrigao de controle diuso da constitu-

    cionalidade levantada como questo prejudicial, rejeitou o provimento, sob o ar-gumento de que ao cumprir seu dever constitucional de undamentar as decises, ojuiz no obrigado a analisar ponto por ponto todas as alegaes deduzidas (griei).O problema que o ponto principal questionado pelo advogado era, exatamente, ainconstitucionalidade de um ato normativo!

    Do mesmo modo, veja-se a deciso do Tribunal de Justia do Distrito Federal,deixando assentado que a inconstitucionalidade de uma lei, ou ato normativo, sabi-damente, no se presume, nem seria possvel declar-la no mbito restrito do habeas

    corpus (griei)6

    .Em linha similar:

    Ao rescisria. Fundamento em incompetncia da Turma julgadora e viola-o literal de lei. Procedncia pelo segundo undamento. (...)O controle diuso da constitucionalidade das leis ocorre quando qualquerrgo judicial (monocrtico ou colegiado), para decidir a causa, tenha deexaminar, previamente, a questo de ser ou no constitucional a norma legalque tenha incidncia na demanda. Por esse exame, que independe de argiodo incidente de inconstitucionalidade, no declara o rgo judicial a incons-

    4 Ver, para tanto, ALBERT, Hans. Tratado da Razo Crtica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.5 dicil mensurar a dimenso da crise. Bem recentemente, o pas assistiu perplexo tentativa de se convocar

    uma Assemblia Constituinte, que colocaria o direito constitucional brasileiro abaixo do que provavelmentese estuda na Suazilndia. E no parlamento chegou a ser lavrado parecer na requentada PEC 157, na qual sedecretava que o poder constituinte uma co (sic). Transcendendo s ronteiras do direito stricto sensu, opas assistiu em rede nacional ao humorista e apresentador de TV, J Soares, ironizar a Constituio do Brasil,comparando-a em tamanho com a dos Estados Unidos. Para piorar o quadro, uma jornalista presente eramquatro na mesa para comentar as vrias CPIs instaladas em 2005 explicou a discrepncia nas dimenses dasrespectivas Cartas: a dos Estados Unidos era sinttica, porque ora ruto do sistema germnico (sic); a do Bra-

    sil era grande, porque inspirada no sistema romano... (sic)! E os estudantes de direito presentes aplaudirama explicao.6 HC n 752396 e HC n 753097, Rel. Des. Lcio Resende, 1 Turma Criminal, TJDF, j. em 20/03/97, DJU 14/05/97

    p. 9.37).

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    titucionalidade da lei. Simplesmente deixa de aplic-la em ace do caso con-

    creto, por consider-la inconstitucional. H dierena entre declarar-se que alei inconstitucional (controle direto, com eeito erga omnes) e deixar-se deaplicar a lei por se a considerar inconstitucional (controle diuso, com eeitoapenas no caso julgado)7 (griei).

    No exato contexto da presente crtica crise paradigmtica do direito, con-ra-se as decises a seguir delineadas, nas quais o Tribunal de Justia do Rio Grandedo Sul az uma auto-restrio acerca do seu poder/dever de controlar a constitucio-

    nalidade das leis:Embora, no Regimento Interno deste Tribunal seja possvel a um rgo Fra-cionrio levar ao rgo Especial uma possvel argio de inconstituciona-lidade de lei municipal ou mesmo estadual, rente Constituio Estadual, orgo Especial no tem competncia para decidir matria de lei estadual quefra a Constituio Federal. Ento, a matria no est na competncia desteTribunal nem deste rgo Fracionrio.Destarte, no controle diuso, quando o Tribunal Pleno ou rgo Especial notem competncia para declarara inconstitucionalidade de tal modo que pro-

    voque a suspenso da execuo pela Assemblia Legislativa, a competncia do rgo Fracionrio, que examinar a matria em relao ao STF, assimcomo o juzo de Primeiro Grau em relao ao Segundo. O juiz no declarainconstitucional a lei ou ato porque a competncia pertence ao STF ou aopleno ou rgo Especial do TJ, mas deixa de aplic-los por consider-los in-constitucionais. Assim tambm az o rgo Fracionrio em tais casos. Se acompetncia declarar do Pleno ou rgo Especial do Tribunal de Justia,az o envio; e se a competncia do STF, deixa de aplic-los por consider-los

    7 ARC n 5096, Rel. Des. Valter Xavier, 1 Cmara Cvel, TJDF, j. em 02/09/9, DJU 14/10/9, p. 30. Como se podevericar, o acrdo em tela conunde os conceitos de controle diuso e controle concentrado. Em primeiro lu-gar, cabe reerir que o art. 97 da Constituio, que estabelece a reserva de plenrio (ull bench), no aplicvelto-somente ao controle concentrado/direto/abstrato de constitucionalidade. Ao contrrio, exatamente emace da reserva de plenrio que o art. 97 aplica-se ao controle diuso. por ele que ocorre a ciso de compe-tncia, azendo com que,per saltum, a questo constitucional (portanto, questo prejudicial) seja catapultadado rgo racionrio para o plenrio do tribunal (ou rgo especial). Em segundo lugar, ao contrrio do queassentou o Tribunal, no h dierena entre declarar-se que a lei inconstitucional (que, equivocadamente, oTribunal considera caracterstica exclusiva do controle direto), e deixar-se de aplicar a lei por se a considerarinconstitucional. Na verdade, se o rgo racionrio entender que a lei inconstitucional, no pode ele deixarde aplic-la sem suscitar o respectivo incidente (a exceo consta no pargrao nico do art. 41 do CPC).Ao

    deixar de aplicar a lei por entend-la inconstitucional, estar o rgo racionrio subtraindo do plenrio do tri-bunal a prerrogativa (que s dele, neste caso) de declarar a inconstitucionalidade da lei, no mbito do controlediuso, ocorrendo, destarte, agrante violao do art. 97 da Constituio.

    Apelao Cvel n 70000205609, Rel. Des. Wellington Pacheco Barros, 4 Cmara Cvel, TJRS, j. em 23/0/00).

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    inconstitucionais. Neste caso repito no deve nem pode azer o envio,

    pois estar delegando jurisdio, e qualquer maniestao do Pleno ou dorgo Especial, sob o ponto de vista constitucional, incua. Por isso mesmoo voto reere a questo dos eeitos externos e a competncia exclusiva do STF.Desacolho9.

    J o Tribunal de Justia de So Paulo, em sede de Agravo de Instrumento (n313.23-5/1-00), deu por inconstitucional a Lei Federal n. 10.62/02 que tratavado oro especial para preeitos , sem qualquer meno necessidade do cumpri-mento do disposto no art. 97 da Constituio. Ou seja, aquilo que constitui o ncleocentral do controle diuso deixado de lado, enmeno que pode ser conerido pelonmo nmero de incidentes de inconstitucionalidade suscitados nos tribunais daederao.

    Como possvel perceber, os problemas decorrentes de uma baixa constitu-cionalidade podem ser constatados nos mais diversos mbitos do direito e sob osmais diversos matizes. O dcit de constitucionalizao da operacionalidade do di-reito tem suas eridas expostas na (metasica) equiparao entre vigncia e validade(o que equivale hermeneuticamente a equiparar texto e norma, vigncia e validade).

    Com isto, a Constituio fca relegada a um segundo plano, porque sua parametricida-de perde importncia na aerio da validade de um texto.

    Nesse sentido, calha registrar o no distante episdio da entrada em vigor doCdigo Civil em 2003, ocasio em que oi possvel e ainda detectar o grau dearraigamento s concepes metasico-dualsticas. Com eeito, na medida em que oCdigo demorou quase trs dcadas para ser aprovado, era inevitvel que o produtonal contivesse uma sucesso de equvocos, que vo de simples incompatibilidadesno plano das antinomias at fagrantes inconstitucionalidades. J nos primeiros me-

    ses centenas de emendas oram encaminhas ao Congresso Nacional, esperando queeste viesse a corrigir as anomalias. O que causa maior estranheza que um expressivonmero dessas emendas eram (e continuam sendo) desnecessrias, uma vez que osalegados vcios so pereitamente sanveis a partir de um adequado manejo da inter-pretao constitucional, mediante a aplicao da jurisdio constitucional. evidenteque sempre melhor que uma lei seja corrigida pelo prprio legislador. Entretanto,a cidadania no pode car merc dessa longa espera pelo legislador, correndo-se orisco do solapamento da prpria Constituio. O inusitado advm do ato de que, emalguns casos, os juzes continua(ra)m aplicando determinados dispositivos, mesmo

    9 Embargos de Declarao n 7000495660 ao Agravo de Instrumento n 7000360215, Rel. Des. Irineu Mariani,1 Cmara Cvel, TJRS, j. em 04/09/02.

