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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES CEART LICENCIATURA EM TEATRO PRISCILA DA COSTA ENTRE LUZES E PERCEPÇÕES: A ILUMINAÇÃO NA PREPARAÇÃO DO CORPO ATUANTE FLORIANÓPOLIS, SC 2016

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

LICENCIATURA EM TEATRO

PRISCILA DA COSTA

ENTRE LUZES E PERCEPÇÕES:

A ILUMINAÇÃO NA PREPARAÇÃO DO CORPO ATUANTE

FLORIANÓPOLIS, SC

2016

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PRISCILA DA COSTA

ENTRE LUZES E PERCEPÇÕES

A ILUMINAÇÃO NA PREPARAÇÃO DO CORPO ATUANTE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para

graduação de Licenciatura em Teatro do Centro de Artes, pela

Universidade do Estado de Santa Catarina por Priscila da

Costa.

Orientação: Profª. Drª. Vera Regina Martins Collaço.

FLORIANÓPOLIS, SC

2016

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PRISCILA DA COSTA

ENTRE LUZES E PERCEPÇÕES

A ILUMINAÇÃO NA PREPARAÇÃO DO CORPO ATUANTE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado no curso Licenciatura em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Banca Examinadora:

Orientadora: _______________________________________________________ Profª. Dra. Vera Regina Martins Collaço

CEART – UDESC

Membro: __________________________________________________________ Profª. Dra. Maria Brígida de Miranda

CEART – UDESC

Membro: __________________________________________________________ Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro

CEART – UDESC

Florianópolis, 22 de junho de 2016

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A todas as mulheres que lutam por respeito,

por espaço e pelo poder de escolha.

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Agradecimentos

Agradeço à orientadora Vera Collaço por ter apostado e dedicado seu tempo a

esse projeto de pesquisa, aos familiares e amigos que de alguma forma me

sustentaram emocionalmente nesta trajetória. Imensa gratidão ao Mestre e mentor de

toda minha jornada no universo da iluminação cênica, um amigo, um parceiro, um pai,

um ótimo professor e iluminador, sempre acreditando em minhas loucuras e

segurando minha mão na hora das crises existenciais, obrigada Ivo Godois.

A minha estrela, minha mãe (Irenita Aparecida da Costa) que enquanto viva me

ensinou muitas coisas, me confortou e me orientou. Com seu espírito aventureiro

desbravou terras, lutou e venceu batalhas. Já com seu enorme caráter ensinou-me a

amar e com esse gesto me fez humana. Pouco importa onde eu esteja sei que viverás

eternamente aqui em meus pensamentos e ações. Essa conquista é nossa, mãe!

Muito obrigada e como a senhora dizia; Amo-te do tamanho do infinito.

AUSÊNCIA

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim”.

Carlos Drummond de Andrade

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“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem

perder o que, com frequência, poderíamos

ganhar, por simples medo de arriscar.”

William Shakespeare

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ENTRE LUZES E PERCEPÇÕES

A ILUMINAÇÃO NA PREPARAÇÃO DO CORPO ATUANTE

Resumo: Neste trabalho procuro descrever as contribuições práticas realizadas por mim na disciplina de Montagem da 6ª e 7ª fases do ano de 2014 no curso de Licenciatura em Teatro do Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); identifico contribuições da luminosidade cênica ao trabalho de preparação do ator-dançarino. Reflexões são tecidas pensando no trabalho das ondas de luz que interferem de maneiras distintas sobre o corpo, que cruzam as barreiras da função dramatúrgica ou estéticas reservadas à iluminação cênica, proporcionam ao ator-dançarino uma ferramenta de refinamento para com a percepção do espaço de atuação.

Palavras-chave: Iluminação e percepção. Ator-dançarino. Corpo atuante

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Lista de Imagens

Figura 1 - Plano baixo do espaço ................................................................................ 7

Figura 2 - Plano Convexo ............................................................................................ 9

Figura 3 - Parabólica de Alumínio Refletora .............................................................. 10

Figura 4 - Elipsoidal ................................................................................................... 10

Figura 5 - Mapa de Luz ............................................................................................. 11

Figura 6 - Luz geral e contra ..................................................................................... 12

Figura 7 - Geral Azul/Verde ....................................................................................... 13

Figura 8 - Geral Salmão ............................................................................................ 13

Figura 9 - Focos ........................................................................................................ 14

Figura 10 - Corredor Elipsoidal .................................................................................. 14

Figura 11 - Corredor PAR.......................................................................................... 15

Figura 12- Foco Festa ............................................................................................... 15

Figura 13 - Luz Globo ................................................................................................ 16

Figura 14 - Luz nas cadeiras ..................................................................................... 16

Figura 15 - Foco na mesa de luz ............................................................................... 17

Figura 16 - Blue/green ............................................................................................... 18

Figura 17 - Blue/green em cena ................................................................................ 18

Figura 18 - Cor salmão .............................................................................................. 19

Figura 19 - Olívia Dias ............................................................................................... 23

Figura 20 - Lucas Viapiana........................................................................................ 24

Figura 21 - Salto x escuridão..................................................................................... 25

Figura 22 -O Espaço I em III ..................................................................................... 34

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1

CAPÍTULO I UMA EXPERIÊNCIA DE LUZ E CRIAÇÃO ...................................................... 5

1.1 O ESPAÇO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULOE DA ILUMINAÇÃO ............................ 5

1.2 IMAGENS E DISCURSO SOBRE OS DESENHOS DE LUZ ...................................... 12

1.3 AS CORES .......................................................................................................................... 17

CAPÍTULO II A CINESTESIA DA LUZ ................................................................................ 20

2.1 O TEMPO ANTERIOR QUE REPRESENTA O FUTURO ................................................ 21

2.2 CADA SENTIDO É SINGULAR ............................................................................................. 25

2.3 OS ENSAIOS E A LUZ ........................................................................................................... 27

CAPÍTULO III O LABORATÓRIO. EXPERIÊNCIA EM DOIS PLANOS .............................. 29

3.1 A PROPOSTA .......................................................................................................................... 30

3.2 TRANSCRITO PELO CORPO ............................................................................................... 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 38

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 39

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1

INTRODUÇÃO

Com este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) pretendo descrever duas

experiências práticas que relacionam a iluminação cênica com a preparação e o

trabalho de prontidão e consciência no “aqui e agora” do ator-dançarino durante os

ensaios e apresentações, ligada diretamente a capacidade de improvisar diante das

imprevisibilidades decorrentes de estar em cena, por meio de estímulos de outros

captadores sensoriais que não somente o da visão, aproveitando-me das ideias de

Alain Berthoz (1997). Bem como relacionar estes experimentos, estabelecendo um

diálogo com textos e argumentos teóricos assimilados em leituras e análises ao longo

do curso de Licenciatura em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina

(UDESC). Não tenho a pretensão de afirmar que somente a iluminação cênica possa

contribuir na preparação do ator, entretanto estimo a importância em discutir esse

elemento que muitas vezes em função da falta de recursos técnicos é deixado de lado

e assim, esquecido.

Este trabalho está dividido em três capítulos, sendo que no primeiro descrevo

a experiência prática que se refere à concepção da iluminação da configuração em

dança - Desapropriar de Mim1 - realizada em 2014 na disciplina de Montagem Teatral

I e II no curso de Licenciatura em Teatro (UDESC), com direção da professora Elke

Siedler.

No segundo capítulo trabalho referenciais teóricos sobre dança, teatro e

iluminação cênica. Levanto questões sobre o casamento desses elementos e aponto

como o nosso corpo pode ser treinado (trabalhado), pela tomada de consciência

corporal no espaço, criando a capacidade de prever ou responder às

imprevisibilidades do ambiente de ensaio sob a contribuição da luminosidade cênica.

No terceiro capítulo abordo uma prática realizada por mim, uma oficina com o

mesmo grupo de pessoas do espetáculo Desapropriar de Mim, momento do qual elegi

exercícios práticos de dança e consciência corporal que estimulam a percepção do

corpo, mediante apontamentos de Annie Suquet (2008) e o sistema de Viewpoints,

bem como a associação do estudo sobre o sentido do movimento e o estímulo da luz

cênica na sala de ensaio. Por consequência, relato as propostas práticas e vivências

1 Para maiores informações sobre o espetáculo, ver o I capítulo deste TCC.

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que se relacionaram e produziram materiais de pesquisa dentro do processo de

entender a luz também como um contribuinte na preparação do corpo atuante.

Logo, o desafio deste projeto consiste no questionamento sobre o como treinar

um corpo por meio do elemento luz, considerando o trabalho de conscientização e

prontidão do ator/dançarino frente às intervenções da cena e do espaço. Para isso

meu objetivo para este Trabalho de Conclusão de Curso é o de discutir e apontar a

luz na preparação de um corpo atuante em cena; levantar aspectos nos quais a

iluminação atua diretamente - tais como prontidão, percepção do espaço e criação de

estados corporais - bem como refletir sobre a importância de utilizar a luz ao labor do

ator-dançarino.

