registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas...

176
MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO ANDRÉ MOTA (ORGANIZADORES) Medicina, Sa de e Hist ria: Textos Escolhidos & Outros Ensaios

Upload: others

Post on 31-May-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO ANDRÉ MOTA(ORGANIZADORES)

Medi

cina

, Saú

de e

Hist

ória

: Tex

tos E

scol

hido

s & O

utro

s Ens

aios

6Medicina, Saúde e História:

Textos Escolhidos & Outros Ensaios

Perante a exigência de coletar, registrar, documentar e analisar - práticas que compõem o ofício de historiadores e historiadoras - oferecemos neste número um retorno a estudos realizados nos últimos anos, individualmente ou em parcerias. Trata-se de levar a público ainda mais amplo um conjunto de estudos que privilegiam certos limites históricos nos quais se evidencia a institucionalização das práticas médicas e de saúde em São Paulo. O conjunto de textos recolhidos encontra-se enriquecido pela contribuição da pesquisadora Ana Nemi, historiadora que generosamente vem se juntar aos organizadores no esforço de adensar o debate sobre as relações, tensões e contradições entre médicos, medicina, suas práticas e instituições.

O quadro resultante aponta para um campo formativo cujas forças ainda estão vigentes, seja pelas representações individualizadas de certos personagens, seja pelo impacto de tecnologias, teorias e movimentos que se con� guraram dentro e fora do Brasil na primeira metade do século XX. Em meio a particularidades, reiterações e sobreposições, podemos identi� car elementos de tensão entre parâmetros locais e valores, práticas, técnicas, tecnologias e saberes procedentes de círculos internacionais com os quais os personagens buscavam interagir.

É desse modo que uma profusão de questões e aspectos entrelaçados nos aponta, a� nal, para a complexidade de forças e elementos que modelam nossas concepções sobre saúde e doença - e que a história expõe em profundidade e largueza.

Os Organizadores

ISBN

97

8-85

-626

93-2

1-2

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Medicina, Saúde e História: Textos Escolhidos & Outros Ensaios

Mari

a Ga

brie

la S

. M. C

. Mar

inho

Andr

é Mot

a (o

rgan

izad

ores

)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção

Medicina,

Saúde &

História

Vol. 1

MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO

ANDRÉ MOTA(ORGANIZADORES)

Cami

nhos

e Tr

ajet

os d

a Fi

lant

ropi

a Ci

entí

fica

em S

ão P

aulo

. A Fu

ndaç

ão R

ocke

fell

er

e sua

s Art

icul

açõe

s no

Ensi

no, P

esqu

isa

e Ass

istê

ncia

par

a a

Medi

cina

e Sa

úde (

1916

-195

2)

3

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo.

A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

A Fundação � lantrópica em seu sentido moderno tem sido um fenômeno característico dos Estados Unidos no século XX. (...) A Fundação Rockefeller foi uma das pioneiras neste campo e é a instituição mais antiga no gênero. Por suas ações (..) se converteu em uma das marcas mais distintivas da ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com as lisonjas tem recebido também críticas. Na década de 1970, se articularam um conjunto de críticas de tom político ante ao que se percebia como os interesses particulares das fundações e sua in� uência contrária aos interesses de autonomia dos países nos quais atuaram. E. Richard Brown (1979) a julgou como produzindo um “sistema médico que serviu pobremente às necessidades sanitárias da sociedade”, Robert Arnove (1980) a viu como desviando os investigadores dos países do Terceiro Mundo de estudar os problemas de seus países em seus próprios termos, e com um nível de recursos consoante ao desenvolvimento de cada um deles, em sintonia com esforços realistas de mudança social. Eduardo Berman (1983) sustentou que a retórica de recorrer a pesquisadores - e o fato de selecioná-los entre os nativos do Terceiro Mundo para coordenar componentes importantes de programas das fundações norte-americanas - deveria ser confrontado com a possibilidade de que esses indivíduos tenham sido selecionados porque suas disposições intelectuais e políticas os predispunham a alcançar conclusões favoráveis ao enfoque dos temas de interesse das fundações Em anos mais recentes, se tem buscado aprofundar a compreensão da recepção e das respostas locais à � lantropia norte-americana, para além de juízos valor favoráveis ou desfavoráveis e de uma percepção que se concentrava exclusivamente nos doadores. Com relação à região latino-americana, os trabalhos, entre outros, do peruano Marcos Cueto (...) ajudaram a dar a conhecer não só a contribuição da FR para as ciências médicas, como também levaram a

conhecer o caudal de informação organizada em seus famosos arquivos, que cada vez mais estão sendo explorados por investigadores da região ou interessados nela. Numerosas instituições e outras iniciativas cientí� cas da América Latina estiveram associadas à FR (...). Passados 85 anos do inicio das relações de grupos de lideres da atividade médica no estado de São Paulo e da Fundação Rockefeller, Maria Gabriela Marinho leva a cabo a valiosa tarefa de revisar o processo de negociação da colaboração entre ambos os grupos, antecedente importante da transformação institucional em que se inscreve a nova Universidade de São Paulo que nasceria na década de 1930, como também de áreas importantes da ciência brasileira da época.O texto dá a conhecer aspectos detalhados, inclusive minuciosos, do processo e que ajudam a entender sua importância singular no meio nacional e latino-americano. Ilumina aspectos amiúde tácitos, contudo signi� cativos, dos deslocamentos e rupturas políticas e intelectuais que marcaram a pro� ssão médica e as relações político-institucionais do período. Este livro resultará igualmente valioso para aqueles que se interessam pela história da medicina moderna no Brasil e América Latina. Sua exposição e análise clara e sistemática dos principais atores sociais e aspectos fundamentais brindará seus leitores com uma narrativa rigorosa e atraente das origens e trajetória da instituição, e oferecerá informação e marcos alternativos de interpretação (...). Considero que a leitura do livro, por outro lado amena, servirá de estímulo especial para as novas gerações de estudiosos que perseveram na tarefa de expandir a investigação social da ciência e da técnica no Brasil e na América Latina.

Hebe Vessuri, Caracas, Dezembro de 2001(Extraído do Prefácio da 1ª edição de Elites em Negociação)

ISBN

97

8-85

-626

93-1

4-4

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo. A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

Mari

a Ga

brie

la S

. M. C

. Mar

inho

Andr

é Mot

a (o

rgan

izad

ores

)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

gabriela livro capa vol 3 13-002 10.indd 1 7/2/2013 12:56:48

ANDRÉ MOTA

MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO(ORGANIZADORES)

Euge

nia

e His

tóri

a: Ci

ênci

a, Ed

ucaç

ão e

Regi

onal

idad

es

4

Eugenia e História: Ciência, Educação e Regionalidades

Enraizadas no século XIX, as concepções e práticas eugênicas foram desa� adas no século subseqüente. Em 1938, o Boletim de Higiene Mental registrava: desde que o nazismo criou institutos de Eugenia, desvirtuando-os de sua � nalidade cientí� ca e humanitária para � ns político-raciais, falsos preconceitos se estabeleceram em torno das doutrinas eugênicas. Tornaram-se tão extensos e profundos que ao propormos, no 3º Congresso Internacional de Higiene Mental, que se recomendasse a todas as faculdades de Medicina do mundo a criação de uma cadeira de Eugenia, foi esta ideia imediatamente posta de lado e considerada como uma tentativa de renascimento do espírito do hitlerismo.

No pós-guerra, organismos internacionais recusaram sistematicamente os preceitos eugênicos e orquestraram a internacionalização da medicina preventiva em clara oposição aos pressupostos eugênicos. E rea� rmaram: se é interesse da Eugenia que a criança nasça bem, isto deve acontecer em igualdade de condições com a mulher do povo ou da alta roda. Se a alimentação sadia, racional, cientí� ca é condição necessária à boa saúde e ao bom rendimento energético é mister que o alimento seja propiciado, igualmente, senão mais fartamente, às classes pobres proletárias, que mais trabalham, que mais produzem.

Naquele contexto, as reformas hospitalares e a expansão das escolas médicas sugeriam que a Eugenia seria sepultada. Contudo, sua presença permaneceu signi� cativa. Destituída de estatuto cientí� co, continuou a vigorar explícita e implicitamente em diferentes instâncias, como no manual Puericultura, publicado pelo governo federal em 1950 e assinado pelo médico Clóvis Correia da Costa. Para o autor, indivíduos portadores de taras constituíam uma carga pesada para a sociedade - pois seus � lhos povoariam reformatórios, asilos, hospitais e cadeias - e a Justiça Alemã cortava o mal pela raiz, condenando o indivíduo à esterilização, embora permitisse o matrimônio (...) matrimônio em branco, sem descendência. A lei nazista foi muito criticada, mais por motivos de ordem política do que por motivos cientí� cos. Assim a esterilização eugênica é medida de alta sabedoria, de grande valor social, não devemos condená-la somente porque teve seu maior surto na ideologia nazista.

É interessante assinalar quanto do passado permanece inscrito no presente. E se a eugenia é um termo combatido e em desuso, certas práticas permanecem ligadas à sua doutrina hierarquizante, restritiva e cada vez mais intervencionista.

ISBN

97

8-85

-626

93-1

6-8

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Eugenia e História: Ciência, Educação e Regionalidades

Andr

é Mot

a Ma

ria

Gabr

iela

S. M

. C. M

arin

ho (

orga

niza

dore

s)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO

ANDRÉ MOTA(ORGANIZADORES)

Cami

nhos

e Tr

ajet

os d

a Fi

lant

ropi

a Ci

entí

fica

em S

ão P

aulo

. A Fu

ndaç

ão R

ocke

fell

er

e sua

s Art

icul

açõe

s no

Ensi

no, P

esqu

isa

e Ass

istê

ncia

par

a a

Medi

cina

e Sa

úde (

1916

-195

2)

3

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo.

A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

A Fundação � lantrópica em seu sentido moderno tem sido um fenômeno característico dos Estados Unidos no século XX. (...) A Fundação Rockefeller foi uma das pioneiras neste campo e é a instituição mais antiga no gênero. Por suas ações (..) se converteu em uma das marcas mais distintivas da ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com as lisonjas tem recebido também críticas. Na década de 1970, se articularam um conjunto de críticas de tom político ante ao que se percebia como os interesses particulares das fundações e sua in� uência contrária aos interesses de autonomia dos países nos quais atuaram. E. Richard Brown (1979) a julgou como produzindo um “sistema médico que serviu pobremente às necessidades sanitárias da sociedade”, Robert Arnove (1980) a viu como desviando os investigadores dos países do Terceiro Mundo de estudar os problemas de seus países em seus próprios termos, e com um nível de recursos consoante ao desenvolvimento de cada um deles, em sintonia com esforços realistas de mudança social. Eduardo Berman (1983) sustentou que a retórica de recorrer a pesquisadores - e o fato de selecioná-los entre os nativos do Terceiro Mundo para coordenar componentes importantes de programas das fundações norte-americanas - deveria ser confrontado com a possibilidade de que esses indivíduos tenham sido selecionados porque suas disposições intelectuais e políticas os predispunham a alcançar conclusões favoráveis ao enfoque dos temas de interesse das fundações Em anos mais recentes, se tem buscado aprofundar a compreensão da recepção e das respostas locais à � lantropia norte-americana, para além de juízos valor favoráveis ou desfavoráveis e de uma percepção que se concentrava exclusivamente nos doadores. Com relação à região latino-americana, os trabalhos, entre outros, do peruano Marcos Cueto (...) ajudaram a dar a conhecer não só a contribuição da FR para as ciências médicas, como também levaram a

conhecer o caudal de informação organizada em seus famosos arquivos, que cada vez mais estão sendo explorados por investigadores da região ou interessados nela. Numerosas instituições e outras iniciativas cientí� cas da América Latina estiveram associadas à FR (...). Passados 85 anos do inicio das relações de grupos de lideres da atividade médica no estado de São Paulo e da Fundação Rockefeller, Maria Gabriela Marinho leva a cabo a valiosa tarefa de revisar o processo de negociação da colaboração entre ambos os grupos, antecedente importante da transformação institucional em que se inscreve a nova Universidade de São Paulo que nasceria na década de 1930, como também de áreas importantes da ciência brasileira da época. O texto dá a conhecer aspectos detalhados, inclusive minuciosos, do processo e que ajudam a entender sua importância singular no meio nacional e latino-americano. Ilumina aspectos amiúde tácitos, contudo signi� cativos, dos deslocamentos e rupturas políticas e intelectuais que marcaram a pro� ssão médica e as relações político-institucionais do período. Este livro resultará igualmente valioso para aqueles que se interessam pela história da medicina moderna no Brasil e América Latina. Sua exposição e análise clara e sistemática dos principais atores sociais e aspectos fundamentais brindará seus leitores com uma narrativa rigorosa e atraente das origens e trajetória da instituição, e oferecerá informação e marcos alternativos de interpretação (...). Considero que a leitura do livro, por outro lado amena, servirá de estímulo especial para as novas gerações de estudiosos que perseveram na tarefa de expandir a investigação social da ciência e da técnica no Brasil e na América Latina.

Hebe Vessuri, Caracas, Dezembro de 2001(Extraído do Prefácio da 1ª edição de Elites em Negociação)

ISBN

97

8-85

-626

93-1

4-4

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo. A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

Mari

a Ga

brie

la S

. M. C

. Mar

inho

Andr

é Mot

a (o

rgan

izad

ores

)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

gabriela livro capa vol 3 13-002 7.indd 1 5/2/2013 10:50:07

Vol. 3

gabriela livro capa vol 4 13-053 7.indd 1 17/09/2013 11:10:28

Vol. 2 Vol. 3

Vol. 4

André MotA

MAriA GAbrielA S. M. C. MArinho(orGAnizAdoreS)

CáSSio SilveirA (orGAnizAdor ConvidAdo)

Saúd

e e H

istó

ria

de M

igra

ntes

e Im

igra

ntes

. Di

reit

os, I

nsti

tuiç

ões

e Cir

cula

rida

des

5

Saúde e História de Migrantes e Imigrantes.

Direitos, Instituições e Circularidades

Se a história é feita de vestígios, a

recuperação do passado só pode ser

reconstruída por aproximações não

lineares. É desse modo, portanto, que

se pretende flagrar nessa coletânea

os deslocamentos humanos e suas

histórias em busca da saúde e de uma

vida plena. Ao longo dos capítulos,

vamos encontrando pistas em que os

analistas revelam as contradições das

experiências, das tecnologias e dos

debates e perspectivas historiográficas.

Encontram-se ali o estranhamento pelas

diferenças e a capacidade humana de

se rearticular permanentemente para

cobrir suas necessidades. Porém, está

presente também o uso recorrente

das hierarquias demarcadoras dessas

diferenças. Sobretudo, na reiteração

pela saúde do que se delimita direta ou

indiretamente como os seres “inferiores”

e “superiores”, estratégia dos estigmas

que persiste em nossas sociedades.

Enfim, o debate sobre migração e

imigração, articula aqui o passado

e o presente e tece figurações de

permanências ou rupturas em torno de

homens e mulheres que se defrontaram

com o desafio de existir. Formamos

realmente uma só comunidade

humana? Somos todos homens e

mulheres doentes de progresso? Esse

é um desafio de interpretação para

leitores e leitoras dessa obra. Caberá a

esse público a sua decifração.

Os organizadores

André Mota

Coordenador do Museu Histórico da

Faculdade de Medicina da Universidade

de São Paulo e Professor do Programa de

Pós-graduação do Depto. de Medicina

Preventiva-FMUSP

Maria Gabriela S.M.C. Marinho

Professora e pesquisadora da Universidade

Federal do ABC (UFABC).

Cássio Silveira (organizador convidado)

Professor Adjunto e pesquisador do

Departamento de Medicina Social da

Faculdade de Ciências Médicas da Santa

Casa de São Paulo e Técnico em Assuntos

Educacionais da Universidade Federal de São

Paulo.

ISBN

97

8-85

-626

93-2

0-5

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Saúde e História de Migrantes e Imigrantes. Direitos, Instituições e Circularidades

Andr

é Mot

a Ma

ria

Gabr

iela

S. M

. C. M

arin

ho

(org

aniz

ador

es)

Cáss

io S

ilve

ira

(org

aniz

ador

con

vida

do)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

MAriA GAbrielA S. M. C. MArinho

André MotA(orGAnizAdoreS)

Cami

nhos

e Tr

ajet

os d

a Fi

lant

ropi

a Ci

entí

fica

em S

ão P

aulo

. A Fu

ndaç

ão R

ocke

fell

er

e sua

s Art

icul

açõe

s no

Ensi

no, P

esqu

isa

e Ass

istê

ncia

par

a a

Medi

cina

e Sa

úde (

1916

-195

2)

3

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo.

A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

A Fundação � lantrópica em seu sentido moderno tem sido um fenômeno característico dos Estados Unidos no século XX. (...) A Fundação Rockefeller foi uma das pioneiras neste campo e é a instituição mais antiga no gênero. Por suas ações (..) se converteu em uma das marcas mais distintivas da ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com as lisonjas tem recebido também críticas. Na década de 1970, se articularam um conjunto de críticas de tom político ante ao que se percebia como os interesses particulares das fundações e sua in� uência contrária aos interesses de autonomia dos países nos quais atuaram. E. Richard Brown (1979) a julgou como produzindo um “sistema médico que serviu pobremente às necessidades sanitárias da sociedade”, Robert Arnove (1980) a viu como desviando os investigadores dos países do Terceiro Mundo de estudar os problemas de seus países em seus próprios termos, e com um nível de recursos consoante ao desenvolvimento de cada um deles, em sintonia com esforços realistas de mudança social. Eduardo Berman (1983) sustentou que a retórica de recorrer a pesquisadores - e o fato de selecioná-los entre os nativos do Terceiro Mundo para coordenar componentes importantes de programas das fundações norte-americanas - deveria ser confrontado com a possibilidade de que esses indivíduos tenham sido selecionados porque suas disposições intelectuais e políticas os predispunham a alcançar conclusões favoráveis ao enfoque dos temas de interesse das fundações Em anos mais recentes, se tem buscado aprofundar a compreensão da recepção e das respostas locais à � lantropia norte-americana, para além de juízos valor favoráveis ou desfavoráveis e de uma percepção que se concentrava exclusivamente nos doadores. Com relação à região latino-americana, os trabalhos, entre outros, do peruano Marcos Cueto (...) ajudaram a dar a conhecer não só a contribuição da FR para as ciências médicas, como também levaram a

conhecer o caudal de informação organizada em seus famosos arquivos, que cada vez mais estão sendo explorados por investigadores da região ou interessados nela. Numerosas instituições e outras iniciativas cientí� cas da América Latina estiveram associadas à FR (...). Passados 85 anos do inicio das relações de grupos de lideres da atividade médica no estado de São Paulo e da Fundação Rockefeller, Maria Gabriela Marinho leva a cabo a valiosa tarefa de revisar o processo de negociação da colaboração entre ambos os grupos, antecedente importante da transformação institucional em que se inscreve a nova Universidade de São Paulo que nasceria na década de 1930, como também de áreas importantes da ciência brasileira da época.O texto dá a conhecer aspectos detalhados, inclusive minuciosos, do processo e que ajudam a entender sua importância singular no meio nacional e latino-americano. Ilumina aspectos amiúde tácitos, contudo signi� cativos, dos deslocamentos e rupturas políticas e intelectuais que marcaram a pro� ssão médica e as relações político-institucionais do período. Este livro resultará igualmente valioso para aqueles que se interessam pela história da medicina moderna no Brasil e América Latina. Sua exposição e análise clara e sistemática dos principais atores sociais e aspectos fundamentais brindará seus leitores com uma narrativa rigorosa e atraente das origens e trajetória da instituição, e oferecerá informação e marcos alternativos de interpretação (...). Considero que a leitura do livro, por outro lado amena, servirá de estímulo especial para as novas gerações de estudiosos que perseveram na tarefa de expandir a investigação social da ciência e da técnica no Brasil e na América Latina.

Hebe Vessuri, Caracas, Dezembro de 2001(Extraído do Prefácio da 1ª edição de Elites em Negociação)

ISBN

97

8-85

-626

93-1

4-4

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo. A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

Mari

a Ga

brie

la S

. M. C

. Mar

inho

Andr

é Mot

a (o

rgan

izad

ores

)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

gabriela livro capa vol 3 13-002 10.indd 1 7/2/2013 12:56:48

André MotA

MAriA GAbrielA S. M. C. MArinho(orGAnizAdoreS)

Euge

nia

e His

tóri

a: Ci

ênci

a, Ed

ucaç

ão e

Regi

onal

idad

es

4

Eugenia e História: Ciência, Educação e Regionalidades

Enraizadas no século XIX, as concepções e práticas eugênicas foram desa� adas no século subseqüente. Em 1938, o Boletim de Higiene Mental registrava: desde que o nazismo criou institutos de Eugenia, desvirtuando-os de sua � nalidade cientí� ca e humanitária para � ns político-raciais, falsos preconceitos se estabeleceram em torno das doutrinas eugênicas. Tornaram-se tão extensos e profundos que ao propormos, no 3º Congresso Internacional de Higiene Mental, que se recomendasse a todas as faculdades de Medicina do mundo a criação de uma cadeira de Eugenia, foi esta ideia imediatamente posta de lado e considerada como uma tentativa de renascimento do espírito do hitlerismo.

No pós-guerra, organismos internacionais recusaram sistematicamente os preceitos eugênicos e orquestraram a internacionalização da medicina preventiva em clara oposição aos pressupostos eugênicos. E rea� rmaram: se é interesse da Eugenia que a criança nasça bem, isto deve acontecer em igualdade de condições com a mulher do povo ou da alta roda. Se a alimentação sadia, racional, cientí� ca é condição necessária à boa saúde e ao bom rendimento energético é mister que o alimento seja propiciado, igualmente, senão mais fartamente, às classes pobres proletárias, que mais trabalham, que mais produzem.

Naquele contexto, as reformas hospitalares e a expansão das escolas médicas sugeriam que a Eugenia seria sepultada. Contudo, sua presença permaneceu signi� cativa. Destituída de estatuto cientí� co, continuou a vigorar explícita e implicitamente em diferentes instâncias, como no manual Puericultura, publicado pelo governo federal em 1950 e assinado pelo médico Clóvis Correia da Costa. Para o autor, indivíduos portadores de taras constituíam uma carga pesada para a sociedade - pois seus � lhos povoariam reformatórios, asilos, hospitais e cadeias - e a Justiça Alemã cortava o mal pela raiz, condenando o indivíduo à esterilização, embora permitisse o matrimônio (...) matrimônio em branco, sem descendência. A lei nazista foi muito criticada, mais por motivos de ordem política do que por motivos cientí� cos. Assim a esterilização eugênica é medida de alta sabedoria, de grande valor social, não devemos condená-la somente porque teve seu maior surto na ideologia nazista.

É interessante assinalar quanto do passado permanece inscrito no presente. E se a eugenia é um termo combatido e em desuso, certas práticas permanecem ligadas à sua doutrina hierarquizante, restritiva e cada vez mais intervencionista.

ISBN

97

8-85

-626

93-1

6-8

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Eugenia e História: Ciência, Educação e Regionalidades

Andr

é Mot

a Ma

ria

Gabr

iela

S. M

. C. M

arin

ho (

orga

niza

dore

s)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma

história? O que determina a história

de um país? Ocorrências e feitos em

suas principais cidades? Ou, então,

proposições e realizações em centros

geopolíticos formuladores de um

projeto de nação? Ou o que se observa

em sua capital, abrigando o centro

político, o governo e os representantes

do estado nacional? É certo que um

país e, mesmo, uma cidade tal qual,

por exemplo, uma metrópole como

São Paulo, faz-se de heterogeneidades,

situações por vezes convergentes,

outras con� itantes com o projeto que

hegemonicamente caracteriza o país.

É essa diversidade de acontecimentos

e feitos que nos traz a presente

coletânea, apontando os diferentes

aspectos que fazem da medicina

e da saúde pública um campo de

conhecimentos e de práticas com

matizes peculiares, o campo da Saúde

no Brasil. Em seu conjunto os textos

valorizam a experiência do Estado

de São Paulo, abordando temas tão

contrastantes como as instituições

médicas e sanitárias ou a procedência

dos médicos e médicas atuantes

em São Paulo; ou, ainda, como a

contribuição das revistas médicas

na valorização social da ciência à

medicalização dos ‘perigos sociais’,

como as crianças desvalidas ou o crime,

na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal.

Mas se o leque da diversidade temática

– já observando que todos os temas

são trabalhados da perspectiva

histórica e nos con� guram, nesse

mosaico, a história das práticas da

medicina e do sanitarismo – é em outro

leque de contrastes que o presente

livro nos completa as indagações

inicialmente feitas. Aqui comparecem, a

partir da institucionalização das práticas

médicas e de saúde em

São Paulo, realidades de São Paulo,

São José dos Campos, Bragança

Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira,

Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos

mostrar que foi também da diversidade

de situações e questões que, ao longo

da última metade do século 19 e

primeira do século 20, a medicina e a

saúde pública se � zeram modernas, em

uma Saúde propriamente brasileira.

É dessas abordagens de casos,

cotidianos sanitários ou contextos

particulares, que extraímos a percepção

da complexidade de nossa história. Será

com esta riqueza de explorações que

a presente publicação presenteia seus

leitores: do iniciante ao interessado

já experiente em estudos históricos,

mais uma boa contribuição para

aprofundarmos nosso conhecimento

acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

MAriA GAbrielA S. M. C. MArinho

André MotA(orGAnizAdoreS)

Cami

nhos

e Tr

ajet

os da

Fila

ntro

pia C

ientíf

ica e

m São

Pau

lo. A

Fund

ação

Roc

kefe

ller

e s

uas A

rtic

ulaç

ões n

o Ens

ino, P

esqu

isa e

Ass

istê

ncia

para

a Me

dici

na e

Saúd

e (19

16-1

952)

3

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo.

A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

A Fundação � lantrópica em seu sentido moderno tem sido um fenômeno característico dos Estados Unidos no século XX. (...) A Fundação Rockefeller foi uma das pioneiras neste campo e é a instituição mais antiga no gênero. Por suas ações (..) se converteu em uma das marcas mais distintivas da ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com as lisonjas tem recebido também críticas. Na década de 1970, se articularam um conjunto de críticas de tom político ante ao que se percebia como os interesses particulares das fundações e sua in� uência contrária aos interesses de autonomia dos países nos quais atuaram. E. Richard Brown (1979) a julgou como produzindo um “sistema médico que serviu pobremente às necessidades sanitárias da sociedade”, Robert Arnove (1980) a viu como desviando os investigadores dos países do Terceiro Mundo de estudar os problemas de seus países em seus próprios termos, e com um nível de recursos consoante ao desenvolvimento de cada um deles, em sintonia com esforços realistas de mudança social. Eduardo Berman (1983) sustentou que a retórica de recorrer a pesquisadores - e o fato de selecioná-los entre os nativos do Terceiro Mundo para coordenar componentes importantes de programas das fundações norte-americanas - deveria ser confrontado com a possibilidade de que esses indivíduos tenham sido selecionados porque suas disposições intelectuais e políticas os predispunham a alcançar conclusões favoráveis ao enfoque dos temas de interesse das fundações Em anos mais recentes, se tem buscado aprofundar a compreensão da recepção e das respostas locais à � lantropia norte-americana, para além de juízos valor favoráveis ou desfavoráveis e de uma percepção que se concentrava exclusivamente nos doadores. Com relação à região latino-americana, os trabalhos, entre outros, do peruano Marcos Cueto (...) ajudaram a dar a conhecer não só a contribuição da FR para as ciências médicas, como também levaram a

conhecer o caudal de informação organizada em seus famosos arquivos, que cada vez mais estão sendo explorados por investigadores da região ou interessados nela. Numerosas instituições e outras iniciativas cientí� cas da América Latina estiveram associadas à FR (...). Passados 85 anos do inicio das relações de grupos de lideres da atividade médica no estado de São Paulo e da Fundação Rockefeller, Maria Gabriela Marinho leva a cabo a valiosa tarefa de revisar o processo de negociação da colaboração entre ambos os grupos, antecedente importante da transformação institucional em que se inscreve a nova Universidade de São Paulo que nasceria na década de 1930, como também de áreas importantes da ciência brasileira da época. O texto dá a conhecer aspectos detalhados, inclusive minuciosos, do processo e que ajudam a entender sua importância singular no meio nacional e latino-americano. Ilumina aspectos amiúde tácitos, contudo signi� cativos, dos deslocamentos e rupturas políticas e intelectuais que marcaram a pro� ssão médica e as relações político-institucionais do período. Este livro resultará igualmente valioso para aqueles que se interessam pela história da medicina moderna no Brasil e América Latina. Sua exposição e análise clara e sistemática dos principais atores sociais e aspectos fundamentais brindará seus leitores com uma narrativa rigorosa e atraente das origens e trajetória da instituição, e oferecerá informação e marcos alternativos de interpretação (...). Considero que a leitura do livro, por outro lado amena, servirá de estímulo especial para as novas gerações de estudiosos que perseveram na tarefa de expandir a investigação social da ciência e da técnica no Brasil e na América Latina.

Hebe Vessuri, Caracas, Dezembro de 2001(Extraído do Prefácio da 1ª edição de Elites em Negociação)

ISBN

97

8-85

-626

93-1

4-4

Coleção Medicina, Saúde & História

Coleção Medicina, Saúde & História

Caminhos e Trajetos da Filantropia Científica em São Paulo. A Fundação Rockefeller e suas Articulações no Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952)

Mari

a Ga

briel

a S.

M. C

. Mar

inho

Andr

é Mot

a (o

rgani

zado

res)

gabriela livro 11-048 10 capa final2.indd 1 31/8/2011 10:45:34

Quais acontecimentos de� nirão uma história? O que determina a história de um país? Ocorrências e feitos em suas principais cidades? Ou, então, proposições e realizações em centros geopolíticos formuladores de um projeto de nação? Ou o que se observa em sua capital, abrigando o centro político, o governo e os representantes do estado nacional? É certo que um país e, mesmo, uma cidade tal qual, por exemplo, uma metrópole como São Paulo, faz-se de heterogeneidades, situações por vezes convergentes, outras con� itantes com o projeto que hegemonicamente caracteriza o país. É essa diversidade de acontecimentos e feitos que nos traz a presente coletânea, apontando os diferentes aspectos que fazem da medicina e da saúde pública um campo de conhecimentos e de práticas com matizes peculiares, o campo da Saúde no Brasil. Em seu conjunto os textos valorizam a experiência do Estado de São Paulo, abordando temas tão contrastantes como as instituições médicas e sanitárias ou a procedência dos médicos e médicas atuantes em São Paulo; ou, ainda, como a contribuição das revistas médicas na valorização social da ciência à medicalização dos ‘perigos sociais’, como as crianças desvalidas ou o crime, na constituição de áreas disciplinares

como a pediatria e a medicina legal. Mas se o leque da diversidade temática – já observando que todos os temas são trabalhados da perspectiva histórica e nos con� guram, nesse mosaico, a história das práticas da medicina e do sanitarismo – é em outro leque de contrastes que o presente livro nos completa as indagações inicialmente feitas. Aqui comparecem, a partir da institucionalização das práticas médicas e de saúde em São Paulo, realidades de São Paulo, São José dos Campos, Bragança Paulista, Sorocaba, Vale do Ribeira, Rio Claro, São Carlos e Araraquara, a nos mostrar que foi também da diversidade de situações e questões que, ao longo da última metade do século 19 e primeira do século 20, a medicina e a saúde pública se � zeram modernas, em uma Saúde propriamente brasileira. É dessas abordagens de casos, cotidianos sanitários ou contextos particulares, que extraímos a percepção da complexidade de nossa história. Será com esta riqueza de explorações que a presente publicação presenteia seus leitores: do iniciante ao interessado já experiente em estudos históricos, mais uma boa contribuição para aprofundarmos nosso conhecimento acerca das práticas em saúde no Brasil.

