tiragem: 23 000 exemplares c da globalizaÇÃo...

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B ANO 17 Nº 3 MAIO/2009 TIRAGEM: 23 000 EXEMPLARES E mais... Dois belos filmes abordam o drama da Primeira Guerra Mundial em terras muçulmanas do antigo Império Otomano. Pág. 2 Editorial – A corrupção e o abuso da coisa pública torna- ram-se marcas registradas do Congresso. As práticas são um reflexo de nossa história. Pág. 3 Os ex-guerrilheiros da FMLN chegaram ao poder em El Sal- vador, mas ao lado da direita conservadora e de ex-líderes de grupos para-militares. Pág. 3 Há 90 anos, o Tratado de Versalhes redesenhou o mapa político da Europa e criou o conceito de segurança coleti- va (a Liga das Nações). O fra- casso do arranjo de 1919 de- saguou na 2a. Guerra. Págs. 4 e 5 Diário de Viagem – Na Cida- de do Cabo, começou a colo- nização bôer da África austral e, mais tarde, o domínio bri- tânico sobre a África do Sul. A cidade reflete a diversidade sul-africana. Pág. 10 O Meio e o Homem – No Subcontinente Indiano, Índia, Paquistão e Bangladesh convi- vem em meio a tensões geo- políticas. Mas os turbulentos vizinhos acharam caminhos de concórdia no uso das águas de três grandes rios. Pág. 11 CRISE DA GLOBALIZAÇÃO IMPLODIRÁ EIXO CHINA-EUA? A nova guerra civil americana arack Obama prometeu mais concórdia e consenso, menos guerrilha parti- dária, na política interna americana. Mas intenções, apenas, não mudam o mun- do. Nos Estados Unidos, as “guerras culturais” inauguradas há um quarto de século, na “era Reagan”, prolongam-se na “era Obama”. Qual é o lugar de Deus e da religião na ordem política americana? É o aborto uma questão de opção pessoal? Pesquisa com células-tronco é assassinato? O direito de ter e portar armas pode ser limitado pelo Estado? Os imigrantes his- pânicos representam uma ameaça à identidade nacional americana? Uniões gays devem ser admitidas como casamentos e protegidas pela lei? A pena de morte é a justa aplicação do preceito bíblico do “olho por olho, dente por dente”? São esses os temas das amargas “guerras culturais” que opõem conservadores a libe- rais nos Estados Unidos. Pág. 12 O colapso financeiro que deflagrou a crise econômi- ca mundial tem como foco os Estados Unidos, mas atinge brutalmente a China. Há três décadas, desde o encerramento do maoísmo, Pequim definiu sua es- tratégia geopolítica pela decisão de incorporar-se à glo- balização. As suas taxas extraordinárias de crescimen- to evidenciam o sucesso da estratégia, ao menos sob o ponto de vista da elite dirigente chinesa. Agora, tudo que parecia sólido desmancha-se no ar. O modelo do “socialismo de mercado” chinês pre- cisa de mercados – especialmente do mercado ameri- cano. O protecionismo ameaça as bases do modelo, bem como a provável redução estrutural das importações americanas. Os chineses, ironicamente, convertem-se em arautos do liberalismo econômico. A China investe seus superávits enormes nos mercados financeiros do Ocidente, denominando sua riqueza em dólares. O espectro de uma desvalorização acentuada da moeda americana, que é o “dinheiro do mundo”, assusta os chineses. Pequim explicitou, oficialmente, uma proposta de substituir o dólar por uma nova moeda mundial, emitida e controlada pelo FMI. É só chantagem ou é a expressão genuína da política chinesa? Na China, duas correntes de análise oferecem respostas diferentes para os dilemas da crise global. De um lado, há os que pregam uma estreita cooperação com Washington, para restaurar o sistema de expansão especulativa anterior ao colapso. De outro, há os que cerram os dentes e pregam a ruptura das pontes. Eles sabem que a China sofreria muito com uma reforma profunda das finanças globais. Mas acham que não existe outro caminho rumo à almejada posição de número um. Vejas as matérias às págs. 6 a 9 EUROCETICISMO © AFP © Stephane de Sakutin/AFP

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Page 1: TIRAGEM: 23 000 EXEMPLARES C DA GLOBALIZAÇÃO …pessoal.educacional.com.br/up/4660001/2827747/Boletimmundo.pdfO modelo do “socialismo de mercado” chinês pre-cisa de mercados

B

■ ANO 17 ■ Nº 3 ■ MAIO/2009 ■

TIRAGEM: 23 000 EXEMPLARES

E mais...

● Dois belos filmes abordam odrama da Primeira GuerraMundial em terras muçulmanasdo antigo Império Otomano.

Pág. 2

● Editorial – A corrupção e oabuso da coisa pública torna-ram-se marcas registradas doCongresso. As práticas são umreflexo de nossa história.

Pág. 3

● Os ex-guerrilheiros da FMLNchegaram ao poder em El Sal-vador, mas ao lado da direitaconservadora e de ex-líderes degrupos para-militares.

Pág. 3

● Há 90 anos, o Tratado deVersalhes redesenhou o mapapolítico da Europa e criou oconceito de segurança coleti-va (a Liga das Nações). O fra-casso do arranjo de 1919 de-saguou na 2a. Guerra.

Págs. 4 e 5

● Diário de Viagem – Na Cida-de do Cabo, começou a colo-nização bôer da África australe, mais tarde, o domínio bri-tânico sobre a África do Sul.A cidade reflete a diversidadesul-africana.

Pág. 10

● O Meio e o Homem – NoSubcontinente Indiano, Índia,Paquistão e Bangladesh convi-vem em meio a tensões geo-políticas. Mas os turbulentosvizinhos acharam caminhos deconcórdia no uso das águas detrês grandes rios.

Pág. 11

CRISE DA GLOBALIZAÇÃO

IMPLODIRÁ EIXO CHINA-EUA?

A nova guerra civil americana

arack Obama prometeu mais concórdia e consenso, menos guerrilha parti-dária, na política interna americana. Mas intenções, apenas, não mudam o mun-do. Nos Estados Unidos, as “guerras culturais” inauguradas há um quarto deséculo, na “era Reagan”, prolongam-se na “era Obama”.

Qual é o lugar de Deus e da religião na ordem política americana? É o abortouma questão de opção pessoal? Pesquisa com células-tronco é assassinato? Odireito de ter e portar armas pode ser limitado pelo Estado? Os imigrantes his-pânicos representam uma ameaça à identidade nacional americana? Uniões gaysdevem ser admitidas como casamentos e protegidas pela lei? A pena de morte éa justa aplicação do preceito bíblico do “olho por olho, dente por dente”? Sãoesses os temas das amargas “guerras culturais” que opõem conservadores a libe-rais nos Estados Unidos.

Pág. 12

O colapso financeiro que deflagrou a crise econômi-ca mundial tem como foco os Estados Unidos, masatinge brutalmente a China. Há três décadas, desde oencerramento do maoísmo, Pequim definiu sua es-tratégia geopolítica pela decisão de incorporar-se à glo-balização. As suas taxas extraordinárias de crescimen-to evidenciam o sucesso da estratégia, ao menos sob oponto de vista da elite dirigente chinesa. Agora, tudoque parecia sólido desmancha-se no ar.

O modelo do “socialismo de mercado” chinês pre-cisa de mercados – especialmente do mercado ameri-cano. O protecionismo ameaça as bases do modelo,bem como a provável redução estrutural das importações americanas. Os chineses, ironicamente, convertem-se emarautos do liberalismo econômico.

A China investe seus superávits enormes nos mercados financeiros do Ocidente, denominando sua riqueza emdólares. O espectro de uma desvalorização acentuada da moeda americana, que é o “dinheiro do mundo”, assusta oschineses. Pequim explicitou, oficialmente, uma proposta de substituir o dólar por uma nova moeda mundial, emitidae controlada pelo FMI. É só chantagem ou é a expressão genuína da política chinesa?

Na China, duas correntes de análise oferecem respostas diferentes para os dilemas da crise global. De um lado, há os quepregam uma estreita cooperação com Washington, para restaurar o sistema de expansão especulativa anterior ao colapso. Deoutro, há os que cerram os dentes e pregam a ruptura das pontes. Eles sabem que a China sofreria muito com uma reformaprofunda das finanças globais. Mas acham que não existe outro caminho rumo à almejada posição de número um.

Vejas as matérias às págs. 6 a 9

EUROCETICISMO

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 22009 MAIO

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PANGEA - Edição e Comercialização deMaterial Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,Nelson Bacic Olic (Cartografia).

Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Maria Eugênia LemosPesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile ShawProjeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise

Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP.CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected]

Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemosassinaturas individuais. Exemplares avulsos podem serobtidos no seguinte endereço, em São Paulo:• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900

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www.clubemundo.com.br

E X P E D I E N T E

A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, NA VISÃO DOS CINEASTAS

Dez vencedores serão premiadosEm todo o Brasil, escolas assinantes de Mundo já estão realizando seleções internas para escolher as cinco melho-

res redações a serem enviadas para o nosso 14º Concurso Nacional de Redação. Para sua escola participar, basta serassinante de Mundo e consultar o tema proposto, à página 2 da edição de março, e o regulamento, que se encontra àpágina 2 da edição de abril.

A redação vencedora será publicada e comentada na última edição deste ano, em outubro. Os autores dos dezmelhores trabalhos serão premiados. O 1º colocado receberá um aparelho de som no valor de R$ 800,00. Do 2º ao5º, todos receberão CD-players no valor de R$ 200,00. Do 6º ao 10º colocado, serão ofertados prêmios em livros.

As redações escolares são, sempre, obras coletivas. Os “co-autores” são os professores do presente e do passado,que contribuíram para desenvolver em seus alunos a capacidade de interpretar e escrever. O “co-autor” oculto maispróximo é o atual professor de Comunicação e Expres-são. Por isso, o concurso também o premia. Os professo-res de Comunicação e Expressão dos dez alunos que tive-rem seus trabalhos premiados receberão livros.

Informamos que, em meados de maio, enviaremos ascinco folhas pautadas e numeradas para as quais deverãoser transcritas as redações selecionadas na sua escola. Sali-entamos também que o prazo para o envio das redaçõesencerra-se, impreterivelmente, no dia 10 de julho de 2009.