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    sabendo da tramitao de emendas propondo a derrogao dos mesmos, por viola-

    o da Constituio (v.g., art. 1621, 2o; art. 1641, inc. II; art. 1614; art. 1694, 2; paracitar to-somente algumas incidncias). Em outros casos, bastaria a aplicao da in-terpretao conorme e as emendas tornar-se-iam dispensveis (v.g., art. 1602; art.1.63, inc. III; art. 1566, incs. I e II; art. 1727-A; para car apenas em alguns dos casosobjetos de emendas). Ou seja, uma adequada ltragem hermenutico-constitucionaldo novo Cdigo Civil eliminaria, de imediato, a maior parcela de suas anomalias. Mas,como se pode perceber, a velha teoria das ontes no permite a distino entre vign-cia e validade, entre texto e norma.

    A ausncia de uma nova teoria das ontes ez e continua azendo vtimasnos diversos campos do direito. Para se ter uma idia, o princpio constitucional daampla deesa (art. 5, inc. LV, da Constituio do Brasil) cou quinze anos sem seraplicado nos interrogatrios judiciais, sem que a doutrina e a jurisprudncia comrarssimas excees reivindicassem a aplicao direta da Constituio. Com eeito,at o advento da Lei n. 10.792, de 1o de dezembro de 2003, os acusados de terraebrasilis vinham sendo interrogados sem a presena de deensor. Os rarssimos acr-dos (v.g., da 5 Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul) queanulavam interrogatrios realizados sem a presena de advogado, sistematicamente

    eram atacados via recursos especial e extraordinrio. E, registre-se, o Superior Tri-bunal de Justia anulava os acrdos que aplicavam a Constituio sem interpositiolegislatoris, reorando, assim, a problemtica relacionada a um dos trs obstculosque o postivismo ope ao neoconstitucionalismo: a teoria das ontes. De qualquersorte, no h notcias de que os manuais de direito processual penal, neste espaode vigncia da Constituio, tenham apontado na direo de que seria nulo qualquerinterrogatrio sem a presena do deensor. Note-se que, nesse perodo de trs lustros,oram escritos centenas de obras (comentrios) ao Cdigo de Processo Penal. Mas e

    aqui vai a consso da crise paradigmtica bastou que a nova Lei viesse ao encon-tro da (tnue) jurisprudncia orjada inicialmente na 5 Cmara Criminal do Tribu-nal de Justia do Rio Grande do Sul, para que a polmica se dissolvesse instantane-amente. Sendo mais claro: os juristas preeriam no obedecer a Constituio, da qualera possvel extrair, com relativa acilidade, o imprio do princpio do devido processolegal e da ampla deesa; entretanto, com o advento da Lei n. 10.792/03, estabelecendoexatamente o que dizia a Constituio, cessaram-se os problemas. Obedece-se lei,mas no se obedece lei das leis...!10 como se a vigncia de um texto contivesse, emsi mesma, a sua validade.

    10 Registre-se a dimenso da crise que obstaculiza o acontecer da Constituio: mesmo com o advento da lei, umdos manuais mais vendidos no Brasil resiste em aceitar essa constitucionalizao do direito de deesa, verbis:

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    Ainda no mesmo diapaso, a dimenso da crise az com que no cause maiores

    perplexidades (na comunidade jurdica) o modo-de-agir dos juristas que, sob uma ou-tra perspectiva, negam a validade da Constituio naquilo que deve ser entendida comoinstituidora de um novo modus interpretativo, apto a superar o modelo subsuntivo pr-prio do (ainda) prevalecente positivismo jurdico, valendo reerir, v.g.:

    a) uma denncia criminal por porte ilegal de arma eita contra um cidadoque tentou suicdio em sua prpria casa, desgostoso que estava com o imi-nente abandono de sua esposa amada (e o juiz o condenou pena de umano e dois meses de priso)11;

    b) o caso do juiz que, no ano da graa de 2005, condenou um indivduo noesqueamos que, para tanto, o Promotor de Justia oereceu a respectivadenncia pena de um ano e dois meses de recluso, mais multa, a sercumprida em regime echado (sic), por ter subtrado trs panelas usadas,de nmo valor12;

    c) tambm no ano de 2005, um indivduo condenado pena de um ano e setemeses de recluso, a ser cumprida em regime semi-aberto, por ter come-tido crime de estelionato, consistente no ato de enganar o proprietrio

    de um estabelecimento comercial na compra de dois copos (pequenos) deaguardente13;

    d) o caso ocorrido em So Paulo, em que, enquanto uma mulher respondiapresa a processo criminal por urtar sabonetes (ou algo desse tipo), Malue seu lho oram liberados, no havendo, ao que se saiba, nenhum clamorjurdico-popular, nem no primeiro e nem no segundo casos;

    e) um cidado teve sua priso preventiva requerida por passar um cheque deR$ 60,00 (sessenta reais); a priso oi indeerida, mas ele oi condenado pena de dois anos de recluso;

    ) outro restou condenado pena de dois anos de recluso por ter urtado umpar de tnis usado e pequenos objetos, tudo avaliado em menos de R$ 50,00(cinqenta reais). O acusado negou a autoria; seu advogado, entretanto, con-essou o delito em nome do ru;

    A realizao do interrogatrio, sem a presena do seu deensor ou, pelo menos, de deensor ad hoc, congura,em nosso entendimento, nulidade relativa, anal, pode no ter acarretado prejuzo algum ao ru (NUCCI,Guilherme. Cdigo de Processo Penal Comentado. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 35).

    11 Apelao-crime n 70001945070, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5 Cmara Criminal, TJRS, j. em07/02/01).12 Apelao-crime n 70013630520, Rel. Des. Aramis Nassi, 5 Cmara Criminal, TJRS.13 Apelao-crime n 70013705769, Rel. Des. Aramis Nassi, 5 Cmara Criminal, TJRS.

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    g) de Santa Catarina vem a notcia de que um casal cou preso preventiva-

    mente por 46 (quarenta e seis) dias, por tentar urtar um par de chinelos.

    No h, pois, ser-no-mundo; no h princpios; no h ethos; no h paridadeaxiolgica e, portanto, no h isonomia. H, sim, apenas regras. E abstraes. E sub-sunes. Talvez porque ossem casos ceis (easy cases), em que a regra resolveuo problema, como na hiptese em que um campesino oi condenado, em pleno ano de2005, pena de dois anos de recluso, mais multa, por ter disparado um tiro de espin-garda para o alto, a fm de espantar animais que invadiram sua propriedade rural.

    Anal, a regra (art. 15 da Lei n. 10.26/03) estabelece exatamente que o disparode arma de ogo crime. Num mundo jurdico sem princpios, sem mundo prtico,o caso oi interpretado como um easy case, quando, na verdade, trata-se de um hardcase (embora a inadequao da distino entre easy e hard cases)14.

    Os exemplos simbolizam a crise de dupla ace, que esconde acilmente, porexemplo, a realidade representada pelas idiossincrasias constantes na legislaopenal brasileira, na qual adulterar chassi de automvel tem pena maior que sone-gao de tributos, e urto de botijo de gs realizado por duas pessoas tem pena

    (bem) maior do que azer caixa dois. Mais, se algum sonega tributos, tem a seuavor um longo e generoso REFIS15; j na hiptese do ladro de botijes, mesmo que

    14 Distinguir casos ceis e casos diceis signica cindir o que no pode ser cindido: o compreender, com o qualsempre operamos e que condio de possibilidade para a interpretao (portanto, da atribuio de sentidodo que seja um caso simples ou um caso complexo). Anal, como saber se estamos em ace de um caso cil oude um caso dicil? Para que se entenda tal problemtica e o socorro vem da percuciente anlise de Stein , preciso ter presente que em todo processo compreensivo o desao levar os enmenos representao ou sua expresso na linguagem, chegando, assim, ao que chamamos de objetivao. Isso naturalmente tem umcarter ntico, uma vez que a diversidade dos enmenos e dos entes que procuramos expressar, reerindo-

    nos a esse ou quele enmeno ou ente. Quando chegamos ao nal de tais processos de objetivao, realizamosprovavelmente aquilo que o modo mximo de agir do ser humano.Entretanto, esse resultado da objetivao

    pressupe um modo de compreender a si mesmo e seu ser-no-mundo que no explicitado na objetivao, masque podemos descrever como uma experincia undamental que se d no nvel da existncia e que propriamentesustenta a compreenso como um todo.

    15 Recentemente oi promulgada a Lei n. 10.64/03, que, seguindo a tradio inaugurada pela Lei n. 9.249/95(que, no seu art. 34, estabelecia a extino de punibilidade dos crimes scais pelo ressarcimento do montantesonegado antes do recebimento da denncia), estabeleceu a suspenso da pretenso punitiva do Estado ree-rentemente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei n. 8.137/90 e nos arts. 168-A e 337-A do Cdigo Penal,durante o perodo em que a pessoa jurdica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver includa noregime de parcelamento (art. 9). Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extino da punibilidade dos crimes

    antes reeridos quando a pessoa jurdica relacionada com o agente eetuar o pagamento integral dos dbitosoriundos de tributos e contribuies sociais, inclusive acessrios. De pronto, cabe reerir que inexiste seme-lhante avor legal aos agentes acusados da prtica dos delitos dos arts. 155, 16, caput, e 171, do Cdigo Penal,igualmente crimes de eio patrimonial no diretamente violentos. Fica claro, assim, que, para o establish-

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.

    RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    ele devolva o material subtrado, no ter a seu avor os benecios concedidos aos so-

    negadores. Do mesmo modo, a crise paradigmtica conseguiu esconder muito bem(no esqueamos que o discurso ideolgico tem eccia na medida em que no percebido) o ato de que, com o advento da Lei n. 10.259/01, os crimes de abusode autoridade, maus tratos em crianas, sonegao de tributos, raude em licitaes,dentre muitos outros, oram transormados em sot crimes, isto , em crimes de me-nor potencial oensivo (sic), tudo sob o silncio eloqente da comunidade jurdica.

    Construiu-se, pois, um imaginrio jurdico assentado em uma culturaprt--porter, estandardizada, em que o ensino jurdico reproduzido a partir de manuais,

    a maioria de duvidosa qualidade. Com eeito, simbolicamente, os manuais16

    que po-voam o imaginrio dos juristas representam com pereio o estado darte da crise.Os prprios exemplos utilizados em sala de aula, atravs dos prprios manuais, estodesconectados daquilo que ocorre em uma sociedade complexa como a nossa. Almdisso, essa cultura estandardizada e aqui est o problema da prevalncia dos para-digmas metasicos clssico e moderno procura explicar o direito a partir de verbe-tes jurisprudenciais ahistricos e atemporais, ocorrendo, assim, uma ccionalizaodo mundo jurdico-social.

    Alguns exemplos beiram ao olclrico, como no caso da explicao do estadode necessidade constante no art. 24 do Cdigo Penal, no sendo incomum encon-trar proessores (ainda hoje) utilizando o exemplo do naurgio em alto-mar, em queduas pessoas (Caio e Tcio, personagens comuns na cultura dos manuais) sobem

    ment, mais grave urtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuies sociais. Da a pergunta:tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conormao) para, de orma indireta, descriminalizar oscrimes scais (lato sensu, na medida em que esto includos todos os crimes de sonegao de contribuiessociais da previdncia social)? Poderia o legislador retirar da rbita da proteo penal as condutas dessa esp-cie? Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. No caso presente, no h qualquer justicativa de

    cunho emprico que aponte para a desnecessidade da utilizao do direito penal para a proteo dos bens jur-dicos que esto abarcados pelo recolhimento de tributos , mormente quando examinamos o grau de sonegaono Brasil. No undo, a previso do art. 9 da Lei n. 10.64/03 nada mais az do que estabelecer a possibilidadede converter a conduta criminosa prenhe de danosidade social em pecnia, avor que negado a outrascondutas. Tambm aqui com rarssimas excees no tem havido qualquer resistncia constitucional noplano da operacionalidade do Direito. A respeito do tema, ver STRECK, Lenio Luiz. Da proibio de excesso(bermassverbot) proibio de proteo deciente (Untermassverbot): de como no h blindagem contranormas penais inconstitucionais. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica, (Neo)constitucionalismo, n. 2,Porto Alegre, 2004, p. 243-24.

    16 Os exemplos citados so todos verdicos. As obras, seus autores e demais protagonistas desta crnica nosero explicitados, porque o objetivo no elaborar uma crtica pessoal, mas, sim, uma crtica cientca ao

    imaginrio (senso comum terico) dos juristas. Nesse contexto, cada jurista assume um lugar no interior des-se imaginrio, azendo parte de um complexo de signicaes, como o indivduo que est em uma ideologia:se est, no pode diz-lo; se pode dizer, porque j no est. Talvez por isto a ideologia tenha eccia na exatamedida em que no a percebemos (M. Chau).

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    em uma tbua e, na disputa por ela, um deles morto (em estado de necessida-

    de...!). A pergunta ca mais sosticada quando o proessor resolve discutir o orode julgamento de Caio (entra, ento, a relevantssimo debate acerca da origem dareerida tbua, como se pudesse haver outra futuando em alto-mar, alm daquelaque, com certeza, despregou-se do navio nauragado...!) No exemplo, devem existirmuitas tbuas talvez milhares em alto-mar, para que um dos personagens, nasci-dos para servirem de exemplo no direito penal, agarre-se a ela. Interessante tambmo exemplo utilizado para explicar as concausas constantes nos artigos 13, do CdigoPenal. Num deles, h um sujeito pendurado beira do abismo e vem outro que lhe

    pisa s mos...No az muito tempo, em um importante concurso pblico, oi colocada a se-

    guinte pergunta: Caio quer matar Tcio (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo,Mvio tambm deseja matar Tcio (igualmente com veneno, claro!). Um no sabeda inteno assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (napergunta no h qualquer esclarecimento acerca de que como o idiota do Tcio bebe asduas pores de veneno). Em conseqncia da ingesto das meia-doses, Tcio vem aperecer... Da a relevantssima indagao da questo do concurso: qual o crime deCaio e Mvio?

    Outro exemplo que h tempos venho denunciando o de uma pergunta eitaem concurso pblico de mbito nacional, pela qual o examinador queria saber a so-luo a ser dada no caso de um gmeo xipago erir o outro...! Com certeza, gme-os xipagos, encontrados em qualquer esquina, andam armados e so perigosos (apropsito, o que os gmeos xipagos acharam do reerendum sobre o desarmamento?Votaram sim ou no?) Pois no que a pergunta voltou a ser eita, desta vez em con-curso pblico de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questo dedireito penal que levou o nmero 46 dizia:

    Andr e Carlos, gmeos xipagos (sic), nasceram em 20.01.79. Amadeu inimigo capital de Andr. Pretendendo pr (sic) m (sic) vida de Andr,desere-lhe um tido mortal, que tambm acerta Carlos, que graas a uma in-terveno cirrgica ecaz, sobrevive.

    E seguiam vrias alternativas.

    Sem entrar no mrito da questo e at para no parecer politicamente in-correto e no ser processado pelo gmeo xipago que, milagrosamente, sobreviveu ,

    impem-se, no mnimo, duas observaes: primeira, importante saber que os g-meos xipagos (e no xipagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmodia (tal esclarecimento era de vital importncia!); e, segunda, no est esclarecido o

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    porqu de Amadeu odiar apenas a Andr, e no a Carlos (anal, tudo est a indicar

    que eles sempre andavam juntos).

    Ora, diariamente tenho lutado para superar a crise do ensino jurdico e daoperacionalidade do direito. Para se ter uma idia da dimenso do problema, h umimportante manual de direito penal que ensina o conceito de erro de tipo do seguintemodo: um artista antasia-se de cervo e vai para o meio do mato; um caador, vendoapenas a galhada, atira e acerta o indivduo disarado. Fantstico. Quem no sabiao que era erro de tipo agora sabe. S uma coisa me deixou intrigado: por que razoalgum se antasiaria de cervo (veado) e iria para o meio da foresta? O mesmo livro

    explica o signicado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas pree-xistentes: o genro atira em sua sogra, mas ela no morre em conseqncia dos tiros,e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasio do ca ma-tinal. Mas, tem mais tragdia amiliar: o que seria causa superveniente no direitopenal? O mesmo manual d a soluo, com o seguinte exemplo: aps o genro terenvenenado sua sogra, antes de o veneno produzir eeitos, um manaco invade a casae mata a indesejvel (sic) senhora a acadas. Signica dizer que o genro oi salvopelo manaco?

    E o que seria erro de pessoa no direito penal? Veja-se a resposta pereita: quando o agente deseja matar o pequenino lho de sua amante, para poderdesrut-la com exclusividade (sic). No dia dos atos, sada da escolinha, doalto de um edicio, operverso autoreetua um disparo certeiro na cabea davtima, supondo t-la matado. No entanto, ao aproximar-se do local, constataque, na verdade, assassinou um anozinho que trabalhava no estabelecimen-to como bedel, conundindo-o, portanto, com a criana que desejava eliminar(griei).

    Imaginemos a cena e aamos uma refexo sobre a (alta de) uno social dodireito: algum quer matar o lho da amante para desrutar da me do inante...!Pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o indivduo que escreveuma carta no pode ser agente ativo do crime de violao de correspondncia; tam-bm constatei que, para congurar o crime de rixa, necessrio o animus rixandi; everiquei que agresso atual a que est acontecendo, enquanto agresso iminente a que est por acontecer. Tambm desvelei outro mistrio: o crime de quadrilhanecessita, no mnimo, da participao de quatro pessoas. Um antigo manual explica

    a dierena entre dolo eventuale culpa consciente do seguinte modo: um jardineiroquer cortar as ervas daninhas e acaba cortando o caule da for...! Finalmente, outromistrio oi solucionado pela dogmtica penal. Havia srias dvidas acerca do que

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    seria o princpio da consuno17. Mas a resposta j est nas bancas, nas melhores

    casas do ramo, atravs do seguinte exemplo: quando o peixo (ato mais abrangen-te) engole os peixinhos (atos que integram aquele como sua parte).