Lilia Blima Schraiber, agosto 2011

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. 1 Vol. 2

gabriela livro capa vol 3 13-002 7.indd 1 5/2/2013 10:50:07

Vol. 3

gabriela livro capa vol 4 13-053 7.indd 1 17/09/2013 11:10:28

Vol. 5

gabriela livro CAPA vol 6 14-009 7.indd 1 21/03/2014 14:05:42

Page 2: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 3: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

Maria Gabriela S. M. C. Marinho André Mota

(organizadores)

Ana Lúcia Lana NemiAna Luiza de Oliveira e Oliveira

André MotaFernando Salla

Maria Gabriela S. M. C. Marinho

Coleção Medicina, Saúde & História

Vol. VI

Medicina, Saúde e História: Textos Escolhidos & Outros Ensaios

Page 4: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

© 2014 by Profa. Dra. Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho Prof. Dr. André Mota

Direitos desta edição reservados à Comissão de Cultura e Extensão Universitária da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – CCEx-FMUSP

Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização expressa da CCEx-FMUSP

Imagem da capaAntigo prédio da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, 1914 Acervo do Museu Histórico da FMUSP.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Marco Antonio ZagoReitor

Vahan AgopyanVice-Reitor

PRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

Maria Arminda do Nascimento ArrudaPró-Reitora

José Ricardo de Carvalho Mesquita AyresPró-Reitor Adjunto de Extensão Universitária

Marina Mitiyo YamamotoPró-Reitora Adjunta de Cultura

FACULDADE DE MEDICINA

Giovanni Guido CerriDiretor

José Otávio Costa Auler JuniorVice-Diretor

COMISSÃO DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

José Ricardo de Carvalho Mesquita AyresPresidente

Cyro Festa NetoVice-Presidente

ASSISTÊNCIA TÉCNICA ACADÊMICA

Márcia Elisa da Silva WerneckAssistente Técnica Acadêmica

SERVIÇO DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIAMeire de Carvalho AntunesCoordenação Rita de Cássia Marques de FreitasVice-Coordenação

MUSEU HISTÓRICO “PROF. CARLOS DA SILVA LACAZ”André MotaCoordenação Gustavo Querodia TarelowPesquisa/Apoio Museu Clebison Nascimento dos SantosConservação Maria das Graças Almeida AlvesSecretaria

HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FMUSPGiovanni Guido CerriPresidente do Conselho Deliberativo Eloísa Silva Dutra de Oliveira BonfáDiretora Clínica Marcos Fumio KoyamaSuperintendente

FUNDAÇÃO FACULDADE DE MEDICINAFlavio Fava de MoraesDiretor Geral Yassuhiko OkayVice-Diretor

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC (UFABC)

Klaus Werner CapelleReitor

Dácio Roberto MatheusVice-Reitor

NÚCLEO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE

Maria Gabriela S. M. C. MarinhoCoordenação

Maria de Lourdes Pereira FonsecaVice-Coordenação

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO E IMPRENSA

Alessandra CastilhoCoordenação

EDITORACD.G Casa de Soluções e EditoraGregor Osipoff www.cdgcs..com.br

Museu Histórico “Prof. Carlos da Silva Lacaz”da Faculdade de Medicina da Universidade de São PauloAv. Dr. Arnaldo, 455 – sala 4306 – Cerqueira César – São Paulo-SP – Brasil – CEP: 01246-903Telefone/fax: 55 11 3061-7249 – [email protected]/museu

Medicina, Saúde e História: Textos Escolhidos & Outros Ensaios / Maria Gabriela S. M. C. Marinho, André Mota (organizadores). - São Paulo : USP, Faculdade de Medicina: UFABC, Universidade Federal do ABC: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2014

176 p. : il. ; 21 cm. (Coleção Medicina, Saúde e História, 6)

Vários autores ISBN: 978-85-62693-21-2

1. Medicina. 2. Saúde. 3. História. - Antropologia. I. Marinho, Maria Gabriela S. M. C. II. Mota, André. III. Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina.

CDD 575.1

613.94

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Vânia Aparecida Marques Favato – CRB-8/3301

E87

Page 5: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

SumárioPrefácio ..................................................................................................................................................................................7

Parte 1FaculdadE dE MEdIcIna da unIVErSIdadE dE SãO PaulO: bIOgraFIaS E MundO ESTudanTIl .............................................................................................9

arnaldo Vieira de carvalho: um percurso pela formação intelectual e rede de sociabilidades (1880-1913) ......................................................................................... 11Maria Gabriela S.M.C. Marinho

arnaldo Vieira de carvalho: história e memória de um médico ilustre ... 33André Mota

Medicina e ensino médico em São Paulo, 1891-1918:disputas e conflitos de um projeto em construção ....................................................57Maria Gabriela S. M. C. Marinho

centro acadêmico Oswaldo cruz, 1913-1940: primeiros movimentos, primeiras histórias ..................................................................................................................................81André Mota

ParTE 2MEdIcIna E SaúdE: ESPEcIalIdadES E InSTITucIOnalIzaçãO .................109

Hospital São Paulo/SPdM: atendimento à saúde entre o público e o privado nos anos 70 do século XX .................................................................... 111Ana Nemi

Medicina legal e perícias médicas em processos criminais. constituição de saberes e aplicação de procedimentos médico-legais. campo, personagens e práticas periciais: São Paulo e bragança.(1890-1940) .... 141Maria Gabriela S. M. C. MarinhoFernando Salla

Fisioterapia como ocupação: indícios de uma prática no brasil ...................155Ana Luiza de Oliveira e OliveiraAndré Mota

sobre os autores .................................................................................................................... 173

Page 6: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 7: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

7

PrEFÁcIO

Com o presente volume, alcançamos a marca de seis títulos publicados pela Coleção “Medicina, Saúde e História” e completamos, assim, quatro anos de busca sistemática e articulação de redes no meio acadêmico. Nosso esforço ao identificar pesquisas, estudos e debates em torno de novas ou antigas agendas sobre temas e problemas da Medicina, das Práticas Médicas e de Saúde tem nos revelado aspectos inesperados sobre suas dimensões históricas, mas também nos recolocam as urgências, angústias e misérias do presente.

Para a História, seu maior alimento será sempre o acontecimento. Aquele ponto de luz que traz a singularidade para os fatos comezinhos, inaugurando o novo entre personagens e contextos muitas vezes perdidos pela memória dos tempos. É nesse sentido, portanto, que concebemos a História e a Coleção - como trama que se tece entre as categorias de passado e presente, constructos modelados por imaginários e culturas que se interrogam sobre o tempo e a existência.

Assim, se a ideia de aforismo, tributária de Hipócrates, ganhou espaço na formulação de juízos sobre homens e mulheres a partir de sintomas e indícios, aos poucos, com a Modernidade, a dimensão humana da doença e da morte foi se estabelecendo, mas também se dissolvendo, em um saber de bases mecanicistas e empiristas que se enreda nos protocolos das teorias e das práticas.

Concebido o século XX como período de dissolução profunda das tradições da modernidade, instituições médicas e de saúde buscam, sob novas condições, adaptar institucionalmente velhos costumes, criando linguagens e práticas específicas. Ainda assim, alguns de seus discursos persistem na construção de uma linha originária que de modo recorrente, e por vezes anacrônico e farsesco, busca ancoragem e referência nos antigos gregos em um tempo, prática ou episteme que não existem mais.

Perante a exigência de coletar, registrar, documentar e analisar, práticas que compõem o ofício de historiadores e historiadoras, ensejamos neste número um retorno aos estudos que nós, organizadores, realizamos nos últimos anos, individualmente ou em parcerias. Trata-se aqui de levar a público ainda mais amplo um conjunto de estudos que privilegiaram certos limites históricos nos quais se evidencia a institucionalização das práticas médicas e de saúde em São Paulo. Nesse número, o conjunto de textos recolhidos encontra-se enriquecido pela contribuição da pesquisadora Ana Nemi, historiadora que generosamente vem se juntar aos organizadores no esforço de adensar o debate sobre as relações, tensões e contradições entre médicos, medicina, suas práticas e instituições.

Page 8: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

8

O quadro que poderá emergir dessa leitura cruzada aponta para um campo formativo cujas forças ainda estão vigentes por meio de representações individualizadas de certos personagens, mas igualmente pelo impacto de tecnologias, teorias e movimentos que se configuraram dentro e fora do Brasil. Em meio a particularidades, reiterações e sobreposições, podemos identificar elementos de tensão entre parâmetros que se não eram inteiramente locais, também não reproduziam por completo diretrizes dos círculos internacionalizados com os quais os personagens buscavam interagir.

É desse modo, portanto, que a profusão de questões e aspectos assim entrelaçados nos aponta, afinal, para a complexidade de forças e de elementos que configuram o que concebemos por saúde e doença.

Mª Gabriela S.M.C. MarinhoAndré Mota(Organizadores)

Page 9: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

Parte 1Faculdade de Medicina da

universidade de São Paulo: biografias e mundo estudantil

Page 10: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 11: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

11

ArnAldo VieirA de CArVAlho: um perCurso pelA formAção inteleCtuAl e rede de soCiAbilidAdes (1880-1913)1

Maria Gabriela S.M.C. Marinho

Figura central na organização do campo médico em São Paulo, seja por sua atuação na Faculdade de Medicina, seja pelo longo percurso trilhado em órgãos públicos ou correlatos – na clínica, na assistência hospitalar ou nas atividades da área biomédica – Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho expressou, por meio de sua trajetória intelectual e institucional, as profundas transformações de seu tempo. A capacidade de liderar a implantação das instituições que fundou ou dirigiu não pode ser explicada apenas por atributos de caráter e personalidade. Imerso no ambiente patriarcal do século XIX, oriundo de família com sólida inserção nos meandros do poder oligárquico, Arnaldo viabilizou projetos que, em suas circunstâncias históricas específicas, lograram transcender compromissos exclusivos de origem e assumiram dimensão pública relevante.

Confrontado por um tempo social que trazia a mudança pela base e pelo alto, Arnaldo Vieira de Carvalho diplomou-se em Medicina no Rio de Janeiro em 1888, o mesmo ano da abolição da escravatura. No evento de sua diplomação no Rio de Janeiro, o imperador Pedro II participou pela última vez da solenidade em que tradicionalmente prestigiava com sua presença a formatura dos jovens médicos na escola da Corte.2 O derradeiro ato do imperador, simbólico de um tempo que findava com o ocaso da monarquia, apontava para as transformações com as quais muito lentamente a sociedade

1 MARINHO, Maria Gabriela S.M.C. Arnaldo Vieira de Carvalho: um percurso pela formação intelectual e rede de sociabilidades (1880-1913) in: MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela S.M.C.(Orgs.) Arnaldo Vieira de Carvalho e a Faculdade de Medicina: práticas médicas em SP 1888-1938. 1ed.São Paulo: Museu Histórico da Faculdade de Medicina - USP, 2009.

2 A escola, na época, era dirigida por Vicente Cândido Figueira de Saboia, médico cearense que se tornou barão e depois Visconde de Saboia. Doutor em Medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, diplomado em 1858, foi lente catedrático em 1871 e tornou-se diretor da Faculdade em 1881. No ano seguinte, foi oficializado como médico do Casa Imperial e Cirurgião da Corte.

Page 12: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

12

brasileira aprenderia a conviver – e que se colocariam como desafio e impasse para a atividade dos médicos ali diplomados.3

A herança da escravidão havia legado para aquela geração uma sociedade hierarquizada e profundamente assimétrica. Uma das faces da desigualdade, enraizada e tratada com mal disfarçada indiferença, se traduzia na penúria das condições sanitárias. A negligência com os espaços públicos expunha a riscos cada vez mais maiores a saúde da população pobre, que se encontrava dispersa pelo vasto território do país ou concentrada nas habitações improvisadas das principais cidades brasileiras. Uma delas em especial, a cidade de São Paulo, vivenciava no final do século XIX um intenso processo de crescimento em razão da riqueza trazida pela expansão da cafeicultura e, por decorrência, da presença crescente de imigrantes estrangeiros.

Ponto estratégico de articulação da economia cafeeira, São Paulo encontrava-se a meio caminho entre o interior do Estado, por onde se estendiam os cafezais, e o porto de Santos, área de escoamento da gigantesca produção que abastecia o mercado internacional. A cidade que rapidamente se modificava recebeu novamente o jovem médico, logo após sua diplomação no Rio de Janeiro. E em 1889, quando Arnaldo já se encontrava definitivamente instalado, a proclamação da República no final daquele ano desencadearia um período de novas turbulências políticas com a deposição da monarquia. Em meio às acomodações do poder e rearranjos entre os grupos que disputavam o controle da máquina administrativa e lutavam em torno das hegemonias partidárias, o jovem Arnaldo encontrou

3 Amargurado por descaminhos da existência, Arnaldo escreveria, quase trinta anos depois de sua formatura, sobre o ato da diplomação: “São sonhos roseos de uma noite apenas – aquella em que, emocionados por um juramento solenne, recém-investidos de um sacerdócio, adormecemos embalados por visões suaves de um porvir risonho, convencidos sinceramente de aos novos encargos assumidos corresponder a sociedade, delles usufructuaria, com algum reconhecimento e consideração. Puro engano. Ao despertar da manhã seguinte já sentimos o pungir dos primeiros espinhos da concorrencia perfida e desleal o amargar da ingratidão e do pouco caso. Muito cedo o recém-formado compreende o valor do sacerdócio em que o iniciaram e seus mystérios. De um lado vê seus confrades mais se assemelhando a um bando de bifarinheiros a cata de lucros fácil engazufiando a freguesia. De outro lado depara a clientela, por sua vez, a pechinchar socorros médicos como se mercadorias fossem de chatins. Conturbado pelo triste espetáculo só uma alma forte não se esquecerá também, de que pertence a uma classe nobre, devendo ser sempre digna, e com o divino encargo de aliviar sofrimento. Cf. CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Memórias. Manuscrito, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP). Agradeço a Márcia Regina Barros da Silva a cessão da transcrição inicial das memórias que ela efetuou junto ao Museu Histórico. De volta aos originais, foi possível decifrar algumas passagens e promover pequenas alterações na primeira versão da transcrição cedida.

Page 13: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

13

espaço para o início de sua atuação institucional.4 A primeira experiência deixou um aprendizado marcante, relata o próprio Arnaldo:

“Muito cedo senti quanto é grande a deslealdade dos collegas. Quando recebi o grau, meu pai occupava um dos lugares de vice--presidente da provincia foi isso em 1888 – considerações eram dispensadas pelos conservadores de então a um correligionario digno e de alto valor moral e scientifico. Por essa razão fui pelos conservadores nomeado medico da Immigração – em substituição de um collega idoso a quem a molestia prostara e vagarosamente matava. Essa nomeação era um cumprimento ao membro da União Conservadora e não um premio a meu merito. Quem meu filho beija, minha boca adoça. Eu bem compreendi. Aceitei o cargo com reluctancia de meu pai medrozo de se anki-losar o filho em empregos publicos de que era adversario intransi-gente – ancioso por encetar uma carreira, representar um papel na sociedade e por-me em evidencia. Desejos de mocinho! Vaidades de creança! Poucos muito poucos annos depois já não pensava eu assim; já comprehendia a vantagem de no theatro social, se preferir a platea ao palco.Mas, voltemos á vacca fria. Nesse tempo tinha o governo termi-nado a construção da actual hospedaria de immigrantes, a maior obra publica da epoca, em S. Paulo, em relação directa, alias, com o immenso movimento immigratorio pelas necessidades do café, determinado na provincia e nella se abrigavam diariamente milha-res e milhares de europeus arribados a Santos. Era tão frequente a entrada em nosso porto de navios pejados de trabalhadores que, muita vez, a lotação da hospedaria era excedido e então o accumu-lo se dava com todos os seus graves inconvenientes. As molestias tropicaes, a falta de hygiene e a falta de aclimatação davam-se as mãos e faziam surgir epidemias devastadoras dos recemvindos.

É de notar dominarem, naquelle tempo, os bachareis aos negocios publicos e nelles não se imiscuirem os medicos por motivos que nunca compreenhendi. Por esta razão os emprehendimentos offi-

4 Nascido na cidade de Campinas em 1867, filho do advogado Joaquim José Vieira de Carvalho, vice-presidente da Província e antigo diretor da Faculdade de Direito de São Paulo, muito cedo, aos cinco anos de idade, começou a freqüentar a Escola Americana na cidade de São Paulo. Na capital, Arnaldo completou os estudos no Colégio Morton, estabelecimento de grande prestígio entre as elites locais, o qual se posicionava, junto com o Colégio Culto à Ciência, de Campinas, como instituição sintonizada com práticas pedagógicas renovadas, de estímulo ao conhecimento científico, em contraposição à formação de cunho religioso predominante na maior parte das escolas no período. Logo depois, entre 1881 e 1883, frequentou o Curso Anexo da Faculdade de Direito, onde realizou exames de madureza, habilitando-se ao ingresso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Conferir, no próximo capítulo, mais detalhes em torno de sua trajetória pessoal.

Page 14: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

14

ciaes não obedeciam aos dictames da sciencia de Hypocrates e os preceitos de hygiene não tinham força para se imporem. Nessas condições bem se pode imaginar que deveria ser a hospedaria de immigrantes de S. Paulo – dirigida por um advogado, assistida por um medico doente velho, acumulada de pensionistas victimados por epidemias e sem asseio. Conhecesse-a Dante e mais um circulo figuraria em seus infernos onde purgassem culpas os que abando-nassem a patria em busca de ouro. E na verdade era assim a hos-pedaria de imigrantes quando, pela primeira vez, lá entrei para ser investido do cargo de medico do estabelecimento.

Nessa epoca, em Janeiro de 1889, a febre amarella assolava San-tos e da etiologia do terrivel mal nada sabiamos – ainda em nosso ultimo ano de clinica, para que os estudantes aprendessem a co-nhecel-a, não se removiam das enfermarias communs as victimas do typho americano nellas aparecidas. Não se admittia o contagio. Dominava a pathologia coetanea e hypothese de ser o mal de Sião um resultado do conubio tetrico dos miasmas do typho e da malaria e portanto só em condições regionaes especialissimas se gerava a terrivel epidemia, apanagio triste das zonas maritimas e alagadiças. Nessa suposição não havia myster de cuidados prophylaticos uma vez galgada a Serra do Mar – e como meu antecessor commungava nessas ideias, na enfermaria dos immigrantes os amarellentos lade-avam os leitos de outros enfermos!.

Essas anormalidades, desculpaveis em face dos conhecimentos medicos de então, assumiam proporções muito mais serias quando sempre com o consentimento medico, tambem parturientes se cir-cundavam de anciosos ictericos a borrifaren-as de vomito negro.

Todas estas cousa, hoje, a luz dos novos conhecimentos, pasmo-sos ainda naquelle tempo não impressionavam a medicina official – uma porem eu lá vi de arrepiar cabellos em qualquer epoca. O necroterio era constituido por uma sala do porão do pavilhão da enfermaria; sobre ella estavam mulheres recem paridas em com-panhia de sarampentos; e nella estava em putrefação franca um cadaver a vinte e quatro horas a espera que o enterrassem!!

Ora, para um moço desejoso de fazer figura, imbuido das novas ideais de antisepsia e assepsia e com noções muito claras e vivas de hygiene recebidas nas prelecções do professor adoravel que era Rocha Faria, o scenario de seus futuros feitos era muito pouco animador. Desalentava-me a perspectiva segura da inutilidade de

Page 15: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

15

meus esforços, fossem elles herculeos, em tal meio; envergonha-va-me do juizo formulado pelos doentes a quem deveria socorrer, todos homens civilizados provenientes de terras cultas. Sobre os homens e as cousas do meu paiz, repugnava-me, sobretudo, a ideia de aquiescer com semelhantes monstruosidades e passar por desbrido corredor de ordenados. Ao mesmo tempo meu ca-valheirismo, meu brio profissional, impelliam-me, sob pena de ser tachado de cobarde e accomodativo, a luctar desde logo para collocar a repartição a mim entregue, naquelle dia, ao nivel dos meus ideais e do bom nome de S. Paulo.

Não trepidei um momento. Cheio de illusões humanitarias e con-fiante na justiça da causa, terminada a primeira visita de inspecção, corri celere ao gabinete do administrador e expuz-lhe lealmente as pessimas impressões de tudo que vira. Ao mesmo tempo apresentei longa lista de reformas e providencias urgentissimas das quaes de-penderia minha permanencia no posto de medico dos immigrantes.– Voce começa mal. Tentar – replicou o director, um bom velho, ig-norante, typo acabado do manga d’alpaca, mal acabara eu minhas reclamações indignadas – mal toma posse e já quer tanta cousa. O outro aqui esteve tanto tempo e se accomodou com o que ha.– Pois meu amigo – retruquei eu – ou se faz o que peço ou vou-me embora. – Neste caso voce vai ao presidente da provincia – respondeu o velho – eu não tenho autoridade para tanto. Voce é muito moço doutor.Fui ao presidente. Este, achando justissimas minhas considerações sobre as condições horrorosas dos immigrantes doentes, remetteu--me ao inspector da immigração, um outro bacharel, que com o vi-cio profissional em longo arrazoado procurou demonstrar ser tudo assim mesmo e nem poder ser melhor.

Diante da energia com que repelli taes affirmações me foi prome-tido attender minhas reclamações e para começar ordens seriam dadas para, naquelle mesmo dia, removerem o necroterio, de baixo da enfermaria para ponto conveniente. Agradeci e ao retirar-me fiz sentir ao inspetor esperar eu que as providencias projectadas fos-sem reais e não meras promessas a reclamante impertinente – o inspector jurou pela sinceridade do seu proceder.

No dia seguinte verifiquei, com magua ingenua, pretenderem apenas contemporisar quando me promettiam reformas e, pela inercia sopitar o enthusiasmo de um medico moço. Não hesitei

Page 16: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

16

um instante. Procurei o presidente e depois de agradecer a con-fiança que lhe merecera depuz em suas mãos a renuncia ao cargo por impossibilidade material de bem desempenhal-o. Natural-mente a petulancia do meu procedimento irritara o supremo ad-ministrador da provincia. Despeitado com o que chamou de falta de consideração deu-me imediatamente um substituto. Na manhã seguinte o orgão official em uma entrevista com o meu sucessor insinuava ter eu renunciado o cargo por medo de febre amarella!Pela primeira vez experimentava a perfidia de um [ilegível] a cata de posição na politica.Grande foi o gaudio de meu pae vendo-me afastado do emprego publico e resolvido a dedicar-me inteiramente a clinica. Não vale a pena dedicar-se um moço á clinica sem uma boa escola onde aper-feiçoar seus sentidos e aprofundar seus conhecimentos ... Neste particular era homem feliz – tinha a minha disposição a S. Casa de Misericordia onde, quando estudante passava as ferias e, depois de formado, todas as manhãs.”5

Ao ingressar, em 1888, como assistente voluntário da Santa Casa de Misericórdia, Arnaldo somava 21 anos. Ali conheceu Luiz Pereira Barretto, médico de grande prestígio social e político, membro ilustre do Partido Republicano Paulista (PRP), no qual chegou a participar da Comissão Executiva, que se tornaria uma figura decisiva em sua formação. Sobre este encontro, cerca de trinta anos depois, em 1918, Arnaldo escreveria em páginas avulsas de seu diário:

“Quando iniciei a vida clinica em S. Paulo, Barretto era o vulto mais proeminente do scenario medico. Medico, phylosopho e bio-logista, em todos essas repartições do saber humano, aprofundou elle seus conhecimentos e se constituiu autoridade respeitável. Ques-tões scientificas se não debatiam em nosso meio sem que o velho medico de Jacarehy nellas tomasse parte. E sempre dominou amigos e inimigos com a lógica da argumentação, apoiada em fascinante linguagem de emérito representante da classe medica nacional.A principio não apreciei devidamente esse mestre – digo aqui mui-to a puridade. Quaes os sentimentos que me dominavam não posso nem pude jamais bem compreender. Era talvez um misto de in-veja e consciência da própria ineficiência. O facto é que toda vez de abordar Barreto em assumpto pela imprensa, ao lel-o sentia eu uma tal ou qual irritação e procurava, em vez dos fructos preciosos do mestre, de encontrar motivos de crítica. Se, por acaso, alguma

5 Cf. CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Memórias. Manuscrito, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico ( FMUSP). É mantida a grafia original.

Page 17: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

17

vez me esbarrava com alguma discrepância entre a afirmada por Barretto e o concorrente, no momento, na medicina official, ufano procurava com um argumento na esperança de diminuir um pouco a distancia separadora de minha insignificancia da figura [ilegível] do publicista.A superioridade de Barretto era porem esmagadora e eu que desde muito moço procurei bem me conhecer a mim mesmo, compre-endi sem detenção trilhar errado caminho, estar fazendo o papel dos cães em noite de luar. Reconhecendo lealmente a elevação do velho mestre, seus vastos conhecimentos das sciencias medicas e naturaes fiz [ilegível] honorable. Tornei-me um seu imitador. Rei-niciei o estudo com afinco das cadeiras basicas do curso medico, recapitulando e aperfeiçoando o sabido e aprendendo o que me faltava saber.”6

Proveniente dos segmentos que em São Paulo atuaram muito de perto no trânsito político entre o Partido Conservador e a formação do movimento republicano7, a proximidade com Luiz Pereira Barretto permitiu ao jovem aprofundar estes vínculos ao longo de sua trajetória pessoal. Nas décadas iniciais do século XX, quando já se haviam definido com mais nitidez os trunfos e os interesses em jogo na proclamação da República, Arnaldo Vieira de Carvalho passaria a ser estreitamente identificado com o grupo político que gravitava em torno de Rodrigues Alves. A proximidade com Rodrigues

6 Cf: CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Memórias. Manuscrito, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP), mantida a grafia original quando o médico era ainda estudante. Após a morte de Arnaldo, em 1920, Steidel elaborou o necrológio. Um ângulo distinto da aproximação de Arnaldo Vieira com a Santa Casa de Misericórdia é oferecido por Frederico Vergueiro Steidel, referindo-se provavelmente ao ano de 1885, oficial proferido em sessão da Mesa Conjunta da Irmandade, no qual relata: “Há 35 anos, por uma quente manhã de estio um dos benfeitores desta casa, colaborador de sua administração e paulista notável por seu saber e sua honradez, o meu antigo mestre doutor Joaquim José Vieira de Carvalho, entrava neste hospital então composto de três enfermarias, acompanhando um moço apenas saído da meninice, de olhar inteligente e franco, exuberante de vida e atividade, ansioso por aprender. Esse moço era o seu filho estudante de medicina (...) que aproveitava as férias escolares para se iniciar na arte de curar frequentando as enfermarias e ouvindo as lições dos clínicos mais notáveis de São Paulo nesse tempo – Caetano de Campos, Guilherme Ellis, Pereira Barreto, Carlos Botelho, Nicolau Vergueiro, Eulálio Carvalho, Ribeiro de Almeida, Adolfo Gad...”. Cf. GUIMARÃES, Antonio da Palma. Noticia sobre Arnaldo Vieira de Carvalho. Mimeo, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP).

7 A irmã de Arnaldo Vieira de Carvalho, Albertina Vieira, foi a segunda esposa de Adolpho Affonso da Silva Gordo, figura proeminente do Partido Republicano e sucessivamente membro de sua comissão Executiva entre 1889 e 1915. Em primeiras núpcias, Adolpho Gordo fora casado com Anna, filha de Luiz Pereira de Campos Vergueiro. Cf. CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926), São Paulo, Brasiliense, 1987 e GUIMARÃES, Antonio da Palma. Arnaldo Vieira de Carvalho: biografia e crítica, São Paulo, Faculdade de Medicina da USP, 1967. O pai, Joaquim José Vieira de Carvalho, professor da Faculdade de Direito, era maçom e liderou em Campinas a reabertura da Loja Maçônica Independência, da qual participariam, entre outros, Cerqueira Leite, Francisco Glicério e Campos Salles. As lojas maçônicas representaram também um espaço de propaganda republicana, especialmente nas grandes regiões de plantio de café, no interior de São Paulo. Arnaldo acompanhou a dissidência do PRP e manteve, até o final da vida, vínculos muito estreitos com o grupo do jornal O Estado de S. Paulo, redação que frequentava diariamente. A proximidade política resultou em vínculos familiares e a filha de Arnaldo, Marina Vieira de Carvalho, casou-se com Julio de Mesquita Filho, diretor do jornal por cerca de quarenta anos e figura-chave no ambiente intelectual de São Paulo.

Page 18: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

18

Alves era antiga. Joaquim José Vieira de Carvalho, pai de Arnaldo, havia sido o segundo vice-presidente da Província de São Paulo, na primeira gestão de Rodrigues Alves à frente da condução política do Estado entre 1888 e 1889, em período extremamente conturbado pela crise social que antecedeu a Abolição.8

Diplomado pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1870, nascido em Guaratinguetá, Rodrigues Alves9 seria eleito por duas vezes presidente da República, mas não assumiu pela segunda vez. O primeiro mandato presidencial, entre 1902 e 1906, associou decisivamente sua figura às questões sanitárias, pela profunda remodelação urbana e sanitária promovida na cidade do Rio de Janeiro e implantada por Pereira Passos, prefeito nomeado por Rodrigues Alves. No mesmo período, designou também Oswaldo Cruz como diretor-geral de Saúde Pública, o qual, em 1904, decretaria a vacinação obrigatória da população, desencadeando o forte movimento de oposição historicamente conhecido como a Revolta da Vacina.10

Em 1912, como governador de São Paulo, Rodrigues Alves entregaria a Arnaldo Vieira de Carvalho a tarefa de implantar a Faculdade de Medicina. A vinculação ao grupo de Rodrigues Alves ficaria tão evidente que detratores e adversários usavam desta associação como elemento das intrigas urdidas no calor das disputas. Uma carta anônima enviada a Arnaldo em virtude de nomeações frustradas para a Faculdade de Medicina indica o nível de acirramento das tensões:

“Ao Ominisciente, et Omnipotente Astro que brilha noite e dia em todos os lugares, em toda parte e em todos os cantos.Que séro tamen: Dar-te-hei a devida resposta, argumentada e do-cumentada; agora o estado de sitio chronico, e a censura para ga-rantir todas as verdades de não serem publicadas, corta tudo ao que não convém aos potentados de feira. Gostei da tua entrevista ao reporter do Estado, está muito boa, jovens septuagenarios, e alguns outros desconhecidos em S. Paulo deram prova de seu saber, capa-cidade, etc., de modo a constituírem um corpo de professores, tout à faire comme il faut... seulement madame cachemire, non est lá...

8 Para uma descrição do envolvimento de Rodrigues Alves e sua condução ao poder da província, consultar MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Rodrigues Alves. Rio de Janeiro/São Paulo: José Olympio/Editora da Universidade de São Paulo, 1973, 2v.

9 Proveniente do Partido Conservador, foi eleito senador pelo Partido Republicano Paulista em 1893, 1897 e 1916. Conselheiro do Império, presidiu a província de São Paulo em 1888 e 1889, além de ter cumprido vários mandatos como deputado provincial. Rodrigues Alves assumiu seu primeiro mandato na presidência da República em 1902. Depois, assumiu a presidência do Estado de São Paulo entre 1912 e 1916. Eleito novamente para a presidência da República, em fins de 1918, não assumiu e faleceu em janeiro de 1919.

10 O tema tem gerado um rico debate historiográfico que pode ser conferido em: SEVCENKO (1993), MEIHY & BERTOLLI (1995), MOTA (2002), CHALLOUB (2004), CARRETA (2006).