Nestes relatos uso a definição ator/dançarino para o elenco do espetáculo

Desapropriar de mim. Compreendendo que a terminologia - dançarino - possa agradar

ou não pesquisadores da área, entretanto utilizo essa classificação simplesmente para

passar a ideia de que na condição de elenco, dançamos e atuamos, abstenho-me das

discussões e bandeiras defendidas entre as definições de bailarino/dançarino. Assim,

ao pensar neste corpo que está em cena, seja dançando, atuando, ou mesmo vivendo

a hibridação das artes do palco, os nomeio também como “Corpo Atuante”

considerando esse corpo que está em cena.

Utilizo também a palavra “Percepção” que pode carregar alguns conceitos

divergentes. Nesta pesquisa a palavra é entendida como uma experiência que os

indivíduos viveram e a partir dela construíram emoções e intenções para a cena

teatral.

A justificativa desta pesquisa estrutura-se ao longo dos quatro anos de minha

formação acadêmica, Licenciatura em Teatro, pela Universidade do Estado de Santa

Catarina (UDESC), iniciada em 2012, na qual uma vertente da área de estudos teatrais

– a iluminação cênica, que apesar de não compor o quadro de disciplina do curso de

Licenciatura em Teatro, existi como projeto de extensão - foi e continua sendo o foco

de meu interesse e do meu desejo de estudos e pesquisas. A possibilidade de

conhecimento teórico-prático deste elemento cênico me foi ofertada a partir do

Programa de Extensão, do Departamento de Artes Cênicas, do Centro de Artes,

denominado de LUZ Laboratório. Projeto elaborado pelo professor Dr. José Ronaldo

Faleiro e pelo servidor técnico em iluminação e mestre em teatro Ivo Godois em 2005.

O Programa se consolidou a partir da execução e persistência de Ivo Godois, que

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fomentou um espaço de pesquisa teórico-prático para os acadêmicos do

Departamento de Artes Cênicas.

LUZ – Laboratório de Suporte Cênico – tinha como principais objetivos ser um espaço de referência em atividades voltadas à pesquisa acadêmica e atividades práticas em Iluminação Cênica; fomentar atividades que auxiliassem com informações técnicas e estéticas sobre a utilização da luz cênica; estabelecer intercâmbios e parcerias com fábricas, órgãos governamentais e particulares mantenedores de informações sobre iluminação; organizar e proporcionar oficinas práticas e teóricas sobre eletricidade e iluminação cênica; auxiliar alunos e professores na criação e montagem de projetos de iluminação teatral para as apresentações de peças e/ou cenas relacionadas com as disciplinas do curso; registrar em fotos os resultados das montagens de luz realizadas no CEART (OLIVEIRA, 2011, p. 22).

Assim, a imersão neste universo até então para mim desconhecido, construiu

um olhar singelo e curioso sobre as possibilidades da luminosidade cênica, recurso

pouco explorado nas academias devido às dificuldades financeiras, de espaço e

equipamentos das instituições de ensino no Brasil. As observações como assistente

na concepção de luz de alguns espetáculos realizados pelo Mestre Ivo Godois, e

também sobre os trabalhos práticos em que comecei a contribuir nas escolhas das

cores, ferramentas e ângulos a serem utilizados nos projetos, como por exemplo, no

espetáculo dirigido por Brígida Miranda, no ano de 2013, Urano Quer Mudar, 2 foram

de uma riqueza de observações que gerou muito material para pesquisas, pois essas

descobertas me motivavam a entender como as escolhas eram realizadas. Outro

aspecto motor foram as leituras sobre iluminação, na ótica de alguns autores como

Roberto Gil Camargo, Eduardo Tudella, Pedro Benevides e principalmente as

conversas diretas e interpretações das ideias de Ivo Godois que surgiam em tardes

nas que passei vivenciando a iluminação no “LUZ Laboratório”. Já no trabalho como

atriz e na vida acadêmica, os elementos sobre a atuação pensados por grandes

nomes como: Constantin Stanislavski (1863-1938); Jerzy Grotowski (1933-1999);

Vsevolod Meyerhold (1874-1940); Antonin Artaud (1896 -1948), até então brevemente

apontados no decorrer do curso de graduação, me permitiram fazer associações

2 Ficha Técnica: Autor: Rogério Christofoletti, Direção: Brígida Miranda. Assistente de Direção: Fábio Yokomizo. Atores: Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro. Cenografia: Brígida Miranda. Diretor de Arte: Paulo Wolf. Diretor Musical: Pedro Loch. Iluminação: Ivo Godois e Priscila Costa, Produção Executiva: Claudia Venturi. Fotografia e Imagem: Paulo Wolf. Realização: Círculo Artístico Teodora.

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pertinentes à preparação do ator, à construção de estados corporais, prontidão e

consciência em cena.

Na justaposição dessas vertentes de estudos teatrais – atuação, treinamento

de atores e a iluminação cênica - surgiu o anseio de apontar a capacidade do ator, do

dançarino, (ou mesmo de qualquer ser humano em conexão com seus sentidos, em

especial no que se refere ao sentido do movimento), com a maneira como esses

corpos podem se relacionar no ambiente de ensaio por condução ou estímulo da

iluminação. Assim, estudo a contribuição da luminosidade cênica para um trabalho de

percepção mais aguçada do espaço e da maneira como o corpo pode ser/é capaz de

prever (reagir) e adaptar-se às circunstancias inimagináveis advindas da cena.

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CAPÍTULO I UMA EXPERIÊNCIA DE LUZ E CRIAÇÃO

“Entre o passado e o futuro, de que tempo fala o corpo que dança?”

(Thereza Rocha)

Neste capitulo a luz cênica é observada e descrita por mim através de dois

ângulos, como atriz-dançarina e como iluminadora. Para isso exponho a configuração

do trabalho de dança Desapropriar de Mim, realizado em 2014, no qual fiz essa dupla

ação cênica. Este trabalho foi elaborado nas disciplinas de Montagem Teatral I e II

ministradas por Elke Siedler3 ao longo do ano de 2014. A disciplina de Montagem

Teatral, do Curso de Teatro do CEART, tem por objetivo a “realização de um

espetáculo teatral sob direção de um professor, evidenciando a construção das

diferentes linguagens do espetáculo”4. Assim, o trabalho Desapropriar de Mim é o

objeto de estudo neste capítulo pelos dois focos delineados – iluminadora e atriz-

dançarina – a partir da compreensão do processo de criação e realização da

iluminação deste espetáculo. Ressalto que a concepção de luz foi resultante do

trabalho de Elke Siedler e Priscila Costa. E a operação da luz nos espetáculos ficou

ao encargo de Elke Siedler, e teve como técnico responsável: Ivo Godois5.

1.1 O ESPAÇO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO E DA ILUMINAÇÃO

Nos primeiros encontros, como turma de acadêmicos em teatro que vivenciam

mais uma disciplina, discutimos palavras que foram apresentadas por Elke Siedler tais

como a descontinuidade, a separação, a tristeza que revela assim perfeições, e as

surpresas reservadas pela vida oriundas dos fatos imprevisíveis que nos alcançam.

3Elke Siedler doutoranda em Comunicação e Semiótica, PUC/SP; bailarina independente. Em 2014 era professora colaboradora do Centro de Artes-UDESC. 4 Ementário do currículo 2007/2008 do curso de Licenciatura em Teatro. CEART/UDESC. Acesso em 06 abr. 2016 em: http://www.ceart.udesc.br/artes-cenicas/curriculo/curriculo-20078/. 5 Equipe de Desapropriar de Mim, em 2014: Direção Artística e Concepção: Elke Siedler. Assistente de

Direção – 1º semestre - 2014: Samantha Daus Silvius. Monitora - 1º semestre - 2014: Chaiany Gracietti. Monitora - 2º semestre - 2014: Joyce Andrade. Estagiária Docente: Tefa Polidoro. Professora de Yoga: Renatha Flores. Dançarino-ator e composição: Aline Holz, Camila Raquel, Giuliana Pamina, Lenita Fontoura, Lucas Viapiana Márcio Scolmeister, Mônica Costa, Olivia Dias, Paula Brinhosa, Priscila Costa, Thaís Alves, Thaina Gasparotto, Tassiana L. Bastos. Composição de ambientação sonora: Gabriela Flor e Pedro Henrique Silva. Concepção de luz: Elke Siedler e Priscila Costa. Operação de luz: Elke Siedler Técnico responsável: Ivo Godois. Figurino: Camille Aline.

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E, sobretudo o trabalho em torno do tema contemporâneo de comunidade,

observando as relações de grupos entre sujeitos singulares. Na própria sinopse do

espetáculo é possível ter a noção sobre o tema de comunidade vivido no espetáculo

e com ela as possíveis camadas de assuntos trabalhados.