140 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO

MUNDO E H&C - 2009Consulte o tema, o regulamento e participe !!!

m novembro de 2008 completaram-se os 90 anos dofim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um conflitoque, para os europeus, é conhecido como a “Grande Guer-ra”. Do ponto de vista cinematográfico, a Grande Guerraacabou sendo ofuscada pela atenção que se deu à SegundaGuerra Mundial. Assim, enquanto há um incontável nú-mero de filmes e documentários sobre a tragédia inigualáveldeflagrada em 1939, o primeiro grande conflito do séculoXX ficou relegado a um plano secundário.

As batalhas mais importantes daquele conflito aconte-ceram em território europeu, mas também ocorreram im-portantes confrontos bélicos em outras partes do mundo,como no Oriente Médio. Há dois interessantes filmes queretratam os eventos do teatro militar do Oriente Médio.

O primeiro é o célebre Lawrence da Arábia (David Lean,Grã-Bretanha, 1962). Neste filme, o personagem central éo polêmico oficial do exército britânico, T. E. Lawrence,um agente incumbido de tentar unir várias tribos árabesrivais com o intuito de combater as forças do Império Oto-mano, que tinham o domínio sobre amplas áreas do Orien-te Médio. Britânicos e otomanos estavam em lados opostosna Grande Guerra e o controle das fontes do petróleo noque seria o Iraque era um objetivo estratégico de Londres.

O filme foi parcialmente inspirado na obra Os sete pilaresda sabedoria, de autoria do próprio Lawrence. As cenas tendoa imensidão dos desertos do Oriente Médio como pano defundo, junto com aquelas da conquista da atual cidadejordaniana de Aqaba pelos árabes comandados por Lawrence,estão entre as mais belas, numa obra que abocanhou seteOscars, incluindo os de melhor filme e diretor.

Um filme muito menos conhecido é Galipoli (PeterWeir, Austrália, 1981), que teve Mel Gibson como atorprincipal, numa de suas primeiras aparições no cinema,bem antes de se tornar um fundamentalista cristão. Oenredo articula-se ao redor de um grupo de jovens aus-tralianos que, em 1915, embalados pelo sonho de se con-

verterem em heróis de guerra, se alistam no Corpo deExército da Austrália e Nova Zelândia para, ao lado desoldados britânicos, lutar contra os otomanos na estraté-gica península de Galipoli.

Situada nas proximidades do Estreito de Dardanelos,a península de Galipoli domina, juntamente com o Es-treito de Bósforo, a ligação entre os mares Egeu e Negro,permitindo o acesso à cidade de Istambul, à época capi-tal do Império Otomano. Dezenas de milhares de jovensaustralianos morreram na batalha, vencida pelas forçasotomanas sob a liderança de Mustafá Kemal Ataturk. Foia primeira vitória militar otomana contra um exércitoeuropeu, em mais de três séculos.

Logo após o final da Primeira Guerra Mundial, com aderrota otomana, Ataturk foi o responsável por uma ver-dadeira revolução que pôs fim ao Império Otomano e le-vou à criação da República da Turquia, tal como conhece-mos atualmente. Mesmo tendo morrido em 1938, Ataturké objeto de veneração até hoje. Como prova, todas as cé-dulas e moedas da libra turca têm a efígie do líder históri-co, que ganhou a alcunha de “Pai dos Turcos”.

Os principais combates em Galipoli ocorreram emabril de 1915. Em abril, todos os anos, australianos eneozelandeses visitam a península, na qual se encontrammemoriais e cemitérios dedicados aos combatentes daterrível batalha. Galipoli assemelhou-se bastante às gran-des batalhas de trincheiras que se verificaram em territó-rio europeu, como as do Somme e de Verdun (França),marcas registradas da Primeira Guerra Mundial.

"Infelizmente não foi possível localizar os autoresde todas as imagens utilizadas nesta edição.

Teremos prazer em creditar os fotógrafos,caso se manifestem"

Galipoli,Peter Weir,

1981

Lawrence daArábia,

David Lean,1962

E R R A T APor uma falha de revisão o regulamento do XIV ConcursoNacional de Redação Mundo – H&C 2009 que está pre-sente na página 2 de Mundo da edição de abril está comindicações de 2008 ao invés de 2009.O dia e o mês da data final da entrega das redações estãocorretos, isto é 10 de julho, obviamente, de 2009.

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

MAIO 2009

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TORNOU-SE RECORRENTE, NO BRASIL, A ASSOCIA-ÇÃO ENTRE O MUNDO DA POLÍTICA INSTITUCIONAL (QUE

AGREGA OS TRÊS PODERES DA REPÚBLICA) E A PRÁTICA DA

CORRUPÇÃO. NINGUÉM MAIS SE ESPANTA COM AS REVELA-ÇÕES SOBRE AS “TROCA DE FAVORES” ENTRE POLÍTICOS EDE VOTOS ENTRE BANCADAS, NÃO RARO TRAINDO COM-PROMISSOS PROGRAMÁTICOS, EM NOME DE INTERESSES

PRIVADOS; OU SOBRE A PRÁTICA DO NEPOTISMO (O EM-PREGO DE PARENTES SEM QUALIFICAÇÃO EM CARGOS PÚ-BLICOS); OU, AINDA, SOBRE “ESQUEMAS” ENVOLVENDO

EMPRESAS E AQUELES QUE DEVERIAM REPRESENTAR OS IN-TERESSES DA SOCIEDADE. O MAIS RECENTE ESCÂNDALO

DO SENADO, INCLUINDO O USO PRIVADO DE TELEFONES

CELULARES E DE PASSAGENS AÉREAS PAGOS PELO ERÁRIO, ÉAPENAS MAIS UM ELO DESSA LONGA CADEIA.

CLARO QUE A CORRUPÇÃO, TANTO NA ESFERA

PÚBLICA QUANTO NA PRIVADA, NÃO É PRIVILÉGIO DO

BRASIL. BASTA LEMBRAR OS GRANDES ESCÂNDALOS DA

RECÉM-FINADA “ERA BUSH”, NOS ESTADOS UNIDOS. MAS,EM NOSSO PAÍS, ELA ADQUIRE PROPORÇÕES ALARMANTES,ATÉ O PERIGOSO PONTO DE CAUSAR A DESMORALIZAÇÃO

DAS PRÓPRIAS INSTITUIÇÕES, E, POR EXTENSÃO, DO REGI-ME REPUBLICANO. NÃO É DIFÍCIL ENCONTRAR AQUELES QUE,POR MEIO DE UM RACIOCÍNIO TORTUOSO, CULPAM A PRÓ-PRIA DEMOCRACIA PELO DESCALABRO E SUGEREM UM “GO-VERNO FORTE” COMO SUPOSTA SOLUÇÃO. O SENADOR

CRISTÓVÃO BUARQUE, NUM GESTO PELO QUAL DEPOIS SE

PENITENCIOU, CHEGOU A FLERTAR COM A IDÉIA DE UM PLE-BISCITO SOBRE O FECHAMENTO DO CONGRESSO.

IRONICAMENTE, A RAIZ DA CORRUPÇÃO RESIDE, PRE-CISAMENTE NA TRADIÇÃO AUTORITÁRIA. AO LONGO DOS PRI-MEIROS QUATRO SÉCULOS DE NOSSA HISTÓRIA, PRIMEIRO COMO

COLÔNIA E DEPOIS COMO IMPÉRIO, A ESCRAVIDÃO MOLDOU AFORMA DE FAZER POLÍTICA: AS ELITES VIAM O ESTADO COMO

MERA EXTENSÃO DE SUAS PROPRIEDADES. A GRANDE MAIORIA

DOS BRASILEIROS NUNCA FOI CONSULTADA SOBRE AS DECISÕES

ASSUMIDAS NA ESFERA PÚBLICA. O ALHEAMENTO DA MAI-ORIA PROLONGOU-SE NA REPÚBLICA VELHA, QUANDO OVOTO ERA CENSITÁRIO E EXERCIDO APENAS PELOS GRAN-DES PROPRIETÁRIOS. E AS PROMESSAS MODERNISTAS DA

REVOLUÇÃO DE 1930, LIDERADA POR GETÚLIO VARGAS,DISSIPARAM-SE, AO MENOS NO PLANO INSTITUCIONAL, COM

O ESTADO NOVO (1937-1945).COM ALGUMA BOA VONTADE, PODEMOS FALAR

NA ESTABILIZAÇÃO DE UMA VIDA RELATIVAMENTE DEMO-CRÁTICA ENTRE 1956 E 1964, INTERROMPIDA PELO

GOLPE MILITAR. E VIVEMOS, AGORA, UMA FASE FORMAL-MENTE DEMOCRÁTICA, INICIADA COM A CAMPANHA DAS

“DIRETAS JÁ!”, EM 1984. EM 500 ANOS DE HISTÓRIA,TIVEMOS, NO MÁXIMO, QUATRO DÉCADAS DE VIDA DE-MOCRÁTICA, MAS AINDA ASSIM MARCADA POR UMA PRO-FUNDA E ABSURDA DESIGUALDADE SOCIAL. A CORRUPÇÃO

NA ESFERA PÚBLICA É RESULTADO DESSA HISTÓRIA. É, EM

ÚLTIMA INSTÂNCIA, UM LEGADO DA ESCRAVIDÃO.

E D I T O R I A L

CORRUPÇÃO É O PREÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL

serva do Exército, ex-comandante de ope-rações de contra-insurgência e hoje espé-cie de assessor militar da FMLN.

Também figura no grupo Luis AngelLagos, criador em tempos passados do“Ordem”, um esquadrão da morte de para-militares. O mais influente dos “Amigosde Mauricío Funes” junto ao presidenteeleito seria Alex Segóvia. Trata de ques-tões econômicas e insiste em que qualquerplano deve deve ter como meta a aboliçãodas causas da guerra civil: exclusão, po-breza e desigualdades. A empresa privadanão teria o que temer e tampouco estari-am sendo arquitetados antagonismos aosEstados Unidos. Mesmo assim, é uma rup-tura com o conservadorismo, sustentadodurante vinte anos de governo da AliançaNacional Republicana (ARENA).

O reinado do partido criado pelo ma-jor Roberto D’Aubuisson, íntimo da CIA,ex-aluno da Escola das Américas, do Co-mando Sul dos Estados Unidos, e coman-dante de esquadrões da morte, começoudepois de uma guerra civil que matou maisde 70 mil, entre 1980 e 1997. Ainda re-centemente foram encontrados restosmortais de pessoas enterradas clandestina-mente em valas comuns. Dom OscarRomero foi a vítima de maior projeção:

EL SALVADOR ENCERRA O CICLO DA

POLARIZAÇÃO POLÍTICAO

perfil e as atividades dos chamados“Amigos de Maurício Funes” talvez sejamo melhor retrato do que se passa em El Sal-vador. Funes fez seu discurso de vencedordas eleições presidenciais cercado de co-mandantes dos ex-guerrilheiros da FrenteFarabundo Marti de Libertação Nacional(FMLN), sob cuja legenda foi às urnas, ereiterou a promessa de dar prioridade aocombate à pobreza inclusive como um meiode ”despolarizar” a política. Dedicou suavitória ao bispo Oscar Romero, assassina-do em 1980 por considerar justas as insur-reições, desde que os meios pacíficos nãoconsigam acabar com injustiças.