Page 19: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

19

Na nossa opinião o único professor da sua Faculdade de sociedade com o rodriguesalvismo, que deu provas de seu saber e valor em concurso na Bahia, foi o Oscar Freire.Porque você com toda sua potencia jamais conseguirá destruir o valor do concurso.Elle o destemido”11

CientifiCismo, positiVismo e eVoluCionismo

Do mesmo modo que o quadro político ensejara mudanças drásticas na ordem institucional no período em que Arnaldo principiou sua existência adulta, a conjuntura histórica que o circundou, de seu nascimento em 1867 até a morte em 1920, redefiniu e reorientou diversas esferas da vida social. Uma das mudanças mais emblemáticas desencadeou-se no âmbito das transformações tecno-científicas, propiciando o surgimento das correntes filosóficas em torno do cientificismo, do evolucionismo e do positivismo. Marcada pela crescente valorização da ciência e pelo deslumbramento diante das inovações tecnológicas, a primeira metade do século XIX presenciou também a organização, profissionalização, institucionalização e posterior difusão de práticas científicas, inicialmente nos institutos de pesquisa e nas universidades alemãs. Posteriormente, a vinculação ensino-pesquisa como pressuposto da organização universitária difundiu-se para outras instituições européias e norte-americanas.

O novo padrão de produção do conhecimento científico assentado em bases profissionais provocou a aceleração das descobertas e o desenvolvimento de inovações técnicas. Por outro lado, a industrialização crescente induziu à invenção de novas tecnologias e o conhecimento decorrente de sua aplicação à agricultura e à indústria contribuiu para aumentar ainda mais o estoque de saberes considerados científicos. Ciência e técnica reafirmaram-se como campos autônomos e em mútua determinação. Em decorrência, novas interações foram-se configurando e permitiram o desenho de um campo epistêmico que passaria a valorizar prioritariamente atributos como objetividade, racionalidade e pragmatismo aplicados em todos os campos da atividade humana.

Regidas por cânones dessa ordem, associados, por sua vez, a ritmos e objetos técnicos que expressavam uma nova relação tempo-espaço, como a locomotiva, o telégrafo, o telefone, a fotografia, o cinema, entre outros

11 Cf. Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP). Optou-se por manter a grafia original da carta. Para detalhes da disputa em torno do concurso, ver MARINHO (2009).

Page 20: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

20

exemplos, as transformações em curso se configuravam também na esfera urbana, nas relações de sociabilidade, nas formas de percepção e cognição. Ao mesmo tempo, conquistas científicas no campo da microbiologia permitiam entronizar a Higiene como redentora das mazelas sociais. Estabelecia-se um novo vocabulário para lidar com o corpo e a doença.

A medicina e as práticas médicas adquiriram novos significados no século XIX e se credenciaram como arautos e instrumentos da civilização eurocêntrica, moderna, que, admitida como entidade superior, deveria, como tal, prevalecer como modelo e referência para toda a humanidade. Às elites médicas cabiam, portanto, sucessivas tarefas. Não bastava promover as condições que conduziriam ao bem-estar individual ou coletivo. A tarefa do médico, em especial de suas elites profissionais, não se deveria restringir à cura das enfermidades: era preciso também reformar o meio social. Tais concepções, contudo, eram confrontadas por Arnaldo Vieira de Carvalho em seu período de formação com uma realidade distinta, mas em transformação, o que permitiu acumular parâmetros para sua atuação futura.

A formAção médiCA no rio de JAneiro

Instalada por um longo período na rua da Misericórdia – feia, suja, escura e torta, conforme a descrição legada aos pósteros12 –, a escola médica do Rio de Janeiro constituíra-se, ao longo do século XIX, como um dos dois destinos possíveis para jovens estudantes que aspiravam à medicina como carreira e restringiam sua formação ao solo nacional. Atividade de ganhos desiguais, mas com prestígio em presumida ascensão13, a medicina atraía jovens oriundos de famílias razoavelmente abonadas que podiam assegurar

12 “A Escola de Medicina, desde longos anos estabelecida no velho prédio da rua da Misericórdia, vizinho da Santa Casa, a dois passos do mar, não dispunha sequer de conforto e asseio. (...) As turbulências, na suja e escura rua, ruas desengonçadas, tortas, íngremes e coloniais do morro do Castelo, às portas da Escola, onde pretos vendem laranjas e bananas (...).” Cf. PONTES, 1944.

13 O prestígio da profissão médica no século XIX é questionado por Ferreira, especialmente sem seu artigo Medicina impopular. Outras fontes e autores, no entanto, apontam na direção contrária. Conferir correspondência de Pedro Chernovitz, médico polonês cujo nome original era Piotr Czerniewicz, autor do difundido Dicionário de Medicina Popular e do Formulário ou Guia Médico do Brasil, amplamente utilizado no período imperial. Chernovitz chegou ao Rio de Janeiro em 1840, quando a cidade contava com aproximadamente 137 mil habitante e cerca de 90 médicos. “Se começo a pensar em minha profissão, vejo como o povo está enganado, achando que os médicos estão felizes e bem-sucedidos; de fato, há alguns que o vento da boa fortuna elevou acima da multidão, mas a maioria dificilmente consegue ganhar seu sustento, há portanto muitos que não conseguiriam sobreviver se não tivessem outros lucros.” In: HERSON (1996) apud COELHO (1999). MACHADO et al. (1978) indicam que registros do século XVII endereçados à Coroa manifestavam o interesse da população na presença de médicos na colônia. Por outro lado, uma parte da literatura acadêmica indica também que, para se afirmar, a medicina profissional e institucionalizada precisou negociar com as práticas terapêuticas populares, como aponta Ferreira (2003), que assinala uma visão mais pessimista da população em relação ao prestígio do médico.

Page 21: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

21

aos filhos o deslocamento de províncias então muito distantes para a capital do Império e ali custear-lhes a dispendiosa formação médica. No ambiente da antiga Corte, as duas escolas médicas existentes no imenso território estavam localizadas no Rio de Janeiro e em Salvador e seriam transformadas por decreto de outubro de 1832 em Faculdades de Medicina.14

A iniciativa se alinhava a um conjunto de outras ações promovidas por decretos oficiais e também por grupos sociais ou indivíduos movidos por interesses particulares, que conduziam para a institucionalização e regulação das práticas médicas. Práticas que até então estavam marcadas muito mais pela presença de tradições populares do que pela intervenção organizada do Estado. De impacto, eficácia e implicações distintas, as medidas variavam entre si. Contudo, iam da extinção em 1828 da Fisicatura-Mor – órgão instituído por D. João VI em 1808 e responsável pela fiscalização e regulamentação das artes de curar – até a criação em 1829, pelos próprios médicos, da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, transformada, seis anos depois, em Academia Imperial de Medicina.15

Nas décadas seguintes, em meio às complexas transformações políticas e culturais vivenciadas pelos diferentes segmentos que compunham a sociedade brasileira no período, a escola do Rio de Janeiro, apesar de suas precariedades, iria tornar-se referência para o campo médico que se organizava e, desse modo, passaria a cumprir um duplo papel. De um lado, competia à Faculdade de Medicina atualizar-se perante o saber produzido nas escolas européias, sobretudo francesas, e vocalizar aos pares – em suas sessões periódicas – a dinâmica do conhecimento produzido nos prestigiados centros acadêmicos internacionais.

Ao mesmo tempo, cabia à escola do Rio de Janeiro emanar instruções para segmentos médicos nas diferentes províncias, articulando práticas

14 As duas instituições de ensino foram criadas em 1808, como resultado da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, ambas com a denominação de Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica, primeiro em Salvador, desembarque inicial da Coroa, e depois no Rio de Janeiro. Inicialmente, os dois cursos foram instalados nas dependências do Hospital Real Militar. Anos mais tarde, em 1813, a escola médica do Rio de Janeiro foi transferida para a Santa Casa, onde permaneceu até 1832. Como aponta Sanglard, “(...) Os problemas advindos da convivência entre a Faculdade de Medicina e as sucessivas Mesas Diretoras da Irmandade da Misericórdia denotam o conflito maior entre duas práticas distintas: de um lado a caridade e de outro o ensino médico – este último representando a tentativa de medicalização do hospital.Tais práticas foram obrigadas a conviver no mesmo espaço em face da ausência de outro hospital na capital do Império que pudesse abrigar as aulas práticas da Faculdade de Medicina. Aliás, o pleito por um hospital próprio parece ter sido a marca desta instituição desde a sua criação. A primeira tentativa de se dotar a Faculdade de um prédio próprio foi feita no final do Império, sem que o projeto tenha saído do papel. Em 1918 é finalmente inaugurado o prédio da Faculdade na Praia Vermelha, porém as enfermarias da Santa Casa continuaram a ser o local da prática médica. Na década seguinte discute-se o plano para o Hospital das Clínicas da Faculdade, mas as obras iniciadas em 1927 são paralisadas quatro anos depois. Somente em 1978, com a inauguração do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na ilha do Fundão, a Faculdade de Medicina ganha seu hospital próprio – o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho”. Cf. SANGLARD, 2005, p. 52.

15 A Fisicatura-Mor substituiu a Junta do Proto-Medicato instituída em 1792 por D. Maria. A mesma conjuntura de transformações sociais e institucionais propiciou o surgimento da imprensa médica especializada, conforme aponta Ferreira, 2003, p.103.

Page 22: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

22

então muito diversas em um novo protocolo de racionalidade científica.16 Portanto, muito antes da difusão e ampla aceitação das teorias microbianas, que se propagaram a partir das experiências exitosas de Pasteur nas últimas décadas do século XIX, a Faculdade de Medicina deveria encarregar-se de introduzir localmente conhecimentos e práticas consideradas inovadoras no campo da Higiene e da pesquisa anatomoclínica, além de aderir às correntes que professavam a Climatologia e a Topografia Médica.17

As tarefas que lhe competiam nem sempre estavam evidentes no cotidiano e nas rotinas acadêmicas. Arnaldo, por exemplo, não pouparia críticas à formação ali recebida. Anos mais tarde, registrou em suas memórias um conjunto de ácidas lembranças do tempo de estudante:

“Com zelo de neophito convencido dediquei-me as minhas novas funções – adjunto da enfermaria de cirurgia de homens e interno da S. Casa. Médico novo e muito compenetrado da importancia do titulo, eu me apercebi, depois das primeiras penas na clinica, quão deffeituosa e defficiente era a educação ministrada por nossa escola no Rio. Os cursos não tinham nada de praticos, os labora-torios eram pauperimos e as clinicas defeituosamente assentadas. Os professores tentavam compensar o que lhes faltava em technica por manifestação rethorica de uma exuberancia tropical de belle-za peregrina mas de resultados pouco apreciáveis. A logica, mas a logica escholastica, cheia de sillogismos com premissas pouco seguras e inçadas de sophismas supriam as demonstrações concre-tas e arroubos de eloqüência entretinham a attenção dos alunnos de modo tal que chegavam a não se apperceberem não lhe fornecerem os lentes provas concretas e demonstrações praticas daquillo sobre que discorriam. Um exemplo. Durante dois mezes a fio o professor de anatomia pathologica dis-correu com erudição impecavel sobre a inflamação, suas causas e sua theoria, sobre esta ultima, principalmente, esforçava-se o ho-

16 Evidentemente, relações muito complexas regem o processo de circulação do conhecimento médico-científico e não se pode considerar de forma reducionista que tal circulação se dê apenas na direção capital-província. A experiência da Escola Tropicalista Baiana, como bem analisada por Edler, desmonta tal concepção. Contudo, o próprio Edler aponta, por outro lado, como a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro cumpriu esse papel, como assinalado na passagem transcrita mais adiante.

17 Cf. EDLER, Flavio Coelho. A medicina no Brasil imperial: fundamentos da autoridade profissional e da legitimidade científica. Anuario de Estudios Americanos, Tomo IX, I, 2003. Para o autor “(...) são inúmeras as evidências de que os médicos formados pelas escolas médicas do Rio de Janeiro e Salvador despenderam grandes esforços no necessário trabalho de inovação científica nos campos do diagnóstico e da terapêutica, na identificação dos agentes deletérios ambientais que se acreditava estarem implicados na produção das doenças próprias ao nosso clima, e na adequação das medidas profiláticas propugnadas pela Higiene às condições nacionais. E fizeram-no não apenas institucionalizando a pesquisa anatomoclínica e higienista, mas também assimilando seletivamente alguns ramos das ciências naturais – a Botânica, a Meteorologia, a Climatologia, a Geologia, a Topografia – de cujo conhecimentos eles dependiam para levar a cabo a agenda de pesquisas sobre a patologia brasileira proposta inicialmente pelo grupo que criou a Academia Imperial de Medicina, em 1829” (p. 141).

Page 23: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

23

mem caudalosamente e terminou se declarando partidario convicto das ideias de Cohnheim – eram as mais recentes, isto foi em 1884 – . Entretanto nunca, quer nas aulas praticas quer nas areas, se nos mostrou os microscopio o [ilegível] como hoje corriqueiro no en-sino de semelhante disciplina – (p 83) mas disso sabiam, e sobre isso discutiam, de memoria.As aulas praticas de anatomia pathologica eram ridiculas. Durante um ano letivo assistiamos a umas seis ou oito autopsias, muito per-functorias; de histologia nada se nos ensinavam e se nos exigiam provas praticas desses cursos no fim do anno. Verdade se deve di-zer – as provas praticas de anatomia pathologica eram mais ridi-culas que as aulas. Numa sala pouco illuminada nos apresentavam em ampla base de ferro, sobre uma meza de marmore, a granel as visceras mal cheirosas de um cadaver em decomposição. De um lado o professor impertinente, com um lenço perfumado defenden-do a pituitaria sensivel entre os odores [ilegível].

Do outro o alunno excitadiço, olhos e cerebro alertas, para disparar sofrida resposta a pergunta de sopetão feita e [ilegível] Que é isto? inquiria o mestre, de indicador destendido, apontando de longe um ponto incerto de massa nauseante de visceras amol-lecidas.

É o figado, respondia hesitante o alunno. Não senhor, ao lado, essa viscera meio pequena, redarguia o mestre.É o rim.Que tem de anormal?Esta grande demais.Quanto pesa um rim normal?Que cor tem o figado?E o baço?

E em mais cinco ou seis perguntas desse genero se [ilegível] nossa prova pratica de anatomia pathologica. E assim se tratava uma dis-ciplina fundamental.

Não era com mais amor tratada a cadeira de anatomia cirurgica. Em uma aula o tempo se esgotava na descripção pela cathedra de inumeros e inuteis processos operatorios cuja maioria só ti-nham valor horatorio. Nos ensinavam, e obrigavam a armazenar na memoria, oito ou dez maneiras de tirar a [ilegível] dos olhos, quatro ou cinco das [ilegível] de modellos de pinças para phy-mosis e nos intimavam a não esquecer de incluir nos meios de

Page 24: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

24

synthese as serras finas de Vidal de Cursi. Nos transformavam em summa, em catalogos de museus de antiguidades.

Entretanto, alem de ligaduras e amputações, intervenção alguma faziam a nossa vista ou nos faziam praticar nos cadaveres. Não divergiam dos acima descriptos os processos didaticos de tantas cadeiras de clinicas.

Memoraveis discursos ouvimos sobre propedeutica. Os meios e processos de exames de doentes desfillavam deante nós em mar-cha amparada pelo rithmo melodioso e sonnoro da mais castiça e elegante linguagem. Sobre elles se espelhavam polychromia cam-biante do mais apurado estylo, a proposito delles ouviamos as har-moniosas memorias das mais elegantes prosas. Encantavam-nos os ouvidos, deleitava-nos os espiritos mas ... não nos educavam os dedos nem os sentidos – da percussão e auscultação quase só ficavamos conhecendo a terminologia purista; da technica apenas os prolegomenos.

Entretanto ao nos ouvirem discorrer sobre um qualquer caso ba-nal nos tomariam pelos furibundos medicos de Molliere ou por quinhentistas portugueses. Da rhetorica era a mimese a figura que mais cultivavamos. Talvez pensem que exageremos. A leitura de tratados naquella epoca publicados – a propedeutica de [ilegível] de Castro, por exemplo – convencerá do erro os que assim nos julguem.

Não seria um bom discurso e com phrases classicas que abriria caminho na clinica – esforcei-me por isso para completar e corrigir minha educação medica, uma vez que tinha por mentores homens e mestres de indiscutivel valor.”18

ContrAdições de umA soCiedAde em trAnsformAção

Inserida em uma sociedade polimorfa e contraditória, a Faculdade era um dos instrumentos – ao mesmo tempo político e científico – de que dispunha o Império brasileiro em sua posição inusitada de monarquia

18 Cf. CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Memórias, s/d.

Page 25: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

25

nos trópicos. Contornado por imenso território e imerso em múltiplas práticas de cura nas quais se mesclavam as heranças indígenas, jesuíticas e africanas, o Império confrontava-se, também, em meados do século XIX, com a imposição de uma nova ordem política que se desenhava no horizonte social e um volume ascendente de impasses e contradições. A precariedade das práticas acadêmicas acidamente descritas por Arnaldo tinha seu correspondente na vida e no cotidiano de uma população premida pelas transformações em curso no Rio de Janeiro.

As crescentes trocas comerciais estabelecidas com mercados distantes alimentavam a circulação de novos hábitos, comportamentos e idéias diferenciadas. Mas os navios que aportavam no Rio de Janeiro não intercambiavam apenas mercadorias, expectativas ou atitudes. Os fluxos ampliados de pessoas e produtos sobrecarregavam e saturavam a cidade, ainda de molde e feições coloniais. Ruas, becos e cortiços acumulavam lixo e o trânsito desordenado de pessoas, caleças e tílburis colidia com dejetos e esgotos. Resíduos de alimentos e animais mortos decompunham-se em putrefação acelerada sob o sol dos trópicos. Armazéns, mercados, matadouros, oficinas, hospedarias, residências, bancos, casas comerciais e de câmbio conviviam com a intensa atividade das ruas, onde escravos, vendedores ambulantes, libertos ou forros ofereciam serviços variados em troca da própria sobrevivência.

A herança colonial – social e urbanística – pesava cada vez mais sobre o espaço urbano, forçado a assumir funções novas e diferenciadas perante a expansão do comércio externo e o influxo de hábitos desconhecidos. E a desatenção do poder público com a insalubridade crescente cobrou um preço alto da população do Rio de Janeiro, principal porto comercial do Império brasileiro. Pessoas e mercadorias desembarcadas trouxeram a morbidade das epidemias que se tornaram implacáveis sob o signo da febre amarela, da varíola e do cholera morbus. As precárias condições locais encarregaram-se de difundir e multiplicar rapidamente o avanço letal das enfermidades.

Em dezembro 1849 e ao longo do verão de 1850, a febre amarela tomou conta do Rio de Janeiro em proporções até então inéditas.19 Reincidentes nas décadas seguintes, sucessivas epidemias de varíola, febre amarela e do cholera, ostensivas e letais, tornaram inadiável a adoção de práticas sanitárias e a criação de instituições e regulamentos que pudessem de algum modo

19 “Numa população de 166.000 habitantes a doença causou, segundo as estimativas do médico Pereira Rego, 90.658 amarelentos e 4.160 mortos, no auge, que começou com os meses “calmosos” de janeiro, fevereiro e março, fez de 80 / 90 vítimas por dia.” (BENCHIMOL, 1992, p. 113 ). A epidemia foi trazida para a cidade, em 3 de dezembro de 1849, quando atracou no porto do Rio de Janeiro, o vapor americano Navarro, vindo de Salvador, onde grassava um grande surto da doença. Ao chegar ao porto da cidade a tripulação já estava contaminada, e o seu proprietário assustado, vendeu o navio e seus tripulantes foram dispensados, hospedando-se em estabelecimentos no centro da cidade (Rua da Misericórdia), vizinhanças dos Mineiros e do Peixe e para os lados da Prainha e da Saúde.

Page 26: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

26

interditar a devastação que se alastrava.20 Como reação à primeira grande epidemia de 1850, o poder público constituiu a Comissão Central de Higiene Pública. Logo em seguida, em 1851, a Comissão foi transformada em Junta Central de Higiene Pública, que se responsabilizaria pelas diretrizes imperiais no campo da Saúde Pública, entre as quais figurava a elaboração de um Regulamento Sanitário e a instituição nas províncias das respectivas Comissões de Higiene Pública.21

Acompanhar as diferentes medidas sanitárias adotadas em decorrência das epidemias de febre amarela no Rio Janeiro, a partir de meados do século XIX, permite visualizar de que modo as ações do poder público foram-se constituindo na área da Saúde Pública no período imperial. Por outro lado, seguir a trajetória de adesão dos médicos na busca de conhecimentos mais extensos e profundos sobre as causas da enfermidade alarga a compreensão sobre o modo como a pesquisa biomédica, em seus primórdios, se instalou localmente, com profundas repercussões na Faculdade de Medicina.22

Foi, portanto, em meio a um complexo processo de diferenciação social e política, mas também do tíbio enraizamento da atividade científica no Brasil imperial, que o jovem estudante Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho desembarcou no Rio de Janeiro em 1883, em busca de formação médica.23 Por ter freqüentado o Curso Anexo da Faculdade de Direito, onde realizou exames

20 Em julho de 1855, um intenso surto de cólera tomou conta da cidade do Rio de Janeiro e, após dois meses, a situação fica calamitosa, devastando a população, superlotando isolamentos e cemitérios. A doença havia chegado ao porto do Rio de Janeiro, no dia 18, quando o navio Imperatriz aportara com passageiros e tripulantes contaminados pela doença; para atendê-los o governo adquiriu um prédio em Jurujuba, num sítio chamado Várzea, nascendo aí o Lazareto da Várzea, que após uma década de serviços prestados, junto com o Sanatório Jurujuba, foi cedido ao Serviço de Saúde do Exército para receber combatentes da Guerra do Paraguai, no tratamento de doenças infecto-contagiosas.

21 Com a erupção da epidemia de 1850, o poder central, objetivando a sua consolidação em torno da legitimação de um Estado “benfeitor e protetor”, deu seu primeiro passo rumo à elaboração de uma política de saneamento público. Durante este surto, multiplicou-se o número de enfermarias na idade, aos cuidados da Santa Casa de Misericórdia, que recebia vultosos subsídios para o tratamento de doentes pobres. Os remédios cedidos pelas boticas, as roupas de cama, a comida, o transporte e tudo mais que era necessário para cuidar dos acometidos eram oferecidos pelo governo imperial. Consultar: A febre amarela de 1850 e os debates no legislativo: Cruz Jobim e Paula Cândido e a formação da Junta Central de Higiene Pública no Rio de Janeiro, de Monique de Siqueira GONÇALVES, Usos do passado. XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2. Em 1886, o órgão passaria a se chamar Inspetoria Geral de Higiene.

22 Nesse sentido, um nome de destaque é o de Domingos José Freire Junior que desenvolveu vacina largamente utilizada. Consultar BENCHIMOL (1999).

23 Há a indicação, não-confirmada, de que teria sido hospedado, durante sua permanência no Rio de Janeiro, pelo casal Bernardino Ferreira da Silva e Basilisa Augusta Vieira Ferreira. Consultar correspondência de Antonio Palma Guimarães. Certamente trata-se de família com vínculos de parentesco, pois a avó paterna de Arnaldo tinha constava com o nome de batismo de Basilisa Augusta Vieira.

Page 27: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

27

de madureza, habilitou-se com dezesseis anos ao ingresso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.24

Apesar das mudanças institucionais em curso, as práticas estudantis permaneciam irreverentes e pretensamente desafiadoras de costumes eventualmente sisudos. No Rio de Janeiro, a recepção aos jovens calouros que ingressavam na Faculdade de Medicina é narrada a partir da experiência de Olavo Bilac. Parcialmente contemporâneo de Arnaldo, Bilac ingressou naquela escola em 1880 e a abandonou quatro anos depois, em 1883. As atividades e peripécias reservadas aos calouros da Faculdade no Rio de Janeiro são descritas por Eloy Pontes, um dos biógrafos de Bilac:

“A recepção aos calouros revela aspectos espantosos, organizando--se comícios e desfiles, com discurso e béstias, durante dias, com Gaudio dos que passam. Miguel Couto, quando a Academia Brasi-leira homenageou a memória de Olavo Bilac, em 1918, teve ensejo de avivar a cena de sua matricula na Escola de Medicina. Como todos os calouros ele percorre as ruas com o paletó ao avesso, gri-nalda de folhas na testa em procissão de alegria. Mas, vai senão quando os colegas o intimam a falar. Olavo Bilac faz, então, um discurso magnífico.”25

Bilac e Arnaldo se reencontrariam três décadas mais tarde em meio às articulações para a criação da Liga de Defesa Nacional, da qual o médico paulista se torna o vice-presidente e membro do diretório regional. O próprio Bilac se encarregaria de oficializar a adesão de Arnaldo à causa, conforme o oficio assinado pelo poeta e transcrito a seguir:

“Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1917Exmo Sr. Dr. Arnaldo Vieira de CarvalhoMD Membro do Directorio Regional do Estado de São PauloTenho a honra de levar ao vosso conhecimento que, em sessão re-alisada no dia 29 de janeiro do corrente anno, com a presença e a direcção de S. Ex. o Sr. Presidente da Republica, também Presiden-

24 A realização de exames de madureza foi uma prerrogativa introduzida em abril de 1879 pela Reforma Leôncio de Carvalho, que instituiu a liberdade de ensino superior no país. O mesmo decreto permitiu o ingresso de mulheres no ensino superior e, embora modificado em maio de 1881 pelo barão Homem de Mello, sucessor de Leôncio, suas diretrizes permitiram importantes inovações no currículo das Faculdades de Medicina, que se expressaram na introdução de novas cadeiras, desdobramento de disciplinas, e constituição de laboratórios. Sobre as reformas do ensino médico no século XIX, consultar EDLER (2003).

25 Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 1865 e morreu em 1918, na mesma cidade. Ingressou na Faculdade de Medicina em 1880. É considerado um dos mais expressivos poetas da corrente parnasiana no Brasil, junto com Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e expoente do debate intelectual na cena pública brasileira de 1888, quando publicou sua primeira obra Poesias, até o ano de sua morte. Deixou extensa obra, entre artigos, crônicas, sonetos, que foi compilada, em 2002, mediante um paciente trabalho de recuperação de originais e análise crítica. Cf. DIMAS (2006). Ver também PONTES (1944).

Page 28: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

28

te da Liga de Defeza Nacional, fostes eleito pelo Directorio Central para o cargo de membro do Directorio Regional desse Estado, ten-do sido o vosso nome acclamado pela assembléa.Em nome da Liga da Defeza nacional, peço-vos que vos digneis a acceitar, com o vosso alto patriotismo, esta incumbência, accres-centando mais este grande serviço aos que já prestastes ao engran-decimento do Brasil.

Apresento-vos, com o mais vivo prazer, a segurança da minha mais distincta consideração e estima.

Olavo Bilac Secretario Geral”26

Na segunda década do século XX, Olavo Bilac havia-se tornado uma das figuras mais atuantes no cenário intelectual do país e sua pregação pela instituição do serviço militar obrigatório encontrou grande repercussão. Na origem desta campanha, a principal questão associava-se à formação da nacionalidade, tema recorrente em um ambiente social marcado pelas inquietações resultantes da Abolição. Mais tarde, a proximidade de Arnaldo Vieira de Carvalho com Olavo Bilac resultaria na visita do poeta à escola médica de São Paulo

Em 1915, na condição de diretor da então Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, Arnaldo convidou Bilac a apresentar-se aos estudantes da recém-criada escola e pôde, assim, atar duas pontas de sua existência. As palavras de Bilac certamente receberam a aprovação de Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho, então na plenitude de sua maturidade, quando já vinha revelando, em alguns momentos, um certo desencantamento com a existência, assim como o poeta se expressou em seu pronunciamento:

“Apenas saído da adolescência, fui, como vós, estudante de me-dicina. No velho edifício da Faculdade do Rio, naquele recanto da feia rua da Misericórdia, ao lado do mar, entre árvores antigas,

26 A Liga de Defesa Nacional apresentava a seguinte composição: Diretório Regional do Estado de São Paulo, membros: Dr. Altino Arantes, presidente do Estado, Candido Motta, Antonio Prado, Carlos Botelho, Antonio Francisco Paula Souza, Arnaldo Vieira de Carvalho, Reynaldo Porchat, Vergueiro Steidel, Julio de Mesquita, Carlos de Campos, Candido Rodrigues, Luiz Pereira Barretto, D. Duarte Leopoldo, Amadeu Amaral, Plinio Barreto, Roberto Moreira, Francisco Tito de Souza Reis, Carlos Augusto da Silva Telles, Augusto Freire da Silva, Mario Cardim, João Chysostosmo, diretor da Instrução Publica de São Paulo, Placido Gonçalves Soares, Nestro de Barros. Alfredo Pujol. (Sede na Rua do Ouvidor, 89-1º Rio de Janeiro). Cf. Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho, in: Museu Histórico FMUSP.

Page 29: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

29

abriu-se à Vida o meu espírito, inquieto e ávido, de asas tontas, de vôo indeciso. Ali vivi, dos 15 aos 20 anos; desvendou-se, ali, para mim o maravilhoso e doloroso espetáculo do universo e do homem; na Faculdade e no Hospital, na aula e na enfermaria, – a princípio tímido aprendiz dos segredos das ciências naturais, de-pois, ansioso iniciado na biologia, freqüentador dos anfiteatros e dos laboratórios, ajudante de preparador de fisiologia experimen-tal, interno de clínica, – adquiri este exaltado gosto de curiosidade, e este doce e amargo sentimento de tristeza resignada, com que tenho, até hoje, atravessado a existência.”27

referênCiAs bibliográfiCAs

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos, um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural/Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes /Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992.

BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ed. UFRJ, 1999.

CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Memórias. Manuscrito, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP).

CASALECCHI, José Ênio. O Partido Republicano Paulista (1889-1926). São Paulo: Brasiliense, 1987.

CARRETA, J. A. O micróbio é o inimigo: debates sobre a microbiologia no Brasil (1885-1904). 2006. Tese (Doutorado) – Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT-IG/UNICAMP). Campinas, 2006.

CHALHOUB, Sidney. Cidade fabril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

27 Ultimas conferencias e discursos (Bilac) apud PONTES, 1944, p. 45-46.

Page 30: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

30

COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999.

DIMAS, Antonio. Bilac, o jornalista. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. 3 v.

EDLER, Flavio Coelho. A medicina no Brasil imperial: fundamentos da autoridade profissional e da legitimidade científica. Anuario de Estudios Americanos, Tomo IX, I, 2003.

FERREIRA, Luiz Otávio. Medicina impopular. In: CHALOUB, Sidney et al. Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

GONÇALVES, Monique de Siqueira. Usos do passado. XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2.

GUIMARÃES, Antonio da Palma. Arnaldo Vieira de Carvalho: biografia e crítica. São Paulo: Faculdade de Medicina da USP, 1967.

GUIMARÃES, Antonio da Palma. Noticia sobre Arnaldo Vieira de Carvalho. Mimeo, s/d. In: Fundo Arnaldo Vieira de Carvalho. Museu Histórico (FMUSP).

MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1978.MARINHO, Maria Gabriela S.M.C. Medicina e Ensino Medico em São

Paulo, 1891-1918: disputas e conflitos de um projeto em construção. In: Centro Acadêmico Oswaldo Cruz: a historia dos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo: FMUSP/FFM, 2009.

MEIHY, J.C. & BERTOLLI FILHO, C. Revolta da vacina. São Paulo: Ática, 1995.

MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Rodrigues Alves. Rio de Janeiro/São Paulo: José Olympio/Editora da Universidade de São Paulo, 1973. 2 v.

MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo: EDUSP, 2005.

MOTA, André. A Revolta da Vacina (verbete). In: BITTENCOURT, Circe (Org.) Dicionário de datas da história do Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. p.259-262.

PIMENTA, Tânia Salgado. O exercício das artes de curar no Rio de Janeiro (1828 a 1855). 2003. Tese (Doutorado em História) – UNICAMP, Campinas, 2003. (Mimeo).

Page 31: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

31

PONTES, Eloy. A vida exuberante de Olavo Bilac. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.