A configuração de dança contemporânea DESAPROPRIAR DE MIM é uma reflexão crítico-poética acerca do conceito contemporâneo de COMUNIDADE, compreendida enquanto fluxos relacionais entre sujeitos singulares. O conceito de comunidade não é fundado num pressuposto comum, numa identidade, uma vez que os indivíduos que as constitui não são passiveis de homogeneização dos modos de ser, pensar e agir. Neste sentido, a configuração de dança aposta na construção de um ambiente relacional que evidencie a impossibilidade de constituição de uma unicidade estanque de laços entre seres: a vida em comum é composta pelo choque das diferenças entre indivíduos.6

Com base no pressuposto acima descrito, o processo final da disciplina

estruturou-se em forma de um espetáculo, evidenciando as relações sociais, apego-

desapego, padrões de beleza, estética ideal de corpo dançarino, continuidade-

descontinuidade, além da alienação e solidão dos humanos contemporâneos. Para

isso as discussões em grupo eram baseadas também nas reflexões de Georges

Bataille7. O que antes entendíamos e resumíamos pela palavra “ser”, agora neste

espaço de ensaio foi conceitualizado como um “breve existir”.

Os ensaios começaram com uma carga significativa de preparação corporal.

Os aquecimentos e boa parte dos preparativos eram realizados na sala denominada

Espaço I, localizado no Centro de Artes (UDESC). Essa sala se caracterizava por ser

uma caixa preta de aproximadamente cinco metros de altura com onze de

comprimento e largura, o espaço possuía chão de madeira, paredes e cortinas pretas,

sendo que as cortinas tinham a opção de serem usadas na cor branca. A partir de

uma escada e uma estrutura também de madeira conhecida por mezanino,

possuíamos acesso à sala da técnica, e abaixo da escada havia uma saída para o

camarim. O espaço comportava também praticáveis que se adaptavam às

necessidades de configuração da plateia, possuía varas fixas de luz, moduladores

(dimmer box) de potência, projetores de iluminação e mesa de comando digital com

48 canais. Era, portanto, um espaço bom para experimentações artísticas e para

explorações luminosas.

6Urdimento. Revista de Estudos em Artes Cênicas. Florianópolis: PPGT/CEART/UDESC, v.2, n.23, dezembro 2014, p. 279. 7Georges Bataille (1897/1962) Escritor francês, filósofo, sociólogo e poeta.

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7

Figura 1 - Plano baixo do espaço

Fonte: Priscila Costa

A luz geral do espaço é oriunda de um complexo de lâmpadas fluorescentes de

modelo tubular. Com esses recursos, na imensidão do espaço, a professora Elke

Siedler preocupou-se desde o início do processo em criar um ambiente mais sombrio,

apagando algumas fileiras de lâmpadas. A sala nos ensaios possuía então um

percentual baixo de luminosidade em relação ao que ela poderia oferecer, com a

preocupação de propor um ambiente que dialogasse com os conceitos que

trabalhávamos, e despertasse (mesmo que sutilmente) nossa atenção. Comecei a

observar nesta ocasião como os corpos se apresentavam diante desta discreta

mudança luminosa.

Corpo e luz não se dissociam. Ao contrário, formam um processo único, de codependência. A luz que provém da iluminação cênica e do ambiente e as características próprias dos corpos estabelecem trocas entre si, uma adaptando-se à outra, num processo coevolutivo (CAMARGO, 2012. p. 43. Grifo nosso).

O interessante é refletir na codependência (luz/corpo). Como foi observado por

Roberto Gil Camargo, desse trabalho de troca pode influenciar na percepção e na

capacidade de improvisação em cena. Minhas singelas observações como atriz

resumem que na preparação dos atores (dos corpos atuantes) se for trabalhado

conscientemente o elemento luz, o indivíduo de maneira intencional percebe o espaço

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e consequentemente a cena, deixa-se afetar. Logo, essa condição pode levar à

construção de estados corporais e à prontidão em cena. Vale também refletir o que

venha a ser esse processo coevolutivo que Camargo afirma existir. Pode-se pensá-lo

como a capacidade de lidar com os imprevistos advindos de se estar em cena; e estes

podem potencialmente ser melhorados por pesquisas anteriores sobre a

sensibilização dos corpos pela presença da luz, trazendo à tona a importância da

iluminação cênica (ou luz ambiente direcionada) na preparação do corpo atuante.

As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças (KARTZ & GREINER (2001:8) apud CAMARGO, 2012, p. 43).

As primeiras observações que fiz em torno do processo consistiram na

percepção do fluxo de energia dos corpos, que tendiam ralentar, seres em busca de

movimentos precisos, sem ansiedades desnecessárias para o momento. O ambiente

tendente ao escuro fazia analogia ao período noturno e os assuntos exteriores aquele

lugar e tempo perdiam sentido. Perceber o espaço e os colegas passou a ter

proporções maiores de sensibilidade ao longo dos ensaios. O grupo de alunos

começava a se conhecer de maneira a olhar-se singular em meio a uma comunidade

ali formada, não perguntávamos se a pessoa x estava bem, mas tentávamos observar

sua energia e suas tensões. A visão passou a ser mais um contribuinte e não a

ditadora suprema entre os sentidos humanos durante todo o processo de montagem

da configuração em dança.

Logo nas primeiras semanas de ensaios comecei a experimentação luminosa

partindo dos conceitos trabalhados, mas, sobretudo a partir das possibilidades

técnicas que o espaço me oferecia. Os desenhos de luz formados no espaço foram

em sua maior parte propostos pela diretora/professora Elke Siedler em conversas,

mas coube a mim a função de escolher as ferramentas adequadas para alcançar os

efeitos desejados, bem como a escolha das cores.

O mapa final de luz comportou sete elipsoidais, dezoito projetores planos

convexos (PC), dois projetores PAR 64 foco 2 e sete unidades de projetores PAR 64

foco 5. Além de quatro tripés de suporte para os projetores. Abaixo adentro um pouco

nas questões técnicas da iluminação. Considero estas informações relevantes para

as pessoas que trabalham com a criação de iluminação de espetáculos. E também,

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esta opção se justifica pela escassez de material relatando processos de criação

cênica da luz.

Apoiada nas explicações do site www.luz.ceart.udesc.br tento apresentar as

seguintes ferramentas: projetor PC ou Plano Convexo é assim chamado pelo tipo de

sua lente (modelo plano convexo), sua estrutura é basicamente uma caixa preta. Essa

ferramenta permite criar uma luz circular, e pode ser utilizada como foco ou

normalmente como uma luz para banhar um espaço, seja como uma luz geral

(banhando o palco) ou como uma contraluz (banhando do fundo para a frente, usada

para criar contorno nos corpos). Este projetor também possui um recurso de

movimentar o carrinho onde fica a lâmpada, proporcionando alterações no tamanho

do foco.

Figura 2 - Plano Convexo

Fonte: http://www.luz.ceart.udesc.br/8

Já a ferramenta PAR significa Parabolic Aluminised Reflector (parabólica de

alumínio refletora). Não é uma ferramenta com muitos recursos de recorte da luz, mas

possui um brilho intenso em sua potência de luminosidade. Para trabalhar com a

abrangência e o contorno dos focos existem alguns tipos de lentes (variam por suas

ranhuras) que determinam o tipo de foco: #1, #2, #5 e #6.

8 Ou http://www.luz.ceart.udesc.br/wp-content/uploads/20111007111628_OM-300.jpg

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Figura 3 - Parabólica de Alumínio Refletora

Fonte: http://www.luz.ceart.udesc.br/9

Outra ferramenta que esteve presente no plano de luz foi o elipsoidal. Esse

projetor possui duas lentes, o que permite mudar a posição das lentes formando

contornos mais ou menos definidos, facas de recorte da luz e espaço para gobo

(desenhos da luz), recursos que permitem “brincar” com a luz. Normalmente esse

projetor é utilizado para fazer focos e corredores.

Figura 4 - Elipsoidal

Fonte: http://www.luz.ceart.udesc.br/

Com estes três tipos de equipamentos de luz, e um globo de espelhos, foi criada

a iluminação do espetáculo Desapropriar de Mim. Mas, convém ressaltar que a luz

criada para a configuração em dança era totalmente dependente do operador da

mesma, que no caso sempre fora Elke Siedler, pois embora pareça que utilizei muitas

ferramentas elas trabalhavam sempre em baixíssima intensidade. Os focos e

corredores sempre difusos e em tons predominantemente frios proporcionaram para

9http://www.luz.ceart.udesc.br/wp-content/uploads/PAR2.jpg

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mim, como corpo atuante no espaço, um ambiente pesado e que requeria atenção

redobrada para evitar quedas e esbarrões. Já para o “eu” iluminadora o desconforto

da luz criado propositalmente girava em torno das cenas muito escuras, sem nitidez e

opacas.

Figura 5 - Mapa de Luz

Fonte: Priscila Costa

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12

1.2 IMAGENS E DISCURSO SOBRE OS DESENHOS DE LUZ

Para expor em âmbito mais técnico, descrevo e exponho fotos que dão um

panorama geral da iluminação utilizada nas apresentações do Desapropriar de Mim.

Começo pela luz chamada de Geral que nada mais é do que um “banho” de luz na

área de atuação. Trata-se de projeores posicionados na frente em direção ao palco,

sem filtro de cor, ou seja, uma geral “branca”, uma luz de contra, projetores localizados

no fundo do palco em direção à plateia para reforçar essa geral e mais um contra na

cor blue/green (Azul/verde). Essa luminosidade era utilizada em momentos nos quais

todos (ou boa parte) do elenco estavam em uma mesma “ação”.