Mas Funes vestia a tradicional guaiabe-ra, não as camisas vermelhas de seus com-panheiros de palanque. Embora pouco des-tacado, esse detalhe se entrosaria com ou-tros numa definição antecipada do quepossivelmente acontecerá em El Salvador.Foram os “amigos”, segundo a agência LatinNews, que “venderam” a mensagem vitori-osa de que Funes, com seus carisma, con-seguiria mudar a maneira de fazer política“num pais onde as divergências ideológi-cas significam de fato alguma coisa”. Ossalvadorenhos estariam cansados de tantaviolência e vêem Funes como alguém ca-paz de mudar as coisas pacificamente.

Os “amigos” se dizem “independentes,pluralistas e não partidários”, nem sem-pre se entendem bem com a FMLN, for-mam um arco político que vai da esquer-da à direita, foram decisivos na arrecada-ção de recursos de campanha e são ummanancial de assessores próximos deFunes. O braço direito do presidente-elei-to por exemplo, Hato Hasbún, foi mem-bro das Forças Populares de Libertação,primeira guerrilha de El Salvador. Hasbúné frequentemente citado como elo de li-gação entre Funes e a “ortodoxia” daFMLN. Junto com ele, nos “amigos”, háfiguras com atividades bancárias cobrin-do a América Central e um coronel da re-

sua morte a tiros comoveu a América La-tina e chamou mais atenção para o que sepassava em El Salvador. Ficou claro que apolítica do então presidente americanoRonald Reagan, de “contenção do comu-nismo” no continente, somou forças cominteresses oligárquicos em EL Salvador.

Uma exaustão sangrenta ajudou o tra-balho da ONU na intermediação de umacordo de paz. A FMLN, que carrega o nomede Farabundo Marti, biografado como um“centro-americanista revolucionário”, funda-dor de um fantasmagórico partido comu-nista da América Central, enfrenta agora,afinal, os desafios do poder político. Funes,um jornalista popular sem vinculações coma guerra civil, filiou-se ao FMLN com oúnico propósito de ser candidato. A FMLN,num gesto de pragmatismo, aceitou-o de-pois de uma sucessão de derrotas com can-didatos ex-guerrilheiros. Mas não se fala emsocialismo e muito menos no “socialismo doséculo XXI” de Hugo Chávez. Há quemaposte que Funes terá maior dificuldade deconvivência com seu próprio partido. AFMLN “ortodoxa” é majoritária no parla-mento. Quanto à ARENA, ainda tem o re-curso de juntar-se a partidos menores e ficarcom maioria legislativa.

Newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

Funes: com apoio da guerrilhachega à presidência

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 42009 MAIO

N

HÁ 90 ANOS, EM PARIS, NASCIA AEUROPA DAS NAÇÕES

o grande objetivo de impor à Alemanha castigo tão forteque ela nunca mais pudesse ameaçar a segurança da Fran-ça. O primeiro-ministro Lloyd George, um simpáticoinglês de olhos azuis, combinava habilidade de políticocom o gosto pelas boas coisas da vida, a começar pormulheres. Ele teve sempre em vista o estabelecimento deum novo equilíbrio do poder na Europa, condição ne-cessária para a segurança britânica. Peça essencial do equi-líbrio seria uma Alemanha não tão forte que voltasse adesafiar o poderio naval britânico e nem tão fraca quenão se pudesse opor a pretensões de hegemonia da Fran-ça e à ameaça do bolchevismo russo. O primeiro-minis-tro Vittorio Emanuele Orlando, um sicilianotemperamental de bela cabeleira branca, pretendeu fazercumprir a promessa da França e da Grã-Bretanha de res-tituir à Itália as chamadas “terras irridentas” territórioshistórica e etnicamente italianos, mas sob a soberania deoutros Estados (Trentino, Trieste, Istria, Dalmácia).

Mundo – E o americano Woodrow Wilson?LAA – Ele foi à grande estrela da Conferência, e não

somente por ser o presidente dos Estados Unidos. Che-gou a Paris precedido por revolucionárias idéias sobre apaz e as relações entre Estados. Um ano antes, falandono Senado, havia apresentado seus famosos e controver-sos Catorze Pontos. O presidente pretendia que esses pon-tos constituíssem o paradigma para uma “paz justa e du-radoura”. Wilson aceitou que seus Catorze Pontos fos-sem repetidamente desconsiderados nas negociações deParis, na crença de que a Liga das Nações corrigiria o que

o dia 28 de junho de 1919, cinco anosexatos após o atentado que matou oarquiduque Francisco Ferdinando, atoinaugural da Primeira Guerra Mundial, eraassinado o Tratado de Versalhes. As nego-ciações do tratado prolongaram-se por seismeses, na Conferência de Paz de Paris, queenvolveu mais de 30 países. O Tratadoredesenhou o mapa político europeu, re-cortando impérios e desenhando as fron-teiras de novas nações.

Luiz de Alencar Araripe, coronel refor-mado de Artilharia e de Estado-Maior doExército, titular do Instituto de HistóriaMilitar e Geografia do Exército, é um es-pecialista no tema. Ele escreveu o capítulosobre o Tratado de Versalhes para a obraHistória da Paz (Contexto, 2008). Na en-trevista seguinte, Araripe aborda a certidãode nascimento da “Europa das nações”.

Mundo – Por que foi escolhido o Palácio de Versalhescomo local de assinatura do tratado de paz negociado na Con-ferência de Paris, que encerrou a Primeira Guerra Mundial?

Luiz de Alencar Araripe – A escolha foi do presiden-te da Conferência, primeiro-ministro da França GeorgesClemenceau – “o Tigre”, como era chamado. O apelidoexplica boa parte da decisão, tomada sob o impulso dedois sentimentos sempre agudos na alma de Clemenceau:amor à França e ódio à Alemanha. Os Aliados aprovaramfacilmente a opção pela amável capital francesa em detri-mento da então severa Genebra de Calvino. Tudo no Pa-lácio de Versalhes transmite ao visitante a imagem da gló-ria da França e do soberano que o mandou construir,Luis XIV, o “rei sol”. A Galeria dos Espelhos fora a esco-lha do chanceler Bismarck para proclamar a fundação doImpério Alemão, após a vitória na Guerra Franco-Prussiana de 1870. Escolha brutal, que Clemenceau, àépoca jovem e fogoso deputado socialista à AssembléiaNacional Francesa, guardaria na memória por quase meioséculo. O Palácio, evocador de glórias e de humilhaçõesda França, foi o cenário perfeito escolhido pelo “Tigre”para a celebração da vitória e a culminação da vingança.

Mundo – Quais foram os principais personagens daConferência? Qual era o interesse básico representado porcada um?

LAA – Reuniram-se na capital francesa mais de ummilhar de estadistas, diplomatas, juristas, economistas,jornalistas, parlamentares, homens de negócio, secretári-as, enfermeiras e muitos curiosos. Nesse universo varia-do e colorido avultavam os chefes das delegações dos cha-mados Quatro Grandes: França, Grã-Bretanha, Itália eEstados Unidos. Clemenceau, a cada momento, justifi-cava o apelido de Tigre, ganho pela ferocidade com quefez a guerra. Usou de ferocidade semelhante ao perseguir

considerava falhas do Tratado de Versalhes. Presidiu ocomitê elaborador do estatuto da Liga, e cuidou que seus30 artigos fossem os primeiros do Tratado. No fim, oSenado americano não aprovou o Tratado, mas Wilsondeixou na política internacional a forte marca de suasidéias, resumidas na palavra “wilsonismo”, termo não rarousado no sentido de utopismo.

Mundo – O Tratado de Versalhes e os outros tratadosque encerraram a Primeira Guerra Mundial redesenharamo mapa político europeu. Quais foram as principais mu-danças de fronteiras que eles provocaram?

LAA – O Tratado de Versalhes, acordo-quadro decinco outros tratados, eliminou do mapa-mundi trêsvastos impérios: o da Alemanha, o Austro-Húngaro, eo Turco-Otomano; extinguiu-os e retalhou-lhes o terri-tório, criando novos Estados, ampliando a superfíciede Estados aliados e fazendo encolher a dos que haviamse alinhado com os Impérios Centrais. Não signatáriode Versalhes, um quarto império, o Russo, desapareceuem consequência da grande guerra, surgindo em seulugar a União Soviética. O Império Alemão, amputadode 13% o território, forneceu territórios que, juntamentecom outros, russos, permitiram a reconstituição daPolônia. Do Império Austro-Húngaro foram extraídasa Tchecoslováquia e parte da Iugoslávia. A Turquia, compequena parte de seu território na Europa, incluindominorias curdas e armênias, foi o que restou do Impé-rio Turco-Otomano.

TRATADO DE VERSALHES

A histórica assinatura do Tratado de Versalhes. Para ocoronel Luiz de Alencar Araripe (foto ao lado), o

acordo refletia o apoio dos aliados vencedores ao amornutrido por Georges Clemenceau à França e o ódio

à Alemanha

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Nenhuma das principais potências triunfou de fato noTratado de Versalhes. A França humilhou a Alemanha,mas não obteve uma paz duradoura. A Grã-Bretanha nãoalcançou o equilíbrio de poder que almejava. Com o fra-casso da Liga das Nações, os Estados Unidos de Wilsonnão conseguiram mudar as regras da política internacio-nal, impondo o princípio da segurança coletiva. Uma novae mais devastadora guerra enterrou de vez a obra imper-feita da Conferência de Paris. A seguir, a segunda parteda entrevista de Luiz de Alencar Araripe.

Mundo – Os novos Estados Nacionais foram criados, apartir da Conferência de Paris com base no princípio dasnacionalidades, de Woodrow Wilson, pelo qual as nações sedefinem por critérios étnicos e linguísticos. Além de Estados,os tratados acabaram criando, involuntariamente, minori-as nacionais.