RIOS, Venétia Durando Braga. Entre a vida e a morte: medicina, médicos e medicalização na cidade de Salvador (1860-1880). 2001. Dissertação (Mestrado) –Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UNB, 1981.

SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: filantropia, mecenato e práticas científicas: Rio de Janeiro, 1920-1940. 2005. Tese (Doutorado em História da Ciência e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005.

_____. A construção dos espaços de cura no Brasil: entre a caridade e a medicalização. Revista Esboços, n. 16. UFSC, vol. 13, n. 16, 2006.

SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 1993.

Page 32: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 33: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

33

arnaldo Vieira de carvalho: história e memória de um médico ilustre1

André Mota

André Mota

“Desta vez o gigante toca a terra para nunca mais se erguer. Con-greguemo-nos em torno do nome de Arnaldo Vieira de Carvalho diante de sua campa aberta e vivamos na paixão de suas obras, para que, como ele, fiquem elas imortais.”(Olympio Portugal, 5 de junho de 1920.)

introdução

Entre 1850 e 1930 a profissão médica consolidava-se, com base em um “êxito histórico” encontrado em sua fonte de riqueza e status, assentado em sua autoridade, com o médico passando a responsabilizar-se por uma nova idealização do homem diante das intempéries da vida, na qual sua segurança e sua proteção contra os golpes mais brutais do destino, como a doença e a morte, seriam controlados “cientificamente”, a partir de então, pelos esculápios.2 Em São Paulo, nesse período, as mudanças em torno da medicina ganharam espaço de forma paulatina e truncada, por mais que muitos discursos tentassem dar à Capital um status de modernização e à ciência médica pautada na bacteriologia um espaço amplo de difusão.3 Configuravam-se, nessa mesma época, diferentes instituições, que exerciam diferentes papéis na organização do mundo médico paulista. “Primeiro, porque em várias delas ocorriam esforços para fixar os limites da produção de saberes e conhecimentos sobre diversos processos de saúde e doença, como nas publicações periódicas. Em outras ocorriam ainda propostas de

1 MOTA, André. Arnaldo Vieira de Carvalho: história e memória de um médico ilustre. In: MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela S.M.C.(Orgs.) Arnaldo Vieira de Carvalho e a Faculdade de Medicina: práticas médicas em SP 1888-1938. 1ed.São Paulo: Museu Histórico da Faculdade de Medicina - USP, 2009, v. 1, p. 63-106.

2 STARR, Paul. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. p.13.

3 MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo: EDUSP, 2005.

Page 34: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

34

especialização e de formação de profissionais como na Santa Casa e na Policlínica de São Paulo.”4 Com os desdobramentos apontados e somados ao aparecimento de outros atores decisivos, como as investidas, no campo do ensino e da pesquisa na área médica, da Fundação Rockefeller a partir de 19165, configurou-se uma medicina cada vez mais tecnológica no ambiente científico e das práticas de saúde.6

Foi nesse terreno que Arnaldo Vieira de Carvalho firmou-se como principal expoente da medicina em São Paulo, legitimado pelo seu sobrenome numa terra provinciana e republicana, mas ainda cheia de hierarquias dos “tempos do imperador”, somado à sua competência numa profissão em ascensão, a do médico. Em sua pessoa foram depositadas enormes expectativas, por suas ações no sentido de organizar uma “certa elite médica”, como também de introduzir na profissão o conhecimento científico apreendido ainda em sua formação na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre 1883 e 1888, período em que essa instituição passou por profundas reformas no campo curricular e no desenvolvimento da ciência.7

ArnAldo VieirA de CArVAlho e A fACuldAde de mediCinA e CirurgiA de são pAulo

Nascido em 5 de janeiro de 1867, Arnaldo Vieira de Carvalho era filho de Carolina Xavier de Carvalho e de Joaquim José Vieira de Carvalho, advogado formado pela Faculdade de Direito de São Paulo e lente de várias disciplinas, até ser empossado catedrático de Economia Política em 1881. Além disso, Joaquim de Carvalho foi Juiz Municipal em Campinas, deputado provincial pela União Conservadora, segundo vice-presidente da Província de São Paulo do governo Rodrigues Alves e primeiro vice-presidente do governo de Francisco Antonio Dutra Gonçalves. Com a República, também foi deputado estadual e senador.

Em razão dessa biografia paterna, Arnaldo Vieira de Carvalho sentiu a influência de seu sobrenome quando voltou a São Paulo, depois de sua

4 SILVA, Márcia Regina Barros da. O mundo transformado em laboratório: ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo de 1891-1933. 2004. Tese. (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p.96.

5 MARINHO, Maria Gabriela S.M.C. Elites em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo: 1916-1931. Bragança: EDUSF, 2003.

6 SCHRAIBER, Lilia Blima; MOTA, André; NOVAES, Maria D.H. Tecnologias em saúde. In: Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde / Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz, 2006.p.248-257 (verbete).

7 BENCHIMOL, Jayme Larry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz / Editora UERJ, 1999.

Page 35: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

35

diplomação, em 1888, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. De fato, logo foi designado para cargos importantes: entre 1888 e 1889, foi assistente voluntário da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e médico responsável pela Hospedaria dos Imigrantes, da qual se demitiu em 1889. Nesse mesmo ano, foi médico-adjunto, médico cirurgião e vice-diretor clínico da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Entre 1893 e 1913, foi diretor do Instituto Vacinogênico; em 1894, foi chefe da clínica e diretor do hospital da Santa Casa e, entre 1895 e 1920, fundador e sócio da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Escrevendo no jornal O Estado de S. Paulo sob o pseudônimo de Epicarnus, entrou em várias polêmicas sobre os rumos da cidade, do Estado e do país, no que dizia respeito a questões de saúde e de organização médica. Via a capital paulistana como um local de agregação de sua corporação, mas profundamente desorganizado e com problemas sociais gravíssimos. Considerava que a medicina era capaz de intervir e solucionar esse impasse, inclusive formando seus próprios profissionais: “Esse ideal somente será atingido quando os médicos forem parte ativa da solução dos nossos problemas sociais, que, como todos os problemas sociais, são problemas de fisiologia – ciência básica de nossa profissão. Remodelar esse ponto de nossa organização social é tema sedutor”.8 Surgiu dele também a iniciativa de um movimento para fazer sair do papel a tão sonhada Faculdade de Medicina oficial de São Paulo. Para isso, não poupou esforços e até desestimulou a manutenção de uma escola médica criada e gerida por Eduardo Guimarães, desde 19119, na capital paulista. Quando essa fechou as portas em 1917, Arnaldo vinha estabelecendo lineamentos seguros para que a sua faculdade não tivesse o mesmo fim. Isso porque, desde o começo, enfrentou as dificuldades geradas pelo cotidiano da escola fundada por ele. Os assuntos eram diversos, mas alguns exemplos ajudam a apresentar a sua atitude diante dos problemas, desde os mais comezinhos aos de maior relevância. Frise-se que, nos primeiros anos dessa instituição, foram enfrentadas muitas dificuldades, como mostram os ofícios enviados por ele mesmo ao Secretário dos Negócios do Interior.

A primeira “sede provisória” da Faculdade de Medicina e Cirurgia foi instalada, em 1913, na Escola de Comércio Álvares Penteado e na Escola Politécnica, cedidas por suas diretorias. Um ano depois, foram arrendados os prédios da rua Brigadeiro Tobias, nos. 1 e 42 para receberem, enfim, a Administração e as Cadeiras de Física, Química, História Natural, Anatomia Descritiva, Fisiologia e Farmacologia, Histologia, Anatomia e Histologia Patológica, Microbiologia e Patologia Geral. Em 1915, várias cadeiras de clínicas começaram a ser instaladas no Hospital Central da Santa Casa de

8 Gazeta Clínica, São Paulo, dez. 1916, p. 142.9 MOTA, André. USP avant USP: o caso da Faculdade de medicina em 1911.Revista da USP, no. 61, São

Paulo, 2004, p. 210-221.

Page 36: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

36

Misericórdia, excetuando-se a Cadeira de Clinica Obstétrica, que ficaria na Maternidade São Paulo, e a Cadeira de Clínica Psiquiátrica, instalada no Hospital do Juquery e no antigo Recolhimento das Perdizes.10 Tudo parecia resolvido, mas, quando os cursos começaram a desdobrar-se em novas turmas, os espaços passaram a ser avaliados como insatisfatórios, quer pelas péssimas instalações, quer pelo tamanho reduzido das salas.

Diante das condições consideradas precárias em que se trabalhava, Arnaldo solicitou novas instalações às autoridades estaduais: “A casa atual, apesar de velha, é insuficiente para abrigar os cursos em exercício. Ela não poderá receber as novas cadeiras a serem estreadas no ano escolar de 1916 (...) para poder V. Exa. ajuizar quanta razão assiste às nossas considerações, basta dizer que mais de cem contos – bem mais – já foram consumidos em menos de quatro anos de existência de nossa Escola. É um capital completamente perdido para todos os efeitos, exceto para o de servir de argumento capcioso, mas de impressionar, contra nós, em se tratando de analisar o custo do ensino médico em São Paulo”.11

Em ofício de 25 de abril de 1917, essa questão já assumia proporções alarmantes, a ponto de se inviabilizarem alguns cursos: “Chamo para isso a melhor atenção de V. Exa. – que este ano as duas novas cadeiras (patologia geral e terapêutica) não puderam ser dotadas de laboratórios. Tivemos que aproveitar os laboratórios de microbiologia e fisiologia para neles serem dados os cursos práticos recém-criados. Os estudos práticos sofrem com isso, em ambas as disciplinas, que funcionam no mesmo laboratório”.12

Além das instalações impróprias, do dinheiro gasto em reformas e da dispersão física da faculdade – com estudantes espalhados pela cidade, em prédios alugados e emprestados –, havia um tópico que envolvia questões éticas. Dada a precariedade das edificações, a população começou a “participar” das deficiências vividas, assistindo e protestando, horrorizada, à entrega de cadáveres humanos e de animais para diversas aulas.

A direção da Faculdade avaliava o fato como gravíssimo, por envolver toda uma “leitura particular extramuros”, ou seja, a participação da população, dizendo-se ofendida por deparar com cadáveres em pleno espaço público. Um dos motivos para pleitear um novo prédio era a possibilidade de construírem-se túneis que ligassem as clínicas ao hospital ou o necrotério municipal às alas da faculdade responsáveis pelo recolhimento de cadáveres para estudo. Ainda em 1918, Arnaldo reportava-se à falta de um prédio apropriado:

10 LACAZ, Carlos da Silva. História da Faculdade de Medicina, USP: reminiscências, tradição, memória de minha escola. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 1999. p.6.

11 Ofício no 181, 22 de dezembro de 1916, apud GUIMARÃES, Antonio da Palma. Arnaldo Vieira de Carvalho: biografia e crítica. São Paulo: Faculdade de Medicina da USP,1967. p. 830.

12 Ofício n. 94, 25 de abril de 1917, apud GUIMARÃES, 1967, p.833.

Page 37: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

37

“Pondere V. Exa. no que de anormal há em distribuirmos cadáveres para três casas diversas; julgue V. Exa. quanto me custa fazer isso com as devidas cautelas, para não ofender as suscetibilidades do público, sempre propenso a ver nos estudos anatômicos graves desrespeitos aos mortos e às respectivas famílias. Imagine também V. Exa. quão difícil é fazer também esse serviço com o devido asseio, para não melindrar a dignidade da Faculdade e a compostura dos cargos administrativos que ocupamos. Mas nem somente com o serviço de cadáveres se dão dessas coisas desagradáveis. Com o serviço de animais, com os três biotérios que possuímos, mais ou menos a mesma coisa acontece. Não pode haver um depósito de forragens e há, forçosamente, um aumento de serventes para que não pereçam o asseio e a higiene. Além do mais, não podemos nos ocultar da vista do público, que hipocritamente alar-deia comiseração pelos animais empregados na biópsia.”13

Os professores reiteravam cotidianamente esses pedidos. Queixavam-se das goteiras, dos encanamentos velhos e perfurados, do alagamento por esgotos, que estragavam os poucos livros e mapas existentes, e das aulas muitas vezes interrompidas pelo tropeço dos professores em assoalhos desgastados ou pelo excesso de alunos.14 Na diminuta e incompleta biblioteca – que contava com apenas 124 títulos, grande parte doada por professores, alunos e algumas instituições da cidade –, um único volume era perda considerável. Em 1916, a lista de assuntos e de doações15 resumia-se a algumas revistas científicas, trabalhos produzidos pelos professores da Faculdade, obras literárias, relatórios oficiais do governo do Estado, dicionários e almanaques, livros de História do Brasil, Leis e Decretos do Município e do Estado de São Paulo, etc.

Ao lado de todas essas pendências, que desaguavam nos pedidos de construção de um prédio apropriado, havia também a urgência da construção das chamadas “clínicas”, que viabilizariam a observação, a pesquisa e os estudos concernentes a diversas cadeiras. Enquanto isso não acontecia, usavam-se as dependências da Santa Casa de Misericórdia. Nesse sentido, em 1913, o Arnaldo preocupava-se com um curso importante para a Faculdade, a clínica médica, porque não existia, nas instalações da Santa Casa, lugar apropriado em que se o ministrasse segundo o regulamento:

13 Ofício n. 94, 25 de abril de 1917, apud GUIMARÃES, 1967, p. 837. 14 Ofício n. 94, 25 de abril de 1917, apud GUIMARÃES, 1967, p. 839.15 Doações de: Dr. E. Brumpt, Ulysses Silva, Dr. Oswaldo Cruz, Jayme Candelária, Horacio Figueiredo,

Benjamim Reis, Livraria Alves, Livraria Magalhães, Cassio Malta, Faculdade de Sciencias Juridicas do Rio, Centro Universitario, União Pharmaceutica, Casa Vallardi, Grêmio Politécnico, Dr. Alfonso Bovero, Joaquim Queiroz, Anthero Galvão, Ernesto de Souza Campos, Sebastião Antunes e professor Rubião Meira. Alguns exemplos: Revista de Manguinhos, Revista da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, Os sertões, Relatórios Oficiais do Governo do Estado, dicionários, almanaques, livros de História do Brasil, leis e decretos do Município e do Estado de São Paulo.

Page 38: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

38

“Artigo 120. As clínicas serão lecionadas em duas conferências se-manais e quatro aulas práticas, como exemplifica o art. seguinte; as demais disciplinas serão lecionadas em seis preleções semanais ou três preleções e três aulas práticas, conforme exija o assunto. Arti-go 121. O estudo das clínicas consistirá na observação diária de do-entes hospitalizados ou ambulantes, transportados para o anfiteatro sempre que não houver nisso inconveniente. Conduzido o doente para o anfiteatro, o lente chamará para junto de si um ou mais alu-nos, para fazerem os exames necessários ao diagnóstico e, quando for o caso, auxiliarem nas operações. O lente ou assistente guiará o aluno nos exames, interrogando-o, esclarecendo-lhe as dúvidas, e terminará sempre com uma preleção sobre o caso observado.”16

Na falta de lugar apropriado para esse curso, mesmo com todas as observações e empecilhos, os alunos foram alocados na Santa Casa de Misericórdia, única saída possível, respaldada nas faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, que inicialmente haviam feito o mesmo. O poder político e institucional – afinal, o Arnaldo era também diretor da Santa Casa de Misericórdia – fazia valer o uso dessas dependências como um projeto viável, apesar das seguintes ressalvas:

“Com o aumento da população, cresceu o número de doentes ne-cessitados em nossa Capital. Todos eles encontram abrigo somente no único hospital que possuímos – o Hospital da Santa Casa. Re-sulta de aí um acúmulo de enfermos em suas enfermarias que ul-trapassa tudo quanto permitem o bom senso, a higiene e a prudên-cia. Compelidos pela necessidade, tivemos de colocar em nosso hospital camas em cômodos destinados a depósitos, em passagens, águas furtadas, porões e corredores, e de estender colchões pelos assoalhos. (...) [A solução seria a] criação das clínicas indispensá-veis ao curso médico e a fundação de mais um hospital reclamado pela população.”17

Nesse ano, o movimento da Santa Casa mostrava a precariedade de seu cotidiano. Segundo o próprio Arnaldo, os 480 leitos cumpriam as condições mínimas, mas, no dia-a-dia, o número de doentes internados e consultados excedia o número de vagas. Em 1914, depois de enviar vários ofícios sobre a situação da Santa Casa, sem receber nenhuma resposta satisfatória, Arnaldo, em tom de embate, mandou fotografias confirmando suas necessidades e reforçando suas solicitações:

16 Ofício n. 129, de 4 de outubro de 1913, apud GUIMARÃES, 1967.17 Leis e Regulamentos referentes à Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, apud GUIMARÃES,

1967, p. 28–29.

Page 39: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

39

“Para ver V. Exa. não haver exagero em minhas afirmações, remeto junto fotografias das enfermarias da Santa Casa tiradas justamente no momento do serviço médico. Por aí verá V. Exa. o ponto a que chegamos, atingindo quase as raias do crime, consentindo tal aglo-meração de doentes.”18

Contudo, pedidos, ofícios e fotografias não foram suficientes para mobilizar as autoridades estaduais em prol do problema crônico que vivia o hospital ou para remover as barreiras ao funcionamento de alguns cursos, com a criação das clínicas. A Santa Casa acabou acolhendo grande número de estudantes, o que esgotou, como era esperado, a capacidade didática do professor da cadeira e molestou muitos doentes19 que, tendo sido escolhidos como objeto de estudo de alguns cursos, foram maltratados pela quantidade de alunos que os observavam e interferiam em seu estado.

Somava-se a esse quadro o encerramento da faculdade privada de medicina, que agravou a superlotação nos cursos, devido à grande procura de seus alunos pela Faculdade de Medicina e Cirurgia, ultrapassando os limites da acomodação que já era exígua:

“(...) a mocidade que, iludida em parte e em parte seduzida pelas facilidades oferecidas e acoroçoadoras da preguiça, mas toda ela inebriada pelo fetichismo da carta – como se carta dispensasse sa-ber –, compreende atualmente o logro em que caiu, e se volta para as casas onde o ensino é uma realidade, e como nesse número está a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, bate numerosa à nossa porta.”20

Para equacionar tanto as questões referentes à Santa Casa quanto o aumento do número de alunos, recorreu-se à última possibilidade – reduzir o corpo discente.

18 CARVALHO, Arnaldo Vieira. Mappa do movimento do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo no mez de abril de 1913. Revista Médica de São Paulo, Anno XV, n. 11, 15-06-1913, p. 222.

19 Ofício no 129, apud GUIMARÃES, 1967, p. 847.20 O programa de clínica oftalmológica do professor catedrático J. P Cruz Brito, por exemplo, deixava

claro que o funcionamento de seu curso dependia dos ambulantes e indigentes que eram recolhidos na Santa Casa: “as aulas dependerão dos doentes e ambulantes que serão apresentados aos alunos, os quais, de acordo com os artigos 120 e 121 do Regulamento da Faculdade, serão guiados para os exames necessários ao diagnóstico, prognóstico e tratamento.” In: Programmas, horarios, coeficientes e lista de matriculados para o anno lectivo de 1917, aprovados em sessão da Congregação de 14 de novembro de 1916, São Paulo, Casa Duprat, 1917, p. 99.

Page 40: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

40

“Traz isso inconvenientes manifestados nas aulas de clínicas, onde a carência de espaço e acomodação embaraça o ensino e maltrata os doentes em observação. Não há meios de melhorar as condições atuais na Santa Casa, que fez muitíssimo recebendo-nos como hós-pedes. O remédio único para o caso seria construir os prédios indis-pensáveis para nossa Faculdade, coisa também difícil no momento que passa. Assim sendo, como remédio de ocasião, para evitar acú-mulo, torna-se necessário limitar o Governo o número de alunos a recebermos anualmente. Esse número deve ser de cinquenta para o Ano Único do Curso Preliminar.”21

Ora, se a cidade sofria um “inchaço urbano”, com um enorme contingente populacional vivendo numa periferia assolada por doenças, falta de saneamento básico e de qualquer rede social de proteção22, é possível relacionar parte das dificuldades enfrentadas pelo Arnaldo quanto à superlotação da Santa Casa de Misericórdia com a situação de grande parcela dos pacientes que para lá acorriam em busca da cura de seus males. Enfim, assistia-se ao entrecruzamento de vários interesses em torno da realidade complexa de um hospital dessa natureza.

Diante dessas exigências estruturais, formalizadas para garantir que os cursos fossem ministrados dentro das linhas mestras propostas por cada lente, a direção da Faculdade tinha a preocupação de procurar docentes competentes para estabelecer e viabilizar as propostas de seus programas. No momento da formação dessa escola, os professores escolhidos representavam um dos grandes obstáculos a transpor, não só pelas dificuldades de sua formação, mas também pelas pressões políticas que sobreviriam em consequência de sua indicação. A forma da escolha refletia bem as condições em que Arnaldo assumia a direção da Faculdade – as nomeações eram de sua responsabilidade direta. Assim, o poder de sua caneta era criticado pela falta de concursos, que fazia com que os docentes designados permanecessem sob seu controle. Sua presença nesse cargo atendia aos propósitos dos poderes estaduais – essa árdua tarefa era para um nome indiscutível não só na esfera médica e científica, como na ordem administrativa e política do Estado. Nenhum outro

21 Ofício n. 56(a) de 19 de março de 1919. (Mimeo).22 GLEZER, Raquel. O campo da História. Cadernos de História de São Paulo: os campos do conhecimento

e o conhecimento da cidade. São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo, n. 1, 1992, p. 9-14.

Page 41: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

41

seria tão modelar; suas incursões para imprimir constância e consistência ao curso apoiavam-se em sua biografia e em sua trajetória profissional.23

Empossado até 1919, o corpo docente compunha-se principalmente de nomes da Santa Casa de Misericórdia, da Sociedade de Medicina e Cirurgia e de universidades estrangeiras. Procuravam-se médicos e cientistas de produção reconhecida, capazes de ampliar todas as aptidões da primeira elite médica de Piratininga, mesmo que nem todos os escolhidos e nomeados pudessem assumir imediatamente a cadeira. Os dois primeiros nomes vindos do exterior, os doutores Alfonso Bovero e Lambert Mayer, tiveram problemas ao chegar da Europa, devido à I Guerra Mundial, e assumiriam seus cursos somente em meados de abril. Em 5 de agosto, também em virtude da guerra, os professores Emilio Brumpt e Lambert Mayer voltaram para seus países.

Esse fato, que poderia sugerir apenas a falta de opções para a condução de vários cursos, encontraria, paralelamente, um movimento que nascia dos gabinetes de outros políticos influentes, que viam a Faculdade como mais um espaço para alocar suas indicações. Se Faculdade de Medicina e Cirurgia era resultado da força política de determinados grupos de São Paulo, o Arnaldo, uma de suas expressões, não era o único que se sentia apto a conduzir os rumos dessa escola. Ao mesmo tempo em que detinha o poder das escolhas, as cartas enviadas por outras autoridades desenhavam o movimento de diversas figuras que tentavam apadrinhar seus professores.

Exemplarmente, houve o pedido do Dr. Oscar Rodrigues Alves, recomendando insistentemente a nomeação de Raul Carvalho, filho de Arnaldo, para a assistência de clínica cirúrgica. A resposta negativa revelava também as pressões de outros políticos, redundando em desgostos e inimizades. Segundo o Arnaldo, uma nomeação dessa natureza acarretaria a desconfiança de muitos e, por isso, deveria entender o Dr. Rodrigues Alves que:

“(...) a intenção do amigo de nomear o Raul, intenção que enche de reconhecimento e, em força à eterna gratidão, vem manchar o muro de integridade onde me abrigo das calúnias e anular a altura com que respondo sempre a meus detratores. A intenção envolvendo o amigo será interpretada como um ato de filhotismo cuja autoria me será atribuída inteira. Nestas, como ficarei desmoralizado perante meus detratores – eles são muitos; todos médicos que não estão na

23 Nadai defende essa idéia, ao relacionar o Arnaldo, por seu histórico, sua produção científica, jornalística e política, à facilidade na arrecadação para a formação e o desenvolvimento da Faculdade: “Considerado homem de forte personalidade, de segura ilustração, não vinculado à Universidade de São Paulo particular, o poder público nele encontrou a pessoa indicada para levar adiante seu projeto de escola médica. Desfrutando de grande prestígio junto à classe médica, junto ao poder com o congraçamento do PRP e a consequente recondução do grupo dos Mesquita ao situacionismo, não teve dificuldades em amealhar para a recém-fundada instituição os melhores recursos de que pode dispor.” NADAI, Elza. Ideologia do Progresso e Ensino Superior (São Paulo 1891–1934). São Paulo: Ed. Loyola, 1987. p. 279–280.

Page 42: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

42

Faculdade e alguns pouquíssimos, é verdade, que lá estão. Será, pois, difícil, em tais conjunturas, me manter na direção da Facul-dade, onde só julgo possível minha permanência enquanto contra minha integridade moral se quebrarem os dentes da caniçalha. E a nomeação de Raul vem tornar suspeita essa integridade. Vê, pois, o amigo a posição em que me colocará sua generosidade.”24

A resposta a essas ponderações dá a medida da indisposição gerada, constituindo mais um obstáculo em face daqueles que não aceitavam seus argumentos: “O amigo não tem razão nas considerações que faz a propósito da nomeação de Raul Carvalho para a assistência da clínica cirúrgica. Moço preparado e com desejo de trabalhar, o Dr. Raul seria uma magnífica aquisição para a Faculdade. Em todo o caso, não posso e nem devo forçar meu amigo a quebrar as normas de administração que traçou na Faculdade e lastimo apenas que a nossa Escola fique privada do concurso de tão competente auxiliar”.25

Para esses e outros óbices que surgiam na luta de Arnaldo por fazer de sua escola médica um espaço de desenvolvimento científico e médico, a colaboração com a Fundação Rockefeller apareceu como uma possível saída. Segundo Marinho, a aliança entre a Fundação e a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo começou a ser gestada um pouco antes de o pedido ser formalizado pela direção da Faculdade, mas a vinculação formal data de 1916, com a solicitação do próprio Arnaldo de apoio para o estabelecimento de duas cadeiras – Higiene e Patologia –, com trabalhos a serem iniciados em 1918. Os motivos alegados pela Fundação para a escolha dessa escola médica foram a aproximação do Brasil e dos Estados Unidos a partir da I Guerra Mundial e a base intelectual e científica que o Estado de São Paulo já tinha e proclamava com sua Faculdade de Direito, com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1901), com o Instituto Bacteriológico (1893) e o Instituto Agronômico (1887).26 Aos motivos apresentados somou-se o fato de ser uma escola jovem, sem vícios ou tradições que obstassem os planos arquitetados. Em meados de 1920, lançou-se a pedra fundamental da sede oficial na Faculdade de Medicina e, no discurso de Arnaldo Vieira de Carvalho, esse vínculo com a Fundação Rockefeller era apontado como mais uma obra representativa do avanço científico paulista:

“(...) o edifício especialmente construído para a Escola Médica pau-lista, que já é um dos elementos mais eficientes do progresso do nosso Estado, que será sua mais fulgente glória e cuja organização

24 Carta do Arnaldo Vieira de Carvalho, endereçada ao Dr. Oscar Rodrigues Alves, em 09-01-1916. (Manuscrito).

25 Carta de Oscar Rodrigues Alves, endereçada ao Arnaldo Vieira de Carvalho, em 10-01-1916. (Manuscrito).

26 MARINHO, 2003, p. 58.

Page 43: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

43

foi inapreciável honra a mim conferida. Os edifícios que se iniciam são segurança de duração, fecunda e autonomia da instituição fun-dada pelo Estado. Sem casa própria não pode funcionar bem uma escola, como sem esqueleto logicamente armado não há organismo bem adaptado ao meio e ao fim, e sem boa adaptação não há função eficaz. Inaugurai as novas construções, Sr. Presidente, rematai vossa obra, e rematai-a certo de juntar mais um aos muitos louros do nosso estado. O novo edifício será o templo da nascente religião avassala-dora do mundo, dessa síntese de medicina e higiene, única que con-sagra a igualdade, pratica a fraternidade e redimirá a humanidade, criando um homem sadio, o homem bom.”27

Todos os avanços implementados no cotidiano da Faculdade e a preponderância das posturas da Rockefeller na retificação do estatuto existente, na organização de novas cadeiras, normas e linhas científicas, evidenciariam que, mais do que participar, a Fundação praticamente reorganizaria a instituição, como mostraram a diminuição do número de alunos matriculados, a criação do departamento de higiene, a formação de estudantes e professores em universidades e instituições norte-americanas, o financiamento para a construção de prédios e laboratórios adequados e o expressivo aumento da carga horária de algumas cadeiras. Tal contrato, embora firmado em 1916, foi concretamente exercido somente na gestão da Diretoria de Pedro Dias da Silva (1924-1930).

O edifício central deveu-se particularmente aos esforços e à competência técnica de Ernesto de Sousa Campos, ajudado por um corpo de arquitetos sob a direção de João Serato. O prédio teve o início de suas obras em 25 de janeiro de 1928 e foi inaugurado oficialmente em 15 de março de 1931. Durante o período do surgimento da escola e sua transferência para os “altos do Araçá” foram realizados 12 concursos para professores substitutos e professores catedráticos28, tendo sido eles:

27 CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Discurso realizado no lançamento da pedra fundamental do novo edifício da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Gazeta Clínica, São Paulo, Anno XVIII, n. 3, 1920, p. 35.

28 Memória histórica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: 1913-1938. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1938. p.33-35.

Page 44: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

44

1º. Concurso, 1919 - ( histologia, microbiologia, anatomia e histologia patológica).

Foi indicado Alexandrino Pedroso

2º. Concurso, 1920 – (histologia, microbiologia, anatomia e histologia patológica).

Foi indicado Carmo Lordy

3º. Concurso, 1920 – (patologia geral e experimental e fisiologia). Foi indicado Antonio de Paula Santos

4º. Concurso, 1921 – (clínica ginecológica). Foi indicado Nicolau de Moraes Barros

5º. Concurso, 1923 – (histologia, microbiologia e histologia patológica).

Foi indicado Ludgero da Cunha Mottaw

6º. Concurso, 1923 – (higiene e medicina legal). Foi indicado Flaminio Fávero

7º. Concurso, 1924 – (clínica psiquiátrica e moléstias nervosas). Foi inabilitado o único candidato inscrito

8º. Concurso, 1925 - (clínica obstétrica).Foi indicado Raul Briquet

9º. Concurso, 1927 - (farmacologia). Foi indicado Jayme Regallo Pereira

10º. Concurso, 1929 - (fisiologia e química fisiológica).Foi indicado Franklin de Moura Campos

11º. Concurso, 1931 – (parasitologia). Foi indicado Samuel Banrsley Pessôa

12º. Concurso, 1931 – (clínica urológica). Foi indicado Luciano Gualberto

Como lembrou o professor da Faculdade, Antonio de Almeida Prado, alguns desses “primeiros nomes” já eram tidos como “influências

Page 45: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

45

formadoras” de toda uma geração posterior de médicos que estudaram na Casa de Arnaldo:

“Ovídio Pires de Campos, a alma da faculdade em seus albores, o braço direito de Arnaldo; Benedito Montenegro, o chefe incon-testável da escola cirúrgica paulista, incentivador de uma plêiade de profissionais, hoje em plena ascensão; Alfonso Bovero, o fun-dador de nossa escola anatômica, mentalidade superior de homem e cientista, prolongado em Renato Locchi, seu sucessor na cáte-dra; Enjolras Vampré, primeiro ocupante da cátedra de neurologia, o animador do gosto pela matéria em quase todos os neurólogos paulistas, mestre de Aderbal Tolosa; Álvaro Lemos Tôrres, plas-mador de vocações, formador do espírito clínico, espécie de pro-fessor sem cátedra de muitas gerações de médicos; Oscar Freire, o fundador do ensino da medicina legal entre nós, que tão saliente papel representou, nos primeiros tempos da vida da Faculdade, ta-lento de scol, caráter de primeira água e que deixou em Flamínio Fávero um continuador à altura do seu renome. Em outra esfera de atuação, Ernesto Sousa Campos e Resende Puech, os renovadores da construção hospitalar, em São Paulo e no Brasil, sempre volta-dos para o ensino nas suas realizações materiais. Cumpre lembrar, ainda, Durval Bellegarde Marcondes, voz isolada, depois Franco da Rocha, Briquet e poucos outros, na pregação das doutrinas de Freud, e até certo ponto, introdutor dos métodos psico-analíticos no nosso meio.”29

umA morte inesperAdA: o nAsCimento de umA memóriA

“São Paulo inteiro por todos os seus filhos chorou, a 5 de junho de 1920, aquele que por volta das 13 horas fechara os olhos para sem-pre. Era como que o prematuro reconhecimento de uma sociedade, habituada a só, muito tempo após o desaparecimento de um filho ilustre, reconhecer-lhe a obra. O sentimento que irmanava todas as classes era da dor, fechado luto caia sobre São Paulo. A residência de Arnaldo. à Rua Ipiranga, tornara-se o ponto de convergência das

29 PRADO, Antonio de Almeida. Quatro séculos de medicina na cidade de São Paulo. In: Ensaios paulistas. São Paulo: Ed. Anhambi, 1958. p.791.