    Enquanto setores importantes da dogmtica jurdica tradicional se ocupamcom exemplos antasiosos e idealistas/idealizados, o dcit de realidade aumentadia a dia. As idiossincrasias no se restringem ao campo penal ou processual penal.Depois de tantas mini-reormas do Cdigo de Processo Civil, todas elas buscando de orma equivocada uma eetividade quantitativa, que vo desde a alterao doartigo 557 at a emenda constitucional institucionalizando as smulas vinculantes,

    a comunidade jurdica depara-se com um novo projeto de lei que, a despeito de serinconstitucional, coloca por terra a teoria processual at hoje estudada. Com eeito,tramita na Cmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 4.72/041 , que acrescenta oart. 25-A ao Cdigo de Processo Civil. Acaso aprovado o projeto, quando, nos pro-cessos cveis, a matria controvertida or unicamente de direito e no juzo j houversido proerida sentena de total improcedncia em outros casos idnticos, poder serdispensada a citao e proerida sentena, reproduzindo-se o teor da anteriormenteprolatada (sic). Segundo dispe o 1, acultado ao autor apelar, no prazo de cincodias, hiptese em que o juiz pode decidir por no manter a sentena, determinandoo prosseguimento da ao. De acordo com o 2, se a sentena inicial or mantida,ser ordenada a citao do ru para responder ao recurso. No osse pela violaofagrante de vrios princpios constitucionais, como o acesso justia, o devido pro-cesso legal, o contraditrio, a ampla deesa (e o duplo grau de jurisdio), ncoras doexerccio da cidadania e da jurisdio no Estado Democrtico de Direito, o projetoincorre no vcio herdado da revoluo rancesa que separa a questo de ato daquesto de direito. Alm disso, o novo dispositivo institucionaliza a jurisprudnciade um juzo s. Como interpretar o enunciado e no juzo j houver sido proerida

    sentena? E o que so casos idnticos? Se so casos, no podem ser somente dedireito, pois no? E o que proerir sentena reproduzindo-se o teor da anterior-mente prolatada? E o que dizer da nova gura jurdica criada: o juiz proere sentenareproduzindo a anterior, rechaando o pedido; o autor reclama e o mesmo juiz pode

    17 Nessa linha, basta um rpido olhar em um dos manuais de maior venda em terrae brasilis, para que se descu-bra, na parte atinente aos comentrios ao art. 155 do Cdigo Penal (urto), que escalada a subida de alguma algum lugar, valendo-se de escada; destreza a agilidade mpar dos movimentos de algum; veculo auto-motor o que circula por seus prprios meios; obstculo o embarao que impede o acesso coisa; alheia

    toda coisa que pertence a outrem; mvel a coisa que se desloca; e chave alsa instrumento para abrirechaduras...! Sobre a caracterizao de urto de bagatela, l-se o seguinte exemplo: o sujeito que leva, semautorizao do banco onde vai sacar dinheiro, o clipe que est sobre o guich!

    1 Projeto de autoria do Poder Executivo, que recebeu o substitutivo do Relator Dep. Joo Almeida (PSDB-BA).

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    revogar a sua prpria deciso...! Ou seja, o novel dispositivo permitir que o juiz de

    primeiro grau decida de orma terminativa duas vezes...! Tais questes no chocampor sua explicitude; na verdade, chocam pelo silncio eloqente que produzem, en-m, chocam pelo no-dito. Isto ocorre porque projetos desse jaez encontram terrenortil no imaginrio dos juristas. E, por isto, devem ser analisados no contexto doestado darte da crise de paradigmas que atravessa o direito.

    Finalmente, talvez por tudo isto no cause maiores perplexidades na comuni-dade jurdica a recente deciso do Superior Tribunal de Justia (AgReg em EREsp n279.9-AL), na qual o Ministro Humberto Gomes de Barros assim se pronunciou:

    No me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto or Ministro doSuperior Tribunal de Justia, assumo a autoridade da minha jurisdio. Opensamento daqueles que no so Ministros deste Tribunal importa comoorientao. A eles, porm, no me submeto. Interessa conhecer a doutri-na de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porm, conorme minhaconscincia. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para queeste Tribunal seja respeitado. preciso consolidar o entendimento de queos Srs. Ministros Francisco Peanha Martins e Humberto Gomes de Barrosdecidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maio-

    ria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse o pensamento doSuperior Tribunal de Justia, e a doutrina que se amolde a ele. undamentalexpressarmos o que somos. Ningum nos d lies. No somos aprendizesde ningum. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimosa declarao de que temos notvel saber jurdico uma imposio da Cons-tituio Federal. Pode no ser verdade. Em relao a mim, certamente, no ,mas, para eeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar queassim seja (griei).

    Para aqueles que pensam que o direito aquilo que os tribunais dizem que, o voto de Sua Excelncia um prato cheio. S que no bem assim, ou, melhordizendo, no pode ser assim (ou, melhor ainda, elizmente no pode ser assim!). Comeeito, o direito algo bem mais complexo do que o produto da conscincia-de-si-do-pensamento-pensante, que caracteriza a (ultrapassada) losoa da conscincia19,

    19 Apontando para o novo, enm, para as possibilidades crticas do direito, vale trazer colao interessanteapplicatio hermenutica eita em acrdo que supera o problema do paradigma epistemolgico da flosofa daconscincia. Cito parte da deciso: Assim, alm da mera explicao dos motivos pelos quais se chegou esta

    ou quela concluso, a motivao da sentena impe em uma relao intersubjetiva o enrentamento atodas as teses apresentadas pela acusao e deesa, onde o juiz abandone a postura de sujeito cognoscenteisolado na interpretao das relaes sociais. Como salienta Lenio Streck, necessrio aastar o esquema su-

    jeito-objeto, onde um sujeito observador est situado em rente a um mundo, mundo este por ele objetivvel

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    como se o sujeito assujeitasse o objeto. Na verdade, o ato interpretativo no produto

    nem da objetividade plenipotenciria do texto e tampouco de uma atitude solipsistado intrprete: o paradigma do Estado Democrtico de Direito est assentado na inter-subjetividade.

    Repetindo: o direito no aquilo que o intrprete quer que ele seja. Portanto,o direito no aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seuscomponentes, dizem que (lembremos, aqui, a assertiva de Herbert Hart20 acercadas regras do jogo de crquete, para usar, aqui, um autor positivista contra o prpriodecisionismo positivista que claramente exsurge do acrdo em questo). A doutrina

    deve doutrinar, sim. Esse o seu papel. Alis, no osse assim, o que aramos comas quase mil aculdades de direito, os milhares de proessores e os milhares de livrosproduzidos anualmente? E mais: no osse assim, o que aramos com o parlamen-to, que aprova as leis? Se os juzes podem dizer o que querem sobre o sentido dasleis, ou se os juzes podem decidir de orma discricionria os hard cases, para quenecessitamos de leis? Para que a intermediao da lei? preciso ter presente, pois,que a armao do carter hermenutico do direito e a centralidade que assume ajurisdio nesta quadra da histria, na medida em que o legislativo (a lei) no podeantever todas as hipteses de aplicao,no signifcam uma queda na irracionalidadee, tampouco, uma delegao em avor de decisionismos.

    Retorna-se, sempre, ao contraponto regra-princpio, lei-Constituio,subsuno-atribuio de sentido, teoremas nos quais esto assentados os proble-mas decorrentes dessa armao decorrente do carter hermenutico do direito edaquilo que est nsito a essa guinada-do-papel-do-direito-no-neoconstitucionalis-mo: o controle dos atos de jurisdio, enm, os atos dos juzes.

    Os juristas brasileiros no se deram conta de que a superao do modelo deregras implica uma prounda alterao no direito, porque, atravs dos princpios,

    passa a canalizar para o mbito das Constituies o elemento do mundo prtico. E,igualmente, no perceberam que o ponto de ligao com a losoa (o processo decompreenso ainda sustentado no esquema sujeito-objeto, que mutilava a interpre-tao do direito) se d exatamente no ato de que o direito, entendido como conjuntode regras, procurava, a partir de uma metodologia ulcrada no mtodo, abarcar a rea-lidade onticamente, possibilitando ao intrprete, de orma, causalista-objetivista, dar

    e descritvel, a partir de seu cogito (Hermenutica Jurdica e(m) Crise, Livraria do Advogado, p. 0) (Habeas

    Corpus n

    70004235610, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5 Cmara Criminal, TJRS, j. em 0/05/02). Namesma linha, vale conerir o teor do acrdo prolatado na Apelao-crime n 70012713525, Re. Des. AmiltonBueno de Carvalho, 5 Cmara Criminal, TJRS, j. em 09/11/05.

    20 C. HART, Herbert. The Concept o Law. Oxord: Oxord Univesity Press, 1961.

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    conta de suas complexidades a partir da adjudicao de teorias acerca de como de-

    vem proceder os intrpretes quando em ace dos assim denominados casos diceis.Ora, a insero da aticidade se d atravs dos princpios, que, para alm do

    causalismo-explicativo de carter ntico, vai se situar no campo do acontecer de ca-rter ontolgico (no clssico). Da a questo de undo para a compreenso do en-meno: antes de estarem cindidos, h um acontecer que aproxima regra eprincpio emduas dimenses, a partir de uma anterioridade, isto , a condio de possibilidade dainterpretao da regra a existncia do princpio instituidor.