Luiz de Alencar Araripe – A Tchecoslováquia e a Iu-goslávia foram criadas para responder aos anseios de in-dependência de minorias étnicas; mas eles, por sua vez,incluíram minorias étnicas. Tais minorias, sob o impulsodo nacionalismo, levaram à crise da Sudetolândia e aofim do Estado tchecoslovaco, esmagado pelo nacionalis-mo hitlerista. O nacionalismo étnico também respon-deu pelo esfacelamento da Iugoslávia. A finada UniãoSoviética fez-se a paladina das minorias por todo o mun-do, obscurecendo o fato de ser chamada “a prisão dasnações”. Com o fim do Estado soviético, eclodiram mo-vimentos de libertação de minorias, ainda não encerra-dos. Na Turquia, as minorias curda e armênia continu-am a lutar pela liberdade.

Mundo – Alguns analistas enxergaram nas guerras quedesmantelaram a Iugoslávia, a partir de 1992, uma reto-mada dos nacionalismos e do princípio das nacionalidadesdo início do século XX. Seria isso mesmo?

LAA – O Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos,depois Iugoslávia, foi uma união instável desde o início,ameaçada pelas forças centrífugas dos nacionalismos. Em1980, o presidente Josip Broz Tito morreu e as frágeiscosturas da Iugoslávia começaram a estourar. Em 1989 oex-comunista e ultranacionalista Slobodan Milosevic seelege presidente da República da Sérvia. Pretendendoconsolidar a hegemonia sérvia, Milosevic desencadeou oprocesso de violência, pontilhado de tumultos e que cul-minaram com guerra e a “limpeza étnica”, erigida emdoutrina para resolver diferenças étnicas, religiosas oupolíticas. Em 1991, as proclamações de independênciadas repúblicas iugoslavas se sucedem. Em 1992, a Bósnia-Herzegóvina declara independência da República Fede-rativa da Iugoslávia, e é atacada pelo o Exército iugoslavo.

Mundo – O “utopismo americano” na Conferência deParis manifestou-se, principalmente, sob a forma do projetoda Liga das Nações. A que se deve o posterior fracasso daLiga das Nações?

LAA – A simples enunciação de princípios nos Ca-torze Pontos mostra seu forte traço de utopia e explica oceticismo com que os líderes europeus os receberam: éti-ca na política exterior e, em particular, no futuro tratadode paz, fim da diplomacia secreta, liberdade dos mares,desarmamento geral, abolição de restrições ao comérciointernacional. Finalmente, o projeto do coração de Wil-son: a Liga das Nações, capaz de fazer com que a negoci-ação substituísse a guerra na solução das controvérsiasinternacionais. Era o conceito de segurança coletiva,diametralmente oposto ao de alianças, base do equilíbriodo poder, caro aos europeus e abominado por Wilson. ALiga foi a mais forte razão para que o Senado rejeitassetodo o Tratado. É difícil pensar que os senadores apro-vassem um instrumento legal que opunha limitações àsoberania dos Estados Unidos no cenário internacional.E Wilson quase conseguiu isso. Quase. Sem a participa-ção americana, e com o apoio morno das grandes potên-cias, a Liga foi perdendo substância.

Mundo – O Tratado de Versalhes é geralmente interpre-tado como fonte da crise econômica alemã e do revanchismopolítico que conduziu Hitler ao poder. É correto fazer uma

associação direta entre Versalhes, o nazismo e a SegundaGuerra Mundial?

LAA – A associação direta entre Versalhes, o nazismoe a Segunda Guerra Mundial tem sido objeto de muitasdiscussões entre historiadores. Certamente que existe umarelação de causa e efeito entre esses eventos, mas não háunanimidade sobre o grau da influência direta da crise edo revanchismo no desencadeamento da Segunda Guer-ra Mundial. A guerra de 1939 tem muitas e variadas cau-sas. Versalhes é uma delas. O Tratado indignou toda aAlemanha, antes mesmo de ser assinado. Indignou e for-neceu a políticos e militares material fértil que, compe-tentemente processado por Hitler, facilitou a ascensãodo nazismo e, consequentemente, levou à guerra. A Se-gunda Guerra Mundial é, acima de tudo, obra de AdolfHitler, não se deve esquecer. Obra facilitada pela omis-são de franceses e ingleses em aproveitar as janelas deoportunidade abertas pelo próprio ditador para detê-lo.

Mundo – Pouco se fala disso, mas o Brasil participou daConferência de Paz de Paris com uma delegação que acom-panhou a delegação dos EUA.

LAA – O Brasil postulou ter um lugar na conferênciade paz com a credencial de úni-co país latino-americano a par-ticipar efetivamente da guerra.Navios mercantes torpedeados,oficiais brasileiros combatendoem terra e pilotos lutando no ar;a Divisão Naval enviada para oteatro de operações; a missãomédica trabalhando em hospi-tal franco-brasileiro, mantidopor brasileiros residentes em Pa-ris. Nada disso valeu para asse-gurar participação nas negocia-ções de paz. Tivemos que recor-rer ao apoio de Wilson para quea França e a Grã-Bretanha acei-tassem a presença de três repre-sentantes do Brasil na Conferên-cia de Paris. Rui Barbosa seria ochefe natural da delegação bra-sileira, com seus antecedentes naConferência de Haia, mas recu-sou chefiar a delegação, a fim depreparar-se para disputar as elei-ções para presidente da Repúbli-ca. Epitácio Pessoa assumiu achefia da missão, foi para a Eu-ropa, e derrotou facilmente Rui.Voltou num navio de guerraamericano, tornando-se o 12ºpresidente da República. Assimera o Brasil.

“WILSON QUASE APROVOU A LIGA

NO SENADO. QUASE”

TRATADO DE VERSALHES

Clemenceau escolheu a Sala dos Espelhos (noPalácio de Versalhes) para impor simbolicamentea superioridade francesa à derrotada Alemanha

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NINHO DA IMPLOSÃO CAMBI

sistema financeiro internacional (institui-ções como FMI, Banco Mundial e OMC,que se tornaram inúteis seja para prever,seja para remediar a crise).

Uma voz dissonante, no entanto, veiodo verdadeiro irmão siamês dos EstadosUnidos na promoção da globalização dasúltimas duas décadas. A era do dólar esta-ria chegando ao fim, na opinião do presi-dente do banco central chinês, ZhouXiaochuan. Para a China, é urgente ado-tar uma nova moeda internacional emsubstituição ao dólar.

A interdependência entre China e Es-tados Unidos é uma das características maisimportantes do ciclo mais recente de glo-balização. O consumidor americano trans-feriu dólares para as reservas do banco cen-tral chinês e boa parte desse dinheiro foiinvestido pela China em Wall Street e emtítulos de dívida pública do Tesouro ame-ricano. Assim, quando a cúpula chinesa

A ECLOSÃO DA ATUAL CRISE E A SUA DIFUSÃO PELO MUNDO CONFRONTARAM-NOS COM UMA ANTIGA MAS AINDA NÃO RESPONDIDA

QUESTÃO, ISTO É, QUE TIPO DE MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA NECESSITAMOS PARA ASSEGURAR A ESTABILIDADE FINANCEIRA

GLOBAL E FACILITAR O CRESCIMENTO ECONÔMICO MUNDIAL (...)? EXISTIRAM VÁRIOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS COM A FINALIDADE

DE ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO, INCLUINDO O PADRÃO PRATA, O PADRÃO OURO, O PADRÃO DE CÂMBIO OURO E O SISTEMA DE

BRETTON WOODS. (...) A CRISE, NOVAMENTE, SOLICITA A REFORMA CRIATIVA DO SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL EXISTENTE,NA DIREÇÃO DE UMA MOEDA INTERNACIONAL DE RESERVA COM VALOR ESTÁVEL, COM EMISSÃO AMPARADA EM REGRAS E OFERTA

ADMINISTRÁVEL, A FIM DE (...) RESGUARDAR A ESTABILIDADE ECONÔMICA E FINANCEIRA GLOBAL.

(“REFORMAR O SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL”, ZHOU XIAOCHUAN, PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DA CHINA, 23 DE MARÇO DE 2009)

uanto mais profunda a crise global,mais os governos tentam salvar bancos,empresas e empregos nacionais. Esse re-fúgio dos Estados nos seus territóriosdesconsidera que o principal problema daeconomia internacional é de natureza sim-bólica e afeta uma “coisa” que há muitodeixou de ser nacional: a moeda. É comotratar uma infecção receitando doses ca-valares de vitaminas. Em tese, o reforçodá mais condições ao corpo de resistir àdoença. Na prática, o inimigo invisívelapenas se alimenta dos nutrientes despe-jados sobre o organismo desnorteado.

O erro é conveniente para o governoque orquestrou a globalização e, desde ofim da Segunda Guerra Mundial, define oritmo dessa dança: os Estados Unidos. Afi-nal, nada melhor para um governo nacio-nal que emite a moeda de curso internaci-onal: a injeção maciça de estímulos fiscaise financeiros em todos os mercados domundo, se não resolve o problema da re-cessão, prolonga essa anomalia. Uma moe-da nacional continua orientando as bússo-las usadas pelos principais atores do jogoeconômico internacional: instituições fi-nanceiras, empresas e investidores privados.

Ao focar as agendas no medo de umaGrande Depressão, os Estados Unidos dei-xam em segundo plano a questão da refor-ma monetária internacional, dosdesequilíbrios de poder entre países ricos edestes com o resto do mundo. Se o proble-ma é a recessão, tome estímulos fiscais (maisgastos públicos, menos impostos), finan-ceiros (taxas de juros próximas de zero oumesmo negativas, quando descontado oefeito da inflação) e protecionismo (barrarimportações, estimular exportações).

Em tese, mais cedo ou mais tarde oestímulos devem fazer efeito. É o chama-do “keynesianismo”, receita que se consa-grou depois da Crise de 29. Diante de umcolapso da demanda provocado por dese-quilíbrios financeiros, tudo soa como umagigantesca operação de socorro ao “ladoreal” da economia. Mas, se o “lado sim-bólico” continua sob a égide do Fed (obanco central americano), os desequilíbri-os continuam. Ou seja, mesmo que afinalaconteça uma recuperação do nível de ati-vidade, dos investimentos e do emprego,o ciclo recomeçaria sob a batuta do mes-mo maestro que, em última análise, jo-gou todo o sistema numa rota de acumu-lação de lucros especulativos, até o colap-so do castelo de cartas. E nenhuma pala-vra sobre políticas cambiais e reforma do

ameaça abandonar o dólar, o risco é o deuma tremenda crise de financiamento aogoverno e à economia americana. Uma fugade capitais chineses obrigaria o Fed a pro-mover uma brutal elevação de juros paracontinuar atraindo a poupança do resto domundo. Isso aprofundaria a recessão nosEstados Unidos, mas ao mesmo tempo pro-vocaria o colapso completo do modelo ex-portador chinês (veja a matéria à pág. 9).