Page 46: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

46

atenções na cidade. Verdadeira multidão para lá se dirigia afim de despedir-se do grande médico: autoridades, colegas, estudantes, en-fim o povo todo. O velório contou com a presença de seus discípu-los, colegas e clientes, que por toda a longa noite permaneceram ao seu lado, os pêsames chegavam de todo o país e conforme os jornais da época diziam, bem poucas vezes, pouquíssimas vezes mesmo, a nossa população teria lamentado com tanta sinceridade a morte de um brasileiro ilustre. No dia seguinte ao de sua morte, o corpo de Arnaldo Vieira de Carvalho foi trasladado para à Faculdade de Medicina, então Brigadeiro Tobias, com enorme acompanhamento, transportado que foi para a sala da Congregação, toda revestida de veludo negro com aplicações em ouro, foi o caixão depositado em rica eça cercada de flores armada no centro do salão. Até a hora do enterro a sala da congregação e outras dependências do edifício fica-ram repletas. Ao meio dia, após haver o Rev. Mo. Padre Gastão Li-beral Pinto procedido a encomendação do corpo, foi a esquife tirado da eça e transportado para a carreta preparada, que devia conduzir ao Cemitério a Consolação. O cortejo fúnebre foi grandioso, enor-me mole humana o constituiu. A frente iam os estandartes, envoltos em crepe, da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, da Escola Politécnica e do Liceu de Artes e Ofícios, com suas respecti-vas comissões. A seguir vinha a carreta, tirada pelo Dr. Washington Luiz Pereira de Souza, presidente do estado, secretários de governo, parentes e amigos. Ladeando o féretro, numeroso grupo de estudan-tes segurava uma fita negra, formando assim um cordão em toda a extensão do cortejo. Chegado ao Cemitério da Consolação, por entre alas de flores, que do portão iam até a sepultura, caminhou Arnaldo à sua última morada. Representantes de todas as classes fizeram-se ouvir a beira do túmulo, apresentando-lhe a derradeira despedida, cantando os seus feitos e chorando a sua morte.”30

O momento narrado, tão cheio de emoção, orientaria os próximos tempos quando o nome de Arnaldo Vieira de Carvalho fosse pronunciado. As explicações que eram dadas sobre o acontecimento falavam de sua estada fora de São Paulo e da chegada a sua casa com os primeiros sintomas do que parecia uma gripe, complicando-se o seu estado a cada dia até identificar-se um preocupante foco de infecção. Ex-professores de Arnaldo, vindos do Rio de Janeiro, tentavam induzir ações mais duras, capazes de reverter o quadro, mas sem nenhum sucesso. Segundo o médico Rezende Puech,

30 GODOY, Arnaldo. Arnaldo Vieira de Carvalho. Tese apresentada à Academia de Ciências dos alunos da Faculdade de medicina de São Paulo. São Paulo, 1949, p.21-22.

Page 47: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

47

ainda em seu leito, no momento mais agudo de seu sofrimento, o doente os interrogou: “Mas que querem fazer de mim?” A resposta em uníssono foi “Salvar-te!” Mesmo tendo a ciência médica falhado em seus objetivos, uma aura nascia daquele momento, lembrando Puech, que “se ele aqui estivesse neste instante, de certo também perguntaria – ‘O que querem de mim?’, tendo como única resposta, ‘glorificar-te’”.31

Assim que a morte de Arnaldo foi comunicada, houve uma série de manifestações de pesar divulgada pela imprensa médica e jornalística. No âmbito da política de São Paulo, Alarico Silveira, secretário do Interior, solicitou autorização para que os funerais fossem feitos a expensas do Governo. Os vereadores Mario Graccho e Luciano Gualberto fizeram o necrológico, sendo em seguida levada a sessão. O prefeito municipal de São Paulo, Firmiano Pinto, enviou uma coroa como homenagem da cidade, o que também fez Arnaldo de Aguiar, vice-presidente em exercício da Câmara Municipal de Santos. A Liga Nacionalista resolveu tomar luto oito dias e a Sociedade de Medicina e Cirurgia também, mantendo fechada a sede social. A Policlínica mandou fechar o estabelecimento e hastear a bandeira em funeral. A Faculdade de Medicina da Bahia, a Sociedade de Hospitais e a Sociedade e Medicina Legal da Bahia encarregaram o médico Oscar Freire de representá-las às homenagens. A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro enviou telegrama ao Ovídio de Campos, manifestando o seu pesar e pedindo para que, conjuntamente com Rubião Meira e Ayres Netto, representasse a Congregação e a diretoria nas cerimônias de sepultamento. Já a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo ficaria em luto por oito dias, suspendendo todos os trabalhos, nomeando uma comissão para apresentar as condolências à família e o necrológico escrito pelo professor Celestino Borroul. Organizariam um livro contendo todas as publicações sobre o Arnaldo, reeditando seus trabalhos científicos e inaugurando seu busto em bronze à frente do pavilhão central do edifício em construção.32

Finalmente, do Congresso Nacional Brasileiro partiu a seguinte comunicação:

“Sr. presidente, acabo de receber de minha bancada a delegação de vir comunicar à Câmara dos Deputados o triste fato que está dolo-rosamente impressionando o meu Estado e, principalmente, a classe que pertenço. Refiro-me ao falecimento do eminente paulista Arnal-do Vieira de Carvalho (...) nesse meio colonial, repito, tempo em que São Paulo dava seus primeiros passos em medicina, Arnaldo Vieira de Carvalho iniciava o exercício de sua profissão, e, aliado

31 Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo - Sessão extraordinária de 7 de junho de 1920. Annaes Paulistas de Medicina e Cirurgia. São Paulo, vol.XI, n.6, anno VIII, 1920. p.137.

32 Annaes Paulistas de Medicina e Cirurgia, São Paulo, vol. XI, no. 6, anno VIII, 1920, p.130.

Page 48: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

48

a dois outros médicos distintos de minha terra, os drs. Luiz Pereira Barreto e Carlos Botelho, fundou uma escola e foi o precursor de uma era brilhante naquele estado. Foram eles os primeiros autores da cirurgia paulista: foram eles que proporcionaram a esta parte dos conhecimentos médicos o grande adiantamento de que meu Estado pode, com justiça, se orgulhar. Nesse meio colonial, sem outros en-sinamentos que os não fornecidos pelo exercício sacerdotal dessa profissão, Arnaldo Vieira de Carvalho fez-se um cirurgião de raça (...) se os srs. deputados leram hoje o resumo do que foi o enterro de Arnaldo Viera de Carvalho, devem bem ter visto que toda a socieda-de paulista se moveu em torno deste doloroso fato.”33

No discurso de um aluno da Faculdade de Medicina, no sepultamento, os votos eram de que aquela Escola prosseguisse com feitos que espelhassem os êxitos de uma jornada já encetada por seu fundador e os frutos de uma tradição, que já poderia ser vista. Comparava a Faculdade “a uma grande árvore de selva exuberante, galhos fortes e entrelaçados. A idade já lhe deu desenvolvimento às raízes, hoje profundas, abraçando um quinhão de terra generosa e fértil; os ramos folhudos bracejam, procurando o espaço azul sem limites; o tronco já suportou a impiedade de muitos invernos (...) que nesta grande árvore não morram suas folhas – as tradições que ela, embora nova, já representa”.34

Segundo alguns doutores, durante meses o culto à sua lembrança parecia revivê-lo nos corredores de seu trabalho e nas ruas da capital por onde andava, envolvendo todos os seus habitantes: “Increspa-se ao povo desta terra o timbre do bairrismo, tão bem marcado na nobilíssima família dos Andradas; mas regionalismo não é o reivindicarmos para São Paulo Arnaldo Vieira de Carvalho como o médico mais genuinamente brasileiro e paulista, pois não teve a sua arte cirúrgica aprendizagem estrangeira: formou-se exclusivamente em nosso meio. Ele é nosso – noster est!”.35

Por sua trajetória profissional e política, Arnaldo fez jus a uma homenagem que pretendia firmar a sua própria perenidade – um busto em bronze lhe era oferecido. Mas esse tributo seria frustrado pela sua morte repentina em 5 de junho. Diante desse fato inesperado, realizou-se uma série de atos póstumos no dia 17 do mesmo mês, inclusive com o próprio busto, que seria colocado nas novas dependências da Faculdade de Medicina. Professores, alunos e o novo diretor da instituição reportaram-se com deferência à sua imagem que, a partir de então, simbolizaria a origem da medicina paulista e a reputação da escola. O novo diretor, Ovídio Pires de Campos, eternizou a presença de

33 RIPPER, Palmeira. Discurso na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional em 8 de junho, Rio de Janeiro, 1920. p.540.

34 Gazeta Clinica, São Paulo, Anno XVIII, n. 7, 1920, p. 89.35 Gazeta Clinica, São Paulo, Anno XVIII, n. 7, 1920, p. 89.

Page 49: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

49

Arnaldo não apenas por essa inauguração oficial, mas pelas palavras que o mesmo já havia escrito quando soubera da homenagem: Arnaldo não queria que a cerimônia daquele momento ultrapassasse os trâmites protocolares e, assim, pedia permissão para, declarando oficialmente inaugurado o busto em bronze de sua pessoa, que esse deveria ser colocado na entrada do futuro edifício da Faculdade.

Lendo o teor do discurso que o pranteado diretor escrevera para pronunciar quando lhe fosse oferecida a peça36, Arnaldo agradecia pela consideração ao seu trabalho e ao de vários médicos que, como ele, teriam feito de sua trajetória profissional uma obediência “às leis do civismo, que mandam prestarmos à pátria os serviços de que seus filhos nos julgam capazes; é, em suma, o cumprimento de um dever (...) Riscai, pois, meus amigos – eu vos peço – do marco hoje erigido o referente a minhas ações e, em seu lugar, permiti que se inscrevam vossos nomes e vossos cargos. Que o bronze perene registre vossos atos”.37 Dentre todos os pedidos, esse seria negado; muito pelo contrário, a nova Faculdade seria representada, com o passar dos anos, justamente, como sua morada, “a Casa de Arnaldo”.

Nesse sentido em 1922, dois anos após o choque causado pelo seu falecimento, a Revista de Medicina publicou um número especialmente dedicado a ele. Vários amigos escreveram sobre seu trabalho, sua vida particular e sua enfermidade, ora tentando ratificar seu lugar de herói da medicina paulista, ora listando os problemas por ele enfrentados, evidenciando desacertos e procurando compreender determinadas posições.

A Santa Casa era uma delas. Durante todo o tempo em que esteve à frente da instituição e principalmente quando assumiu a Faculdade de Medicina, teriam sido dele, Arnaldo, as maiores solicitações para ampliar os pavilhões e reformar alas do hospital. Jamais logrou esse intento, mas muitas vozes o isentaram da responsabilidade por aquela conjuntura precária:

“Se nas enfermarias ainda é objetável o acúmulo de doentes em manifesta desproporção com a cubagem das salas, se é gritante o contraste da sua superlotação com as exigências da moderna higie-ne hospitalar, se é condenável a promiscuidade em que se mantêm operados limpos, assépticos, e casos supurados, é porque, nesses detalhes, a ação de Vieira de Carvalho sofreu entrave das circuns-tâncias irremovíveis que zombaram do seu esforço, por isso que o mal apresentava raízes inacessíveis a mais violenta terapêutica. Sabe Deus quando será possível extirpá-las! Nem por isso constitui menos essa casa um atestado imperecível da operosidade tenaz, da

36 Gazeta Clínica, São Paulo, Anno XVIII, n.3. 1920, p.85.37 Gazeta Clínica, São Paulo, Anno XVIII, n.3. 1920, p. 90.

Page 50: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

50

atuação bem orientada e do espírito progressista de seu pranteado diretor.”38

Nas considerações sobre seus predicados de diretor da Faculdade de Medicina, era lembrado, em todos os artigos, como o benemerente, audacioso e heróico diretor. Pelo amor à profissão, não temia nada; nem a morte. Era a imagem do médico que enfrentara, junto com seus alunos, a gripe espanhola em 1918:

“Quando, em 1918, a gripe nos bateu à porta, ele foi dos primeiros a se movimentar em favor dos desprotegidos, organizando e diri-gindo hospitais, encorajando alunos da Escola no cumprimento da divina missão de mitigar a dor alheia – a morte? Mas que importa morrer, se com isso temos o nosso dever cumprido? E foi assim que aquele punhado de moços partiu quase alegre para a luta contra o mal, que tomara proporções espantosas. Uns, não mais retorna-ram do combate; outros, se debateram por muito tempo, presos da moléstia, triunfando afinal; todos cumpriram sua obrigação.”39

Em seu trabalho como cirurgião, era equiparado aos melhores do mundo, revolucionando pela quantidade e qualidade de intervenções realizadas:

“Sim, era um verdadeiro e santo furor cirúrgico, essa ânsia de es-pancar todas as trevas, esse empenho intenso em remover para sempre de nosso campo operatório todas as possibilidades de uma infecção das feridas. A idéia da nossa completa emancipação no mundo das bactérias toldava-nos o espírito. Acreditávamos pia-mente que fazíamos obra meritória, cada vez que o sucesso operató-rio correspondia plenamente aos nossos planos preconcebidos sem pôr em risco a vida dos pacientes, embora não respeitando funções fisiológicas normais. Como todos os grandes cirurgiões contem-porâneos, Arnaldo, em plena mocidade, havia já praticado cerca de 4 mil laparatomias, extirpando ora o útero, ora as trompas, ora os ovários. Foi uma época de delírio, foi uma época de sangue!”40

Nas palavras de Vergueiro Steidel, o Arnaldo era o médico dos desprovidos, aquele que se inquietava com a dor dos pacientes da Santa Casa. Revoltava-se contra a pobreza; mesmo no momento em que agonizava

38 BARROS, Nicolau de Moraes. Arnaldo Vieira de Carvalho: lição inaugural da Clínica Ginecológica. Revista de Medicina, São Paulo, anno VI, n. 21, 1922, p. 19.

39 BARROS, 1922, p. 6.40 BARRETO, Luis Pereira. Arnaldo Vieira de Carvalho: um detalhe biográfico. Revista de Medicina, São

Paulo, anno VI, no.21, 1922, p. 8.

Page 51: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

51

em seu leito e horas antes de sua morte teria dito “à sua amantíssima esposa, quando ela velava sua cabeceira, que novos e magníficos argumentos lhe acudiam ao espírito, sobre essa questão social.” Por esse empenho desmedido, no dia de seu falecimento, pessoas de todos os cantos da cidade foram prestar-lhe sua homenagem: “Vimos acorrer à sua casa desconhecidos e pobres que vinham de longe para contemplar pela última vez o rosto inanimado de seu benfeitor, comovendo, com suas lágrimas sinceras, os que tinham a felicidade, única naquele momento, de contemplar semelhante espetáculo”.41

Finalmente, a revista compôs uma nova divisa, vinculando a formação dos futuros médicos ao vulto do Arnaldo. Ser formado pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo era compartilhar os valores de seu fundador e a tradição de uma escola. A partir de então, sua benção era obrigatória para todos aqueles que por ela passassem: “Atendei e meditai na vida e obra do Pai desta Faculdade. Modele-se a vossa vida pela dele, e os homens cobrirão de bênçãos o vosso nome”.42

Diante desse quadro, essa morte de maneira tão repentina e prematura só poderia reverter-se numa sensação de vertigem diante da profissão e do futuro da institucionalização da medicina em São Paulo. Arnaldo não sofreu o desgaste dos moribundos, não havendo tempo para enquadrá-lo em sua decadência física e esquecimento social. Foi assim que a energia com que era descrito, nos primeiros anos de sua ausência, permaneceria tão forte e vibrante, tendo, em todas as oportunidades possíveis, a reverência a seu nome. O paulistanismo médico será o mote dos discursos, consubstanciando a imagem de Arnaldo ao “natural” progresso da “raça superior paulista”. Daí a explicação do médico Franco da Rocha, apontando como os ideais da “coletividade bandeirante” tenderiam a concretizar-se nesse indivíduo, traduzindo-se num cidadão como expoente de uma raça, de um povo, de uma coletividade.43

Também nas palavras de Olympio Portugal, a paixão absorvente do pensamento de Arnaldo,

“o périplo de sua vida terrena, o zodíaco do seu sol foi a medicina, e, digamo-lo sem regionalismo estreito, a medicina paulista. Em todas as fórmulas proveitosas de atividade, há uma segura dife-renciação no meio paulista, em benefício das aplicações práticas. A medicina não fugiu a essa característica regional, cultivando principalmente a técnica sobre o descortino das questões gerais.

41 STEIDEL, F. Vergueiro. Arnaldo Vieira de Carvalho. Revista de Medicina, São Paulo, anno VI, no.21, 1922, p. 14.

42 STEIDEL, 1922, p. 6.43 ROCHA, Franco. Discurso em Sessão Solemne da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (5

de agosto de 1920). Annaes Paulistas de Medicina e Cirurgia. São Paulo, vol.XI, n.6, anno VIII, 1920. p.190.

Page 52: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

52

Deriva daí, consoante as tendências naturais do meio, o modo por que no Hospital da Santa Casa, como centro de maior vulto, se foi praticando a medicina e proporcionando elementos para o ensino, que, em quase todas as peças, dali saiu pela mão do seu devotado diretor clínico. Ele não foi somente, na especialidade, o operador emérito que recomendasse apenas pela certeza do golpe da ousadia das intervenções.”44

Nessa direção, percebe-se entre tantas manifestações, a constituição, a longo prazo, de espaços de memória de Arnaldo Vieira de Carvalho, tendo a sua biografia ganhado variabilidade memorialística e especificidade discursiva, a partir de momentos distintos em que determinados grupos compuseram elementos capazes de alçá-lo ao panteão dos heróis.45 Nesse sentido, tal constituição memorialística estará

“sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela estará em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esque-cimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulneráveis a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências de repentinas revitalizações. A História é a reconstrução sempre pro-blemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente.”46

Historicamente, a dimensão nacional, que tomou o seu passamento naquele momento, deve ser compreendida pela luta dos mitos de origem da então nascente república brasileira, por meio da definição da figura dos heróis capazes de expressar símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. Teria de responder a alguma necessidade ou anseio coletivo, refletindo algum tipo de personalidade ou comportamento que correspondesse a um modelo coletivamente valorizado.47 Soma-se isso ao fato de que a chamada Primeira República abriu espaço para que a sua história também fosse narrada pelos “acontecimentos regionais,” passando a incentivar a restauração da história

44 PORTUGAL, Olympio. Discurso em Sessão Solemne da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (5 de agosto de 1920). Annaes Paulistas de Medicina e Cirurgia. São Paulo, vol. XI, n.6, anno VIII, 1920. p.193.

45 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos.Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.11. 46 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n.

10, 1993, p.9. 47 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:

Cia. das Letras, 1990. p.55.

Page 53: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

53

e de seus personagens nas diferentes regiões brasileiras, valorizando o sentido da participação dos Estados no projeto histórico da nação.48

Dentro dessa perspectiva republicana e simbólica, alçar o nome de Arnaldo Vieira de Carvalho a “herói da medicina nacional” ganhou legitimidade entre aqueles que passaram a imortalizar o seu nome. Mesmo tendo em São Paulo a sua guarida mais importante, o momento histórico do Brasil poderia transformá-lo num ícone nacional, deslocando as regionalidades para um conceito de país uno e indivisível. Por isso,

“menos que consagrar tal ou tal personagem, o que se faz na Pri-meira República é um movimento geral de criação de heróis. Pro-vavelmente importa mais em um herói celebrá-lo enquanto tal do que realmente imortalizar suas idéias e bandeiras. É isso que permite a convivência fluida de vários heróis em um só politeísmo cívico: importa mais que sejam “grandes homens” do que sejam militaristas ou civilistas, do que concebam a civilização como empreendimento moral ou técnico, do que defendam a vida da metrópole ou a do sertão. Importa mais construir um amplo panteão do que dotá-lo de uma suposta coerência “ideológica”. Indivíduos que em vida se opõem fortemente deixam de estar em conflito quando acedem à imortalidade.”49

Foi, dessa forma, à beira do seu túmulo, no décimo aniversário de sua morte, que uma série de discursos deixava clara a intenção de colocá-lo entre grandes personalidades brasileiras do período, ao lado de Oswaldo Cruz e Rui Barbosa, heróis nacionais e republicanos já consagrados:

“Arnaldo Vieira de Carvalho extinguiu-se. Sim, extinguiu-se como uma estrela que morta há 20.000 anos ainda ilumina a Terra. Mas Arnaldo Vieira de Carvalho ainda é mais benéfico do que esse astro longínquo, porque não dispersa luz a esmo nos espaços intermun-dos, jorra-as diretamente no coração do Brasil. O bronze já lhe fixou as linhas corretas do perfil augusto, e a História, não lhe po-dendo retratar o espírito, cantará a sua obra gigantesca.”50

48 SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação: pintura de história e a Primeira República. Estudos Históricos, CPDOC/FGV, Arte e História, Rio de Janeiro, n. 30, 2002/2.p.6

49 GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República. Estudos Históricos, CPDOC-FGV. Rio de Janeiro, n. 25, 2000/2001. p.29-30.

50 ORCESI, Nazareno. A Faculdade de medicina homenageia seu fundador. O Estado de S. Paulo, 06/06/1930. p.3. (Discurso).

Page 54: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

54

Contudo, ao adentramos os anos de 1930 e após a guerra civil de 1932, especialmente, há uma mudança significativa nessa configuração simbólica dos heróis nacionais. O personalismo de Vargas vai aos poucos desestruturando o panteão dos primeiros heróis nacionais republicanos para centralizar, cada vez mais sobre ele próprio, a construção de um novo Brasil. São Paulo vai sentir rapidamente esse movimento e passa a divulgar com vigor a sua independência econômica, política, ratificando a chamada “sub-raça-superior”, ou seja, uma raça eminentemente paulista formada apenas por portugueses desbravadores e índios da mais alta estirpe. Assim, nessa “terra de gigantes”, todo paulista teria esse passado capaz de configurar a idealização em torno de uma tradição de êxito e glória ligada às origens bandeirantistas, até chegar ao progresso tão almejado de toda a nação. Tal concepção trazia, ao fim e ao cabo, a tentativa das suas elites de manter integradas as economias dos outros Estados ao capitalismo mundial, enquanto São Paulo permaneceria intocado em sua liderança econômica e política.

O que teremos, então, são vários lugares de memória erigidos em torno de sua história, que, mesmo sendo sugestionados pelo momento em que a configuraram, acabaram todos por deixar marcas contra os tempos vindouros em que o esquecimento sorrateiramente poderia apagar o passado até mesmo de seus “filhos mais ilustres”. Elevado a imagem nacional até os anos de 1930, quando, novamente, seria devolvido ao regionalismo paulista e mais particularmente à Faculdade de Medicina, Arnaldo se eternizaria como médico, cientista, chegando até, nas vozes de alguns, a ser celebrado como um santo. Para isso, uma série de efemérides com seu nome e imagem foi instituída ainda em vida e, principalmente, após a sua morte: bustos, pinturas, fotografias, gravuras, medalhas, nomes de salas, concursos e até mesmo o nome de uma avenida denominada intimamente, a partir de 14 de março de 1931, “Avenida Doutor Arnaldo”.

Da máscara mortuária existente, a Diretoria da Faculdade encomendou, a Rodolfo Pinto do Couto, o busto de bronze de Arnaldo, obra executada e fundida no Liceu de Artes e Ofícios. Segundo Antonio de Palma Guimarães,

“a figura em mármore com seu vinco de dor, é a que vem repro-duzida em cópia de 1931 no busto dos jardins da faculdade e, em outra cópia, na sala da congregação. A outra máscara, menos expressiva dos acidentes da vida de Arnaldo precisamente por sua placidez, é a que se identifica em miniaturas adquiridas por colegas, amigos e admiradores. O julgamento que recolhemos de conversações e leituras confirma a virtuosidade e honestidade do escultor: nem desfigurou o objeto ao sabor de suas fantasias e ca-

Page 55: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

55

prichos, nem vulgarizou o seu talento pela cópia servil da figura: deu-lhe o que era desejado que lhe desse: o sopro da vida...”51

A partir de então, a figura de Arnaldo Vieira de Carvalho será rememorada cada vez mais entre os muros do regionalismo paulista e de suas instituições médicas. Aos poucos, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo vai transformando-se em sua principal guarida, tendo professores, alunos e funcionários o empenho em deixar marcas dessa história e memória, para que o tempo futuro não desfigure aquele que ajudou a inscrever, em seu rápido tempo de vida, parte do que representa hoje o ensino de medicina em São Paulo e de suas instituições médicas. Seu busto austero na entrada do prédio central é marca inconteste dessa disposição, rememorando diariamente as feições de um tempo longínquo, mas fundante de uma história tão cheia de lembranças e de esquecimentos também.

referênCiAs bibliográfiCAs

BENCHIMOL, Jayme Larry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz / Editora UERJ, 1999.

CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Discurso realizado no lançamento da pedra fundamental do novo edifício da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Gazeta Clínica, Anno XVIII, no 3, 1920.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

GAZETA CLÍNICA. São Paulo, dez. 1916.GLEZER, Raquel. O campo da História. Cadernos de História de São

Paulo: os campos do conhecimento e o conhecimento da cidade. São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo, no 1, 1992, p. 9-14.

GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República. Estudos Históricos, CPDOC-FGV, Rio de Janeiro, n. 25, 2000/2001.

51 GUIMARÃES, 1967, p. 25.

Page 56: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

56

GUIMARÃES, Antonio da Palma. Arnaldo Vieira de Carvalho: biografia e crítica. São Paulo: Faculdade de Medicina da USP, 1967.

LACAZ, Carlos da Silva. História da Faculdade de Medicina, USP: reminiscências, tradição, memória de minha escola. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 1999.

MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. Elites em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo (1916-1931). Bragança: EDUSF, 2003.

_____. Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da casa de Arnaldo. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2006.

MOTA, André. USP avant USP: o caso da Faculdade de Medicina em 1911 In Revista da USP, no. 61. São Paulo, 2004. p.210-221

NADAI, Elza. Ideologia do Progresso e Ensino Superior (São Paulo 1891–1934). São Paulo: Ed. Loyola, 1987.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, 1993.

PORTUGAL, Olympio. Discurso em Sessão Solemne da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (5 de agosto de 1920). Annaes Paulistas de Medicina e Cirurgia. São Paulo, vol. XI, n.6, anno VIII, 1920.

PRADO, Antonio de Almeida. Quatro séculos de medicina na cidade de São Paulo. In: Ensaios paulistas. São Paulo, Ed. Anhambi, 1958. p.791

SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação: pintura de história e a Primeira República, Rio de Janeiro. Estudos Históricos - CPDOC/FGV, Arte e História, n. 30, 2002.

SILVA, Márcia Regina Barros da. O mundo transformado em laboratório: ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo de 1891-1933. 2004. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

SCHRAIBER, Lilia Blima; MOTA, André; NOVAES, Maria D.H. Tecnologias em saúde. In: Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/ Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz, 2006. p. 248-257. (Verbete).

STARR, Paul. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1991.

Page 57: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

57

mediCinA e ensino médiCo em são pAulo, 1891-1918:disputAs e Conflitos de um proJeto em Construção1

Maria Gabriela S. M. C. Marinho

introdução

Em Dom Casmurro, considerado o mais célebre de seus romances e o mais discutido da literatura brasileira, Machado de Assis impõe ao personagem Bentinho o dilema da escolha profissional: cursar a Faculdade de Direito em São Paulo, ou a “Escola de Medicina”, no Rio de Janeiro. Em suas projeções oníricas, Bentinho se percebe como estudante de Medicina, ungido pelo imperador na escolha da profissão médica, muito embora, no decorrer do romance, seu destino tenha sido selado na direção oposta. A passagem é reveladora do lugar de prestígio ocupado pela profissão médica na sociedade brasileira do final do século XIX, que de modo desigual vai se sobrepondo ao ambiente imperial. Afinal, lembra Kátia Muricy, ao analisar a obra de Machado de Assis, “é somente a partir do século XIX que se pode falar na existência de uma medicina social e de uma política médica higienista – isto é, de um discurso e de uma série de práticas voltadas para questões específicas, relacionadas à higiene das cidades, da população e da família – que procuram determinar formas eficazes para uma intervenção médica na sociedade. A maior parte das teses médicas com essas preocupações foi defendida na segunda metade do século, coincidindo com o período de publicação das obras de Machado de Assis”.2

O prestígio da profissão médica e as diretrizes higienistas presentes no Rio de Janeiro e nas obras de Machado de Assis na segunda metade do século XIX, assim como as disputas correlatas, se farão notar também em São Paulo, nos debates que antecederam a criação do ensino médico. Uma

1 MARINHO, Maria Gabriela S.M.C.Medicina e Ensino Médico em São Paulo, 1891-1918: disputas e conflitos de um projeto em construção, in MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela S.M.C.; DANILA, Arthur H. (Orgs.). Centro Acadêmico Oswaldo Cruz: a história dos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1ed. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2009,

2 MURICY, 1988, p. 21.

Page 58: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

58

razoável produção acadêmica tem se voltado para diferentes aspectos da atividade médica e da Saúde Pública na cidade de São Paulo, com ênfase sobretudo no contexto do final do século XIX, quando a massa migratória se avoluma, com evidentes impactos demográficos e urbanos. No quadro dos eventos políticos da Abolição e da República, que redefiniram o lugar do estado de São Paulo junto à Federação, as condições sanitárias precárias pressionavam por reformas que se estabeleceram conjunturalmente com a criação de órgãos e instituições voltadas para a Higiene e a Saúde Pública. A necessidade de “emoldurar” a capital com o verniz do progresso e controlar as epidemias que se disseminavam pelo interior permitiu, entre projetos e decretos, a escalada das intervenções públicas, entre as quais o debate em torno do ensino médico em São Paulo.3

Em meio às reconfigurações sociais, políticas e econômicas que se processa-vam localmente, com repercussões nacionais, a criação da Faculdade de Medici-na tornou-se objeto de uma disputa ácida entre membros e grupos seletos da elite de São Paulo. No final do século XIX, mais precisamente em dezembro de 1891, o primeiro ato de criação oficial, assinado por Américo Brasiliense, submergiu no torvelinho das crises políticas deflagradas pela República. As demandas médicas e sanitárias, contudo, permaneciam no centro da dinâmica social do período, e o antigo Hospital Central da Santa Casa de Misericórdia, inaugurado em 1885, iria se tornar, num primeiro momento, por volta de 1909, a linha de frente do ensino médico em São Paulo4. Ali se constituiria o grupo de médicos que, solidamente implantados na estrutura local de poder, sairia mais tarde vitorioso na disputa pela hegemonia do ensino oficial de medicina no Estado.