Figura 6 - Luz geral e contra

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Gisele Knutez.

Utilizamos também duas pequenas gerais/contra dividindo o palco em direita e

esquerda (cena vista da plateia), nas cores salmão e blue/green respectivamente.

Esssas foram dedicadas a momentos que se distanciavam em intensões mesmo

carregando elementos comuns, em uma ideia de contraponto, visto que as cores

escolhidas, blue/green, tendia a criar um ambiente sombrio, conforme mostra a figura

7.

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13

Figura 7 - Geral Blue/Green

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Gisele Knutez.

E ao utilizar a geral salmão criava-se um espaço mais caloroso para o jogo de

cena.

Figura 8 - Geral Salmão

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Alguns focos difusos (figura 9) existiam para evidenciar um e outro momento,

assim como dois corredores também semi-difusos e de grande amplitude, um

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corredor dividido por três ferramentas de luz em três momentos, vindo da direita

fundo (visto da plateia) em diagonal até a extremidade esquerda frente. E outro

corredor em diagonal, vindo da esquerda fundo para a direita frente. Observar figura

10.

Figura 9 - Focos

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Figura 10 - Corredor Elipsoidal

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Além dos dois corredores acima descritos, existiam mais três corredores de

projetores PARs 64, com luz mais intensa, que foram afinados horizontalmente e

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dispostos no espaço em três distâncias (fundo, meio, frente). Como mostra a figura

11.

Figura 11 - Corredor PAR

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Gisele Knutez.

Um foco foi disposto a pino com o projetor PC no centro da área de atuação

para o momento denominado de A Festa momento over pensado nos exageros

provocados pela necessidade de manutenção das “aparências” sociais. Veja figura

12.

Figura 12- Foco Festa

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

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Já em um momento bem particular foi utilizada somente a luz oriunda de um

globo de espelhos que variava as direções e o ritmo de sua projeção de luminosidade.

E quatro tripés de suporte sustentavam projetores PCs que iluminavam o cenário,

formado por cadeiras pretas (ver figuras 13 e 14).

Figura 13 - Luz Globo

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Figura 14 - Luz nas cadeiras

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Um detalhe para mim curioso e que também fez parte da cena, era a mesa de

operação de luz, estava em cena e era iluminada. O praticável que suportava a mesa

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de luz também serviu como cenário e apoio para algumas cenas que aconteciam com

ela.

Figura 15 - Foco na mesa de luz

Elenco de Desapropriar de Mim. A direita Elke Siedler executando a iluminação do

espetáculo. Foto: Cristiano Prim

1.3 AS CORES

Pela imagem abaixo é possível ter uma ideia da primeira cor levada para os

ensaios e depois o seu resultado na prática. Um tom de verde/azul, conhecido como

blue/green, que em contato com o chão de madeira e com os tons claros de pele dos

corpos no espaço, além do contato com os figurinos que caminhavam em tons de

cinza, preto, vermelho e bege, com seus aspectos de velhos e sujos, proporcionava

uma “frieza”, um distanciamento demandado pela cena.

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18

Figura 16 - Blue/green

Fonte: http://www.lampadasespeciais.com.br/filtro_gelatina.htm

Figura 17 - Blue/green em cena

Elenco de Desapropriar de Mim. Foto: Cristiano Prim

Vale ressaltar que os filtros de cores recebem numerações (a exemplo da

imagem 16) e essas podem variar dependendo do fabricante. Já a segunda cor

trabalhada justamente para contrastar foi um tom mais rosado, puxando para o tom

salmão.

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Fonte: http://www.kabum.com.br/produto/15930/rosco-filtro-de-cor-gelatina-ecolour-english-

rose-108-2232

Jean-Jacques Roubine em seu livro A Linguagem da Encenação Teatral passa

pora lgumas questões referentes à iluminação cênica, entre elas o efeito das cores na

plateia. No caso ouso transpor suas palavras encontradas no diálogo diretor/plateia

para o diálogo do próprio corpo/cena, transpondo essa reverberação da luz/cor para

o corpo atuante:

Cada gama cromática, cada matriz produzem uma sensação, uma sacudidela comparáveis ao efeito das sonoridades. [...] Deliberadamente, procurará explorar essas potencialidades cromáticas colocadas num plano de igualdade com a música. Utilizará as cores “para metabolizar certas intenções”. (ROUBINE, 1998, p33)

Metabolizando o conjunto “fonte (ferramenta) da luz projetada, intensidade e

cores” chega-se aos tons. Tais procuras nascem de um trabalho mais sutil de nossas

necessidades. Por haver tido a possibilidade de experimentação e diálogo direto com

a proposta de montagem, ao longo do ano de 2014, na disciplina e em conjunto com

a generosidade dos corpos ali presentes, é que descrevo essas observações e

conexões entre luminosidade e preparação do corpo atuante, passando sempre pela

percepção do espaço e prontidão em cena no sentido mais amplo das referidas

palavras.

Figura 18 - Cor salmão

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CAPÍTULO II A CINESTESIA DA LUZ

“Luz é o que o bailarino procura no palco; iluminação é o que o público vê. O bailarino reage fisicamente à luz, enquanto a plateia reage artisticamente à iluminação.”

(Alwin Nikolais)

As inquietações que me surgiram referentes aos elementos discutidos sobre

iluminação e a todo conceito inspirado no processo Desapropriar de Mim

estabeleceram naturalmente uma conexão com o estudo das percepções e, sobretudo

com o estudo do sexto sentido apresentado por Alan Berthoz (1997). Assim, por meio

de percepções e analise do efeito da luminosidade cênica nos corpos e a resposta em

movimentos, adentro na perspectiva de sentir a luz e observá-la como elemento de

preparação para o trabalho do estar em cena.

As percepções, segundo Alan Berthoz, carregam consigo dados e complexas

estruturas de noções (mutáveis) que estudamos para argumentar reações do corpo

humano ao meio no qual está inserido. Neste trabalho direciono as observações para

como os indivíduos reagem às interferências luminosas propostas no espaço cênico.

Além de um corpo físico/biológico, os indivíduos possuem corpos emocionais que a

todo instante recebem estímulos. Contamos para isso então com os cinco sentidos

tradicionais; a visão, a audição, o tato, o olfato, o paladar, e também com um sexto

chamado de sentido do movimento, que Alain Berthoz, em seu livro Le Sens du

Mouvement, aponta:

Diferente dos cinco sentidos, cada qual associado a um órgão preciso, o “sentido do movimento”, ou “cinestesia”, nasce da cooperação entre diversas entradas multissensoriais, como a visão, os receptores vestibulares, os proprioceptores, os receptores cutâneos e os graviceptores. Estes captadores são localizados nos músculos, nas articulações, nas orelhas, na pele. Através deles, “nosso corpo cartografa o espaço” já que, reunidos, eles fornecem as informações sobre a posição de cada parte do corpo, o movimento, a relação do peso com a gravidade, etc. (ZANANDRÉA, p.2)

Entender o sentido do movimento como uma potencialidade para o trabalho do

ator é visualizar o corpo como um só “ser” que se comunica e reage segundo as

circunstâncias advindas do meio. Observo e ressalto nesse ponto a iluminação como

um participante ativo desse meio. Se entendermos a percepção cinestésica como as

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reações referentes ao espaço. Os impulsos resultantes desse processo por sua vez,

desencadeiam possíveis movimentos. Seria uma espécie de “tradução” do que o

corpo recebe de estímulos para movimentos.

Com tantos elementos sensibilizadores em cena, a percepção do corpo se

altera na medida em que os estímulos produzidos afetam diferentes “acionadores” de

sentidos (consequentemente as percepções e emoções) ou quando esses elementos

são considerados parte consciente e fundamental no trabalho do corpo que atua, seja

o trabalho em seus vários níveis e camadas. No caso deste estudo a visão e o sentido

do movimento acabam por predominar na base de ação para a experiência da

iluminação cênica como operadora de manifestações internas, na capacidade de

preparação do ator, aguçando seu estado de prontidão. Entretanto relembro que o

sentido do movimento é justamente a cooperação entre vários órgãos e captadores

sensoriais. Enfatizo que a luz neste trabalho ultrapassa sua definição de símbolo

estético ou função dramatúrgica, defendo que a luminosidade cênica pode agir

consciente e inconscientemente sob os atores, transportando-os a lugares fisicamente

reais, imaginários ou construídos, além de gerarem impulsos aos movimentos.

Como Suquet afirma, o sentido do movimento é

Muito complexo, ele traça informações de ordem não apenas articular e muscular, mas também táctil e visual, e todos esses parâmetros são constantemente modulados por uma motilidade menos perceptível, a do sistema neurovegetativo que regula os ritmos fisiológicos profundos: respiração, fluxo sanguíneo, etc. É esse território da mobilidade consciente e inconsciente, do corpo humano que se abre para as explorações dos bailarinos no limiar do século XX. (SUQUET, 2008, p.516)

Observar e trabalhar essa rede complexa que é o sentido do movimento é um

dos caminhos para estudar o fluxo de reações geradas pelo corpo humano. No caso

do processo do Desapropriar de mim, o corpo atuante e contemporâneo é justamente

o pesquisador que buscou e busca as possibilidades do corpo humano que se coloca

em cena e tenta dentro dos seus limites criar novos desafios e percepções finas.