    Ou seja, a regra est subsumida no princpio. Nos casos simples (utilizando,

    aqui, argumentativamente, a distino que a teoria da argumentao az), ela apenasencobre o princpio, porque consegue se dar no nvel da pura objetivao. Havendo,entretanto, insucincia (sic) da objetivao (relao causal-explicativa) propor-cionada pela interpretao da regra, surge a necessidade do uso dos princpios. Apercepo do princpio az com que este seja o elemento que termina se desvelando,ocultando-se ao mesmo tempo na regra. Isto , ele (sempre) est na regra. O princpio elemento instituidor, o elemento que existencializa a regra que ele instituiu. S queest encoberto. Por isto necessrio, neste ponto, discordar de Dworkin21, quando dizque as regras so aplicveis maneira do tudo ou nada e que os princpios enunciamuma razo que conduz o argumento em uma certa direo, mas ainda assim necessi-tam de uma deciso particular.

    Hermeneuticamente, pela impossibilidade de cindir interpretao e aplicaoe pela antecipao de sentido que sempre condio de possibilidade para que secompreenda, torna-se impossvel isolar a regra doprincpio, isto , impossvel in-terpretar uma regra sem levar em conta o seu princpio instituidor. Isto porque a re-gra no est despojada do princpio. Ela encobre o princpio pela propositura de umaexplicao dedutiva. Esse encobrimento ocorre em dois nveis: em um nvel, ele se d

    pela explicao causal; noutro, pela m compreenso de princpio, isto , compreen-de-se mal o princpio porque se acredita que o princpio tambm se d pela relaoexplicativa, quando ali j se deu, pela pr-compreenso, o processo compreensivo.

    Em sntese: h uma essencial dierena e no separao entre regra eprin-cpio. Podemos at azer a distino pela via da relao sujeito-objeto, pela teoria doconhecimento. Entretanto, essa distino ser apenas de grau, de intensidade; noser, entretanto, uma distino de base entre regra eprincpio. No undo, o equvocoda(s) teoria(s) da argumentao est em trabalhar com os princpios apenas com

    uma dierena de grau (regrando os princpios), utilizando-os como se ossem regras

    21 C. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.

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    de segundo nvel (equvoco que se repete ao se pensar que, alm dos princpios, exis-

    tem meta-princpios, meta-critrios ou postulados hermenuticos). Enm, como seosse possvel transormar a regra em um princpio. Ocorre que ela jamais ser umprincpio, porque no princpio est em jogo algo mais que a explicao causalista.

    Para essa compreenso, torna-se necessrio superar os dualismos prpriosda metasica. Trata-se, assim, no de undamentar metdica ou epistemologica-mente , mas de compreender (enomenologicamente). E compreender aplicar. Istosignica dizer que estamos diante de um problema hermenutico, no sentido de umateoria da experincia real, que o pensar. J o compreender no um dos modos

    do comportamento do sujeito, mas, sim, o modo de ser da prpria existncia, comoensina Gadamer.

    A crise que atravessa o direito e a hermenutica jurdica possui uma relaodireta com a discusso acerca da crise do conhecimento e do problema da undamen-tao, prpria do incio do sculo XX. Veja-se que as vrias tentativas de estabelecerregras ou cnones para o processo interpretativo a partir do predomnio da objetivi-dade ou da subjetividade, ou, at mesmo, de conjugar a subjetividade do intrpretecom a objetividade do texto, no resistiram s teses da viragem lingstico-ontolgica,

    superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do carter ontolgi-co prvio do conceito de sujeito e da desobjeticao provocada pelo circulo herme-nutico e pela dierena ontolgica.

    No se pode olvidar que em pleno paradigma da intersubjetividade aindadomina, na doutrina e na jurisprudncia do direito, a idia da indispensabilidade domtodo ou do procedimento para alcanar a vontade da norma (sic), o esprito delegislador (sic), o unvoco sentido do texto (sic), etc. Acredita-se, ademais, que oato interpretativo um ato cognitivo e que interpretar a lei retirar da norma tudoo que nela contm (sic), circunstncia que bem denuncia a problemtica metasica

    nesse campo de conhecimento.A hermenutica jurdica praticada no plano da cotidianidade do direito deita

    razes na discusso que levou Gadamer a azer a crtica ao processo interpretativoclssico, que entendia a interpretao como sendo produto de uma operao reali-zada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto, primeiro compreendo, depois interpreto, para s ento aplicar). A impossibilida-de dessa ciso implica a impossibilidade de o intrprete retirar do texto algo queo texto possui-em-si-mesmo, numa espcie de Auslegung, como se osse possvel

    reproduzir sentidos; ao contrrio, o intrprete sempre atribui sentido (Sinngebung).O acontecer da interpretao ocorre a partir de uma uso de horizontes (Horizon-tenverschmelzung), porque compreender sempre o processo de uso dos supostos

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.

    RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    horizontes para si mesmos. Para interpretar, necessitamos compreender; para com-

    preender, temos que ter uma pr-compreenso, constituda de estrutura prvia dosentido que se unda essencialmente em uma posio prvia (Vorhabe), viso pr-via (Vorsicht) e concepo prvia (Vorgri) que j une todas as partes do sistema,como bem ressaltou Gadamer.

    Uma hermenutica jurdica que se pretenda crtica, undamentada nessa re-voluo copernicana, deve, hoje, procurar corrigir o equvoco reqentemente come-tido por diversas teorias crticas (teorias da argumentao, teorias analticas, tpicajurdica, para citar apenas estas) que, embora reconheam que o direito caracteri-

    za-se por um processo de aplicao a casos particulares (concretude), incorrem noparadigma metasico, ao elaborarem um processo de subsuno a partir de concei-tualizaes (veja-se o paradigmtico caso das smulas vinculantes no Brasil 22), quese transormam em signicantes-primordiais-undantes ou universais jurdicos,acoplveis a um determinado caso jurdico. Isto ocorre nas mais variadas ormasno modusinterpretativo vigorante na doutrina e na jurisprudncia, como o estabele-cimento de topoiou de meta-critrios para a resoluo de confitos entre princpios,alm das rmulas para regrar a interpretao, propostas pelas diversas teorias daargumentao jurdica.

    Anote-se, neste ponto, que apesar de tambm combater a perspectiva dopositivismo normativista tradicional, a teoria da argumentao tem em comum comessa corrente a tentativa de deduzir subsuntivamente a deciso a partir de regras pr-vias23, problemtica presente, alis, em autores como Manuel Atienza para quem

    para ser considerada plenamente desenvolvida, uma teoria da argumentaojurdica tem de dispor [...] de um mtodo que permita representar adequa-damente o processo real da argumentao pelo menos a undamentaode uma deciso, tal como aparece plasmada nas sentenas e em outros do-

    cumentos jurdicos assim como de critrios, to precisos quanto possvel,para julgar a correo ou a maior ou menor correo dessas argumenta-es e de seus resultados, as decises jurdicas24.

    22 Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz. O eeito vinculante das smulas e o mito da eetividade: uma crticahermenutica. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica, Crtica dogmtica, n. 3, Porto Alegre, 2005, p.3-12.

    23 C. KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winried (Orgs.). Introduo flosofa do direito e teoria do direitocontemporneas. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. 176.

    24 C. ATIENZA, Manuel.As razes do direito: teorias da argumentao jurdica. So Paulo: Landy, 2003. Como

    se pode perceber, Atienzapermanece nos quadros do paradigma epistemolgico da flosofa da conscincia, aosustentar uma uno instrumental para a interpretao, otimizada, para ele, a partir da teoria da argumen-tao jurdica, mesmo problema diga-se de passagem , encontrvel na maioria das teses caudatrias dasteorias da argumentao no Brasil. Para Atienza, uma das unes da argumentao oerecer uma orientao

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    De certo modo, tais questes tambm esto presentes na teoria do discurso

    proposta por Habermas, que, embora no ale em regras prvias, prope a ante-cipao de um discurso ideal, contratico25. Essa ormao discursiva (tambm) prvia; sua uno a de servir como princpio regulativo, isto , conorme Haber-mas, todo discurso racional um necessrio princpio regulativo de todo discursoreal. A compreenso assim denominada de racional no pensada em contraposi-o com a tradio, cuja linguagem insuciente e/inadequada para abarcar o real;a compreenso pensada como a realizao de um ideal por consumar, contraatica-mente. Novamente, v-se a ciso do incindvel; v-se, mais uma vez, o problema da

    dispensabilidade do mundo prtico (porque este est traduzido em uma linguageminadequada, insuciente, distorcida).