Ora, se o sucesso chinês é indissociáveldo desempenho dos Estados Unidos, quala lógica do banco central chinês quandopropõe o fim do dólar como referênciapara o funcionamento dos mercados glo-bais? Há pelo menos três hipóteses para omovimento supreendente do governo chi-nês: catástrofe, chantagem e mutação.

Num cenário catastrófico, a liderançachinesa – habituada a longas marchasmovidas pelo sangue, suor e lágrimas deuma população gigantesca – pode estar

trabalhando com a hipótese de que o de-sarranjo social, político e econômico nosEstados Unidos seria maior que o chinês.Ou seja, valeria apostar na linha do quan-to pior, melhor. No final, a China assu-miria o papel dos Estados Unidos no co-mando de uma nova era de expansão glo-bal (veja a matéria à pág. 7).

Uma hipótese mais pragmática e viável éa da pura chantagem. Antes da posse, BarackObama e seu secretário do Tesouro, TimothyGeithner, fizeram duras acusações à “mani-pulação cambial” patrocinada pela China. Ouseja, apesar dos volumosos saldos no comér-cio exterior, o governo chinês sempre evitoua valorização de sua moeda (que tornaria suasexportações menos competitivas, evitando odesequilíbrio comercial global). Mas algomudou: em abril, o Tesouro americano ma-nifestou-se solidário com o governo chinês esimplesmente apagou da agenda as críticas àmanipulação cambial dos chineses.

Gilson SchwartzEspecial para Mundo

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amos todos aprender chinês, no lugar do inglês? No plano do senso comum, hádécadas, circula a idéia de uma substituição de hegemonia global. Nos anos 80, atémesmo alguns especialistas garantiam que os Estados Unidos estavam prestes a ce-der a posição de número um para o então ascendente Japão. Na última década, a

TRÊS PEDRAS NO MEIO DO CAMINHOV

BIAL MUNDIAL?

Entre os discursos de campanha e asmanifestações recentes, houve o discurso dopresidente do banco central chinês pedin-do um novo “Bretton Woods”. A chanta-gem, portanto, funcionou. As duas potên-cias estão abertamente unidas no combateà “depressão”, desde que nos bastidores sejapreservada a aliança informal entre estímuloao consumo nos Estados Unidos e recupe-ração das exportações na China.

O terceiro cenário é o de uma lideran-ça chinesa efetivamente empenhada numesforço internacional pela correção dosdesequilíbrios estruturais entre os países enão apenas comprometida com gastospúblicos contra a depressão (o pacote chi-nês de US$ 586 bilhões só perde para osgastos anunciados nos EUA, de US$ 787bilhões, fora os trilhões injetados em ban-cos e instituições financeiras).

O estímulo dos gastos públicos chine-ses (6% do PIB) equivale ao triplo da que-

China emergiu como candidato aparentemente óbvio a tomar o posto ocupadopelos Estados Unidos há um século. A crise econômica global, com epicentro nocolapso das altas finanças americanas, atiçou a chama das especulações geopolíticas.Começou, enfim, o declínio definitivo da hiperpotência e a paralela ascensão dapotência asiática rumo à condição de número um?

Nada é tão simples, se levamos em conta que a plataforma de ascensão chinesa éjustamente o poderio econômico americano, expresso na dimensão de seu mercadointerno e na dinâmica das suas finanças (veja a matéria à pág. 6). Mas, além disso,há obstáculos bem definidos na estrada triunfal que conduziria a China até o para-íso. Os nomes deles: demografia, economia, democracia.

A China, por paradoxal que pareça, enfrentará logo o desafio posto por umlento crescimento populacional. O país, hoje com 1,340 bilhão de habitantes, pra-tica há décadas uma rigorosa política anti-natalista. A ditadura de partido único,impondo penalidades tributárias brutais, assegurou um relativo sucesso dessa polí-tica. Estima-se que a taxa de natalidade gire em torno de 13,71 por mil e a demortalidade, em torno de 7,03 por mil. O crescimento vegetativo resultante, de0,67%, está entre os mais baixos fora do mundo desenvolvido. A idade média dapopulação já ultrapassou 34 anos. No Brasil, é de 28,6 anos. A tendência é de umacelerado envelhecimento da população, com repercussões sociais explosivas.

Nos países desenvolvidos, o envelhecimento da população foi um fenômenoposterior à ampliação da riqueza nacional, que permitiu erguer abrangentes siste-mas de seguridade social. Na China, o envelhecimento precede o enriquecimento.Como fechar a equação sem ameaçar a estabilidade política?

A expansão econômica a taxas médias em torno de 10%, ao longo de um quartode século, deriva da transferência em massa da população camponesa para as cida-des. Substituindo o trabalho agrícola rudimentar pelo trabalho industrial moder-no, a China experimenta saltos sucessivos de produtividade, cujo reflexo aparece nocrescimento do PIB (veja a matéria à pág. 8). Mas a continuidade da expansão, emtaxas tão elevadas, exige um ambiente econômico global favorável.

A indústria implantada em território chinês precisa de consumidores nos Esta-dos Unidos, na Europa, no Japão, nos Tigres Asiáticos, na América Latina.Até quando ela terá mercados amplos, abertos e crescentes? A crise atual con-fere uma ênfase maior à pergunta. Uma coisa é certa: a China não tem a opçãode crescer devagar. Um rumo desse tipo implicaria fechar as portas das cidadesàs massas que deixam o campo e negar um emprego decente aos milhões dejovens que, anualmente, brotam com diplomas do interior das universidades.Ninguém segura uma panela de pressão social de dimensões chinesas...

Nas democracias, sistemas políticos flexíveis absorvem as crises e oferecemsaídas para o descontentamento social. Os americanos que perderam suas ca-sas e suas poupanças de décadas nos últimos meses não empunharam armascontra Wall Street: elegeram Barack Obama. Na China, um sistema políticoinflexível, autoritário e fechado, é o alvo evidente das tensões sociais.

Há duas décadas, enquanto ruía a União Soviética, a China conheceu omaior movimento popular recente pela democracia. A multidão de jovensreunida na Praça da Paz Celestial, em 1989, foi dizimada a tiros. De lá para cá,a expansão econômica contínua e acelerada amortizou a tensão latente. Mes-mo assim, milhares de protestos isolados pipocam todos os meses nas provín-cias do imenso “continente chinês”. Não é fácil, em tempos normais, negardireitos políticos elementares a uma população que emerge acima da miséria.Será possível negá-los por anos a fio, pontilhados de crises e tempos de vacasmagras? Será possível fazê-lo na “era da informação”, uma época em que quasetudo pode ser lido no éter da internet?

O futuro não está escrito. Ninguém tem respostas a tais perguntas. Nin-guém sabe se a China um dia tomará o posto de número um. Mas não acrediteno senso comum: ele quase sempre está errado.

da de exportações ocorrida em 2009. Esseesforço poderia ser complementado poruma grande desvalorização cambial naChina, jogando a Ásia e o resto do mun-do numa guerra comercial. Lembrem-se:no final de 1993, a China desvalorizou amoeda em 33%, gesto que muitos apon-tam como causa dos colapsos da Tailândia,Rússia e Brasil entre 1997 e 1999.

Resumo da ópera chinesa: enquanto omundo e a mídia orientam os holofotespara as medidas de estímulo fiscal e finan-ceiro, Pequim e Washington protagonizamum arriscado roteiro de ameaças e chan-tagens que pode ser a semente de uma iné-dita implosão cambial global.

Gilson Schwartz, economista eprofessor da USP, foi economista-chefe do BankBoston no Brasil e

assessor da presidência do BNDES.Lidera o grupo de pesquisa Cidade doConhecimento (www.cidade.usp.br).

Cenas “brasileiras”: crianças chinesas trabalham numa fábrica debrinquedos em Donguan, ao sul do país, e um trabalhador sem tetocozinha o seu almoço sob um viaduto em Hefei, a leste; o “milagre

econômico” beneficia apenas uma minoria dos 1,3 bilhão de chineses

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OS RATOS DE DENG XIAOPING

ão importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”:na boca de uma pessoa qualquer, a frase seria interpreta-da como um simples provérbio popular, auto-evidente;proferida, no final dos anos 70 do século passado, porDeng Xiaoping (1904-1997), ela sinalizou uma gigan-tesca “virada” na história da República Popular da Chi-na. Deng, o todo-poderoso sucessor do dirigente comu-nista chinês Mao Tsetung (1893-1976), sinalizava a ado-ção do “pragmatismo”: o Estado chinês deveria, a partirde então, “flexibilizar” o processo deflagrado em 1949por Mao, quando os comunistas tomaram o poder, e ini-ciar um processo de “modernização” econômica. Isso sig-nificava, concretamente, abandonar o conceito de umaeconomia totalmente coletivizada e controlada pelo Es-tado, para abrir espaço para a iniciativa privada. Hoje,esse modelo é mundialmente conhecido como “socialis-mo de mercado”. Como entendê-lo?

Ao tomar o poder na China, Mao iniciou um processoespelhado na revolução soviética de outubro de 1917: todaa economia passou a ser controlada pelo Estado que, porsua vez, foi submetido à ditadura do Partido ComunistaChinês (PCC), o único com existência legal permitida. Eo PCC era dominado pelo “Grande Timoneiro” Mao (as-sim como, na União Soviética o partido único era contro-lado pelo “Genial Pai dos Povos” Josef Stalin). As terrasforam expropriadas e transformadas em sistemas de coo-perativas coletivas controladas por funcionários do Estado(isto é, por membros do partido), e o mesmo aconteceucom a indústria e com o setor financeiro.

O período maoísta conduziu o país a um absolutodesastre. País de tradição agrícola, com uma populaçãoque, em 1949, beirava os 600 milhões de habitantes, aChina nem chegou perto do processo de industrializaçãoacelerada desejado por Mao, e o sistema econômico esta-tal acabou desarticulando o processo produtivo que, bemou mal, existia no campo. O resultado foi o desempregoem massa nas cidades e a fome em regiões inteiras daChina. Só as indústrias bélica e de infraestrutura apre-sentaram resultados um pouco menos desastrosos, maselas tinham um objetivo preciso: exponenciar a capaci-dade de repressão e controle social por parte de Mao edos burocratas encastelados no PCC.