2.1 O TEMPO ANTERIOR QUE REPRESENTA O FUTURO

Segundo Suquet, em 1892, em Paris, Loie Fuller (1862-1928) conhecida como

a fada da eletricidade, apresenta o uso e a pesquisa da luz elétrica em seu espetáculo

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A Dança da Serpente. Assim, como foi apontado por Suquet, começa-se, então, a

olhar para o casamento entre iluminação, cores e movimentos. Essa união na dança

de Loie Fuller também carregou a ideia do corpo vibrátil:

O corpo do artista é um ressonador. As ondas luminosas nele se transformam em ondas cinéticas segundo um processo de troca ininterrupto que a dança e as artes cênicas têm como vocação ritmar e converter, mediante a alquimia das sensações internas [...] (SUQUET, 2008, p.512. Grifo nosso).

Após “entender” o corpo como uma matéria vibrátil, tal como observa Suquet

acima, e como as cores atuam nessa vibração, iniciei a imersão nos estudos e nas

observações sobre o contexto geral do processo de composição do espetáculo

Desapropriar de mim, observando a reverberação das ondas luminosas nesse corpo

atuante e ressonador. Depois de observada a forte presença do conceito de

desapropriação e do trabalho com as imprevisibilidades da vida e da cena, intensidade

baixíssima de luz, tons escuros como o Blue/Green (Verde/azul), foram escolhidos,

diante de imagens que associei na qualidade de iluminadora e corpo atuante, que se

colocava em estado de prontidão para que não houvesse esbarrões inesperados ou

quedas que pudessem machucar os atores/dançarinos. A proposta do espetáculo

possuía uma “pegada” mais densa e provocadora, no sentido de não revelar tudo o

que acontecia em cena. Não havia uma história linear, mas gostávamos de criar

questões e de provocar reflexões sobre a maneira como vivemos ou recebemos as

coisas que nos acontecem.

No processo de criação de luz, sobretudo na pesquisa de observar os corpos

tocados pela iluminação, a busca foi estimular estados corporais que surgiam nos

integrantes do processo do Desapropriar de Mim, experimentando a vibração da luz

nos corpos atuantes. A primeira experimentação foi proposta aos atores/dançarinos,

surgiu no sentido de não avisá-los nem consultá-los sobre a contribuição da

luminosidade no espaço e em seus corpos, simplesmente o ensaio aconteceu em um

local com interferência de uma iluminação pensada (intensidade baixa e tons frios).

Na sequência, outras experiências foram realizadas, como, por exemplo, um

laboratório de aproximadamente três horas ministradas por mim, onde expliquei

brevemente a intensidade e o brilho de três ferramentas de luz cênica (PC, PAR e

Elipsoidal). Os integrantes puderam então caminhar e sentir essas luminosidades,

além de discutir em grupo suas percepções e observações. Um laboratório de

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experimentação breve, mas com direção de foco sobre o elemento da iluminação, que

descreverei melhor no terceiro capítulo deste TCC.

Assim, com a presença da luminosidade, tons e ferramentas pensados,

direcionou-se a capacidade reflexão para os aspectos atuantes na proposta do

espetáculo, conversas foram realizadas com o elenco de Desapropriar de Mim, sobre

como a luz estava para além de um guia prático de localização espacial, mas estava

presente com um “plus”, consistente em criar uma ambientação para os corpos em

cena:

A luz parou de ser apenas mais um elemento em cena. O que antes complementava, agora é essencial. Como atriz e como espectadora, a iluminação faz toda a diferença. A meu ver, a luz cria um estado, um clima, um momento particular para tudo o que está acontecendo. A sutileza, os detalhes, aí que está toda a riqueza que ela pode nos proporcionar. A iluminação, no processo da montagem, me fez acreditar mais no trabalho, me fez adentrar na atmosfera com mais facilidade e aflorar meus sentimentos. [...] Às vezes sabemos que algo nos move, mas não sabemos exatamente como ou por que [...].10

Figura 19 - Olívia Dias

Lucas Viapiana e Olivia Dias Foto: Cristiano Prim

Reunidos os relatos sobre as experiências práticas realizadas pode-se

observar como cada indivíduo organiza sua postura em relação ao espaço e à

10Depoimento de Olívia Dias para Priscila Costa, em 29 agos. 2014. Atriz/dançarina, integrante da disciplina de Montagem Teatral I, da 5ªfase em Teatro-CEART/UDESC. Relatos sobre a experiência vivenciada na preparação do ator/dançarino no processo do espetáculo Desapropriar de Mim, em 29 agos. 2014.

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consciência de seu corpo em uma justaposição aos diálogos presentes no trabalho do

ator/dançarino, entre eles a iluminação. Para o meu colega Lucas Viapiana a luz como

outro elementos sensoriais afetam sua presença:

Como ator-dançarino, desejo sentir-me afetado pelos elementos que compõem a cena junto ao corpo. Pelo campo da percepção, particularmente sinto existir uma diferença entre estar em cena sob a ação de tais elementos, independente de se for um ensaio fechado, aberto ou apresentação.11

Figura 20 - Lucas Viapiana

Lucas Viapiana, no primeiro plano. Foto: Cristiano Prim

Depois de conversar com os colegas do elenco, parei para perceber como “eu”,

na medida em que era corpo atuante percebia a falta de luz (intensidade baixa) como

um elemento estimulante para o processo. Mais do que as cores, a intensidade da luz

foi um fator que me fez redobrar a atenção, precisava agir mesmo na incerteza que a

escuridão proporcionava, assim como na vida (deixo minha metáfora). Houve uma

cena em que eu caminhava entre corpos deitados no chão e a única luz que eu

possuía eram breves momentos em que o globo de espelhos em movimentos rápidos

11Depoimento de Lucas Viapiana, ator/dançarino, integrante da disciplina de montagem da 5ªfase em Teatro-CEART/UDESC. Relatos sobre a experiência vivenciada na preparação do ator/dançarino no processo do espetáculo Desapropriar de Mim. 29 agos. 2014.

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era ligado. Outro ponto pertinente foi a questão de que eu estava calçada com uma

sandália de salto alto, o que proporcionava ainda mais instabilidade. Para lidar com a

constante dificuldade de manter-me em pé, trabalhei a questão da extrema prontidão

em cena, para não haver acidentes prejudiciais tanto para o espetáculo quanto para

mim, ou para os colegas. Neste momento ápice de escuridão, percebi como minha

memória era acionada, a memória espacial era também trabalhada em função do

elemento luz, bem como a criação do estado corporal, ultrapassando a tangente da

luz, que é pensada somente para criar dramaturgia luminosa ou simplesmente usada

como um fator estético que afeta apenas os espectadores.

Figura 21 - Salto x escuridão

Priscila Costa. Foto: Cristiano Prim

2.2 CADA SENTIDO É SINGULAR

A intercomunicação entre o estado corporal criado pelos atores/dançarinos,

espectador e conjunto da obra, neste trabalho, gerou códigos que muitas vezes fugiu

do horizonte de expectativas do “olhar externo”, como por exemplo, a incapacidade

de acompanhar todas as cenas que aconteciam simultaneamente: a luz baixa, a trilha

sonora, com seus sons quebrados e inconstantes, podiam produzir sensações de

agonia e confusão. Trabalhou-se com referências evocativas de sentimentos pesados

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e densos; no entanto, o possível descompasso entre ver uma configuração em dança

bela e agradável e vivenciar uma configuração em dança que provoca e perturba as

pessoas ali envolvidas, proporcionou um material complexo e rico, pois cada membro

dessa experiência apropriou-se das propostas da diretora e pelos elementos de cena

de uma forma singular e mutável. O mesmo ocorreu com a composição de suas

reações. Eis a ação primeira da pesquisa: observar as reações. Indiferente era para

mim, como acadêmica e artista/iluminadora, as dimensões de cena que cada indivíduo

construiu no decorrer do processo do Desapropriar de mim, mas era, sim, importante

o fato de que ao observar e ouvir os relatos dos integrantes, sem exceção, todos foram

influenciados ou ao menos estimulados pelo fator luminoso que incidia sobre eles.

Observar o corpo atuante e o diálogo com a iluminação, seja nos ensaios, seja

apresentações foi o foco de minha pesquisa. Precisei trabalhar o “eu” iluminadora que

se sentiu incomodada com a baixa intensidade de luz no palco, ativando a ansiedade

desse olhar “fora” que desejava acompanhar cada detalhe das várias cenas que

aconteciam simultaneamente. A baixa intensidade, como já descrito, além de ativar

os atores/dançarinos, exigindo o máximo da atenção para com os choques e quedas

possíveis, também os desestabilizava, tendo em vista que a operação de luz era

passível de mudanças, assim como todos os outros elementos de cena afinal, a

imprevisibilidade era evocada como um dos temas do espetáculo.