    De mais a mais, no basta dizer que o direito concretude e que cada caso um caso, como comum na linguagem dos juristas. Anal, mais do que evidenteque o direito concretude e que eito para resolver casos particulares. O que noest evidente que o processo interpretativo applicatio,que o direito parte inte-grante do prprio caso, que uma questo de ato sempre uma questo de direito evice-versa. Hermenutica no lologia. Lembremos a todo o momento a advertn-cia de Friedrich Mller: da interpretao de textos temos que saltar para a concreti-zao de direitos.

    Assim, embora os juristas nas suas dierentes liaes tericas insistamem dizer que a interpretao deve ocorrer sempre em cada caso, tais armaesno encontram comprovao, nem de longe, na cotidianidade das prticas jurdi-cas. Na verdade, ao construrem pautas gerais, conceitos lexicogrcos, verbetesdoutrinrios e jurisprudenciais, ou smulas aptas a resolver casos uturos, os ju-ristas sacricam a singularidade do caso concreto em avor dessas espcies de pau-tas gerais, enmeno, entretanto, que no percebido no imaginrio jurdico. Da a

    indagao de Gadamer: existir uma realidade que permita buscar com segurana o

    til nas tareas de produzir, interpretar e aplicar o direito (j neste ponto, possvel perceber a subdiviso doprocesso interpretativo em partes/etapas, questo to bem denunciada por Gadamer!). Para corroborar a tese,o mesmo Atienza arma que um dos maiores deeitos da teoria padro da argumentao jurdica precisa-mente o ato de ela no ter elaborado um procedimento capaz de representar adequadamente como os juristasundamentam, de ato, as suas decises. evidente que no se pode olvidar e o registro insuspeito eitopor Kaumann (op. cit., p. 194) que especialmente Alexy desenvolveu de orma notvel regras prescritivas deargumentao e de preerncia. A nica desvantagem, assinala, reside no ato de estas regras se ajustarem aodiscurso racional, mas j no ao procedimento judicial.

    25 Nas palavras do prprio Habermas, somente a antecipao ormal do dilogo idealizado como uma orma devida a realizar garante a inteno condutora ltima, contraposta existente de ato, que nos une previamentee sobre cuja base toda inteno de ato, se alsa, pode ser criticada como alsa conscincia (APEL, Karl-Ottoet.al. Hermeneutik und Ideologiekritik. Frankurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 164 e segs.).

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    conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre a a sua realizao? No a

    prpria realidade o resultado de sua interpretao?A rejeio de qualquer possibilidade de subsunes ou dedues aponta para

    o prprio cerne de uma hermenutica jurdica inserida nos quadros do pensamentops-metasico. Trata-se de superar a problemtica dos mtodos, considerados pelopensamento exegtico-positivista como portos seguros para a atribuio dos senti-dos. Compreender no produto de um procedimento (mtodo), nem um modo deconhecer. Compreender , sim, um modo de ser,porque a epistemologia substitudapela ontologia da compreenso. Isto signica romper com as diversas concepes que

    se ormaram sombra da hermenutica tradicional, de cunho objetivista-reprodu-tivo, cuja preocupao de carter epistemolgico-metodolgico-procedimental,cindindo conhecimento e ao, buscando garantir uma objetividade dos resultadosda interpretao. A mesma crtica pode ser eita tpica retrica, cuja dinmica noescapa das armadilhas da subsuno metasica. Alis, o ato de ligar-se ao problemano retira da tpica sua dependncia da deduo e da metodologia tradicional, o quedecorre undamentalmente de seu carter no-losco.

    Uma losoa no direito avanando para alm de uma losoa do direito deve estar apta a explicar esse carter hermenutico assumido pelo direito nestaquadra da histria. Superando o modelo de regras, a preocupao das teorias jur-dicas passa para a busca das respostas acerca da indeterminabilidade do direito. possvel construir uma racionalidade capaz de resolver o problema decorrente da im-possibilidade da legislao prever todas as hipteses de aplicao? Como superar asprticas subsuntivas? Como superar o dedutivismo? A tarea de preencher os espa-os da indeterminabilidade deve ser deixada aos juzes, como queria o positivismo?Tais questes inexoravelmente desembocam nas diversas construes discursivasque pretendem superar os dilemas que surgem com esse novo perl assumido pelo

    direito, pelo Estado e pela jurisdio constitucional.Da que, levando em conta as promessas incumpridas da modernidade em

    terrae brasilis, a superao dos paradigmas metasicos clssico e moderno condi-o de possibilidade para a compreenso do enmeno do neoconstitucionalismo eda conseqente derrota do positivismo no pode representar o abandono das possi-bilidades de se alcanar verdades conteudsticas26. As teorias consensuais da verdademostram-se insucientes para as demandas paradigmticas no campo jurdico. Ao

    26 Sendo mais claro: a hermenutica jamais permitiu qualquer orma de decisionismo ou realismo. Gadamerrejeita peremptoriamente qualquer acusao de relativismo hermenutica (jurdica). Falar de relativismo admitir verdades absolutas, problemtica, alis, jamais demonstrada. A hermenutica aasta o antasmado relativismo, porque este nega a nitude e seqestra a temporalidade. No undo, trata-se de admitir que,

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    contrrio da hermenutica losca, no h ser-no-mundo nas teorias consensu-

    ais-procedurais, pelas quais s possvel atribuir um sentido a alguma coisa quan-do qualquer outra pessoa que pudesse dialogar comigo tambm o pudesse aplicar.Nelas, a condio de verdade das sentenas (enunciados) o acordo potencial detodos os outros. Ou seja, nelas no h espao para a substancialidade (conteudstica).Portanto, no h ontologia (no sentido de que ala a hermenutica losca). Istodemonstra que a linguagem que na hermenutica condio de possibilidade ,nas teorias consensuais-procedurais, manipulvel pelos partcipes. Continua sen-do, pois, uma terceira coisa que se interpe entre um sujeito e um objeto, embora os

    esoros eitos por sosticadas construes no plano das teorias discursivas, comoHabermas e Gnther.

    Ou seja, possvel dizer, sim, que uma interpretao correta, e a outra in-correta. Movemo-nos no mundo exatamente porque podemos azer armaes dessaordem. E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreenso os conceitos interpre-tativos no resultam temticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao con-trrio, determinam-se pelo ato de que desaparecem atrs daquilo que eles zeramalar/aparecer na e pela interpretao27. Aquilo que as teorias da argumentao ou

    qualquer outra concepo teortico-losca (ainda) chamam de raciocnio sub-suntivo ou raciocnio dedutivo nada mais do que esse paradoxo hermenutico,que se d exatamente porque a compreenso um existencial (ou seja, por ele eu nome pergunto porque compreendi, pela simples razo de que j compreendi, o que azcom que minha pergunta sempre chegue tarde).

    Uma interpretao ser correta quando suscetvel dessa desapario (Para-doxerweise ist eine Auslegung dann richtig, wenn sie derart zum Verschwinden higext). que se pode chamar de existenciais positivos. Aquilo que algumas teoriaschamam de casos ceis, solucionveis, portanto, por intermdio de simples sub-sunes ou raciocnios dedutivos (por todos, Manuel Atienza) so exatamente a

    luz da hermenutica (losca), possvel dizer que existem verdades hermenuticas. A multiplicidade derespostas caracterstica no da hermenutica, mas, sim, do positivismo.

    27 Como bem diz Gadamer (Wahrheit und Methode. Ergnzungen Register. Hermeneutik II. Tbingen: Mohr,1990, p. 402): das gilt der Sache nach auch dort, wo sich das Verstndnis unmittelbar einstellt und gar keineausdrckliche Auslegung vorgenommen wird. Denn auch in solchen Fllen von Verstehen gilt, dass die Ausle-gung mglich sein muss. Sie bringt das Verstehen nur zur ausdrcklichen Ausweisung. Die Auslegung ist also

    nicht ein Mittel, durch das da verstehen herbeigehrt wird, sondern ist in den Gehalt dessen, was da vers-tanden wird, eingegangen. Wir erinnern daran, dass das nicht nur heisst, dass die Sinnnmeinung des Texteseinheitlich vollziehbar wird, sondern dass damit auch die Sache, von der Text spricht, sich zu Worte bringt. DieAuslegung legt die Sache gleichsam au die Waage der Worte.

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    comprovao disto2. Explicando: na hermenutica, essa distino entre easy e hardcases desaparece em ace do crculo hermenutico e da dierena ontolgica. Aqui seencaixa a discusso acerca da inadequada, porque metasica, distino entre casossimples (ceis) e casos diceis (complexos). Essa distino no leva em conta a exis-tncia de um acontecer no pr-compreender, no qual o caso simples e o caso dicil seenrazam. Existe, assim, uma unidade que os institui.

    Ao contrrio do que se diz, no interpretamos para, depois, compreender,mas, sim, compreendemos para interpretar, sendo a interpretao a explicitao docompreendido, nas palavras de Gadamer. Essa explicitao no prescinde de uma

    estruturao no plano argumentativo. A explicitao da resposta de cada caso deverestar sustentada em consistente justicao, contendo a reconstruo do direito, dou-trinaria e jurisprudencialmente, conrontando tradies, enm, colocando a lume aundamentao jurdica que, ao m e ao cabo, legitimar a deciso no plano do quese entende por responsabilidade poltica do intrprete no paradigma do Estado De-mocrtico de Direito.