O auge dessa disputa se desenrolaria ao longo da década de 1910, com a criação da primeira faculdade de medicina de São Paulo. Particular, a primeira escola médica alinhava-se com os demais cursos da Universidade Livre de São Paulo, criada em 1911 pelo médico mineiro Eduardo Augusto Ribeiro Guimarães5. Deputado constituinte em 1891, positivista convicto, engajado nas campanhas pelo “ensino livre”, o médico arregimentou capitais, imóveis e eminências locais em torno de seu projeto. Contudo, ao colocar em funcionamento uma universidade particular em um ambiente social extremamente cioso de suas prerrogativas oligárquicas, Guimarães mobilizou também animosidades duradouras.

3 Uma produção memorialística consagradora em torno da Faculdade de Medicina vem sendo substituída nos últimos anos por uma produção acadêmica consistente. Ver, por exemplo, NADAI, 1987; MARINHO, 2003; MOTA, 2005; SILVA, 2003, entre outros.

4 SILVA, 2003, p. 86: “A questão do ensino foi uma outra área em debate. Em fevereiro de 1909, o chefe da clínica médica, Rubião Meira, juntamente com Ulysses Paranhos, da Santa Casa, atuando também na Policlínica de São Paulo e no Instituto Pasteur, iniciavam um Curso de Clínica Médica e Diagnóstico Médico. O curso foi apontado por Rubião como um “ato de inauguração do ensino médico na nossa florescente capital” (MEIRA, 1913, p. 59). Com 40 aulas, o curso enfatizava os “exercícios práticos cotidianos” (GAZETA, 1909, p. 148, apud SILVA, op. cit.) e sua inscrição deveria ser realizada na redação da Revista Gazeta Clínica, de propriedade de Rubião Meira”. Em outra fonte de sua autoria, Meira aponta, por duas vezes, o ano de 1908 como o início do ensino na Santa Casa.

5 MOTA, 2005; SILVA, 2006.

Page 59: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

59

ArtiCulAções, disputAs, Confrontos:só há lugAr pArA umA esColA médiCA em são pAulo

Diante da curta experiência do ensino livre de medicina em São Paulo, de 1911 a 1917, três personagens, suas origens e trajetórias, quando postos em relevo, evidenciam como se entrelaçavam fortemente os meandros do poder local, cingindo ações públicas aos vínculos pessoais. Arnaldo Vieira de Carvalho, Luiz Pereira Barretto e Domingos Rubião Alves Meira, oriundos de famílias bem situadas nas oligarquias de São Paulo e Rio de Janeiro, tornaram-se articuladores do grupo que, na Santa Casa, vocalizou e liderou o projeto de ensino médico que se tornou vitorioso com a implantação, entre 1912 e 1913, da escola estadual, a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Assinatura de Américo Brasiliense no primeiro decreto de criação da Faculdade de Medicina e Cirurgia, 1891

Imersos numa conjuntura social e política em que as relações individuais e o prestígio pessoal assumiam peso preponderante na construção das instituições e dos espaços de poder, eles ocupavam papéis bem demarcados

Page 60: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

60

na estrutura de poder que viabilizou a instalação da Faculdade de Medicina. Arnaldo Vieira de Carvalho, por exemplo, provinha da cidade de Campinas, e era filho do vice-presidente da Província, José Joaquim Vieira de Carvalho, advogado e antigo diretor da Faculdade de Direito. Médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1888, Arnaldo desde cedo ocupou um leque de posições proeminentes nas instituições médico-sanitárias de São Paulo: diretor do Instituto Vacinogênico, médico da Hospedaria dos Imigrantes, diretor clínico da Santa Casa de Misericórdia e da Policlínica. Sua condução ao cargo de direção da Faculdade de Medicina cercava-se, portanto, de grande legitimidade entre os contemporâneos.

Luiz Pereira Barretto e Rubião Meira eram ambos naturais do Rio Janeiro, o primeiro nascido na cidade de Rezende, em 1840, o segundo em Barra do Piraí, em 1878. Pereira Barretto diplomou-se em medicina em Bruxelas, e tornou-se uma figura de grande evidência no Partido Republicano Paulista. Ao longo do século XIX, esteve à frente de alguns empreendimentos que o distinguiriam como “inovador” no campo de técnicas agropecuárias. Rubião Meira, por sua vez, o mais novo do grupo, formara-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1901. Logo após a formatura, clinicou muito brevemente no interior de Minas Gerais, na pequena cidade de Piumhi, nascente do rio São Francisco. Em seguida rumou para São Paulo, onde se instalou e fez carreira como médico e professor na Santa Casa de Misericórdia e na Faculdade de Medicina de São Paulo. Foi também editor da Revista Gazeta Clínica e presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

No campo oposto estava o médico mineiro Eduardo Augusto Ribeiro Guimarães, diplomado em 1882, também no Rio de Janeiro, onde trabalhou com Luis Couty no Museu Nacional6. Pelo teor da documentação consultada, torna-se evidente a força e o grau de articulação impostos ao processo de desmontagem da Faculdade de Medicina da Universidade Livre de São Paulo7. Aos reiterados convites dirigidos a Arnaldo Vieira de Carvalho e Rubião Meira por Eduardo Guimarães, sucederam-se negativas de ambos, algumas delas tornadas públicas, como veremos adiante.

Embora tenha mobilizado apoios e capitais suficientes para implantar de fato a primeira Universidade em São Paulo, e nela a primeira escola médica do estado, Guimarães testemunhou sua derrocada perante uma conjunção poderosa de forças políticas para as quais a experiência de uma “escola independente” assumira o caráter de afronta ostensiva. A correspondência de Luiz Pereira Barreto a Arnaldo Vieira de Carvalho, em dezembro de 1917, quando a Universidade Livre de São Paulo vivia a

6 Poderosos politicamente e bem situados nas estruturas de poder, Pereira Barretto e Arnaldo Vieira de Carvalho ocuparam vários cargos e funções de destaque: Rubião Meira, além de diretor da Faculdade de Medicina, seria também, mais tarde, reitor da Universidade de São Paulo.

7 Deve-se a André Mota a primeira análise mais consistente em torno das pressões políticas exercidas sobre a Faculdade particular em sua tese de doutorado, publicada, posteriormente, como Tropeços da Medicina Bandeirante, 2005.

Page 61: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

61

plenitude de sua derrocada, é reveladora das alianças e disputas locais e das estratégias associadas aos projetos litígio:

“Collª Amº ArnaldoMando-lhe dois livros e dois opúsculos da lavra de nosso collega Ulysses Paranhos. Mando-lhes para o fim de justificar um pedido.A Universidade está hoje, evidentemente, com os seus dias con-tados. Incontestavelmente foi o advento da Faculdade de Medici-na que desfechou-lhe o golpe mortal. Inútil discutirmos a respeito agora. O que convem de hoje em diante he cercar o mais possível a Faculdade das sympathias de nossa sociedade estudiosa, fazendo a esquecer o naufrágio da primeira tentativa da iniciativa individual n’este sentido.O nosso collega U. Paranhos goza de uma immensa popularidade no seio de todos os grupos universitários. Entendo, portanto, ser de grande vantagem a sua nomeação para um [abrev. qualquer um] dos lugares a preencher na Faculdade. Mesmo quando não haja mais lugar de cathedraticos, o de simples substituto serve: o essencial he prestigiar o corpo docente.Alguem lembrou-se de oppor à candidatura d’esse nosso collª o facto de se achar elle à testa de um estabelecimento industrtial. Para quem accompanha a marcha da evolução do pensamento em França he esse facto antes um forte motivo da preferência.Foram os escrúpulos das vestaes da parte dos scientistas franceses que entregaram à Allemanha a posse exclusiva de immensas riquezas, provenientes de industrias e descobertas partidas da França. Hoje, em França, felizmente, a reacção he grande; ninguém mais ahi morrerá da forma como Leblanc, nem pauperrimo como Gelrard; todos sabem que, se Pasteur nunca tirou um privilegio para se en-riquecer, Ehrlich vingou todos os homens de sciencia, desfavore-cidos da sorte, vendendo a receita do seo salvarsan por 20 milhões de marcos. As tintas de annilina, a aspirina, a fluorcetina [?] são verdadeiras minas de ouro nas mãos dos Allemães: foi para elles que Berthelot trabalhou. Portanto, sejamos justos; tenhamos os olhos atentos e saudemos todos os patrícios, que cooperam, efficazmente, para a completa exclusão da Allemanha.

Collª AmºL. P. Barretto”

As relações entre Arnaldo Vieira de Carvalho e Luiz Pereira Barretto eram antigas e sólidas. É possível que a atuação de ambos se processasse

Page 62: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

62

Reprodução fac-simile da correspondência enviada por Arnaldo Vieira de Carvalho a Eduardo Guimarães, da Universidade Livre de São Paulo.

Arnaldo recusa o convite para compor o corpo docente da escola médica particular criada em São Paulo em 1911 e encerrada em 1917.

A extinção da primeira Faculdade de Medicina de São Paulo abalou profundamente o médico Eduardo Guimarães que se afastou das atividades acadêmicas, mantendo apenas o atendimento clínico.

Page 63: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

63

mais acentuadamente nos bastidores. A documentação pesquisada deixa entrever um jogo sutil de interesses que se manifestavam pelos artigos de imprensa, nos discursos enviesados das celebrações públicas, nos recados dúbios em banquetes e solenidades, adornados na pompa das fortunas amealhadas pela plutocracia cafeeira8. A força de Luiz Pereira Barretto não tardou a se manifestar no episódio que resultou no afastamento do professor austríaco Walter Haberfeld, nos tempos iniciais da instalação do curso médico na Faculdade de Medicina, como analisado mais adiante.

Por outro lado, o ingresso profissional de Rubião Meira na cena médica paulista é tardio e se dá a partir 1901, depois de sua curta experiência pelos sertões mineiros. Naquele contexto, o prestígio e a força política de Arnaldo e Pereira Barretto são incontestes, e sua condição de neófito em uma arena tão disputada, talvez o tenha encorajado a desempenhar mais tarde o papel reservado à infantaria nas batalhas que se desencadeariam na cena médica

8 Correspondência de Pereira Barretto a Arnaldo Vieira de Carvalho, Museu Histórico da FMUSP.

Primeiro emblema da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo

Carteira de matrícula no curso preliminar da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo

Page 64: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

64

paulista. A oposição explícita ao advento da primeira escola médica é realçada em narrativa publicada na década de 1930. Nesse texto, Rubião Meira expõe sua versão:

“Já havia um início de ensino. Eu o havia começado e inaugurado na mesma Santa Casa em 1908 e muitos dos meus discípulos de então occupam hoje situação de destaque nas coisas movediças. Quer dizer que frutificou. Houve um esboço de Faculdade de Me-dicina criado pela Escola de Pharmacia. Sahi com armas em riste contra esse projecto. Cahi fundo sobre os propugnadores da idea. Bati nas brechas do edifício. Soffri como era natural a resposta da aggressão. Até o meu enterro quizeram fazer. Mas, senhores, não é com os ridiculos que se destróe a razão.E, a razão andava commigo e tanto andava que o projecto fene-ceu. Passei dias de lutas. Posso affirmar, com orgulho, que si São Paulo hoje não tem aquella escola fundada mal, deve-o a mim. Em discurso, pronunciado quando se festejava 25 annos da directoria, na Santa Casa, pedi a Arnaldo que impedisse a construcção da Fa-culdade Medica em bases insustentáveis, que nos désse edifício escoimado de vícios, que olhasse o futuro de S. Paulo, que se opu-zesse a essa obra, que não estava á altura de nossas aspirações. Fui feliz e desappareceu o que me amedrontava – nos amedrontava, devo dizer. Tempos depois, trabalhada a idéa, preparado o terreno, Arnaldo acceita a direcção da Faculdade de Medicina e installa essa criação sua, a que nós hoje pertencemos e em que vós moços aprendeis o manejo das armas de vossa profissão.”9

Contudo, em artigos publicados pela Gazeta Clínica e pelo Correio Paulistano entre agosto e setembro de 1910, Rubião Meira, em seu estilo particular, referia-se às suas características de juventude como “moço de temperamento ardoroso e combatente”10. Nesta condição repudiou de modo enfático, e em seu nascedouro, a constituição da Escola Livre de Medicina, como pode ser acompanhado por seus pronunciamentos. Em ofício dirigido ao diretor da Escola de Farmácia, recusando o convite para compor o corpo docente da nova escola, Meira assim se manifestou:

“(...) E, si aqui deixo estampados os motivos porque entendo não poder acompanhar a v.exa. nessa gloriosa tarefa , é porque se faz mister que na classe medica de S. Paulo se faça ouvir o protes-to solenne contra o modo pelo qual se vae erguer a Faculdade de

9 MEIRA, 1937.10 MEIRA, 1913, p. 42, discurso proferido ao assumir a cátedra de Presidente da Sociedade de Medicina e

Cirurgia de São Paulo.

Page 65: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

65

Medicina, e protesto que melhor cabido fica na bocca de quem foi para ella convidado que na de outrem. Este seria taxado de estar dominado pelo despeito, emquanto que o meu procedimento só póde ser ditado pela san razão e pela obediencia aos preceitos de honorabilidade que governam minha vida publica. Tolere-me v. exa., a quem tributo o mais sincero respeito – seja dito em homenagem á verdade – que eu exponha os motivos da minha formal recusa a collaborar, com a insignificancia de meus prestimos, na organisação dessa Faculdade, que, pelo vício de ori-gem, será talhada a vida ingloria e improficua. De facto, oriunda em sessão de Congregação da Escola de Phamarcia, teve a Facul-dade de Medicina, no seu nascimento, composição que não pode permanecer integra si quizer ter existencia longa, que há de ser modificada si não quizer ser enxovalhada pelo ridículo. A organisação da nova Faculdade vae de encontro ao Codigo de Ensino da Republica e tem de se submeter ás agudas pontas deste dilemma – ou constitui-se para abarrotar, e só, o campo paulista de profissionaes, que não podem exercer o seu titulo fóra deste Estado, porque o governo federal não a reconhecerá, em face da lei vigente, ou terá de ser remodelada e expurgada dos elementos, contra os quaes me insurjo, si desejarem terem os seus diplomas livre curso no paiz. Não ha que fugir dahi, e tenho confiança no elevado criterio de meus collegas, que não se submetterão a esse papel e não cohonestarão, com o seu apoio, tamanha infracção á moralidade do ensino. O dilemma é inatacavel e inevitavel e uma ou outra será a sahida pela qual a Faculdade de Medicina terá de optar. Não acredito, porém, que esse projecto, qual está esboçado, seja levado avante. Exmo. sr. director, pharmaceuticos não podem entrar, por maior que seja a sua illustração, como no caso, em congregação de Facul-dade de Medicina, constituirem-se professores de futuros medicos, julgarem-nós em defesa de theses, com os mesmos direitos e as mesmas prerrogativas que a lei concede aos doutores em medicina. Não sei como v.exa., que occupa no magisterio da Republica posi-ção de excepção, leccionando, aliás, com proficiencia reconhecida, em Faculdade de Direito e julgando em concursos, na ignorancia – deixe que a verdade faça explosão – das materias juridicas, fa-zendo valer o voto em conflictos onde sempre vence a justiça, não sei como v. exa. permitte, com o prestigio de seu nome e a força de sua acção, se constitua uma Faculdade, em que cinco de seus membros são pessoas de voto nullo e morto nas deliberações, em que devem superar conhecimentos medicos. Porque, não creio que seja, como foi, sempre a mesma a maneira de escolha dos futuros

Page 66: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

66

lentes. Elles terão de passar por concursos médicos e soffrerão, en-tenda bem v.exa. e comprehendam bem os meus collegas, o julga-mento, em suas provas, de pharmaceuticos, em assuntos de clinica, em materias de histologia, anatomia, physiologia e pathologia! Só esse argumento bastaria para que v. exa. se esforçasse por dar á nova Faculdade organisaçao differente, eliminando, do quadro de professores, os pharmaceuticos, todos dignos de figurarem na Es-cola de Pharmacia, mas incompetentes para formarem uma escola medica. Essa Faculdade, que desponta, não póde subsistir, pois traz marca indelevel de grave defeito e não póde ser, absolutamente, equiparada ás Faculdades de Medicina da Republica. (...). Esse é o primeiro dos motivos – e o mais sério – porque fujo a me reunir aos collegas que vão collaborar com v. exa. nessa obra, que nasce talhada á vida de provincia tão sómente e não traz elementos de pujança e de grandeza,, como São Paulo – o Estado mais adian-tado do Brazil – tem o direito de exigir. Ainda mais, e pesa-me dizer a v. exa., a escolha dos professores, feita pelos senhores pharmaceuticos, a alguns dos quaes me ligam, aliás,, laços de solida amizade, obedeceu antes a regras de com-padrio que a verdadeiro espirito de justiça. (...) Não quero descer

Aula do terceiro ano do curso geral, primeira cadeira de Clínica Médica e Propedêutica. Na foto, Arnaldo Vieira de Carvalho, professores, médicos e alunos, 1916

Page 67: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

67

a outros nomes que faltam, nem estudar os aproveitados, entre os quaes figura o immerecidamente. Seria tarefa odiosa, a que não me sinto habilitado de concorrer com v. exa., nessa ingrata tarefa. Elles são, para mim,, muito fortes e me submettem á obrigação de recolher-me á obscuridade. Não acredito, exmo. Sr. director, que os medicos que ahi se reunem hoje divirjam fundamentalmente dessa minha maneira de pensar e tenho confiança absoluta no caracter e na dignidade profissional del-les, para superarem, vencerem e eliminarem esse erro grave que vae commetter – a fundação de Faculdade de Medicina, leccionada por pessoas estranhas e jejunas em medicina. Deus guarde a v.exa.”

A fACuldAde de mediCinA e CirurgiA de são pAulo: esColA públiCA, deseJos priVAdos, disputA ACirrAdA

A instalação da Faculdade de Medicina mantida pelo poder público estadual começou a se efetivar no final de 1912, e as primeiras aulas começaram no mês de março do ano seguinte. O processo era resultado da recomposição política promovida pela recondução de Rodrigues Alves ao governo do Estado. A primeira legislação em torno da criação do ensino médico oficial em São Paulo havia sido promulgada por Américo Brasiliense em 1891, em meio a um conturbado cenário político que levou à sua

A charge publicada na revista A Cigarra, na década de 1910, expressa o confronto entre o médico Eduardo Guimarães e a nova Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo implantada pelo governo estadual.

Fonte: Revista A Cigarra (apud Mott et al., 2007)

Page 68: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

68

Quadro com os formandos da primeira turma da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo

Page 69: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

69

deposição cerca de um mês depois da assinatura do decreto11. Instalado por etapas a partir de 1913, o funcionamento provisório da escola sucedeu-se em locais adaptados: inicialmente as aulas teóricas eram promovidas na Escola de Comércio Álvares Penteado, no Largo São Francisco; posteriormente na Escola Politécnica, e por último no casarão de número 45 da Rua Brigadeiro Tobias, no centro da cidade de São Paulo.

Ironicamente, as alegações de precariedade brandidas contra a escola particular, como argumento decisivo para justificar seu fechamento, reproduziam-se de modo ostensivo no estabelecimento estadual. O ensino clínico, realizado por cerca de três décadas na Santa Casa de Misericórdia, reforçava, na crônica destes tempos iniciais, o registro direto e indireto da precariedade do curso, além das disputas em torno do preenchimento das vagas.

A documentação disponível aponta a indicação de Oscar Freire para a Cadeira de Medicina Legal como objeto de uma destas disputas na cidade de São Paulo. Porém, sua indicação resultou da escolha pessoal de Arnaldo, como de resto, teria ocorrido na montagem de todo o corpo docente da Faculdade de Medicina, desde 1912. Um elemento esclarecedor dos componentes pessoais presentes nos arranjos institucionais pode ser verificado pela troca de correspondência entre Arnaldo Vieira de Carvalho e Luiz Fellipe Jardim, antigo colega de turma no Rio de Janeiro, que pleiteou insistentemente a vaga de professor de Medicina Legal.

Na correspondência enviada, o timbre do papel registra: Dr. Luiz F. Jardim - Médico Operador – Especialista em Moléstias de Senhoras – Telephone 487 São Paulo. Como se trata de um material bastante elucidativo, alguns trechos dessa correspondência encontram-se transcritos a seguir. Na primeira carta, enviada em 1917, Luiz Jardim dirige-se a Arnaldo nos seguintes termos:

“S. Paulo, 7 de Fevereiro 191712

Distinto collega Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho.

Saudações

Acreditando ser digno de aspirar uma cadeira de professor de me-dicina legal ou de hygiene da Faculdade de Medicina de S. Paulo, da qual o illustre collega é muito digno Director. Não venho pedir, porque lugar de professor cathedratico ou substituto não se pede,

11 Entre a primeira e a segunda legislação, um curso médico chegou a funcionar em condições adversas na cidade, na Universidade Livre de São Paulo, criada em 1911, e cujas atividades foram encerradas em 1917. Decreto nº 19, de 24 de novembro de 1891, Collecção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo.

12 O documento original manuscrito encontra-se no acervo do Museu Histórico da FMUSP. Manteve-se, para todas as transcrições, a grafia original da época e a pontuação, conforme constante nos originais.

Page 70: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

70

más, sim apresentar-me candidato ao lugar de lente cathedratico ou substituto de uma das referidas matérias, para as quaes já tive occazião de inscrever-me em 1915 no concurso d’Academia de Di-reito de S. Paulo. Devido a uma arbitrariedade que redundou em benefício e proteção ao único bacharél em sciencias jurídicas e so-ciaes, que havia à aquella occazião. Um simples aviso do Ministro do Interior do governo Prudente de Moraes, prohibiu a entrada no concurso de médicos. Porém, logo depois, que o bacharel foi approvado simplesmen-te em concurso e nomeado lente de medicina legal e hygiene, o mesmo ministro baixou outro aviso declarando, que d’aquella data em diante os medicos terião direito de apresentarem-se em concurso para os lugares de lentes de medicina legal e hygie-ne das Academias de Direito do Brazil. Facto esse simplesmente edificante! Não sei se serei digno ou não de ser escolhido pelo respeitavel collega, para professor da Faculdade de Medicina de S. Paulo. Apresento-me candidato, porque além de ser paulista, e medico clinico no hospital haverá muitos annos, tenho prestado muitos serviços ao Estado, e quanto a minha habilitação e capaci-dade, já que não posso manifestal-a em concurso, pessoa alguma melhor do que a meu distincto collega poderá avaliar, porque o nosso conhecimento vem de longa data, tive a honra de diplomar--me em Medicina juntamente com o collega em 1888.Esperando uma avaliação da minha justa pretensão, agradecido subscrevo-me Do collega, amigo e admirador Luiz Felippe Jardim

Rua, 15 de novembro 29”

A resposta de Arnaldo Vieira é prontamente encaminhada. Depois dela, a polêmica será instalada no ano seguinte, conforme exposto mais adiante.

“Em 9 de fevereiro de 1917.Meu caro collega.

De posse de sua presada carta, onde se declara candidato a cadeira de lente de medicina legal na Faculdade que, por mal cabida con-fiança do Governo, dirijo, me apresso a responder, nenhuma objec-ção fazer a essa sua pretensão. Reconheço no velho companheiro de estudos todas as qualidades e requisitos para ser um professor brilhante e perfeito, capaz de hombrear com os mais reputados

Page 71: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

71

Espaços ocupados pela Faculdade de Medicina, anteriores ao prédio atual. Pinturas em aquarela de José Wash Rodrigues. Em sequência: Escola de Comércio Álvares Penteado; Escola Politécnica de São Paulo; Rua Brigadeiro Tobias, 1; Rua Brigadeiro Tobias, 42; Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

Page 72: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

72

médicos legistas, levantar bem alta a reputação dos paulistas no desempenho do professorado.Executo, porém, ordens no posto de confiança em que estou e a escolha dos professores não é minha e sim do Governo. Minha intervenção como seu orientador, nestes casos, obedece sempre as injunções do desenrolar dos acontecimentos e, por isso, não posso nem devo assumir compromissos prévios na questão.Depende do amigo e Collega sua nomeação. Imponha-se ao Governo pelos títulos que possue e pelos muitos que conquistará em pesquisas scientificas de que é e será capaz até o momento de se tratar do provi-mento das cadeiras em questão. E então o Governo do Estado, como sempre acontece, obdecerá às indicações da opinião publica e indica-ções da classe medica.Será para mim, creia, immenso prazer dar ao velho amigo e com-panheiro de estudos posse da cadeira de medicina legal.

Do amigo e Collega”13

No dia seguinte, Luiz Jardim respondeu nos seguintes termos:

“S. Paulo, 10 de Fevereiro 1917

Prezadissimo amigo e distincto collega Dr. Arnaldo Vieira de Car-valho

Penhoradissimo pela elevada e criteriosa linguagem do egregio collega, que sempre mereceu-me toda consideração e admiração, acabo de receber a sua gentillissima carta. Agradecendo de coração os elevados conceitos que bondosamente faz da minha humildade personalidade, acceito o seu conselho. Apresentar-me-hei candidato ao lugar de professor de medicina le-gal da Faculdade de Medicina de S. Paulo, procurarei em occazião opportuna, reunir dados e documentos para facilitar tal aspiração. Porém, se não for escolhido e nomeado lente, jamais procederei como um despeitado, deixando de reconhecêr o inquestionavel mérito e valor do meu distincto collega, cuja bella reputação de que goza, é principalmente oriunda de seu reconhecido talento, do seu brilhantismo no exercício da cirurgia e da medicina, da nobreza indiscutível do seu caracter por todos os homens de bem respeitado e acatado.

13 Sem assinatura no documento original, que foi datilografado.

Page 73: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

73

Mais de uma vez, com a devida independência e franqueza, que sempre me caracterizou, tenho-lhe defendido de mesquinhas e malcabidas censuras. Sou de opinião e serei sempre, que a Faculdade de Medicina e Cirurgia de S. Paulo, não podia ter um Director mais digno e mais abalisado, nenhuma das escolas de Medicinas do Brazil, possue um Director superior à de S. Paulo, creio poder affirmar, que as escolas de Medicina e Cirurgia estrangeiras possuirão excellentes directôres, porém jamais superiores em qualidades moraes, em illustração e habilitação ao meu respeitavel collega. Veritas super ominia.

Com todo respeito e estima subscrevo-me:

Do collega e amigo gratoLuiz Felippe Jardim

Rua 15 de Novembro, 29”

Diploma da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo de 1918

Page 74: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

74

Em 1918, Oscar Freire, proveniente da Faculdade de Medicina da Bahia, discípulo de Nina Rodrigues, foi nomeado para a Cadeira de Medicina Legal e chegou a São Paulo cercado de prestígio. Diante da nomeação, Luiz Jardim dirigiu-se novamente a Arnaldo, dessa vez de modo formal, ácido e contundente:

“São Paulo, 15 de Janeiro de 191814

Exmo. Senhor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, Digno Director Faculdade de medicina e cirurgia de S. Paulo

Respeitosos cumprimentos. Acreditando de accordo, com a noticia do Diário Popular de 12 do corrente mez, que já foi nomeado um medico da Bahia, para reger a cadeira de medicina legal da Facul-dade de S. Paulo. Em carta que lhe escrevi em principios do anno de 1917, apresentei-me candidato a essa cadeira, de accordo com o direito, com a razão de ser dos factos e da justiça,Sendo suplantado, e despresado sem conhecer qual o motivo?Peço-lhe o favor de declarar-me quaes as causas que concorreram para que não fosse noméado professor de medicina legal da refe-rida Faculdade. Somente deante de uma explicação justa e razoa-vel, não terei necessidade de explicar aos meus collegas, amigos e conterranéos, porque motivo deixei de ser nomeado para o lugar de lente de medicina, apesar de contar com todos requisitos neces-sários; desde que a nomeação fosse feita com o direito e a justiça.

Com a estima e consideração, sou:

De Vexa. collega e admiradorLuz Fellipe Jardim”

A resposta de Arnaldo, enviada no dia seguinte, retoma os argumentos do ano anterior e transfere a responsabilidade pela nomeação para uma órbita alheia a seu âmbito de decisões:

“16 Janeiro 18Ilmo Snr. Dr. Luiz Felippe JardimRespeitosos cumprimentos,

Em resposta ao favor de V.S. de 15 do corrente, me apresso em dizer que como affirmei em carta anterior, as indicações por mim feitas ao Governo obedeceram sempre a suggestao da classe medi-ca. É ella quem me aponta as competências a escolher. Ora, no caso

14 Ao contrário das duas cartas anteriores, essa e as demais foram datilografadas.

Page 75: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

75

em questão, entre múltiplas consultas, nem uma só vez foi V.S. designado pelos nossos pares para o cargo a preencher. E por esse motivo não foi V.S. indicado para a cadeira de Medicina Legal.Não queria dizer isto com franqueza, mas a carta de V.S. a tanto me obriga. Não fosse isso e immenso seria o meu prazer em distinguir um companheiro de Academia.”

A réplica de Luiz Jardim revela a percepção de um jogo político que o discurso de Arnaldo Vieira de Carvalho tentava dissimular e do qual ele próprio, Jardim, afinal quisera participar.

“São Paulo, 16 de janeiro, de 1918Senhor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, Digno Director da Facul-dade de Medicina e de Cirurgia de S. PAULO.

Saudações. Respondendo a carta de Vsa. de 16 do corrente, fico sciente do conteudo, e em tempo, approveitando a opportunidade, discutirei o assumpto. Não sei o que Vsa. entende por classe medi-ca, constituirão a classe medica sómente os seus collégas e amigos dedicados, ou todos os medicos rezidentes no Brazil e principal-mente em S. Paulo.Innumeros collégas nas minhas condições estão convencidos de accordo com a opinião geral per toto Orbe et per toto Urbe, que a Faculdade de Medicina de S. PAULO, não é propriedade do glo-rioso Estado de S. Paulo, más, sim de alguns politicos, e [por] esse motivo aboliram o concurso, unico meio de reconhecer devida-mente a capacidade dos candidatos à professor de uma Faculdade. Consegui o que desejava; prova cathegorica de facto[s] consum-mados, e [a] consummar-se.Não desejava fallar com tanta altivez e independencia, más, a sua carta assim obrigou-me à proceder. Desculpe incommodar-lhe.

D Vsa. CDo e OBdoLuiz Felippe Jardim”

Page 76: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

76

o proJeto implAntAdo

Ao recriar a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em dezembro de 1912, Rodrigues Alves – em sua segunda administração estadual, de volta ao governo de São Paulo depois da gestão como presidente da República – promoveu, em certo sentido, a continuidade das ações saneadoras empreendidas anteriormente no Rio de Janeiro. Enquanto presidente da República, Rodrigues Alves nomeara Oswaldo Cruz diretor geral de Saúde Pública, e suas ações no campo do saneamento propiciaram, como é sabido, importantes desdobramentos para a pesquisa biomédica no Brasil.

Em 1913, o decreto nº 2.344, de 31 de janeiro, estabeleceu o regulamento da nova escola. O mesmo texto nomeou para sua direção Arnaldo Vieira de Carvalho, que manteve o cargo de diretor clínico da Santa Casa de Misericórdia, ocupado por ele desde 1894. As relações acadêmicas entre a escola e a Santa Casa mantiveram-se estreitas até 1945. Por mais de 30 anos, a Santa Casa acolheu o ensino das disciplinas clínicas. A transferência aconteceu somente com a inauguração do Hospital das Clínicas, na década de 1940.