A pesquisa aperfeiçoada deste processo consiste em aprimorar as percepções

do ator/dançarino (corpo atuante); aguçar o estado de prontidão e observação do

espaço no qual está inserido; estimular o trabalho, antes e durante a cena, por

intermédio da luz. A iluminação cênica e a luz como um todo pulsa constantemente

junto aos captadores sensoriais, e, por consequência, atinge os sujeitos nela envoltos,

assim como afirma Suquet:

Estudando os fenômenos de “indução psicomotora”, o cientista descobre que toda percepção – antes mesmo da tomada de consciência de uma sensação e, a fortiori, de uma emoção – provoca “descargas motoras”, cujos efeitos “dinamogênicos” é possível registrar, tanto no nível da tonicidade muscular como da respiração e do sistema cardiovascular. Percepção e mobilidade, portanto, estariam intimamente ligadas. (2008, p.514)

Estar disponível para as possibilidades das ondas luminosas, nem sempre é

tarefa fácil. Seguidos do “hábito nosso de cada dia” e por ouvir, por exemplo, nas aulas

de ioga realizadas durante a montagem do Desapropriar de Mim, a seguinte frase:

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“deixe a luz sair de você”, sem menosprezar as situações que demandem esse

pensamento desenvolvo neste estudo uma ideia contrária. Trabalho então com o

entendimento da “chegada da luz nos corpos”. Cada vez mais, os estudos sobre o

sexto sentido, a percepção, os estudos comportamentais e psicomotores ajudam a

compreender a potencialidade do corpo em receber os elementos que os atingem (as

ondas luminosas inclusive).

Como estabelecer conexões com o mundo ao nosso redor, mesmo que este

mundo seja por um breve existir simplesmente uma sala de ensaio? Responder a esta

questão é direcionar o olhar para a maneira como compreendemos este espaço físico

e suas possibilidades. Logo, a luz trabalha diretamente neste entendimento, visto que

ela altera a percepção do meio e os nele inclusos. Bem como aponta Marília Veloso:

Nosso entendimento de mundo está vinculado a como o experienciamos, e isso estabelece parâmetros de como o compreendemos. Neste sentido, refletir acerca de alguns parâmetros que instituíram comportamentos sensório-motores é examinar o campo de possibilidades e a circunstância onde a experiência se deu. (VELOSO, 2011, p.136)

Perceber a luz cênica como uma possível preparação do corpo é reconhecer

que a consciência da luminosidade é, sim, uma percepção que pode gerar micro

movimentos, ou mesmo aguçar o entendimento pré-estabelecido do percurso de um

corpo no espaço por condução da luz.

Quando Suquet (2008) fala sobre as “descargas motoras” questiono-me: no

que elas consistiriam? Talvez perceber o corpo como um recipiente de sensações

capaz de codificar em percepções e logo reagir com micro movimentos ou até mesmo

atingindo outros planos de reações mais subjetivas. Não cabe à luz neste primeiro

momento igualar essas descargas motoras, mas sim provocá-las nos corpos,

independentemente do resultado final, pois neste caso a luz atua no “entre”, no

“agora”, não antes, muito menos depois. Ela está presente e deve-se fazer presente.

2.3 OS ENSAIOS E A LUZ

Durante os ensaios do processo Desapropriar de Mim, a luz (a proposta de luz

cênica com ou sem equipamentos profissionais), esteve presente e sua presença foi

construída durante os dois semestres de trabalho, ou seja, foi percebida como um

fator de estímulo e marcação de cena e palco. O exemplo dessas observações e

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conversas sobre luzes aconteciam durante os ensaios, nas passagens gerais ou

mesmo nos momentos anteriores às apresentações, quando a diretora/professora

Elke Siedler apresentava a proposta de luz para o elenco, ascendia e mostrava onde

cada corredor ou foco se localizava, se a iluminação precisou ser modificada em

função do espaço e das ferramentas disponíveis. Como o tempo para montagem,

passagem técnica de luz e palco muitas vezes era espaço e também por uma opção

de treinamento as informações dos espaços, locomoção, luz e adaptações extras

eram fornecidas apenas uma vez, demandando que cada integrante estivesse atento

a tudo e a todas as informações necessárias para que pudéssemos lidar com as

imprevisibilidades decorrentes dos espaços e mesmo com as nossas. Outro aspecto

interessante é que Elke Siedler deixava as luzes cênicas preparadas (ligadas)

aproximadamente trinta minutos antes das apresentações, como costumava dizer,

ligar as luzes para criar um clima sempre fora fundamental para o elenco, pois quando

chegávamos, seja para as apresentações, seja para os ensaios, estávamos agitados

e desconcentrados, assim essa mudança provocada pela luminosidade gerava um

clima emocional e diminuía nosso estado de agitação.

Confesso que no início do processo a postura de Elke Siedler de sempre

modificar a luminosidade do espaço me chamara muita atenção, pois embora eu

trabalhe no ramo, considero raros os casos em que a luz é posta no mesmo plano que

outros elementos de preparação do ator, como, por exemplo, o treinamento de voz,

corpo, memória. E em atenção ao tema e à relevância que prezo para seus

desdobramentos é que também individualmente provoquei os meus colegas de cena

para questões que se alteravam em resposta à iluminação, seja por meio das cores,

seja pelo das intensidades. Questionar e chamar atenção para a luminosidade do

ambiente e para a maneira com que os atores/dançarinos reagiam ao se perceberem

envoltos pela iluminação, era uma forma de “treinar”, “preparar” os corpos atuantes

para o espaço de cena.

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CAPÍTULO III O LABORATÓRIO. EXPERIÊNCIA EM DOIS PLANOS

“Vivificando assim o espaço e o ator, a luz assume uma dimensão quase metafísica, ela controla, modaliza e nuança o sentido, infinitamente modulável, é o contrário de um signo discreto (sim/não; verdadeiro/falso; branco/preto; signo/não signo) é um elemento atmosférico que religa e infiltra os elementos separados e esparsos, uma substância da qual nasce a vida.”

(Patrice Pavis)

Da grade curricular do curso de Licenciatura em Teatro, do Centro de Artes

(CEART), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), fazem parte as

disciplinas de Montagem Teatral II, com 8 créditos, e Laboratório de Composição, com

3 créditos. Estas duas disciplinas são sempre ministradas no segundo semestre letivo,

fazendo parte do conjunto de disciplina da 6a fase do referido curso. A professora Dra.

Jussara Xavier12 ministrou a disciplina de Laboratório de Composição. Esta última se

estrutura a partir da seguinte ementa: “Experimentação de composição cênica a partir

do trabalho com diferentes linguagens artísticas. Exploração expressiva com materiais

híbridos”.13 As duas disciplinas se amalgamaram para possibilitar o aprofundamento

do trabalho cênico que vinha sendo desenvolvido. Desta forma, foi possível uma

verticalização na pesquisa corporal e em experimentos que reverberassem na

montagem do Desapropriar de Mim.

Com o intuito de aprofundamento do trabalho autoral, Jussara Xavier propôs

aos acadêmicos de Laboratório de Composição que cada aluno trouxesse para os

próximos encontros um “elemento com potencial” e que se correlacionasse conosco,

e com os nossos interesses como pesquisadores, para então estimular processos de

experimentação em composição de movimentos. Ou seja, o trabalho do espetáculo

agregava elementos de vivência e de interesses específicos dos acadêmicos.

Cada aluno teve o tempo de uma aula, aproximadamente três horas, para expor

sua pesquisa, ou o elemento que trouxera para experimentar e/ou estimular os seus

colegas. Algumas pessoas trabalharam som, voz, fome, trouxeram temas como

12 Em 2014 era professora colaboradora no Departamento der Artes Cênicas, do Centro de Artes-

UDESC. 13 Ementário do currículo 2007/2008 do curso de Licenciatura em Teatro. CEART/UDESC. Acesso

em 06 abr. 2016 em: http://www.ceart.udesc.br/artes-cenicas/curriculo/curriculo-20078/.

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violência, diversão, leveza ou ainda pesquisas (propostas) e exercícios

correlacionados, como por exemplo, estudos sobre a educação somática e

Viewpoints. Enfim, cada membro trouxe para o grupo experiências e desejos que nos

atravessaram.

Neste capítulo descrevo o trabalho que desenvolvi junto aos colegas e que

denominei de “Laboratório: A Percepção da Luz Cênica no trabalho do corpo atuante”.

Ressalto que esse trabalho auxiliou na elaboração da iluminação do processo do

Desapropriar de Mim.

3.1 A PROPOSTA

Quando chegou a minha vez de propor atividades para o Laboratório de

Composição, o tema que naturalmente emergiu foi o elemento da luminosidade

cênica. Logo depois de decidido o assunto (A luminosidade cênica na preparação de

um corpo atuante ou/e A Percepção da Luz Cênica), pensei nos elementos para os

quais precisava chamar atenção para que minha proposição ganhasse vida. Foi assim

que imediatamente o tema “corpo” ganhou muito espaço, e consequentemente a

necessidade da preparação corporal e a tomada de consciência sobre luz/corpo para

que então esse diálogo pudesse ser observado e questionado pelos participantes.