    Mutatis mutandis, trata-se de justicar a deciso (deciso no sentido de quetodo ato aplicativo e sempre aplicamos uma de-ciso). Para esse desiderato,

    compreendendo o problema a partir da antecipao de sentido (Vorhabe, Vorgri,Vorsicht), no interior da virtuosidade do circulo hermenutico, que vai do todo para aparte e da parte para o todo, sem que um e outro sejam mundos estanques/separa-dos, undem-se os horizontes do intrprete do texto (registre-se, texto evento, texto ato). Toda a interpretao comea com um texto, at porque, como diz Gadamer,se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentidoexsurgir de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intrprete emdiz-lo, donde pr-juzos inautnticos acarretaro graves prejuzos hermenuticos.

    As explicaes decorrentes de nosso modo prtico de ser-no-mundo (o desdej sempre compreendido) resolvem-se no plano ntico (na linguagem da losoa

    2 Vejamos como essa dualizao metasica apresenta problemas sem resposta: casos ceis, segundo Atienza(que vale tambm para as demais verses da teoria da argumentao jurdica), so os casos que demandamrespostas corretas que no so discutidas; j os casos diceis so aqueles nos quais possvel propor mais deuma resposta correta que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo. Mas, quem e comodenir as margens permitidas pelo direito positivo? Como eita essa denio? A resposta parece ser: apartir de raciocnios em abstrato, a priori, como se osse primeiro interpretar e depois aplicar... Neste ponto,as diversas teorias do discurso se aproximam: as diversas possibilidades de aplicao se constituem em

    discursos de validade prvia, contraticos, que serviro para juzos de adequao. Ocorre que isto implicaum dualismo, que, por sua vez, implica separao entre discursos de validade e discursos de aplicao, cujaresposta se dar, quer queiram, quer no, mediante raciocnios dedutivos. Por isto, retorno acusao eitapor Kaumann, acerca da prevalncia do esquema sujeito-objeto nas diversas teorias discursivas.

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    da conscincia, em um raciocnio causal-explicativo). Mas esse modo ntico perma-

    necer e ser aceito como tal se a sua objetivao no causar estranheza no planodaquilo que se pode entender como tradio autntica. Nesse caso, devidamente con-ormados os horizontes de sentido, a interpretao desaparece. Em sntese, quan-do ningum se pergunta sobre o sentido atribudo a algo. Veja-se o caso de uma regrajurdica que proba a conduo de ces no parque. Ningum discutir que vedado otrnsito de ces da raapitbull(, pois, a resposta correta), uma vez que os pr-juzosautnticos, que conormam o modo-de-ser no mundo dos juristas apontam para osentido do que seja proibio, o sentido de co, etc.

    Mas, se essa uso de horizontes se mostrar mal sucedida, ocorrer a demandapela superao das insucincias do que onticamente objetivamos. Trata-se do aconte-cer da compreenso, pelo qual o intrprete necessita ir alm da objetivao. Observe-se, nesse sentido, o seguinte exemplo envolvendo o mesmo texto legal anterior, s que,agora, agregando um elemento complicador: se a regra probe ces, possvel o trnsitode um urso? E se regra probe ces, possvel levar um lhote pequins? Aqui, pois,claramente emerge a insucincia da regra e, conseqentemente, a presena de umauso de horizontes que no encontra guarida na mera objetivao. Com eeito, estandoo intrprete inserido em uma tradio autntica do direito, em que os juristas introdu-

    zem o mundo prtico seqestrado pela regra (para utilizar apenas estes componentesque poderiam azer parte da situao hermenutica do intrprete), a resposta corretaadvir dessa nova uso de horizontes: pelo princpio da proporcionalidade (e, se quiser,da razoabilidade), a regra deve obedecer a uma adequao entre ns e meios. Conse-qentemente, no proporcional e/ou razovel que se proba ces e se d salvo condutopara ursos, assim como se proba o trnsito de animais que no tenham qualquer pos-sibilidade de causar danos aos reqentadores do parque, m ltimo da regra estatuda.Veja-se, a partir disso, a resoluo de casos como o do indivduo que oi condenado

    pena de dois anos de recluso por disparar arma de ogo (espingarda de caa) em seustio a m de espantar animais, para citar apenas este caso. Obtida a resposta a partirde simples subsuno, esta se mostra absolutamente equivocada, ao ser submetida aum processo de compreenso. Ou seja, os pr-juzos inautnticos dos intrpretes (juize promotor) levaram a uma inadequada uso de horizontes, produzindo uma decisoequivocada (resposta errada).

    Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma responsabilidade poltica dosjuzes. Os juzes tm a obrigao de justicar29 suas decises, porque com elas aetam

    29 Isto assim porque o sentido da obrigao de undamentar as decises previsto no art. 93, inc. IX, da Consti-tuio do Brasil implica, necessariamente, a justicao dessas decises. Veja-se que um dos indicadores daprevalncia das posturas positivistas e, portanto, da discricionariedade judicial que lhe inerente est no

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    os direitos undamentais e sociais, alm da relevante circunstncia de que, no Estado

    Democrtico de Direito, a adequada justicao da deciso constitui um direito un-damental. Da a necessidade de ultrapassar o modo-positivista-de-undamentar asdecises (perceptvel no cotidiano das prticas dos tribunais, do mais baixo ao maisalto); necessrio justicar e isto ocorre no plano da aplicao detalhadamente oque est sendo decidido. Portanto, jamais uma deciso pode ser do tipo Dero, combase na lei x ou na smulay. A justicativa condio de possibilidade da legitimi-dade da deciso.

    A applicatio evita a arbitrariedade na atribuio de sentido, porque decor-

    rente da antecipao (de sentido) que prpria da hermenutica losca. Aquiloque condio de possibilidade no pode vir a se transormar em um simples resul-tado manipulvel pelo intrprete. Anal, no podemos esquecer que mostrar a her-menutica como produto de um raciocnio eito por etapas oi a orma pela qual ahermenutica clssica encontrou para buscar o controle do processo de interpreta-o. Da a importncia conerida ao mtodo, supremo momento da subjetividade as-sujeitadora. Ora, a pr-compreenso antecipadora de sentido de algo ocorre reveliade qualquer regra epistemolgica ou mtodo que undamente esse sentido. No h

    mtodos e tampouco meta-mtodos ou meta-critrios (ou um Grundmethode30

    , paraimitar Kelsen e escapar do problema insolvel doundamentum inconcussum).A compreenso de algo como algo (etwas als etwas) simplesmente ocorre, porque oato de compreender existencial, enomenolgico, e no epistemolgico. Qualquersentido atribudo arbitrariamente ser produto de um processo decorrente de um ve-tor (standard) de racionalidade de segundo nvel, meramente argumentativo/proce-dimental31, isto porque losoa no lgica e, tampouco, um discurso ornamental.

    Algumas refexes nais:A crise dos modelos interpretativos, aqui inserida naquilo que denominocrise de paradigmas de dupla ace, no autoriza que as teorias da argu-mentao ou outras teorias procedurais (teorias do discurso) venham a

    escandaloso nmero de embargos de declarao propostos diariamente no Brasil. Ora, uma deciso bem un-damentada/justicada (nos termos de uma resposta correta-adequada--Constituio, a partir da exignciada mxima justicao) no poderia demandar esclarecimentos acerca da holdingou do dictum da deciso.Os embargos de declarao e acrescente-se, aqui, o absurdo representado pelos embargos de pr-questio-

    namento (sic) demonstram a irracionalidade positivista do sistema jurdico.30 Sobre a problemtica do mtodo, ver STRECK, Lenio Luiz.Jurisdio Constitucional e Hermenutica. UmaNova Crtica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, especialmente o cap. 5.

    31 Ibid., p. 246 e segs, onde trabalho a noo dos vetores de racionalidade de Hilary Putnam e Ernildo Stein.

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    se constituir em uma espcie de reserva hermenutica, que somente seria

    chamada colao na insucincia da regra, isto , quando se estiverem ace de casos diceis (hard cases). Casos ceis e casos diceis par-tem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes condiode possibilidade: a pr-compreenso. Esse equvoco de distinguir easy ehard cases cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teoriasdiscursivo-argumentativas, que vo desde Habermas e Gnther at Alexye Atienza, para citar apenas estes. O que tm em comum o ato de que,nos hard cases, considerarem que os princpios (critrios) para solv-los

    no se encontram no plano da aplicao, mas, sim, devem ser retiradosde uma historia jurdica que somente possvel no plano de discursos apriori(no undo, discursos de undamentao prvios). Tambm Dworkinaz indevidamente essa distino entre casos ceis e casos diceis. Mas oaz por razes distintas. A dierena que Dworkin no desonera os dis-cursos de aplicao dos discursos de undamentao, que se do primaacie. Na verdade, como Gadamer, ele no distingue discursos de aplicaode discursos de undamentao, assim como no separa interpretao eaplicao.