Desde o início das atividades, o discurso de Arnaldo, acerca de suas escolhas, foi construído no sentido de conferir base científica e experimental ao ensino, com ênfase na pesquisa e em práticas laboratoriais, em contraposição ao modelo vigente no país, mais voltado para aulas teóricas, com ênfase na clínica. Essa preocupação decorria, em parte, de suas funções anteriores como diretor do Instituto Vacinogênico, e também por sua ligação com os círculos científicos de São Paulo.

O primeiro decreto de criação da Faculdade, em 1891, já previa a contratação de corpo docente composto de pelo menos um terço de professores estrangeiros. O segundo decreto, de 1912, em torno do qual o curso efetivamente se organizou, previa sua completa instalação no prazo de seis anos e manteve a cláusula para contratação de professores no exterior.

Com essa perspectiva, a estrutura curricular procurou dosar aulas teóricas com as práticas de laboratório, abrindo assim a possibilidade de os estudantes receberem uma formação de cunho mais científico e não meramente clínico. A preocupação com estudos de Anatomia, Histologia, Fisiologia e Microbiologia tinha como objetivo afastar do curso o “espírito enciclopedista”, possibilitando o aprofundamento na biologia e ciências correlatas.

Desse modo, o currículo destinou o primeiro ano para o curso preliminar, dividido em três cadeiras: Física Médica, Química Médica e História Natural Médica. O curso geral, com duração de cinco anos,

Page 77: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

77

foi estruturado em torno das cadeiras de Anatomia Descritiva, Fisiologia e Farmacologia Médica, no primeiro ano. Anatomia Descritiva, Fisiologia, Histologia, Clínica Dermatológica e Sifiligráfica e Clínica Otorrinolaringológica localizavam-se no segundo ano. O terceiro ano foi destinado às cadeiras de Microbiologia, Anatomia e Histologia Patológicas, Anatomia Médico-Cirúrgica, Operações e Aparelhos, Clínica Médica, Patologia Interna, Clínica Cirúrgica, Patologia Externa, e Clínica Oftalmológica. O quarto ano contemplou Patologia Geral e Experimental e Clínica, Arte de Formular, Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Clínica Obstétrica, Clínica Pediátrica, Puericultura. Quinto ano: Higiene, Medicina Legal, Clínica Médica, História da Medicina, Clínica Ginecológica, Clínica Psiquiátrica e de Moléstias Nervosas.

A orientação científica que se buscou imprimir à estrutura curricular definiu a composição do corpo docente e a escolha de professores estrangeiros, entre os quais figuravam nomes que haviam alcançado, ou viriam a alcançar, grande prestígio em suas especialidades. Da Europa vieram Alfonso Bovero, da Universidade de Turim, para a cadeira de Anatomia Experimental e Descritiva; Émile Brumpt, da Universidade de Paris, para a cadeira de Parasitologia, e Lambert Mayer, de Nancy, para a Fisiologia.

Oriundos da Itália, chegaram ainda Antonio Carini e Alexandre Donati para as cadeiras de Microbiologia e Patologia Geral. Além de professores italianos, a Faculdade de Medicina contratou também o austríaco Walter Haberfeld, que já trabalhava no Brasil e havia sido contratado pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, na época de sua criação, em 1916.

A escola médica criada em 1912 foi a primeira escola pública de nível superior de São Paulo a permitir explicitamente em seu regulamento o ingresso de estudantes de ambos os sexos, o que possibilitou a formatura de duas mulheres na primeira turma, Delia Ferraz e Odette Nora, além de destinar 10% de suas vagas para a matrícula de alunos pobres.

Em 1913, a escola começou a funcionar em instalações cedidas pela Escola de Comércio Álvares Penteado. A admissão dos novos alunos, previa o regulamento, poderia ser feita a partir das seguintes condições: ingresso sem restrições de alunos já formados em outros cursos superiores, transferência de estudantes de outros cursos de medicina, ou provenientes do Ginásio do Estado e da Escola Normal.

A aula inaugural aconteceu no dia 2 de abril de 1913 e foi ministrada pelo lente catedrático de Física Médica, Edmundo Xavier, em salas cedidas pela Escola Politécnica de São Paulo, com a presença do secretário do Interior, Altino Arantes, e do secretário da Presidência do Estado, Oscar Rodrigues Alves, que era filho do então presidente da província e ex-presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves. Estiveram

Page 78: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

78

presentes, também, o diretor da Escola Politécnica, Antônio Francisco de Paula Souza, e Arnaldo Vieira de Carvalho. Ainda em 1913, foi contratado o primeiro professor estrangeiro, Émile Brumpt, da Faculdade de Medicina de Paris, que assumiu o cargo em 21 de fevereiro.

Para a primeira turma foram aceitos 180 alunos no curso preliminar, em 1913. As aulas do curso preliminar dividiram-se entre a Escola de Comércio Álvares Penteado e a Escola Politécnica. Dos 180 matriculados, apenas 70 cursaram até o final do ano. Desse total, apenas 34 obtiveram aprovação para o primeiro ano do curso regular, que começou em 1914. Dos 146 reprovados, 58 foram excluídos por faltas, 52 por indisciplina e 36 por questões de mérito acadêmico.

Em março de 1914, instalou-se o curso regular com 34 alunos. Nesse mesmo ano, a escola transferiu-se para a Rua Brigadeiro Tobias, onde ficou até 1931, quando foram inaugurados os prédios construídos com os recursos liberados pela Fundação Rockefeller. Em 1914, foram contratados dois professores estrangeiros: Alfonso Bovero, da Universidade de Turim, para a cadeira de Anatomia Descritiva, e Lambert Mayer, da Faculdade de Nancy, para a cadeira de Fisiologia. Com a eclosão da Primeira Guerra, em agosto desse mesmo ano, Brumpt e Mayer voltaram para a Europa.

A primeira turma do curso preliminar, formada em 1913, tinha uma composição diversificada, com a seguinte procedência: 16 alunos oriundos do Ginásio do Estado, nove diplomados em Ciências e Letras, 20 bacharéis em Direito, 103 diplomados em Ciências e Letras por ginásios equiparados, 22 diplomados da Escola Normal, oito transferidos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e dois diplomados pela Escola Politécnica.

Entre os alunos procedentes da Escola Politécnica de São Paulo estava Ernesto de Souza Campos, que viria a ter uma atuação destacada na vida da Faculdade. Como aluno, contribuiu para a organização do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Como professor, foi diretor da Faculdade e figura relevante no desenvolvimento de acordos com a Fundação Rockefeller. Integrou a comissão de estudos que percorreu diferentes países em busca de subsídios para a construção dos edifícios definitivos da Faculdade e presidiu, posteriormente, o Escritório Técnico responsável pelas obras.

referênCiAs bibliográfiCAs

MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. Elites em Negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo: 1916-1931. Prefácio por Hebe Maria Cristina Vessuri. Bragança Paulista/SP: Centro de Documentação e Apoio à

Page 79: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

79

Pesquisa em História da Educação (CDAPH)/Editora Universitária São Francisco (EDUSF), 2003 (Col. Estudos CDAPH, série Ciência, Saúde e Educação).

MEIRA, Rubião. Medicos de Outr’ora: impressões pessoaes. Pref. Synesio Rangel Pestana e Flamínio Fávero. São Paulo: Edição do Autor, 1937.

MEIRA, Rubião. Perfis e Luctas. São Paulo: Estabelecimento Graphico Universal, 1913.

MOTA, André. Tropeços da Medicina Bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. Pref. por Tânia Regina de Luca., orelha por Lilia Blima Schraiber. São Paulo: EDUSP, 2005.

MOTA, André. USP avant USP: o caso da Faculdade de Medicina em 1911, in Revista USP. São Paulo: (61): 210-221, março-maio 2004.

MOTT, Maria Lucia; DUARTE, Ivomar Gomes e GOMES, Marcela Trigueiro. Montando um Quebra-Cabeça: a coleção “Universidade de São Paulo” do Arquivo Público do Estado de São Paulo, in Cadernos de História da Ciência. São Paulo: 3 (2): 37-72, julho-dezembro 2007 (Dossiê Instituições e Acervos: experiências no Estado de São Paulo no campo da saúde).

MURICY, Katia. A Razão Cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

NADAI, Elza. Ideologia do Progresso e Ensino Superior: São Paulo 1891-1934. Pref. por Maria de Lourdes Monaco Janotti. São Paulo: Loyola, 1987 (Col. Educar, 6).

SILVA, Márcia Regina Barros da. O Mundo Transformado em Laboratório: ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo de 1891 a 1933. Tese de doutorado. São Paulo: Departamento de História/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2003.

SILVA, Márcia Regina Barros da. Projetos Republicanos para a Saúde: o ensino livre de medicina, in Boletim do Instituto de Saúde. São Paulo: (38): 20-23, abril 2006 (Dossiê Memória e História da Saúde em São Paulo).

Page 80: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 81: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

81

centro acadêmico Oswaldo cruz, 1913-1940: primeiros movimentos, primeiras histórias1

André Mota

IntroduçãoO Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (Caoc) foi fundado em meados

de 1913, por Waldomiro Guilherme de Campos, com sua sede localizada num dos prédios da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, à Rua Brigadeiro Tobias nº 1. Durante esse processo de institucionalização, uma crise envolvendo alunos e a diretoria2 levou à expulsão de vários membros do Caoc. Segundo o próprio Waldomiro Campos:

“[...] estávamos em 2o exame parcial e publicaram-se as notas. Di-versos alunos ficaram descontentes com os resultados de química. Por esse motivo, surgiam desinteligências entre os insatisfeitos e o Prof. Edmundo Xavier e o diretor da Faculdade, Dr. Arnal-do Vieira de Carvalho. Em consequência, muitos foram suspensos por prazo indeterminado, entre os quais eu e outros companheiros da Diretoria. O Centro XI de Agosto hipotecou-nos seu apoio. Afinal, conseguiu-se uma conciliação satisfatória, e os estudantes repreendidos voltaram, após 15 ou 20 dias. Mas eu já havia resolvido transferir-me para a Escola de Medicina do Rio, onde prossegui meus estudos.”3

Depois desse incidente e deposta a primeira presidência da agremiação, Ernesto Souza Campos assumiria a diretoria entre 14/09/1913 e 13/10/1914 no sentido de colocar em pauta o primeiro estatuto da agremiação, assunto esse que gerou intensos debates. Já o estudante Jayme Candelária seria eleito

1 MOTA, André. Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, 1913-1940: primeiros movimentos, primeiras histórias. In: MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela S.M.C.; DANILA, Arthur H. (Orgs.). Centro Acadêmico Oswaldo Cruz: a história dos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1ed.São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2009, v. 1, p. 01-288.

2 MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo: Edusp, 2005.

3 O fundador e primeiro presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz: Valdomiro Guilherme de Campos (entrevista). O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano VIII, n. 35, 1940, p.6.

Page 82: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

82

para o cargo, entre outubro de 1914 e setembro de 1915. Nesse período, a gestão em curso4 se mobilizou para aprovar seu primeiro estatuto, organizar as formas de pagamento dos sócios, iniciar as primeiras conversas em torno de um “livro de ouro” para a confecção do estandarte e do distintivo dos alunos da Faculdade. A partir de setembro de 1915, perto das novas eleições para a direção do centro acadêmico, medidas para o processo eleitoral foram propostas nos seguintes termos:

“[...] o Sr. Brasil Ramos Caiado propõe que sejam nomeados dois fiscais de cada ano, para fazer parte da mesa eleitoral; o Sr. Jayme Candelária, em contraproposta, diz que, para harmonizar a situa-ção atual, a diretoria, antes de agir, deve consultar os elementos que formam os partidos, e depois tratar da escolha dos fiscais [...] o Sr. Presidente põe em votação a proposta do Sr. Brasil Ramos Caiado, a qual foi aprovada, tendo votado contra os Srs. Jayme Candelária, Paulo Ribas e João Procópio.”5

Dessa forma, indicaram-se os nomes de Potyguar de Medeiros e Altino Costa, do 1º ano, Alberto Nupiére e Bento Theobaldo Ferraz, do 2º ano, e Messias Fonseca e Gumercindo de Godoy do 3º ano. Houve uma proposta de substituição do nome de Altino Costa pelo de Cassio Malta, mas foi rechaçada. Diante desse quadro, a assembleia marcada para o dia 16 de outubro finalizaria o pleito, o que levou Jayme Candelária a proferir um discurso em que justificava sua negativa quanto aos fiscais das urnas e apontava uma dissensão em torno de uma chapa oficial proposta pela presidência. Para ele, entregar o grêmio a seus adversários era uma forma de sepultar um projeto em andamento:

“[...] diz que corre pela faculdade um abaixo-assinado a favor de uma pretensa chapa conciliadora, fato este de suma gravidade, pois que ele vem desvirtuar o sistema eleitoral, subtraindo-lhe certos atributos que lhe são inerentes, donde resulta uma limitação acin-tosa à suprema soberania das urnas. Não me referiria a esse fato, se ele não fosse patrocinado por companheiros da diretoria, seus colaboradores na obra de organização do Centro, aos quais sem-pre dispensou toda a consideração que merecem. O orador não foi ouvido ou consultado a respeito da chapa. Teve dela conhecimento por informação de alguns amigos, aliás, estranhos aos negócios do Centro É contra esse ato que o presidente do grêmio lança o seu

4 Gestão formada por: Jayme Candelária (Presidente), João Procópio (1º Secretário) e Anther Galvão (2º secretário).

5 Acta da sessão ordinaria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, correspondente ao mez de setembro de 1915, p. 5. (mimeo)

Page 83: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

83

protesto, lavando as mãos de toda a responsabilidade pelo que ve-nha a suceder ao Centro, a vingar essa política inçada de perigos.”6

A ausência de Jayme Candelária, José Ferreira Santos e Paulo Ribas nas sessões dos dias 28 de outubro e 5 de novembro indicava que a “chapa conciliatória” fora ratificada nas urnas, tendo o nome de Ernesto Souza Campos sido alçado à presidência do Caoc (gestões de 1915-1916, 1916-1917 1917-1918)7, com alguns membros do grupo anterior, como o de João Procópio.

“[...] naquela data, em assembleia geral, os estudantes de medicina oficializaram a criação do novo centro acadêmico e conduziram Souza Campos à presidência. Ainda na mesma assembleia, deci-diu-se pela confecção de um estandarte e de uma publicação, uma revista médica, cujo nome, vencida grande divergência instalada, ficou sendo Revista de Medicina.”8

Entre as medidas tomadas pela nova diretoria, constam mudanças no estatuto no sentido de se incorporarem sessões recém-criadas, como a do patrimônio, e uma proposta vinda de Souza Campos para que se incluíssem todos os alunos que chegassem à Faculdade como membros do grêmio, tendo eles a opção de permanecerem como sócios ou, caso não pagassem as mensalidades, de serem desligados da agremiação. Tal posição parece ter tido efeito positivo, inclusive economicamente, segundo informa a ata de 5 de maio de 1917: “o número de sócios do Centro sobe já a 160, o que representa muito, em relação aos alunos da Faculdade, cerca de 190.”9

Entre as pendências a resolver, contava-se a Revista de Medicina, cujos custos de publicação representavam um obstáculo, inclusive com pedidos feitos ao governo do Estado. Mesmo diante de impasses dessa natureza, a revista foi lançada e custeada pelo grêmio em julho de 1916, apresentando em suas primeiras páginas as palavras do catedrático de fisiologia Ovidio Pires de Campos com considerações sobre a necessidade de se transferir o centro acadêmico para a responsabilidade dos que apoiassem e ajudassem a edificar o nome da Faculdade de Medicina:

6 Idem, p.6.7 Chapa: Presidente: Ernesto de Souza Campos, Vice-Presidente: Synesio Rocha, 1º Secretário: Sebastião

Antunes, 2º Secretário: D. Odette dos Santos Nora, 1º Tesoureiro: Benjamim Reis, 2º Tesoureiro: J. Ferreira Santos, 1º Orador: J. Passos Cunha, 2º Orador: Renato de Lacerda.

8 MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da ‘Casa de Arnaldo’. São Paulo: Faculdade de Medicina-USP, 2006, p. 140-141.

9 Acta da sessão ordinária da Diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 5 de maio de 1917, p. 25 (mimeo).

Page 84: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

84

“É muito para louvar-se esse belo empreendimento dos seus di-rigentes, que, assim, e ainda uma vez, dão evidentes mostras de como nítida e claramente souberam compreender, interpretar e tornar efetivos os verdadeiros intuitos do grêmio – a cuja superin-tendência emprestam boa parte do seu esforço e da sua atividade, e o seu natural ardor –, obstando a que, das elevadas cogitações de ordem científica, pudesse o Centro resvalar e despenhar-se e vir achatar-se nos baixios infrutuosos das lutas e competições pesso-ais. Ao Centro, lhe não bastaram as primícias de, pela sua tribuna, haver inaugurado e solidamente estabelecido a obra altamente me-ritória de vulgarizar as boas doutrinas e de disseminar por entre os seus associados aqueles dos princípios que os devem guiar e a que se devem jungir no exercício da sua futura profissão: quis ir além, decidindo, com raro acerto, que, nas páginas desta revista, essa mesma obra – assim tão auspiciosamente levada a cabo – se continuasse, mais ampla e mais intensa, e se perpetuasse, irma-nando, na mais completa e perfeita comunhão de ideais, mestres e discípulos.”10

Dentre aqueles que se manifestaram a respeito, Arnaldo Vieira de Carvalho enviou uma carta ao diretor do Caoc nos seguintes termos:

“[...] peço por isso V.S. receber sinceras felicitações pelo sucesso alcançado pela Revista de Medicina e, com elas, meus votos ar-dentes para que continuem os alunos desta faculdade a cultivar, com o mesmo ardor demonstrado, a ciência, enobrecendo assim a profissão médica, dignificando a Escola [...]”11

Também fez referência à Revista o então Presidente do Estado, Altino Arantes, sublinhando que:

“Vê-se em suas páginas uma eloquente prova de aplicação e de operosidade dos sócios do Centro e, em geral, dos alunos da Fa-culdade de Medicina e Cirurgia, ao mesmo tempo que se verifica

10 Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, ano 1, n. 1, jul. 1916, p. 3-4.

11 CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Carta enviada à diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 26 de setembro de 1917, p. 27 (manuscrito).

Page 85: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

85

como é grande neles o amor ao estudo e ao bom nome do instituto que frequentam.”12

O estudo dos primeiros movimentos dessa relação institucional mostra que ela foi marcada por encontros e desencontros entre alunos, professores e funcionários, e é nessa perspectiva, crivada de rupturas e permanências históricas, que podemos compreender a vida institucional do CAOC, observando seus movimentos a partir da história brasileira e das instituições médicas de ensino. No caso da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (1913-1924), o grêmio foi, em alguns momentos, decisivo para apaziguar ânimos e levantar símbolos, ganhando inicialmente a missão de colaborar com os desígnios da escola.

As divergências deveriam ser sempre dissipadas, e as relações entre o centro acadêmico e a diretoria da Faculdade, sempre que possível, cordiais. Veja-se o caso envolvendo um professor contratado em 191313 e uma mobilização discente que se organizara contra ele na ocasião da declaração de guerra do Brasil contra a Alemanha, pois o professor, de nacionalidade austríaca, tinha formação alemã e, mais que isso, considerava-se alemão. A manifestação tornou-se passeata pela cidade, por intermediação do CAOC, que levou a seus líderes o pedido de demissão do Dr. Arnaldo, caso houvesse confronto nas dependências da Faculdade. O grupo manifestante acatou essas considerações e deslocou seu protesto para o centro da cidade, sem maiores incidentes. Também coube ao CAOC exigir a demissão do mesmo professor, por suas referências, em sala de aula, contra uma grande personalidade de São Paulo, sendo por isso exonerado14.

Indo além de suas prerrogativas institucionais, delineavam-se alguns projetos particulares da agremiação, muitos deles com resultados duradouros, mesmo que, em muitos momentos paradoxais15, como a criação, em 1918, da Liga de Combate à Sífilis, montando postos de profilaxia e tratamento gratuito. Tal movimento estava ligado às ações impetradas pelo Estado no sentido de estabelecer em todo o país postos médicos, tentando desfazer uma visão internacional do país como o “país da sífilis”.

Conforme nos ensina Sérgio Carrara:

12 ARANTES, Altino. Carta enviada à diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 26 de setembro de 1917, p. 28 (manuscrito).

13 Seu nome não foi divulgado.14 CAMPOS, Ernesto Souza. História da Universidade de São Paulo. USP/Comemorações do IV

Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo, 1954, p. 348.15 Em O bisturi de novembro de 2004, a “Liga de combate à sífilis e a outras doenças transmissíveis foi

retratada como um importante instrumento de aprendizado entre os alunos, mesmo recebendo pouco interesse do corpo discente da FMUSP. Além disso se tratou de vultosos desvios de verbas da Liga, caso especial no ano de 1999 quando teriam sido desviados pelas mãos de alunos R$. 28.800,00”. Essas aspas abrem duas vezes e não fecham... Não sei se a correção é aceitável...]

Page 86: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

86

“A partir da década de 1920, os sifilógrafos brasileiros enfatizarão, sobretudo, a influência que fatores sociomorais — ignorância, po-breza, imoralidade do meio social, herança escravocrata etc. — te-riam sobre a “necessidade sexual”, produzindo os excessos. Condi-cionando a intensidade, constância e diversificação da demanda e da oferta no mercado sexual, tais fatores determinariam, em última instância, o ritmo de difusão da sífilis no país. E, o mais importan-te, diferentemente dos fatores biofísicos como raça e clima, elas podiam ser, através de uma intervenção esclarecida, alteradas mais rápida e facilmente, franqueando ao país o desenvolvimento em direção às tais “formas mais elevadas de civilização”. Porém, mes-mo acreditando progressivamente em uma possível “redenção”, os sifilógrafos iriam manter fundamentalmente inquestionável o mito da hiperestesia sexual do brasileiro.”16

Foi nesse contexto, que o Centro Acadêmico buscou esforços em obter sócios-contribuintes para a Liga, conseguindo constituir, durante décadas, suas atividades, o que redundou em ações variadas conforme o conhecimento e tratamento da doença. No período aqui contemplado, as atividades dos alunos envolvidos se deram num misto de ações profiláticas, tidas como fundamentais para estancar o mal, atreladas ao descontrole dos números sobre a doença e a representação punitiva daqueles que contraiam o “mal”. Tal situação vai perdurar até a década de 1940, quando o país passará a ter controle mais preciso sobre os doentes e as novas formas de tratamento. O Caoc terá novamente papel importante ao acompanhar tais mudanças, podendo desdobrar, inclusive mais tarde, suas atividades de controle não só da sífilis como de outras doenças sexualmente transmissíveis.

Outros projetos, porém, com menos tempo de existência, também merecem ser contemplados nos primeiros movimentos do Caoc, indicativos das preocupações em se projetar como uma instância estudantil para toda a sociedade de São Paulo e não apenas para a Faculdade. Um deles é digno de nota: trata-se da criação e execução em 15 dias de uma proposta de criação de uma escola de alfabetização de operários mantida pelo Caoc e denominada Escola Primária Oswaldo Cruz. Inicialmente, haviam conseguido uma sala para ministrar as aulas no prédio de nº 42 da rua Brigadeiro Tobias, sendo transferidos “definitivamente” para o Grupo Escolar do Triunfo, cedido pelo Diretor Geral de Instrução Pública, Oscar Thompson.

Esse projeto provavelmente vinha sendo discutido pelos membros do Caoc, mas só foi registrado em ata no dia 18 de abril de 1918, tendo sua organização chegado aos seguintes termos:

16 CARRARA, Sérgio. A geopolítica simbólica da sífilis: um ensaio de antropologia histórica. História, Ciência, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.III, Fiocruz, 1996-1997. p. 404.

Page 87: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

87

“[...] o Sr. Presidente propõe que se obtenha do Sr. Diretor da Fa-culdade e do Dr. Secretário do Interior a devida autorização para que a Escola Oswaldo Cruz funcione em uma das salas da facul-dade, que, para a manutenção da Escola, os Srs. Professores con-corram anualmente com a quantia de 25$000 a 30$000, que a re-muneração do professor que deverá reger a referida escola, seja de 60$000 anuais.”17

Apoiado por Arnaldo Vieira de Carvalho, quer economicamente, quer agindo politicamente no sentido de legitimar tal escola, constava ainda do projeto que ministrasse as aulas um aluno da Faculdade, escolhido pela presidência da agremiação e remunerado mensalmente. Também se propunha que a escola fosse filiada à Liga Nacionalista. Na sessão do dia 28 de abril, mais uma vez a “escola dos operários” entra no debate, com a pergunta: Como inseri-la nos estatutos da agremiação? Para uns, se devia abrir um capítulo exclusivo; para outros, bastava um apêndice sobre os “fins do Centro Acadêmico, envolvendo qualquer obra de benemerência”, para o presidente Ernesto Souza Campos, o Centro Acadêmico deveria se responsabilizar por todo e qualquer meio na manutenção dessa escola. Nas sessões seguintes do Caoc, toda essa movimentação foi silenciada, com a mesma rapidez com que antes se criara e executara esse plano educacional. A Revista de Medicina noticiou o evento ainda sob as fagulhas da animação criadora:

“[...] apesar de não ter havido a inauguração oficial, já está fun-cionando a Escola Primária Oswaldo Cruz, a bela instituição do ensino gratuito de primeiras letras aos operários. Os senhores pro-fessores da Faculdade, sempre solícitos em auxiliar todos os em-preendimentos, já contribuíram com a importância de 3000$000, destinada à manutenção da escola. Circulares foram distribuídas aos alunos da Faculdade, pedindo-lhes a taxa de laboratório, acor-rendo pressurosos cerca de 40 distintos colegas, com sua valiosa contribuição, em prol da obra patriótica do Centro Acadêmico. Estão matriculados 30 operários, sendo regular a concorrência às aulas.”18

Como se vê, o tom da notícia permite concluir que se tratava de uma instituição escolar em funcionamento, mesmo que, nas entrelinhas, fiquem claros os possíveis limites das ações impetradas pelos alunos, sendo esse o

17 Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 18 de abril de 1918, p. 34 (manuscrito).

18 Noticiário. Revista de Medicina, São Paulo, ano II, n.9-10, Secção de Obras do Estado de São Paulo, 1918, p. 72.

Page 88: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

88

único registro sobre o andamento dessa escola, pelo menos sob a direção do Caoc. Entre os percalços enfrentados para se levar adiante essa ideia, além das dificuldades econômicas e da mudança de gestão, de Ernesto Souza Campos para Fernando de Britto Pereira, é importante salientar a mudança de foco da agremiação para outra luta, muito importante para o grupo, que dizia respeito ao reconhecimento dos diplomas, assunto emperrado no âmbito federal.

Indo além, o que marcou o desvirtuamento de muitos encaminhamentos desse período foi o impacto da epidemia de gripe espanhola, em 1918, sobre a cidade, num plano geral, e, em particular, sobre a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Isso porque seu diretor, Arnaldo Vieira de Carvalho, liderou um movimento para debelar a doença que avassalava a cidade, envolvendo alunos, professores e funcionários. Nessa ação, muitos tombaram e foram assim lembrados pelo Caoc:

“[...] sabemo-nos e sentimo-nos obrigados à lembrança dos nomes, na verdade inesquecíveis, dos nossos professores Etheocles Go-mes, Ayrosa Galvão e Diaulas Silva, tomados pela morte quando trabalhavam por uma causa comum. Mortos despertam, vigorosa, em todos nós, a saudade enternecedora. Mortos no cumprimento de deveres – nos orgulham, porque honraram assim, insuperavel-mente, a classe médica, para o seio da qual nos dirigimos.”19

emblemAs e sinAis: o estAndArte

Mesmo diante de todas as demandas consubstanciadas no dia a dia dos seus primeiros anos, a Faculdade de Medicina não deixou de criar seus emblemas e erigir seus símbolos, neles respaldando a força que deveria representar. Exatamente nesse contexto, no momento em que não tinha a sonhada independência, unindo-se à Fundação Rockefeller20, as idealizações de sua imagem se ergueram pelos simbolismos de uma tradição que ela alegava já possuir. Entre os emblemas forjados com traços constitutivos dos símbolos nacionais e as insígnias de uma faculdade de medicina, o estandarte era paradigmático. Entre 1914 e 1918, o CAOC buscou, de todas as formas, recursos para sua confecção por contribuições no chamado Livro de Ouro,

19 Editorial. Revista de Medicina, São Paulo, ano III, v. II, n. 11-12, Secção de Obras do Estado de São Paulo, 1919, p. 9.

20 MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. Elites em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo, 1916-1931. Bragança Paulista, USF/CDAPH, 2003.

Page 89: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

89

visando à adesão dos próprios membros do centro acadêmico e também da Congregação, pois esse estandarte representaria toda a Faculdade.

Sobre sua criação, disse a Revista de Medicina:

“Os trabalhos de pintura do estandarte deverão ser entregues ao distinto pintor Sr. Oscar Pereira da Silva; os de marcenaria, ao Li-ceu de Artes e Ofícios e os de escultura, ao conhecido Sr. Julio Starace, que se ofereceu para fazer gratuitamente esse trabalho. Sendo o Estandarte do Centro o mesmo da Faculdade de Medicina, a diretoria submeteu o projeto à aprovação da Congregação, que nomeou os senhores doutores Ovídio Pires de Campos, Guilherme B. Milward e Adolpho Lindemberg para darem parecer.”21

Assim viabilizou-se sua construção, contando inclusive com o Sr. Ramos de Azevedo:

“Já a diretoria anterior havia, para esse fim, depositado a impor-tância de 60$000 na Caixa Econômica. A diretoria conseguiu im-portantes donativos tanto de alunos como de lentes da Faculdade. O total colhido entre os alunos monta a 1:570$000. Procurando dar execução aos seus propósitos, a diretoria entendeu-se com o insigne engenheiro Dr. Francisco Ramos de Azevedo e pediu-lhe elaborasse um projeto do estandarte. Aquele cavalheiro, com a re-quintada gentileza que o caracteriza, prontificou-se ao desempenho do trabalho, prometendo-o para breve.”22

Em alguns meses mais, estava pronto o estandarte da Faculdade, assim composto:

“[...] o inspirado pintor paulista, Oscar Pereira da Silva, traçou o painel em que tomou como elemento dominante da composição a figura de Higéia, caminhado para o primeiro plano, ainda não al-cançado, e onde folhas de louros forram a estrada. O fundo da com-posição é ocupado pelo sol que ilumina o templo de Esculápio e a estrada que dali parte. O templo, sob a forma de frontão e colunas dóricas, ergue-se em Epidaurus, na proximidade do oceano, onde se deram as primeiras manifestações de vida animal registrada pela ciência. Ao longo da estrada palmilhada por Higeia, veem-se as reproduções simbólicas de Hipócrates, Galeno e Bichat, os gran-des gênios da medicina, este último pelo seu tratado de anatomia

21 Revista de Medicina, São Paulo, ano 1, n.1, jul. 1916, p.53.22 Idem, p.9.

Page 90: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

90

geral, publicado um ano antes de sua morte, ocorrida em 1801 [...] estavam, pois representadas a história antiga e contemporânea.”23

Cumpre observar que os símbolos presentes no estandarte buscavam um passado remoto e sua atualização, naquele momento, abria a possibilidade para novas formulações. Como bem indicou Hobsbawm, essas “tradições inventadas” consistem em adaptações que conservam velhos costumes em novas condições, com a intenção de formular novos fins: “Instituições antigas com funções estabelecidas, referências ao passado e linguagens e práticas rituais podem sentir necessidade de fazer tal adaptação.”24

Sintomaticamente, o estandarte marcava justamente a conexão entre o passado longínquo da prática médica e a modernidade de sua ciência que, representada na iluminação da cabeça da Higeia, ultrapassa os tempos, carregando a sabedoria rumo às mudanças. Mas havia outros elementos da imagem que a Faculdade cunhou pela aproximação dos símbolos da pátria brasileira republicana: o estandarte era bordado em tecido amarelo com orlas e franjas verde-amarelas e um semicírculo azul no centro, inequívoca referência à bandeira republicana. Trazia o nome da Faculdade de Medicina e Cirurgia em evidência, e São Paulo, no lado direito, acima do templo dórico.