Com a morte de Mao, Deng Xiaoping iniciou um pro-cesso de reformas, cujo objetivo era estimular a economia.Não por acaso, começou pelo campo: permitiu que os cam-poneses cultivassem pequenas áreas em benefício próprio,assim gerando um excedente alimentar capaz de atenuar asituação catastrófica de desabastecimento. Foi quando sur-giram as primeiras cooperativas privadas de camponeses (em-bora a terra ainda pertencesse ao Estado), e o surgimento deuma nova classe de camponeses ricos. A partir de 1982, apóso XII Congresso do PCC, Deng iniciou a “abertura” nosetor industrial. O governo estimulou a competição entre asempresas (todas Estatais), premiando as que atingissemmelhores índices de qualidade e de produtividade, tendocomo referência os padrões internacionais.

daquele ano) e pediam uma glasnost na China.A incorporação de Hong Kong à China, em julho de

1997, graças a um acordo com a Grã-Bretanha, que de-tinha o controle do território, acentuou ainda mais o ca-ráter capitalista da integração do país ao mercado mun-dial, consagrado pela sua inclusão à Organização Mun-dial do Comércio, em 2001 (veja a matéria à pág. 9).Hong Kong é, ao lado de Cingapura, o centro nervosodo capital financeiro da Ásia, por onde passam investi-mentos e capitais especulativos e industriais de toda aregião, incluindo Japão e Tigres Asiáticos.

O chamado “socialismo de mercado”, portanto, ser-ve para descrever (ou ocultar?) um sistema algo bizarro,que mantém uma armadura política e retórica herdadada revolução de 1949 (a ditadura do partido único, oslouvores ao “Grande Timoneiro” Mao), mas com umaeconomia estruturada segundo as normas do capital.Hoje, cerca de 200 milhões de chineses constituem umaclasse média que consegue, de alguma forma, participardos bilhões de dólares que circulam na economia, ao passoque mais de um bilhão vivem entre a pobreza e a misériaabsoluta, contidos por uma feroz polícia política.

Deng acertou: o gato é bom se caça ratos. Mas faltouexplicar melhor quem são os ratos.

CHINA

Mas o “grande salto adiante” (lema muito utilizado,com sentido bem diferente, por Mao para estimular aprodução, nos anos 50) veio com a criação das ZonasEconômicas Especiais (ZEE), nas províncias litorâneas,destinadas a atrair investimentos estrangeiros. Elas fun-cionavam como verdadeiros “paraísos” para as empresascapitalistas: mão-de-obra barata (salários que ainda hojebeiram os US$ 30 mensais, por uma jornada diária de 12horas de trabalho), quase total isenção de impostos, totalliberdade de ação. Em troca, as empresas deveriam esta-belecer joint-ventures (associações) com empresas estataischinesas, que queriam modernizar suas “técnicas degerenciamento”, além de promover uma certa transfe-rência de tecnologia. As primeiras ZEEs foram implan-tadas em Shenzen, Zhuhai e Xiamen.

O novo modelo permitiu à China crescer a taxas su-periores a 9% ao ano, em média, durante os anos 90.Mas, diferentemente do que fez Mikhail Gorbatchev naUnião Soviética, que tentou conciliar abertura econômi-ca (perestroika) e política (glasnost), o governo chinês acen-tuou a repressão. O grande emblema disso foi o massacrede 2 mil jovens, trabalhadores e estudantes que protesta-vam na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em abril de1989, há quase exatas duas décadas. Não por acaso, elesaclamavam Gorbatchev (que visitou Pequim, em março

O experimento do “socialismo de mercado” integrou a China aos fluxos mundiais das finanças e do comércio, incorporando 200milhões de pessoas à economia da globalização. Sem desmontar a ditadura de partido único

Março - abril de 1989: na Praça da Paz Celestial (Pequim), milhares de jovens exigem ademocratização do país, muitos apoiando-se em antigos escritos do histórico líder Mao Tsetung (nodetalhe, ao apertar a mão de Deng Xiaoping, à dir.); o movimento foi liquidado com o massacre de 2

mil estudantes pelo exército, em 4 de abril

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A China exporta produtos manufaturados finais para osEstados Unidos e a União Européia, seus dois principaisclientes (veja o Gráfico 2). As estruturas produtivas implan-tadas na China, que têm como estrato mais dinâmico emoderno as empresas estrangeiras, utilizam sobretudo bensde produção e componentes fabricados no Japão e nos Ti-gres Asiáticos. Por esse motivo, a Ásia é, de longe, a princi-pal fonte das importações chinesas (veja o Gráfico 3).

PEQUIM TEME PROTECIONISMO

E DESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR“A China é contra qualquer forma de protecionismo e nós

propomos a cooperação e a negociação para solucionar to-das as questões concernentes ao comércio internacional”,declarou Yao Jian, o porta-voz do Ministério do Comérciochinês, em fevereiro. Yao prometeu apoio integral aos esfor-ços da Organização Mundial de Comércio (OMC) paraevitar a disseminação do protecionismo e pediu à OMCque conclame “todos os países membros a se compromete-rem com a sua estratégia de livre comércio”. Na mesma en-trevista coletiva, mirando nos Estados Unidos, cujo Con-gresso acabara de aprovar um pacote de estímulo fiscal quecontém uma cláusula de incentivo à compra de produtosnacionais, o vice-ministro do Comércio Jiang Zengweigarantiu: “Nós não praticaremos o Buy China. Trataremosigualmente os produtos domésticos e estrangeiros.”

Na esfera comercial, o século XXI inicia-se com essapequena aula de liberalismo econômico ministrada poruma ditadura de partido único, que ainda cultua MaoTsetung, à maior potência mundial, uma nação que sócultua os deuses da liberdade econômica. O paradoxo,uma fina ironia da história, decorre tanto dos efeitos po-líticos do colapso financeiro nos Estados Unidos quantodos interesses nacionais objetivos chineses.

A China, uma “economia socialista de mercado”, nacuriosa e internamente contraditória definição oficial, pre-cisa conservar um ritmo acelerado de crescimento eco-nômico, para assegurar um mínimo de estabilidade polí-tica interna (veja a matéria à pág. 7). Mas o crescimentoacelerado depende, crucialmente, da manutenção demercados abertos e, em particular, do livre acesso de benschineses aos consumidores americanos.

Na globalização, o comércio oscila mais que o PIB,tanto para cima quanto para baixo. No ciclo de expansãoeconômica mundial, entre 2000 e 2007, o PIB globalcresceu 3%, enquanto o comércio cresceu 5,5%. A Chi-na é um caso à parte: no período, suas exportações au-mentaram em espantosos 22,5% (contra 6% dos Esta-dos Unidos e do Japão e 12% da União Européia) e suasimportações em 18% (contra 7% dos Estados Unidos edo Japão e 12% da União Européia). Como resultado,em 2007, a China tornara-se o segundo exportador mun-dial, com 8,9% do total, atrás apenas da Alemanha (9,7%)e à frente dos Estados Unidos (8,5%), e o terceiro im-portador mundial, com 6,8% do total, atrás dos insaciá-veis Estados Unidos (14,5%) e da Alemanha (7,6%).

A irresistível ascensão comercial da China revolucio-nou toda a matriz de intercâmbios globais. O comérciointra-regional asiático, que era relativamente pouco ex-pressivo, passou a corresponder a quase metade do totaldos intercâmbios da Ásia em 2007. É que a China trans-formou-se no grande elo das cadeias de produção e con-sumo que conectam a Ásia ao Ocidente e, em especial,ao mercado americano. Os imensos saldos positivos nabalança comercial chinesa devem-se, sobretudo, aos in-tercâmbios bilaterais com a América do Norte e a Euro-pa. Mas o vasto intercâmbio da China com o restante daÁsia gera saldos negativos (veja o Gráfico 1).

CHINA

Isso significa que a China é a ponte vital entre as tec-nologias elaboradas no Japão e nos Tigres Asiáticos e omercado consumidor dos Estados Unidos. A parcela demaior conteúdo tecnológico e de maior valor das expor-tações chinesas é produzida por empresas japonesas, ame-ricanas, coreanas, européias, operando em território chi-nês, empregando a abundante mão-de-obra barata chi-nesa e sob as regras políticas e sociais estabelecidas peladitadura do partido único. O pleno funcionamento des-se sistema produtivo integrado à globalização assegurouas invejáveis taxas de expansão do PIB chinês registradashá quase três décadas. A China não pode admitir queuma descontrolada onda protecionista, deflagrada pelacrise econômica global, destrua as engrenagens que a con-verteram em potências mundial.

A dinâmica do sistema produtivo da globalização as-senta-se sobre o desequilíbrio estrutural entre o excesso deconsumo no Ocidente, de um lado, e o excesso de produ-ção (e, portanto, de poupança) na China. A expressão dodesequilíbrio encontra-se na conta corrente do balanço depagamentos dos Estados Unidos e da China. A conta cor-rente é a diferença entre os ingressos e as saídas de capitaldas economias nacionais. A conta de capital dos EstadosUnidos gera saldos positivos, em virtude dos lucros obti-dos pelas empresas americanas que operam no exterior,mas tais saldos estão longe de cobrir os déficits comerciais.O resultado são saldos negativos em conta corrente queatingiram mais de US$ 650 bilhões em 2008. Na China,pelo contrário, a adição dos saldos positivos na conta decapital aos amplos superávits comerciais resulta em saldospositivos em conta corrente que atingiram cerca de US$400 bilhões em 2008 (veja o Gráfico 4).

O déficit americano e o superávit chinês formam doislados de uma mesma gangorra. No fim, a equação fechaapenas porque as imensas somas de capital em mãos daChina são investidas nos mercados financeiros do Ocidentee, em particular, em títulos emitidos pelo Tesouro dos Es-tados Unidos. Por essa via, a China financia o déficit (e oconsumo) americano, assegurando a continuidade de umsistema que promove o seu próprio crescimento.

Mas tudo se torna dramático se o dólar ingressa numaespiral de desvalorização. A perda de valor da moeda ameri-cana, que é a moeda do mundo, dissolve ativos chinesesinvestidos no mercado financeiro ocidental. Os chineses tre-mem de pavor diante da perspectiva de que os formidáveispacotes fiscais de Barack Obama se traduzam, mais adiante,por uma onda de inflação nos Estados Unidos. Não poracaso, já começam a sugerir nada menos que a substituiçãodo dólar por alguma outra moeda mundial.