    Partir de uma pr-elaborao do que seja um caso simples ou complexo incorrer no esquema sujeito-objeto, como se osse possvel ter um grauzero de sentido, insulando a pr-compreenso e tudo o que ela representacomo condio para a compreenso de um problema. No esqueamosque a discricionariedade interpretativa ruto do paradigma represen-tacional e que ela se ortalece na ciso entre interpretar e aplicar, o queimplica a prevalncia do dualismo sujeito-objeto.

    Essa discricionariedade/arbitrariedade positivista sob as mais variadas

    vestes ainda domina o modo-de-agir dos juristas. No undo, em lin-guagem mais simples, signica aquilo que Kelsen incentivou no oitavocaptulo de sua Teoria Pura do Direito32: o decisionismo que poderia serpraticado nos limites da moldura da norma jurdica, ou a delegao emavor dos juzes da tarea de decidir sobre os hard cases, que pode ser vistaem Concept o Law33, de Hart.

    Observe-se como esse problema da discricionariedade, que exsurge, como positivismo, a partir da delegao em avor do juiz do poder de resol-

    32 KELSEN, Hans.A Teoria Pura do Direito. So Paulo. Martins Fontes, 2003.33 HART, op. cit.

    2.

    3.

    4.

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    ver os casos diceis, acaba sorendo um deslocamento em direo a uma

    objetividade textual, no propriamente da regra (texto jurdico), masdas conceitualizaes prvias elaboradas pela dogmtica jurdica. Ou seja,o prprio positivismo procura controlar a discricionariedade judicial, me-diante a elaborao de um discursoprt--porter, principalmente e pa-radoxalmente advindo do prprio Judicirio, para, em um processo deretroalimentao, servir de controle das decises judiciais. Provavelmentepor isto, parte considervel da doutrina reproduz a posio dos tribunais,que elaboram uma espcie de verso positivista de discursos de unda-

    mentao prvia. Isto eito atravs de uma estandardizao da culturajurdica (verbetes, ementas, smulas, etc). Essa construo dogmtica ruto de uma espcie de adaptao darwiniana do positivismo jurdico,que unciona a partir da elaborao de conceitos jurdicos com objetivosuniversalizantes, utilizando, inclusive, os princpios constitucionais. Ouseja, os princpios constitucionais que deveriam superar o modelo discri-cionrio do positivismo, passaram a ser anulados por conceitualizaes,que acabaram por transorm-los em regras. E tudo volta origem, como sacricio da singularidade do caso concreto, isto , o que caracteriza o

    direito como saber prtico obnubilado pelo modelo conceitualista quedomina a operacionalidade do direito.

    Observe-se que, enquanto Dworkin considera o discricionarismo antide-mocrtico, Hart vai dizer que o poder discricionrio o preo necessrioque se tem de pagar para evitar o inconveniente de mtodos alternativosde regulamentaes desses litgios (casos diceis), por exemplo, o reenvioao Legislativo. Embora isto possa ser negado pelas correntes positivistas,Hart representa uma espcie de pensamento mdio: alis, h uma coisaem comum entre o positivismo e as diversas teorias da argumentao: adistino/diviso casos simples casos complexos (ceis e diceis), oque demonstra a presena (e permanncia) do paradigma representacio-nal, emergente do dualismo metasico e do esquema sujeito-objeto.

    Como o direito um saber prtico e que deve servir para resolver proble-mas e concretizar as promessas da modernidade que ganharam espaonos textos constitucionais, a superao dos obstculos que impedem oacontecer do constitucionalismo de carter transormador estabeleci-do pelo novo paradigma do Estado Democrtico de Direito pressupe a

    construo das bases que possibilitem a compreenso do estado da artedo modus operacional do direito, levando em conta um texto constitucio-nal de ntida eio compromissria e dirigente, e que, passadas quase

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    duas dcadas, longe est de ser concretizado. Na base dessa ineetividade,

    para alm do problema relacionado congurao poltica e econmicada sociedade brasileira (democracia em consolidao, alternando longosespaos de ausncia de estado de direito, a histrica desigualdade social, acultura patrimonialista, o regime presidencialista que se mantm com go-vernabilidade ad hoc, etc.), encontra-se solidicada uma cultura jurdicapositivista que coloniza a operacionalidade (doutrina e jurisprudncia) eo processo de elaborao das leis, em um processo de retroalimentao.

    O problema da ineetividade da Constituio e tudo o que ela representa

    enquanto implementao das promessas incumpridas da modernidade(por isto o Brasil um pas de modernidade tardia) no se resume a umconronto entre modelos de direito. O conronto , pois, paradigmtico.Veja-se, nesse sentido, o problema surgido na Espanha ps-Constituiode 197, que ormalmente encerrava a transio da ditadura ranquista democracia constitucional. Conronto paradigmtico signica o embateentre o novo e o velho, como bem demonstra Hernndez Gil, lembrandoa necessidade de mudar radicalmente a linguagem jurdica, o sistema delinguagem ou o marco de reerncia jurdico de todos os operadores dodireito da Espanha para uma compreenso adequada do novo paradigmaconstitucional recm institudo. Neste ponto, assinala o proessor espanhol,o ano de 191 pode ser considerado crucial para esse intento. Com eeito,basta que se examine a correlao semntica que os juristas tinham antes eaquela que tm agora acerca de expresses como igualdade, discriminao,inocncia, prova, domiclio ou lei undamental, cujos signicados soreramradical alterao se comparados com a verso a-tcnica e pr-tcnica quetinham antes da entrada em uncionamento do Tribunal Constitucional.

    Sem a existncia de um Tribunal Constitucional, tais modifcaes no te-riam se frmado com tanta frmeza ou, ao menos, tal enmeno no teriaocorrido com tanta rapidez. E isto pode servir para colocar uma questode relevante interesse: o Tribunal Constitucional no somente utiliza nor-mas de interpretao, como as constri e as determina comunidade jur-dica. Assim, na sentena 64/3, imps aos juzes e Tribunais a obrigao deinterpretar as leis em conormidade com a Constituio34.

    34 C. HERNNDEZ GIL, Antonio. La justicia en la concepcin del derecho segn la Constitucin espaola. In:LPEZ PINA, Antonio. Divisin de poderes e interpretacin: hacia uma teoria de la prxis constitucional. Ma-drid: Tecnos, 197, p. 150-154. No caso brasileiro, veja-se, por exemplo, os conceitos de direito adquirido, atojurdico pereito, uso da propriedade, etc., cujas denies continuam sendo buscados em doutrina e textos

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    STRECK, Lenio Luiz.A atualidade do debate da crise paradigmtica do direito e a resistncia positivista ao neoconstitucionalismo.

    RIPE Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.

    Nesse conronto paradigmtico, as velhas teses acerca da interpretao

    subsuno, silogismo, individualizao do direito na norma geral, apartir de critrios puramente cognitivos e lgicos, liberdade de conor-mao do legislador, discricionariedade do poder Executivo, o papel daConstituio como estatuto de regulamentao do exerccio do poder do lugar a uma hermenutica que no trata mais a interpretao jurdicacomo um problema (meramente) lingstico de determinao das signi-caes apenas textuais dos textos jurdicos35. Trata-se, eetivamente, deaplicar o grande giro hermenutico ao direito e, portanto, Constituio.

    O novo constitucionalismo nascido da revoluo copernicana do direitopblico traz para dentro do direito temticas que antes se colocavam

    legais inraconstitucionais escritos h dezenas de anos, como se os textos e as expresses tivessem conceitos-em-si-mesmos, metasicos, portanto. Um problema bem atual diz respeito ao conceito de crime de trfco,previsto no art. 12 da Lei n. 6.36, de 1973. Observe-se que parcela considervel dos condenados por trcoso pequenos criminosos, o que, no plano daquilo que aqui denomino fltragem hermenutico-constitucional,mostra o equvoco que existe na compreenso do tipo penal previsto no art. 12 da Lei n. 6.368/73. Parece bvioque a velha Lei, por ser de origem anterior Constituio de 19, necessita passar por uma releitura constitu-cional(ltragem constitucional). Explicando melhor: quando a Lei de Txicos entrou em vigor, o trco (art.

    12) no era crime hediondo, categoria esta que somente ingressou em nosso universo jurdico a partir de 5 deoutubro de 19. Conseqentemente, quando a Lei dos Crimes Hediondos alou o crime de trfco categoriade hediondos, a nova Lei e a prpria Constituio estabeleceram um novo undamento de validade antigalei. Ou seja, a partir da transormao do trco de entorpecentes em crime hediondo, o conceito de trcono mais o mesmo que o do antigo texto da Lei; o trco, agora, o trfco hediondo, exsurgente do novotopos hermenutico-constitucional. Desnecessrio e totalmente despiciendo remeter, aqui, o leitor a Kelsen,porque sobejamente conhecido pela comunidade jurdica, naquilo que se chama de princpio da recepo dasnormas, assim como tambm a Ferra