Para narrar a pesquisa por mim realizada, eu a descrevo em nove (9)

“Momentos”, que me parecem apropriados para expor o que foi desenvolvido no

processo laboratorial. O trabalho/pesquisa ocorreu na sala de ensaio, o Espaço I, no

prédio de Artes Cênicas, que é constituído de equipamentos de iluminação, que foram

fundamentais para o experimento realizado com os meus colegas. No dia da

experimentação, estavam presentes aproximadamente quinze pessoas, entre elas

boa parte do elenco do Desapropriar de mim, com exceção de duas ou três pessoas

que não estavam matriculados na disciplina (Laboratório de Composição). Como foi

descrito acima a aula durava aproximadamente três horas, sendo esse tempo que

utilizei para a vivência por mim proposta.

Momento 1: Comecei o trabalho com os meus colegas em roda e sentados no

chão, com o objetivo de apresentar um pouco do processo que deveríamos

desenvolver naquela tarde. O trabalho passaria por: Apresentar os objetivos da

proposta, estimular a interação em grupo, fazer um aquecimento, apresentar três

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ferramentas de iluminação cênica (PAR, PC e Elipsoidal). O espaço utilizado, Espaço

I, por ser amplo, possibilitou caminhadas e reconhecimento do ambiente. Como o piso

é de madeira pedi para que todos ficassem descalços para desenvolver o contato

direto com o chão.

Momento 1.1: Deitados no chão e de olhos abertos, os atores/dançarinos

começaram a respirar por uma narina, obstruindo a outra com um dedo da mão. Logo

após inverteram a narina. Neste momento comecei a falar sobre o “estar disponível”.

Pedi então para que os integrantes estivessem presentes, ou seja, disponíveis aos

seus sentimentos, aos seus corpos deitados no chão, nas vibrações que podiam

perceber. Um aspecto relevante era que eu, como propositora, sempre estava

questionando as próprias afirmações que realizava. Por exemplo, no caso acima,

perguntei: “O que é estar disponível aos sentimentos? Podemos sentir Vibrações? De

onde essas vibrações surgem? Do som? Da Luz? Do corpo?”

Momento 2: Próxima etapa continuou com os atores/dançarinos ainda deitados

e de olhos fechados. Solicitei aos mesmos para empurrarem, com o peso do corpo,

esse chão e perceber a força contrária empurrando o corpo. “Qual a densidade do seu

corpo?”. Prestar atenção para o atrito que foi causado, para as camadas que atingimos

(pele, músculo, osso). Este momento de corpos no chão, olhos fechados,

normalmente proporciona um estado de relaxamento corporal. Com isso tomei

cuidado para que os corpos se sentissem relaxados, mas não distraídos, pedia para

que “não viajassem” em outros assuntos senão aqueles para os quais eu os conduzia.

Após este momento de trabalho corporal e percepção do corpo, introduzi a luz como

tema. Para isso me questionei e questionei o grupo: “Será possível perceber a luz e

usá-la na preparação do ator/dançarino? Do corpo atuante?” Defendo que sim, e por

acreditar nesta afirmativa realizei o laboratório e escrevo este trabalho. Mas existe

uma ressalva: é preciso querer, estar disponível e não resistente. Questionar a

funcionalidade de tal proposta é fundamental para desconstruir certezas e gerar novos

questionamentos. Entretanto, para vivenciar a reverberação da luz no corpo, através

de suas ondas, é preciso aguçar a escuta corporal, observar e traduzir o que o corpo

vive/recebe.

Ao trabalhar com o estímulo da luz, sublinho a importância de incialmente

preparar o corpo para alcançar um estado de prontidão e de entendimento do meio

no qual está inserido. A consciência corporal é a base que sustenta minha pesquisa e

também seus resultados. Assim, pedi para que todos prestassem atenção em cada

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detalhe de seus corpos. Aproveitei a deixa para introduzir o tema sobre o sentido do

movimento.

Momento 3: Continuei os trabalhos abarcando a questão do som e da

luminosidade. Para isso adicionei uma trilha sonora14 que referenciava uma

tempestade. E pedi ao grupo participante que deixasse seus corpos se influenciarem

por essa trilha. Deixar esse som chegar até eles por meio de todos os captadores

sensoriais/órgãos possíveis. Fui induzindo o trabalho com algumas perguntas chaves:

Qual a imagem desse instante? O cheiro? O toque? Adicionei também neste momento

o elemento da luz, acendendo e apagando as lâmpadas do espaço. Para finalizar o

momento, desliguei as luzes e o som.

A escolha da paisagem sonora ser uma tempestade nasceu propositalmente

do anseio de trabalhar a percepção da luz, mesmo que o espaço também oferecesse

outras informações potente para os corpos, no caso uma trilha sonora que

referenciasse uma grade tempestade. Por exemplo, na configuração em dança

Desapropriar de mim, volume da trilha era era alta e inconstante, eu precisava me

movimentar, prestar atenção nos colegas e com baixa intensidade luminosa me

localizar no espaço e trabalhar esse elemento ao meu favor. É dentro desse universo

de imprevisibilidades decorrentes de estar em cena que prezo que os “corpos

atuantes” também percebam a luz, pois já assisti propostas de espetáculos incríveis

com atores parando no escuro pelo fato de não saber se relacionar com a

luminosidade do espaço.

Momento 4: Aos poucos sugeri que todos se levantassem e começassem a

andar pelo espaço, mas não esquecer de tudo o que o corpo absorveu e produziu

anteriormente. Andando pelo espaço pedi que observassem com muita atenção os

colegas, pois seria importante na próxima etapa. Na sequência, solicitei que parassem

na frente da primeira pessoa que encontrassem no espaço, uma de frente para a

outra. E por meio do toque, da visão, do olfato, do movimento, reconhecer o outro.

Momento 5: Após o reconhecimento, os atores/dançarinos formaram duas

filas. Uma de frente para outra. O objetivo desse exercício era o de observar a

diferença no colega antes e depois, era de aguçar e trabalhar a percepção. Para isso,

uma das filas foi o observador e a outra o propositor da mudança. Ou seja, trabalhando

todos ao mesmo tempo, mas em duplas, sendo que minha dupla pertencia à outra fila.

14 Trilha escolhida por Priscila da Costa no YouTube. Disponível em:

<http://sonsdanaturezaonline.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 ago. 2014.

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Com isso um integrante mudou algo em seu corpo/roupa sendo sutil e o outro

observou e apontou qual foi a mudança. Enquanto preparava o próximo momento,

questionei quais as impressões do grupo. Existe algum questionamento? Como estão

se sentindo?

Momento 6: Nesta etapa adentro na experiência com a luz. Com três

ferramentas de iluminação (PAR, PC e Elipsoidal) 15 devidamente penduradas na vara

de luz, do Espaço I, e com exemplares na mão, contextualizo a função básica de cada

projetor de luz e sua luminosidade. Solicitei que cada ator/dançarino passasse

debaixo da luminosidade produzida, e verificasse se conseguia perceber alguma

diferença de calor e brilho entre elas. Conversamos sobre a experiência após a

prática. Senti pelas questões formuladas e por minhas observações que o grupo

começava a entender o que era a proposta, mas que ainda a diferença de

luminosidade e o que ela proporciona estava abstrato, e precisava ser mais explorado

(seja com outras experimentações, ou com tempo dilatado, em que pudessem com

calma sentir a luz).

Momento 7: Distribui vendas para que todos os atores/dançarinos pudessem

cobrir seus olhos. Todos vendados tinham uma missão: Procurar e parar na luz, ao

sinal de uma palma e voltar a andar com duas palmas. Esse exercício foi e é muito

interessante, pois cada integrante buscou uma maneira de se localizar no espaço e

criar estratégias de procurar a luz. A luminosidade a ser procurada era produzida por

projetores PARs, PC e Elipsoidais. A escolha surgiu a partir da diversidade do brilho

e do calor em potencial que cada ferramenta de iluminação oferece. Essa experiência

com os olhos vendados na procura da luz, quando normalmente usamos a visão para

localizá-lo, gerou muitos comentários e agitação corporal, ansiedade e sensação de

missão realizada. O comentário mais recorrente foi o de que procuravam por meio do

chão “mais quentinho” a maneira de encontrar e parar na luz. Ou seja, em função da

ferramenta PAR produzir mais calor e por estarem descalços, a maioria se aglomerava

no foco de luz oriundo do projetor PAR.

Momento 8: Antes de apresentar o oitavo momento destaco que por intermédio

da luz e de algumas estruturas de arquibancadas, praticáveis dispostos no espaço,

organizei três pequenas áreas, como mostra a imagem abaixo:

15 Maiores informações sobre as ferramentas de iluminação ver o Capitulo I.

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Figura 22 - O Espaço I em III

Fonte: Priscila Costa

Dividi o grande grupo em três subgrupos. A ideia era experimentar e observar

a influencia da luz nos corpos e na sequência os movimentos que são compostos.

Partia da seguinte indagação: Existiria uma correlação entre criação, corpo e luz?