Crise global ameaça os mercados que consomem produtos chineses e a estabilidadeda moeda na qual estão expressos os investimentos da China. Hoje, a potência

asiática tornou-se um baluarte da ortodoxia econômica

Gráfico 1

Gráfico 2

Gráfico 3

Gráfico 4

900800

700600500

400

FONTE: OMC, 2009

Exportações

Importações

Mundo Ásia* Am. Norte Europa**

Balança comercial da China (2005)

300

200

1000

US

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ilhõ

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* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI

OutrosÁsia* Am. Norte Europa**

FONTE: OMC, 2009

* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI

300

250

200

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100

50

US

$ b

ilhõ

es

Distribuição das exportações da China (2005)

0Japão EUA UE CEI

OutrosÁsia* Am. Norte Europa**

FONTE: OMC, 2009

* Inclui Oceania e exclui Oriente Médio - ** Exclui CEI

Distribuição das importações da China (2005)350

300

250

200

150

50

US

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ilhõ

es

0

100

Japão EUA UE CEI

China

EUA

Saldo em conta corrente

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

FONTE: FMI, 2009

450300150

0-150

-450US

$ b

ilhõ

es

-900

-300

-600-750

China 2000-08 (Saldo de conta corrente)20.519 17.405 35.422 45.875 68.659 160.818 249.866 371.833 399.325

EUA 2000-08 (Saldo de conta corrente)-417.429 -382.370 -461.271 -523.413 -624.999 -728.994 -788.115 -731.214 -664.125

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 102009 MAIO

A Cidade do Cabo é a expressão con-creta de uma convergência peculiar entrea geografia e a história. Localizada numapequena península no extremo sul do con-tinente africano, Capetown é o segundomaior núcleo urbano (3,3 milhões de ha-bitantes), da República Sul Africana (vejao Mapa 1). Quem chega à cidade, logovislumbra seu mais importante acidentenatural, a Table Mountain (Montanha daMesa). Este bloco de relevo tabular, de1.087 metros, pode ser avistado de todosos pontos da cidade. A vista da cidade apartir da Table Mountain é lindíssima.

A cidade e regiões próximas guardamuma singular mescla cultural epopulacional, resultado da superposição emiscigenação de diferentes culturas ao lon-go do tempo. Aos hotentotes, grupo an-cestral que habitava a região, juntaram-se, há cerca de mil anos, povos bantos quese expandiam para o sul. No século XVIIchegaram os colonizadores europeus, pri-meiramente holandeses, que fundaram acidade e criaram a Colônia do Cabo, em1652 [veja o Box). Calvinistas, esses co-lonos fugiam às perseguições religiosasmovidas a eles na Europa. Em seguida,chegaram outros colonos protestantes, deorigens francesa, inglesa e alemã. Nesse

CAPETOWN, A CIDADE-MÃE

DA ÁFRICA DO SUL

Nelson Bacic OlicDa Redação de Mundo

período houve expressiva mestiçagem en-tre os colonizadores e grupos africanos.

Ato contínuo foram trazidos escravos,assim como trabalhadores livres, daMalásia, da Indonésia, da África Orientale do Subcontinente Indiano. Houve tam-bém mestiçagem entre esses grupos e osque ali já se encontravam. Do século XIX,quando a Colônia do Cabo passou ao do-mínio britânico, até os dias atuais, junta-ram-se a esse caldeirão étnico-culturalimigrantes europeus de várias nacionali-dades e imigrantes vindos de países vizi-nhos como Angola, Moçambique eZimbábue. Vez por outra, estes últimostêm sido vítimas de atos de xenofobia.

Dessa evolução demográfica resultouuma composição populacional bem diver-sa do resto da África do Sul. Segundo ocenso de 2001, os coloreds (mestiços, naclassificação criada pelo apartheid e con-servada até hoje) perfaziam 48,2% da po-

pulação, seguidos pelos “negros” (31,7%)e “brancos” (18,7%). Capetown pode seorgulhar de ser a mais cosmopolita e libe-ral cidade do país. Um cartão de visita dacidade é o Victória & Alfred Waterfront,antigo cais construído no século XIX e que

hoje abriga, além de um grande shoppinge dezenas de restaurantes, o surpreenden-te Aquário dos Dois Oceanos.

Os habitantes de Capetown estão cadavez mais empolgados com a Copa do Mun-do, que o país sediará em 2010. Já são en-contradas nas lojas as camisetas da torcidabafanabafana, nome carinhoso da seleçãolocal. Ela divide as vitrines com outra, decor verde, na qual está escrito Springboks,que identifica a seleção de rúgbi, esporteno qual o país sagrou-se campeão mundialem 1995 e 2007. Nelson Mandela é objetode veneração pela maioria da população,onipresente em estátuas, fotos e camisetas.Frases e citações do líder da luta contra oapartheid estão impressos em cartazes epôsteres nas lojas para turistas.

Nos arredores de Capetown há duas ou-tras atrações; a primeira é o Cabo da BoaEsperança, cerca de 100 quilômetros ao sul.Foi uma emoção especial visitar o Cape Pointe imaginar, erroneamente como os navega-dores portugueses do passado, que ali se davao encontro das águas do Atlântico e doÍndico. Na verdade, a famosa passagem deBartolomeu Dias e Vasco da Gama encon-tra-se cerca de 200 quilômetros a sudeste,no Cabo das Agulhas.

A segunda atração é a rota dos vinhedosdo Cabo. Nesta área está Stellenbosh, a pri-meira cidade vinícola edificada por holan-deses em 1679. Mais tarde, huguenotes fran-ceses fundaram Franshoek e, em seguida,Paarl. A qualidade dos vinhos sul africanos éreconhecida mundialmente.

A origem da atual República Sul Africana (RSA) encontra-se na colonização da região do Cabo, iniciada em 1652 por protestantesholandeses (bôeres). A colônia passou ao controle britânico em 1814, por decisão do Congresso de Viena. A nova administração declarouo fim da escravidão em 1833, ato que desencadeou o Grand Trek (Grande Jornada), a migração de milhares de bôeres em direção aosplanaltos interiores da África austral (veja o Mapa 2). Entre 1834 e 1838, os trekers lutaram contra tribos africanas e fundaram asrepúblicas do Orange e do Transvaal. Essas repúblicas interiores, apoiadas na escravidão e numexacerbado radicalismo religioso, lançaram as bases do que mais tarde seria o apartheid.

No final do século XIX, a descoberta de diamantes e ouro nas repúblicas bôeres atiçou acobiça britânica e desencadeou uma guerra entre a maior potências mundial e os colonos conser-vadores da África austral. A Guerra dos Bôeres (1899-1902) terminou com a derrota do Orangee do Transvaal. Oito anos depois, uma Constituição negociada entre os antigos adversários crioua União da África do Sul, composta pelos territórios britânicos do Cabo e do Natal, mais asantigas repúblicas bôeres.

Por cerca de quatro décadas, o poder ficou nas mãos de políticos brancos mais moderados.Deve-se lembrar que, até 1994, a majoritária população negra não tinha direitos políticos. Aevolução econômica do país, o mais rico da África, criou um expressivo mercado de trabalhourbano. Essa situação gerou conflitos entre os africânderes (os descendentes dos bôeres, que falama língua africâner) e a maioria negra. A defesa da exclusão dos negros e do monopólio dos postosde trabalho pelos brancos levou à criação do Partido Nacional, constituída por africânderes radi-cais. Influenciado por idéias nazistas, o partido chegou ao poder em 1948.

A partir daí se criou o regime do apartheid, baseado em todo um arcabouço jurídico de leisracistas e mantido a ferro e fogo por quase meio século. O sistema de discriminação oficial sódesapareceu pela combinação de pressões internas e internacionais, especialmente após o fim daGuerra Fria. Em 1994 foram realizadas as primeiras eleições multirraciais na RSA, que deram avitória a Nelson Mandela.

A saga bôer, o apartheid e a nova África do Sul

Cabo

África do Sul ao final do século XIX

Territórios britânicos

Estados BÔERES

Protetorados britânicos

Colônia do Cabo em 1.800

Colônia do Cabo em 1.700

GRAND TREK

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Península eCidade do Cabo

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

MAIO 2009

11

Nelson Bacic OlicDa Redação de Mundo

mais de 2.500 quilômetros de extensão eseus regimes são pluvionivais, visto suasnascentes localizarem-se no Himalaia, casodo Ganges, ou nos altos planaltos doTibete chinês (Indo e Bramaputra). Naparte de jusante, esses rios recebem asdiluvianas chuvas da monção de verão. Aparcela de água renovável vinda de foranos três países é bem diferente. Na Índia,esse índice é de 34%; no Paquistão, de76% e, em Bangladesh, de 91%.

Por conta do traçado de fronteiras po-líticas surgido após a descolonização, etambém por possuir uma superfície bemmaior que a dos seus vizinhos, o territórioda Índia é cortado pelos três rios. Já oPaquistão tem no Indo seu principal cur-so fluvial, enquanto Bangladesh controlao curso inferior dos rios Ganges eBramaputra (veja o Mapa 1).

As questões hidroconflitivas entre Ín-dia e Paquistão concentram-se sobre a par-

tilha das águas da bacia do Indo. QuandoÍndia e Paquistão se tornaram indepen-dentes, em 1947, a bacia fluvial foi divi-dida entre ambos. O Paquistão ficou coma maior parte dos canais e terras irrigadasque já eram utilizadas e a Índia teve a van-tagem de controlar as águas do Indo quefluem rumo ao país vizinho.

O Indo atravessa um trecho da Cache-mira indiana e alguns dos seus afluentes damargem esquerda têm parte considerável deseus cursos em território indiano. Nessa re-gião, considerada como o maior perímetroirrigado do mundo, a questão da utilizaçãoconjunta das águas fluviais encontrou umasolução satisfatória, o que não se verificouem relação a outras questões geopolíticas nasquais os países vizinhos estão envolvidos. Em1960, o Banco Mundial intermediou umtratado repartindo os recursos hídricos doIndo entre os dois países. Assim, afluentesda margem direita ficaram sob o controle

da Índia, enquanto o próprio Indo e seusafluentes da margem esquerda ficarampara o uso do Paquistão (veja o Mapa 2).

Já a utilização das águas do Ganges edo Bramaputra gera tensões entre Índiae Bangladesh. O primeiro, um rio sagra-do para o hinduísmo, corre quase inte-gralmente no território da Índia. Em seupercurso, o Ganges afeta a vida de pelomenos meio bilhão de pessoas, que de-pendem dessas águas para sua subsistên-cia. A Índia não exerce soberania sobre ocurso inferior dos dois rios que, após sejuntarem, formam um grande delta. Ésobre este delta que está parte considerá-vel do território de Bangladesh.