“Eu construí uma dramaturgia, que é minha relação com a chuva. Que é de choro, eu trato a chuva como se fossem lágrimas. E aí quando eu descobri o vermelho no azul e isso construiu outra intenção. A cor teve uma intenção maior no sentido do sangue, de relacionar a chuva, o choro, líquido e água. A parti disso eu comecei a brincar com a sombra. A principio eu tentava trazer o movimento do chover, do chorar pro corpo” (Thaís Alves)16

Os subgrupos foram para três espaços com diferentes proposições luminosas,

ou seja, um grupo foi para a área com incidência de luz vermelha, o outro com luz azul

e o terceiro grupo para uma área delimitada por praticáveis com luz branca, sendo

que neste espaço os atores/dançarinos estavam com os olhos vendados.

As cores (vermelho e azul) foram escolhidas genericamente, pensando

somente na questão de ser uma luz quente e outra fria. Sobre a cor vermelha,

transcrevo alguns relatos dos integrantes:

“Quando eu estava no vermelho eu comecei a reparar mais em mim, porque as pessoas no vermelho elas são mais chamativas. Porém o

16 Thaís Alves. Fala transcrita do áudio registrado no laboratório por Priscila Costa, em setembro de.

2014.

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azul no meu olho é mais chamativo. Não sei si entendem a diferença?” (Camila Raquel). 17

“O vermelho para mim é um pouco claustrofóbico” (Olivia Dias) 18

Observar no corpo a interferência da luminosidade e trabalhar esse elemento

em favor dos seus objetivos em cena é enriquecedor, pois proporciona ao corpo

atuante o desafio ou o estímulo de lidar com a luz e seus desdobramentos.

“Eu senti que o azul, quando eu cheguei lá... Não sei... eu senti um sono, fui começando a bocejar, fui me sentindo mais lento, parece que a luz era fraca e aquilo me enfraquecia um pouco.” (Lucas Viapiana) 19 “Eu sinto frio no azul” (Olívia Dias).

Já a área com luz branca e participantes vendados direcionou as minhas

observações para a “atuação” da intensidade da luminosidade nos participantes e não

propriamente para a cor. Estava também presente nos corpos a sensação tátil da luz

(o calor produzido pelo projetor de iluminação em contato com a pele). O grupo

pesquisava a todo o momento a sensação do calor, na procura e no distanciamento

da sensação. Esses corpos buscaram por meio do calor o movimento:

“Ali eu brinquei com essa coisa do calor. Eu fiquei muito tempo em uma posição só. Ai eu brincava com a sombra na minha mão, era incrível, mas eu sentia muito a minha mão gelada, eu sentia diferente." (Mônica Costa) 20

Observei em alguns integrantes do grupo vendado que existira uma forte

interação entre os corpos humanos eles interagiam mais corporalmente. Poderia essa

interação ser uma estratégia de criar pontos de referencia no espaço? Ou mesmo a

procura de calor.

"Eu também liguei essa interação pela busca de calor, essa busca de calor não só pela luz que às vezes não conseguia atingir. E aí quando tocava em alguém senti muito mais do que se estivesse vendo. (Camila Raquel)

17 Camila Raquel. Fala transcrita do áudio registrado no laboratório por Priscila Costa, em setembro

de. 2014 18Olivia Dias. Fala transcrita do áudio registrado no laboratório por Priscila Costa, em setembro de.

2014. 19 Lucas Viapiana. Fala transcrita do áudio registrado no laboratório por Priscila Costa, em setembro

de. 2014 20 Mônica Costa. Fala transcrita do áudio registrado no laboratório por Priscila Costa, em setembro de.

2014

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O último “momento”, o da composição de movimentos, tomou boa parte da

tarde e possibilitou a pesquisa de todos os integrantes pelos três espaços criados

(área azul, vermelha e branca, com olhos vendados).

Esse ambiente de experimentação e composição foi riquíssimo. Possibilitou

que meus colegas acionassem e direcionassem o olhar para a luz, para a

luminosidade dos espaços onde estavam inseridos e como foram afetados. O

laboratório também provocou em mim uma positiva desestabilização, oriunda em meio

às questões que surgiram no decorrer do processo, e que me fizeram rever muitos

aspectos em torno da relevância e da maneira com que apresento o estudo.

Momento 9: Para finalizar os trabalhos, pedi ao grupo que, em roda,

conversássemos sobre o que mais interessou no laboratório realizado. Quais foram

as impressões (positivas e negativas)? Qual o momento mais difícil e o que poderia

ser repensado? Esse espaço foi bem interessante, para ouvir como cada individuo

vivenciou as cores e as luzes de uma maneira singular, dependendo da bagagem e

referências socioculturais. Nesse momento gravei com meu celular um áudio de

aproximadamente trinta minutos com os relatos que cito no decorrer deste capítulo.

3.2 TRANSCRITO PELO CORPO

Como acadêmica, iluminadora e artista, propor uma vivência, no caso um

laboratório de composição, tomando como tema a iluminação cênica, que

normalmente é encarada como um elemento técnico e não criativo nem preparatório

no trabalho do ator/dançarino, me fez pensar onde poderei chegar com essa pesquisa.

Foi ouvindo os comentários posteriores e mesmo durante a realização do laboratório

que anotei momentos e curiosidades de situações que me chamaram a atenção e me

motivam a continuar a pesquisa. Entre esses momentos, como os integrantes do

grupo que vivenciou a luz de olhos vendados deixaram-se influenciar pelo calor

produzido pelas ferramentas, ficando boa parte do tempo no caminho entre sentir e

deixar de sentir na pele essa sensação.

Já para os grupos que estavam sobre os ambientes com cores, trouxeram e

beberam de outras referências. Dependendo de cada individuo e de seu inconsciente

atuando, a luz vermelha trazia uma sensação, a luz azul outra, uma mobilizava, a outra

estabilizava e/ou mesmo paralisava. A teoria das cores poderia embasar melhor essas

reações. Entretanto, neste momento o mais interessante para mim como

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pesquisadora é saber e entender que a luz pode modificar um estado corporal, que

pode provocar e acionar a prontidão dos corpos no espaço.

“A cor azul batendo em mim, me vinha mais coisas no meu corpo. Às vezes boa às vezes ruim. [...] Eu não via batendo no meu corpo, e eu via as pessoas em vermelho, e isso me deu uma agonia muito grande porque eu estava naquele azul muito bonito e as pessoas estavam no vermelho. E quando eu vejo as pessoas no vermelho não me traz uma coisa muito boa. Não sei... Fiquei meio agoniada.” (Camila Raquel).

“Eu senti no azul que os meus movimentos foram bem limitados, mas mais intensos do que no vermelho. No vermelho eu estava mais agitada, não conseguia me concentrar”. (Mônica Costa).

Terminei o laboratório cheia de expectativas e com o anseio de continuar e

compartilhar essa experiência “iluminada”. Motivada pelo meu objeto de pesquisa,

penso que o trabalho da preparação do ator/dançarino tem muito a ganhar se

voltarmos o olhar para a iluminação como um elemento para além de um aspecto

técnico (em que existe uma pessoa que irá ligar e pendurar projetores, calcular a carga

elétrica do espaço e não ter medo de subir em escadas). O corpo que vivenciar a luz

conscientemente terá mais uma ferramenta para seu trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir este trabalho defino-o carinhosamente como uma carta de

intenções. Tentei expor questões referentes à iluminação cênica e à preparação do

ator/dançarino (corpo atuante) e suas percepções por intermédio da cooperação dos

órgãos receptivos e captadores sensoriais, a parti de Alain Berthoz (1997) em Le Sens

Du Mouviment. Para exemplificar minhas observações dentro dessas duas vertentes

– iluminação e sentido do movimento – utilizei duas experiências que me

atravessaram como acadêmica/artista: uma, a prática de Montagem Teatral, que se

transformou na configuração em dança nomeada Desapropriar de Mim; e a outra

experiência, a do laboratório de composição que organizei, propus e realizei com a

colaboração de meus colegas de turma.

Sem pensar em verdade absoluta e longe de ser prepotente, não posso afirmar

que não existam livros, pesquisas e relatos sobre a luminosidade cênica no Brasil. No

entanto, em consideração ao que ainda se pode construir, defendo que levar este

tema para discussões que interessem não somente a iluminadores (mas também a

diretores, encenadores, professores, dançarinos e atores) promoverá recursos

interessantíssimos às pessoas de teatro, e das artes cênicas em geral.

É importante para o universo acadêmico aliar cada vez mais teoria e prática,

além de se conscientizar de que a linguagem da cena é tão rica e complexa, que

compreende também ciência, biologia e técnica. É preciso que mulheres e homens

deixem registradas suas produções, seus apontamentos e suas descobertas. Assim,

singelamente desejei com este TCC apontar brevemente questões que considerei

relevantes sobre luz e a sua relação com a preparação do ator/dançarino, para que

os leitores deste trabalho acompanhassem minhas observações e reflexões no

universo cênico, teatral e, principalmente, sobre o modo operacional com que vivencio

e trabalho a iluminação cênica.

Bem como as questões da vida, os elementos que estruturam esse trabalho

são mutáveis, inconstantes e abertos para novas possibilidades. Em uma busca

contínua sobre este campo de intenções - luzes e percepções.

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REFERÊNCIAS

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ZANADRÉIA, Ana Paula. O Sexto Sentido do Ator: A importância da percepção

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