Os vales do Ganges e do Brama-putra estão sujeitos a constantes inun-dações. Bangladesh, um dos paísesmais pobres do mundo, é especialmen-te vulnerável às inundações, algumasdelas catastróficas. Na grande cheia de1988, que fez cerca de 300 mil víti-mas, mais da metade do país ficousubmerso (veja o Mapa 3). O contro-le das águas dos dois rios tem sido mo-tivo de atritos, que incidem sobre aconstrução de barragens e a partilhadas águas.

No caso do Ganges, as discórdiasestão focadas na barragem indiana deFarakka, concluída em 1974 e cujo ob-jetivo era reter a maior quantidade deágua possível para o uso da Índia. Em1997, depois de décadas de tentativasinfrutíferas, chegou-se a um acordo parao uso compartilhado das águas. Pelo tra-tado, fica garantida a Bangladesh umaquantidade mínima de água durante operíodo mais crítico da monção de in-verno, entre os meses de março e maio.É surpreendente o fato de que o Sub-continente Indiano, uma regiãomarcada por conflitos entre países e nointerior de cada um deles, tenha encon-trado soluções de uso compartilhado daságuas, fonte essencial para a vida de maisde um bilhão de seres humanos.

DISCÓRDIA E COOPERAÇÃO

NAS ÁGUAS DO INDOSTÃO

A fixação de povos nômades em regi-ões próximas de grandes rios remonta aoperíodo Neolítico (6000-2500 a.C.). Nes-sas áreas surgiram as chamadas civiliza-ções hidráulicas, cuja existência só podeser entendida em função dos rios que asalimentavam. Entre as mais conhecidasestão aquelas que se ergueram ao longodo vale do rio Nilo e na Mesopotâmia,drenada pelos rios Tigre e Eufrates.

A civilização hindu, também se desen-volveu nas proximidades de importantescursos fluviais como o Ganges, Indo eBramaputra, os principais rios que dre-nam o Subcontinente Indiano, ouIndostão. Junto às margens e deltas des-ses rios ainda hoje são encontrados algunsdos maiores adensamentos de populaçãorural, os “formigueiros humanos” da Ásiameridional. Tais áreas correspondem tam-bém a alguns dos principais bolsões depobreza do mundo atual.

A base produtiva dessas regiões estáassentada há séculos na agricultura, pormeio de sistemas de cultivo intensivos quese caracterizam pela ampla utilização demão-de-obra. A dinâmica climática ditao ritmo do trabalho agrícola. Durante oinverno existe pouca atividade mas, noverão, toda a força de trabalho disponívelé utilizada nas culturas agrícolas.

O Indostão compreende basicamen-te três países – Índia, Paquistão eBangladesh – que possuem uma popu-lação conjunta de aproximadamente 1,5bilhão de pessoas, um pouco mais de umquinto do total mundial. Ainda domi-nantemente rural, a população doSubcontinente Indiano apresenta altocrescimento vegetativo. Com quase 1,2bilhão de habitantes, a Índia é o segun-do país mais populoso do mundo.Bangladesh e Paquistão possuem, cadaum, mais de 150 milhões de habitantes.

Três grandes rios, o Ganges, o Indo eo Bramaputra, cortam a região e têm emcomum o fato de serem rios internacio-nais – isto é, drenam o território de doisou mais países. Cada um deles possui

Série Geopolítica da Água

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Áreas constantemente afetadaspor inundações

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Usina indiana de FARAKKA

NEPAL BUTÃO

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BANGLADESH

Rio Bramaputra

Rio Ganges

As águas de Bangladesh

Calcutá

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Rios do Subcontinente Indiano

AFEGANISTÃO

Rio IndoPAQUISTÃO

Í N D I A

NEPAL BUTÃO

TIBETE

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BANGLADESH

GOLFO DEBENGALA

Rio Indo

Rio Bramaputra

Rio BramaputraRio Ganges

OCEANOÍNDICO

ABC

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Cachemira IndianaCachemira PaquistanesaCachemira Chinesa

Afluentes doIndo que nascemou cruzam oterritório da Índia

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Rio Indo

Rio Indo

O Alto Vale do Rio Indo

Mapa 2

Mapa 1

Mapa 3

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GUERRAS CULTURAIS ATORMENTAM A “ERA OBAMA”

arack Obama venceu porcausa de uma economia aospedaços, mas a guerra culturalcontinua “e seremos nós osvencedores”, desabafou umconservador americano dian-te do resultado nas urnas. Em-bora tenha sido reação de umdesconhecido, o registrojornalístico foi feito porque aexplosão verbal aconteceunuma da seções eleitorais daCalifórnia, onde os liberais ti-veram de engolir o triunfo dachamada Proposta NúmeroOito, proibindo casamentosgays. Alguns de seus autores,como os do Protect Marriage,insistem em que não se tratade discriminação, mas de “ten-tativa de defender a definiçãotradicional de casamento”. Aconstatação, no entanto, é a deque está em curso uma guer-ra, no campo cultural. Isto fi-cou claro com a amplamobilização religiosa, inclusive de igrejasafro-americanas, em favor da “Prop 8”.

Há outros indicadores. Guerreiros. Oargumento é o de que é preciso proteger“valores familiares”. Não estão em jogo sóos casamentos gays, mas toda uma gamade “valores”, a partir de um conjunto dequestões que continuam em pauta, comum e outro lado cavando trincheiras. Oque aconteceu na Califórnia foi um golpea mais nos liberais – e dado com punhosde aço. Não surpreendeu o voto favorávelde grande maioria de eleitores brancos. Foisignificante o apoio à proposta de um emcada dois negros. Além disso, 30 estadosamericanos já baniram esse tipo de casa-mento. Mas a seqüência de embates vaiem frente. Na Dakota do Sul, foi banidopor 69% dos eleitores o direito de escolhaem abortos. Proteção legal, só em casosde incesto, estupro ou risco à vida das ges-tantes. No lado oposto da trincheira, Wa-shington passou a permitir o suicídio emcasos de doentes terminais e Michigan le-galizou pesquisas com células-tronco.

O caso da “Prop 8”, na Califórnia, tor-nou-se emblemático porque coincidiucom a eleição de Obama, chamado de “so-cialista” por um dos mais ouvidos apre-

sentadores de rádio dos Estados Unidos.Obama, já empossado e com alto capitalpolítico, deu o troco. Acabou com restri-ções aos financiamentos federais de estu-dos com células-tronco, introduzidas porBush com o argumento de que seria ma-tança de vidas embrionárias. O New YorkTimes, que contabiliza um bom númerode defesa de causas liberais, saiu em defe-sa de Obama com editorial incisivo.

De acordo com o editorial, a medida“encerra um período obscuro, no qual ob-jeções morais de conservadores religiososconstrangeram avanços de grande impor-tância para as ciências médicas”. O Washing-ton Post, por sua vez, considerou Bush overdadeiro chefe da direita religiosa dosEstados Unidos, a tropa de choque commaior poder de fogo nessa guerra cultural.Os tiroteios, em alguns momentos, seabrem num leque matizado. O New YorkTimes não ficou totalmente satisfeito coma canetada de Obama, embora não hesiteem defini-la como “instância luminosa”.

ESTADOS UNIDOS

Dólares federais continuam bloqueadospara alguns tipos de pesquisas. Cabe aoCongresso dar um jeito, pediu o jornal.

Em cada três brancos evangélicos, sóum votou por Obama. Pat Buchanan, umdos “marechais” da direita religiosa, usoua Convenção Nacional do Partido Repu-blicano para classificar Sarah Palin, acombativa vice de John McCain, como a“nossa Katyusha”. Katyusha é o célebrefuzil-metralhadora de fabricação russamuito usado por guerrilheiros. “Há umaguerra religiosa em nosso país e a disputase trava visando à conquista da alma dosamericanos”, disse Buchanan, para umaplatéia de entusiastas republicanos. A“Bósnia” dessa guerra, ainda segundoBuchanan, “é o aborto”. Na Bósnia se tru-cidaram, entre si, sérvios, muçulmanos ebósnios.

Liberais, subversivos, imigrantes e in-fiéis de modo geral (negros escapam comseus evangelismos) são os alvos da“Katyusha” Palin. Há um livro, intitulado

Culture warrior (“Guerreiro cultural”), deBill O’Reilly, que se apresenta orgulho-samente como o personagem do título.Está em curso, reitera Reilly, uma guerra

entre tradicionalistas,como ele próprio, e forçasde um progressismo secu-lar que almeja mudar osEstados Unidos “dramati-camente”, tendo comoexemplo – que horror! – aEuropa Ocidental. ParaO’Reilly, a BBC, de Lon-dres, é de esquerda. Elemetralha o aborto, drogas,casamentos gays, não co-memorar o Natal e assimpor diante, nessa guerraradicalizada pela presençade um “negro liberal” naCasa Branca.

Em suas alucinaçõesguerreiras, O’Reilly antevêuma Glória Hernandez su-cedendo a Barack Obama.Além de hispânica, mulher!Os Estados Unidos seriamassaltados pelos de fala es-panhola, ainda por cimamais dispostos à procriação.

Na seqüência – quem sabe? – um asiático,o primeiro de olhos espichados na CasaBranca. O jeito, talvez, na visão de O’ Reilly,seria adotar a linha de Ronald Reagan emrelação à “contenção do comunismo” nasguerrilhas centro-americanas dos anos 80.O grito do “guerreiro cultural” é “Não pas-sarão!” – ironicamente lançado nos anos 30,durante a Revolução Espanhola, por umamulher republicana, logo anti-franquista,logo de esquerda.

Dois outros assuntos emergem nessecampo de batalha: a pena de morte e o portede armas de fogo. Há uma campanha mun-dial, com origem na ONU, contra a penade morte, proibida nos países da UniãoEuropéia (UE), cujo way of life horrorizaos guerreiros culturais dos Estados Unidos.A pena de morte, por exemplo, é um dosdispositivos que dificultam a admissão daTurquia na UE. Em porte de armas de fogo,os liberais sofreram duro revés com deci-são recente da Corte Suprema de ressusci-tar velhíssimos dispositivos, datados da épo-ca do faroeste. Uma revisão só será possívelse Obama conseguir alterar a composiçãodo mais alto tribunal dos Estados Unidos,hoje com maioria conservadora.

Casamento gay, aborto, células-tronco, tradições religiosas,pena de morte, porte de armas. São os temas explosivos da

guerra sem fim que opõem conservadores a liberais nosEstados Unidos

Newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

Cena comum em Chicago e outras grandes cidades dos Estados Unidos:em meio à crise, a forte presença hispânica e de outras minorias étnicas

provoca crescentes tensões sociais

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