Quando Arnaldo Vieira de Carvalho morreu repentinamente no dia 5 de junho de 1920. por septicemia, a cidade de São Paulo foi tomada de comoção coletiva; seu cortejo foi acompanhado por centenas de pessoas, tendo o estandarte um lugar de proeminência durante os funerais e nos registros jornalísticos da época. No discurso de um aluno, os votos eram de que a Faculdade prosseguisse com feitos que espelhassem os êxitos de uma jornada já encetada e os frutos dessa tradição. Comparava a escola:

“[...] a uma grande árvore de selva exuberante, galhos fortes e entrela-çados. A idade já lhe deu desenvolvimento às raízes, hoje profundas, abraçando um quinhão de terra generosa e fértil; os ramos folhudos bracejam, procurando o espaço azul sem limites; o tronco já suportou a impiedade de muitos invernos [...] que nesta grande árvore não mor-ram suas folhas – as que ela, embora nova, já representa.”25

Nascia desse ato uma nova tradição, modelada em torno de uma instituição e de um nome, que em alguns anos, com a finalização do novo prédio, ficaria conhecida como “Casa de Arnaldo”. Todas essas insígnias deveriam expressar uma tradição pela comunhão entre o passado quase

23 MAZZIERI, Berta Ricardo. Símbolos da Medicina, Museu da Faculdade de Medicina da USP Professor Carlos da Silva Lacaz, 1995, p. 24.

24 HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.13.25 A Gazeta Clinica, São Paulo, ano XVIII, n.7, 1920, p. 89.

Page 91: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

91

imemorial de um herói da medicina paulista e os avanços da ciência médica moderna rumo ao futuro – compondo o que Marilena Chauí chama de mito fundador: “esse mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente como tal.”26

Centro ACAdêmiCo oswAldo Cruz e A guerrA CiVil de 1932

A Faculdade de Medicina de São Paulo (1924-1934) era, antes de tudo, parte de um centro formador das elites e, assim, deveria aliar-se a outras instituições escolares, faculdades e centros de estudo, para formar o cidadão que lá ingressava e, ao mesmo tempo, socializar, em seus conteúdos, os feitos das elites, agentes únicos da construção e coesão nacionais.27 Se essa postura era visível nas escolas primária e secundária, não o era menos nas escolas de ensino superior e, em especial, na Faculdade de Medicina, onde se cultivavam diariamente as insígnias republicanas, a bandeira, o hino nacional e o escudo das armas, inclusive com uma sequência de atos patrióticos que a Faculdade deveria cumprir semanalmente. Isso porque a reafirmação desses símbolos nacionais e republicanos a serem incorporados pelo conjunto da população também se dava nos centros formadores, que deveriam conhecer suas insígnias pátrias, dedicando-lhes manifestações de consideração e solenidade.

Na cidade de São Paulo, as comemorações cívicas contavam com a presença de alunos e professores da Faculdade de Medicina, como a festa à bandeira, em 1918, assim interpretada pelo presidente do Centro Acadêmico:

“[...] uma das mais belas festas realizadas no edifício da nossa Fa-culdade, pela singeleza e alcance de educação cívica, foi realizada no dia 19 de dezembro, em homenagem à bandeira nacional. Reu-

26 CHAUI, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000, p. 9.27 Por esse projeto republicano e nacional para as instituições de ensino, particularmente as paulistas,

postulava-se como missão da escola o “ensino das tradições inventadas, preferencialmente a coesão nacional em torno do passado único, construtor da nação, justificava a preocupação na organização das atividades cívicas criadas para reforçar a memória. As tradições nacionais não poderiam, dentro desse contexto, ser tratadas apenas pelos livros didáticos acompanhados de preleções dos professores em sala de aula. As festas e comemorações, discursos e juramentos tornaram-se partes integrantes e inerentes da educação escolar.” In: BITTENCOURT, Circe, Pátria, civilização e trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas, 1919-1930. São Paulo: Loyola, 1990, p. 167.

Page 92: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

92

nidos os senhores professores membros do corpo administrativo da Faculdade e grande número de sócios do Centro, foi cantado o hino à bandeira, na ocasião em que o Sr. Dr. da Faculdade hasteava o pavilhão nacional. O Sr. Toledo Mello, em belo e entusiástico discurso, salientou o grande valor da festa cívica.”28

Em 1920, o professor Rezende Puech defendia a presença obrigatória de sua corporação nas celebrações do centenário da Independência. Para ele, a classe médica espelhava a gênese da nação brasileira, cujo solo fundante seria solenizado pelos esculápios e estudantes de medicina. São Paulo e seu povo eram exaltados como os “autênticos” representantes desse novo Brasil, cabendo aos médicos, por meio de sua presença legitimada, reafirmar essa posição. Da capital, esperava-se que, “por todas as grandiosas manifestações de sua operosidade [demonstrasse] que não foi por simples obra do acaso que o Ipiranga recolheu o grito de independência ou morte!” Com esse impulso, a pauliceia se provava merecedora do que o Dr. Puech chamou de desígnios da providência29.

No entanto, ao representar as elites estaduais paulistas, a classe médica [qual o sujeito de “não vivia”?]não vivia apenas os dias de festa, mas também as intempéries históricas daquele final de década, com o novo contexto econômico e político advindos da I Guerra Mundial e da quebra da Bolsa de Nova York. Excluído do poder federal no ano de 1930, desaguando num crise política interna30, tal grupo não escondia sua contrariedade, inclusive levando o Estado de São Paulo a uma guerra civil, no ano de 1932, em nome da constitucionalidade brasileira. Durante essa crise, a Faculdade de Medicina de São Paulo foi palco das investidas varguistas, posto que ali se aglutinava uma oposição ferrenha e, ao mesmo tempo, se organizava o tipo de participação do corpo médico na guerra. A resposta federal a essa

movimentação médica se deu em várias frentes: na desarticulação do projeto estadual médico-sanitário vigente, na tomada do prédio da Faculdade por forças legalistas federais, na tentativa de se transformar o Instituto de Higiene, em 1931, num quartel militar e, finalmente, no afastamento e na demissão de professores e funcionários de seus cargos.

Cabe registrar, ainda nesse contexto turbulento, o surgimento da Escola Paulista de Medicina, em 1933. Embora essa escola médica tenha nascido em função do excedente de números de alunos, do claro crescimento das especialidades médicas e da necessidade de uma descentralização de poder

28 CAMPOS, Ernesto Souza. Relatório apresentado pelo presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz e lido em sessão solene de posse, realizada em fevereiro de 1918. Revista de Medicina, São Paulo, ano II, n.7, São Paulo, Secção de Obras do Estado de São Paulo, 1918, p. 53.

29 PUECH, Rezende. Discurso em Commemoração do 25º Aniversario da Fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e Inauguração da Nova Sede e da Posse da Nova Directoria. Gazeta Clinica, São Paulo, ano XVIII, n.3, 1920, p.41.

30 PRADO, Maria Ligia Coelho. A democracia ilustrada: o partido democrático de São Paulo, 1926-1934. São Paulo: Ática, 1986.

Page 93: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

93

e conhecimentos, a campanha de 1932 arrematou essa perspectiva, criando um novo polo de ensino médico em São Paulo. Entre aqueles que estiveram à frente desse movimento, foi Octavio de Carvalho a liderar as reivindicações que pediam uma nova escola médica:

“[...] o problema dos excedentes foi colocado numa linha direta de continuidade com a tradição do ensino médico paulista, trazendo para o presente as figuras de Arnaldo Vieira de Carvalho, da FMSP, e de Eduardo Guimarães, da primeira Universidade de São Paulo, como predecessores no trato com as questões do ensino na área [...]”31

A memória da participação da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo no levante de 193232 encontra seus primeiros movimentos em torno da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, quando se aprovou, em abril de 1931, uma moção em que:

“[...] a sociedade, interpretando os anseios e os sentimentos não só do povo paulista, quanto do brasileiro, faz votos de que o Chefe do Governo Provisório pratique as medidas necessárias para a con-vocação da Constituinte, que transformará em Estado de Direito a situação de fato criada pela revolução.”33

Quando o conflito se torna iminente, o professor da Faculdade de Medicina de São Paulo, André Dreyfus, em nome da Sociedade Paulista, profere um discurso ao Embaixador Macedo Soares em que declarava certo apoio ao Governo Provisório, mas, ao mesmo tempo, deixava claro que, naquele ano de 1932, uma crise se anunciava. Em suas palavras, naquela hora de incerteza e de apreensões, o pensamento de todos os paulistas voltava-se para o regime constitucional, “único compatível com a dignidade de um povo livre”. Para ele, ver a nação reintegrada à ordem legal e todos os brasileiros obedientes ao império da lei deveria ser “o anelo de todos os cidadãos”. Nesse sentido:

“[...] a revolução era indispensável, inevitável e fatal, e vigorava, na opinião pública paulista, o desprezo sistemático contra uma po-lítica considerada rasteira, cujos embates se deviam a meras ambi-ções pessoais, sem o idealismo sadio de uma competição de prin-cípios, que, somadas à utilização perdulária das rendas públicas e

31 SILVA, Márcia Regina Barros da. Estratégias da ciência: história da Escola Paulista de Medicina, 1933-1956. Bragança: USF/CDAPH, 2003, p. 46.

32 A discussão apresentada se encontra em: SANTOS, Marco Antonio; MOTA, André. 1932: história, mito e identidade. São Paulo: Alameda, 2008. No prelo.

33 Ata da sessão de 16 de julho de 1934. Boletim da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, v. 18, n. 5, p. 133.

Page 94: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

94

ao desrespeito ao voto, estariam criando uma profunda divergência entre governantes e governados.”34

Diante desse quadro, Dreyfus achava que o leão adormecido tinha que se rebelar um dia, “pondo fim à paródia de democracia em que estariam”, e finalizava seu discurso dizendo que o surto revolucionário impetrado por Vargas deveria ter um caráter de “reconstrução cívica e a sua finalidade patriótica e abnegada de encaminhar o país rumo á constitucionalidade”. Nesse espírito de confronto aberto, logo em 11 de junho de 1932, o segundo dia da deflagração da guerra, junto ao diretor da Faculdade de Direito e da Politécnica, virá do Sr. Cantidio Moura Campos, diretor da Faculdade de Medicina, um discurso em praça pública para conclamar a instituição às responsabilidades que o momento exigia:

“O fenômeno paulista nem porque se circunscreveu somente a uma reduzida expressão territorial deixa de ser o mais nacional dos fe-nômenos sociais que têm convulsionado a evolução da nacionali-dade, que agora chega ao período mais crítico de sua projeção no mundo civilizado e na órbita de sua influência no continente sul--americano [...] nunca um ideal tão nobre se generalizou de forma tão intensa na alma de um povo, conquistando-lhe o único devo-tamento. Foi como faísca que, na sua explosão estonteadora, fun-disse em um só metal todas as energias disponíveis e transmutasse em aço os nervos dóceis e tranquilos dos habitantes desta terra.”35

A pergunta de Cantídio Moura Campos era como poderia ser vencido um povo assim? Que forças poderiam dominar a ideia de vencer um povo que tinha suas atenções voltadas para os círculos políticos envolvendo “a preocupação de mulheres e crianças de todas as camadas sociais?” Por isso, é enfático ao pedir que os estudantes da Faculdade de Medicina heroicamente empunhassem as armas nas “ásperas refregas desta luta, irmanados com vossos companheiros em defesa da Lei e da Justiça” e termina seu discurso conclamando todos os estudantes a partirem para o front, trazendo a vitória:

“[...] a todos vós, que nas forjas das nossas trincheiras estais plas-mando com hinos de entusiasmo a alma livre para uma pátria livre, a todos vós, irmãos do ideal, leões indomáveis na comemoração desta grande data, neste 11 de agosto de uma nova aurora, a Facul-

34 DREYFUS, André. Seara de esculápio (collectanea de discursos e escriptos acerca de cultos e assumptos médicos). Revista dos Tribunaes, São Paulo, 1932.

35 CAMPOS, Cantídio Moura. Discurso, 11 de junho, 1932, apud NOGUEIRA FILHO, Paulo. A guerra cívica de 1932, v. 4, Resistência indômita, tomo 2, Mobilização épica. São Paulo: UAES/A, p. 147-148.

Page 95: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

95

dade de Medicina de São Paulo vos saúda, enobrecida, comovida e confiante.”36

Aos poucos, as atenções médicas se deslocavam para as experiências vividas nas batalhas, auxiliando os feridos e doentes, configurando uma versão particular da entrada desses profissionais em ação, a partir dos locais de combate. Inicialmente, os médicos convocados eram levados diretamente ao campo de batalha pelos chamados trens sanitários. Neles encontravam-se professores, assistentes e alunos da “Casa de Arnaldo”. Eram eles: Antonio Carlos Pacheco e Silva, na direção do grupo MMDC, Benedito Montenegro, no Hospital de Sangue de Capão Bonito, Alípio Corrêa Neto, em Cruzeiro, Piero Manginelli, Eurica Bastos, Edmundo Vasconcelos, Piragibe Nogueira, João de Lourenzo e Reinaldo Figueiredo, na unidade cirúrgica volante.

estudAntes em greVe e estudAntes em guerrA: um período de Conflitos

Em 1 de março de 1932, sob o patrocínio e a oficialização do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, os alunos da Faculdade entravam em greve, pleiteando uma série de medidas contrárias ao novo currículo que acabava de ser aprovado pela Congregação. No Jornal Folha da Noite, assim se apresentaram as reivindicações:

“[...] pelo regulamento antigo, o aluno que não fosse aprovado em uma matéria podia matricular-se no ano seguinte, ficando depen-dente desta matéria. Pelo atual, o aluno que for reprovado em uma matéria perde o ano. Pelo regulamento antigo, os alunos eram obri-gados a ter frequência na seguinte proporção: 2/3 de aulas teóricas e 3/4 de aulas práticas e, pelo atual, a frequência foi aumentada para 4/5 no geral. Outro absurdo é a defesa de tese em dezembro, juntamente com os exames finais, quando, pelo regulamento anti-go, tínhamos três épocas: uma em dezembro, a segunda em março, e a terceira em abril. O horário, então, é uma calamidade. Como sabe, as aulas são no Araçá. Temos, para o almoço, somente uma hora e vinte minutos, quando duas horas, que é o que estabelecia o regulamento antigo, já eram insuficientes. Isso não é possível.”37

No dia 6 de março, os professores resolvem entrar em acordo com os alunos, representados pela “delegação do Centro Acadêmico”, mas

36 Idem, ibidem.37 Editorial. Folha da Noite, São Paulo, 3 mar. 1932, p.1.

Page 96: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

96

sem avanço de nenhum dos lados. Só no dia 17 de março a greve cessou, chegando aos seguintes termos: “Cessou ontem, conforme comunicado do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, a greve iniciada a 1º do corrente pelos acadêmicos de medicina que, não satisfeitos com a última reforma, declararam a parede geral, não comparecendo às aulas durante esses dias.” Para o Caoc, a vitória foi definitiva:

“[...] permitindo aos alunos 30% de faltas no ano. Também con-seguimos, em caráter definitivo, que o aluno que provar doença ou luto poderá fazer exames finais em segunda chamada, o que já havia nos exames parciais. Em caráter provisório, só para este ano, conseguimos: 1) que a defesa de tese seja feita em duas épo-cas, março e novembro; 2) duas horas para o almoço; 3) promoção sujeita à dependência; 4) faculdade de fazer duas cadeiras em se-gunda época.”38

Apartados os ânimos dessa crise institucional, a guerra civil entrou para o centro das preocupações de todos. Assim que ela foi declarada, vários estudantes quiseram ir para as trincheiras, tendo sido vetada essa proposta. Mesmo assim, o presidente do CAOC, Raul de Almeida Braga, passou três meses da sua gestão nas trincheiras, “na afirmação mais ampla das tradições democráticas da Casa de Arnaldo, a Faculdade de Medicina de São Paulo”, segundo o memorialista e professor da Faculdade Duílio Crispin Farina. Para ele, o histórico desse aluno, mesmo tendo sido incompreendido em seus primeiros passos, revelaria sua intenção heroica na defesa de São Paulo: “Lendário e esplêndido presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, em 1932, ano da epopeia constitucionalista. Passou três meses de sua gestão nas trincheiras. Alistou-se no Batalhão Caçadores de Piratininga.”39

“Da guerra civil que tomara São Paulo de roldão, um fato trágico ganhou contornos simbólicos para os estudantes da Faculdade de Medicina, pois muitos deles ficaram na capital durante a guerra, ora colaborando no trabalho realizado por diversos médicos em consultórios e hospitais improvisados, ora dando apoio em outros pontos estratégicos, como a Escola Politécnica, onde se faziam bombas e artefatos de guerra. E é de um acidente na Politécnica que surge o primeiro mártir da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, vítima da explosão acidental de uma granada. Era ele o aluno José Greff Borba, assim nobilitado:

38 Diário da Noite, São Paulo, 17 mar. 1932, s/p.39 -FARINA, Duílio Crispim. A Revolução Constitucionalista e a Faculdade de Medicina. Academia

Paulista de História, São Paulo, ano XIV, n. 84, 2001, p.4.

Page 97: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

97

Pola Ley et Pola Grey e o sangue sacrossanto de José Greff Bor-ba, estudante-mártir e símbolo de seus dias, ficou como marco do sonho de vitória de um ideal. Gil Spilborghs fixou o companheiro tombado: ‘Entre os colegas, vem-me à lembrança o Borba, José Greff Borba, alto, ombros largos de remador, olhos pequeninos através das lentes grossas, que veio encontrar a morte na Escola Politécnica, trabalhando numa granada.’”40

Um poema de Martins Fontes consigna o lugar do estudante-herói:

“Bandeira que é nosso espelho,bandeira que é nossa pista,que traz no topo vermelho, o coração do paulista,o coração de José Greff Borba!”41

Quando o conflito acabou e se começou a contabilizar os prejuízos, as elites paulistas entraram numa espécie de nostalgia dos tempos de outrora. Em 1933, Monteiro Lobato publicou Na antevéspera: reações mentais dum ingênuo, exprimindo sua perplexidade diante da derrota e como se sentia atingido em seu espírito paulista: “Creio que hoje há por aqui mais tristeza, mais desespero resignado, porque andamos todos a sentir que a grande cousa para a qual sempre apelávamos parece que falhou.”42

Com esse mesmo sentimento, sob o título de “Há vinte anos”, o presidente do Centro Acadêmico, Gil Spilborghs, também falou na vontade de se voltar para um tempo acadêmico mítico, muito anterior à greve e à guerra, escrevendo um longo texto de abertura no jornal O bisturi, em que dizia da saudade das antigas salas da Politécnica, da Álvares Penteado e da Brigadeiro Tobias, onde “dos pães comprados à porta nos intervalos das aulas, conhecia-se todo mundo. Até os transeuntes que vinham para o almoço ou iam para o serviço...”43

Criticava os “novos tempos”, representados pelo prédio recém-inaugurado nos altos do Araçá:

“[...] a gente não pode entrar pela sua porta principal, já nem se pode andar pelos corredores. Nem pode pisar em suas escadas de mármore. Isso só para as visitas e as sumidades científicas da esco-

40 FARINA, Duílio Crispin. José Greff Borba, estudante-mártir, em 1932, da Casa de Arnaldo. Academia Paulista de História, São Paulo, ano XIV, n.85, 2001, p.7.

41 Idem, ibidem.42 LOBATO, Monteiro. Na antevéspera: reacções mentais dum ingênuo. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1933.43 SPILBORGHS, Gil. Há vinte anos... O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São

Paulo, ano 1, n. 2, 1933, p. 1.

Page 98: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

98

la. Agora, nos acolhe pela porta dos fundos e nos recebe no porão. Nada de intimidades. Tudo difícil [...]”44

Mas finalizava justificando essa soberba acadêmica pela importância da instituição, dando-lhe seu perdão e ratificando seu orgulho, porque, estando a Faculdade de Medicina “integrada no ritmo progressista da ciência, evoluiu, cresceu e vai gloriosa, sempre para diante, vitoriosa como um destino em marcha.”45

o bisturi, 1930-1940: um periódiCo literário, humorístiCo e notiCioso

Entre 1889 e 1930, durante a chamada Primeira República, a imprensa no Brasil se diversificou, conhecendo diversas formas de inovação tecnológica que permitiam o uso de charges, caricaturas e fotografias, como também a ampliação de suas tiragens, com melhor qualidade de impressão e menor custo, resultando num “ensaio da comunicação de massa”.46 Dentre essas transformações47, é importante destacar a diversidade que passou a constituir esse material, “com impressos de vários matizes políticos, muitos de expressão reivindicatória, periodicidade variada, segmentação enriquecida e pluralidade temática, sobretudo nos cenários urbanos que se modernizavam”48.

É nesse contexto que encontramos uma série de revistas e jornais sendo produzidos na Faculdade de Medicina.49 Dentre aqueles cuja produção foi mais duradoura, a Revista de Medicina foi a primeira a divulgar os primeiros passos da vida acadêmica do CAOC e da produção científica estudada e divulgada por professores e alunos. Para isso, não cansou de pedir a publicação dessas produções porque, afinal, “poderiam não só dar à medicina paulista contribuição das mais vultuosas, como constituir a

44 Idem, 45 Idem, ibidem.46 ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a serviço do progresso. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA,

Tânia Regina de. (Orgs.) História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 83.47 A força de tais empreendimentos acarretou o próprio surgimento da Associação de Imprensa, em 1908, e,

logo depois, a Associação Brasileira de Imprensa, em 1926, sob a presidência de Barbosa Lima Sobrinho.48 Idem, p.86.49 Entre eles, citamos: O Espiroqueta (jornal-da Faculdade de Medicina); 606; Caóctica (revista do

departamento cultural do Caoc); Sob os bigodes de Arnaldo (des-informativo do departamento científico do Caoc); BIP (Boletim informativo periódico); Caveira (revista da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz);

Page 99: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

99

mais preciosa fonte de estímulo dentro da escola”.50 Esse chamado ganhou significado relevante pela produção que conseguiu divulgar, principalmente aquela em que apontava uma luta das especialidades médicas, bem como de teorias que informavam muitas dessas áreas.

Um caso exemplar foi o de André Dreyfus, então 1º Assistente de histologia e embriologia da Faculdade, ao publicar “O estado actual do problema da hereditariedade”. Esse trabalho foi originalmente apresentado no I Congresso de Eugenia, em 1929, e, por suas posições de defesa do mendelismo e da eugenia restritiva, colocou a elite médica de São Paulo entre polos considerados capazes de promover a elevação racial. Para alguns, o ambiente e as medidas higiênicas seriam capazes de equacionar a dívida racial do brasileiro; para Dreyfus e seu grupo, essa “crença” deveria ser abandonada, pois esse meio favorável “não cria e nem destrói fatores hereditários”.51 Por esse raciocínio, alguns médicos pediram a esterilização compulsória dos inferiores e o diagnóstico médico da hierarquia entre as raças.

Discussões dessa dimensão davam à revista um lugar de propugnador do pensamento médico e de suas formulações regionais, e foi dentro dessa circunscrição acadêmica que a Revista de Medicina tratou de apresentar outra publicação, também mantida pelo CAOC, o recém-lançado O bisturi, “tipo perfeito do jornal de estudantes: resolve todos os problemas, mesmo os mais graves, comenta todos os fatos e, quando estes são muito sérios, trazem ao fim uma piada. É um resumo simpático do que se faz, se diz e se pensa fora das aulas”52.

Lançado pelo CAOC em dia 15 de março de 1930, O bisturi apresentava-se, em suas primeiras linhas, como:

“o companheiro de todas as turmas: é calouro e doutorando; é es-forçado e vadio, alegre e pensativo; é desportista e poeta. Seu nome define: ‘O bisturi’ (de estudantes). Nunca chega a criar ferrugem, mal manejado, não corta; em mãos despertas, não fere. O jornal é indispensável. Este número de hoje é a primeira fornada, talvez um pouco crua, que sai como amostra só para se tomar o gosto das demais que se seguem, separadas pelo menor tempo possível, sem data pré-estabelecida.”53

50 Editorial. Chronica. Revista de Medicina, São Paulo, ano XIII, n. 50, 1928, p. 1.51 DREYFUS, André. O estado actual da hereditariedade. Revista de Medicina, São Paulo, XIV, n. 5,

1930, p. 68.52 Editorial. Chronica. Revista de Medicina, São Paulo, ano XIV, n. 52,1930, p. 1.53 Editorial. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, n.1, ano 1, 15 mar.

1930, p. 1.

Page 100: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

100

A identidade jornalística se compunha da vida estudantil em relação às mudanças vividas pelos alunos e pela cidade de São Paulo, conferindo “expressões próprias” de um “grupo diferenciado”. Vindos dos mais variados pontos do Estado e do país, esses estudantes traziam na bagagem ideias e princípios diversos, acabando por desenvolver “tipos excepcionais de comportamento”,54 a que se deve acrescentar o fato de constituírem uma corporação em formação, tratando de tipologias e expressões muitas vezes só identificáveis entre os pares. Nesse sentido, o jornal se dizia representante de toda a classe estudantil médica e era aberto à colaboração de todos que quisessem participar: “não queremos fazer de nossa folha simplesmente arquivo de pensamento estudantino, mas o condensador de ideias novas e de todas as aspirações de nossa classe. Avante!”55

Irônico e cheio de bom humor, O bisturi conseguiu desenhar o cotidiano da Faculdade de Medicina, narrando viagens e aulas, caricaturando alunos, professores e funcionários e usando de suas páginas para reivindicar melhorias no ensino, na pesquisa e na assistência médica. Sobretudo, o jornal foi capaz de representar os anseios da elite médica e científica paulista, bem como sua vida na cidade de São Paulo, por meio da variedade de suas propostas jocosas, matizadas por um sarcasmo médico-estudantil.

Há diversas crônicas que descrevem as aulas, comentam as temáticas desenvolvidas nos cursos e as relações entre alunos e professores. Afonso Bovero, professor de anatomia, foi um dos professores mais marcantes, recebendo modismos e anedotas sobre suas aulas e seus embates com o alunado. Entre essas lembranças, uma delas reporta-se a uma pergunta de Bovero ao aluno: “Quais as relações da face anterior do fígado e esse, desconhecendo-as, mal balbuciava timidamente algumas palavras; pele, tela subcutânea, peritônio, ao que o mestre redarguiu: cerola, calça, cinta...”56 Numa outra aula, um aluno, sendo arguido por Bovero, não sabia responder a primeira pergunta, mas sabia dissertar muito sobre a segunda, o que fez sem parar de falar. Neste ponto o professor sentenciou: “O senhor é como cego, um tostão para cantar e duzentos réis para calar a boca...”57

Em “Força de hábito”, O bisturi também fez uma bem-humorada referência ao “macarrônico português”58 do professor Bovero, que discorria sobre a morfologia da língua, quando um aluno do 1º ano entrou apressadamente no anfiteatro: “o velho professor, ao ver aquele rosto de

54 CAMILO, Vagner. Risos entre pares: poesia e amor românticos. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998, p.37.55 O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, n. 1, ano 1, op.cit., p.1.56 FARINA, Duílio Crispin. Arnaldo Vieira de Carvalho, a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo

e o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Revista de Medicina, São Paulo, 1973, p. 257.57 Idem, ibidem.58 Termo relacionado à linguagem macarrônica criada pelo cronista Alexandre Marcondes Machado, o

Juó Bananére, na década de 1920, em São Paulo: “Ela reproduz tanto as palavras italianas de uso mais frequente como as de língua portuguesa; italianiza não apenas as gírias, mas também as construções”. In: SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p.171.

Page 101: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

101

contumaz retardatário, não se conteve: ‘Má u sinhore pensa qui isto aqui é mercado de pexe, até na conferenza me entra atrasado. Ma basta de abuso, bagaio!’”59

Narrativas sobre diversas excursões, promovidas em grande parte pelo centro acadêmico e na companhia de muitos desses professores, indicavam o quanto a vida estudantil ultrapassava os muros da faculdade. Os motivos para tais saídas pelas cidades do interior e de outros Estados brasileiros eram os mais diversos: campanhas pela higiene mental, pela construção de creches e centros de saúde, visitas às escolas para divulgação de preceitos higiênicos e encontros entre diversas instituições universitárias. O auge desses eventos foi em 1937, numa excursão à Exposição Internacional de Paris, que teve a participação de alguns alunos.

Para Pedro Badra, diretor da caravana, as impressões foram das melhores: “Lá passamos dias inteiros a visitar os magníficos pavilhões, onde pudemos fazer uma ideia mais ou menos perfeita do progresso material, das organizações sociais e políticas, do alto grau de cultura das diferentes nações”. Mas, ao chegarem ao pavilhão do Brasil, um sentimento de consternação e vergonha invadiu o grupo:

“[...] o nosso pavilhão, situado a mais de 2 km do Trocadero, com uma fachada pouco ou nada artística, nem ao menos excita a curio-sidade do visitante. É um pavilhão pobre, muito pobre, dando a impressão de que o dinheiro ainda não foi descoberto no Brasil. Dá até vontade de chorar de tristeza, pois dá ao estrangeiro a im-pressão de que somos ainda um país selvagem, de que o nosso problema é o problema das serpentes ou que o Brasil faz parte da Argentina, país este muito conhecido na Europa.”60

Essa necessidade de “civilizar o Brasil”, tão marcante nos discursos dos alunos, envolvia também outros temas como, por exemplo, a chamada “Campanha Pró-Clínicas”, realizada no mesmo ano de 1937, em que o CAOC teve participação emblemática, ao assumir como questão estudantil assuntos relativos ao ensino e à assistência. No número especial dedicado à campanha, o título do editorial dizia: “São Paulo necessita do Hospital das Clínicas: não temos, em absoluto, hospitais que preencham as necessidades da assistência e sirvam aos desígnios da fé científica.”61 O apoio dos professores veio por meio de cartas enviadas à diretoria do centro acadêmico, em que os alunos pediam sua opinião sobre a importância da construção de um hospital das clínicas vinculado à Faculdade de Medicina.

59 Força de hábito. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano IV, n. 16, 8 ago. 1936, p. 4.

60 BADRA, Pedro. Faculdade de Medicina de S. Paulo à Exposição Internacional de Paris. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 22, 27 set. 1937, p. 2.

61 Editorial. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 23, p. 1.

Page 102: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

102

Todas as manifestações apoiavam o movimento, tido como legítimo. O professor de farmacologia, Jayme R. Pereira, assim se expressou: “Oxalá o governo receba com simpatia essa esplêndida manifestação do corpo discente de nossa já gloriosa Faculdade”62. Para o catedrático de medicina legal e diretor da Faculdade, Flamínio Fávero:

“[...] as Clínicas estão em sedes de empréstimo, em casa alheia. A situação não é para encher de júbilo aos alunos, a força é convir. Hipoteco, como professor e ex-aluno da Faculdade, minha inteira solidariedade à campanha oportuna do Centro Acadêmico Oswal-do Cruz.”63

Para O bisturi, essa campanha fora vitoriosa, apresentando em números posteriores um arrazoado em que o governo do Estado se comprometeria com o início da construção, tendo em vista um orçamento de 3.000 contos, sublinhando a participação do corpo discente da Faculdade:

“[...] esse projeto de orçamento já foi entregue à Assembleia Legis-lativa, e deve estar entrando em discussão. Aprovada, como deverá ser, a verba referida, as obras poderão ser iniciadas imediatamente, e é pensamento da Faculdade fazer lançar a pedra fundamental no dia glorioso de 25 de janeiro.”64

Em 1945, no final Segunda Guerra e da ditadura do Estado Novo, ainda o projeto do Hospital das Clínicas andava a passos lentos, e O bisturi, mesmo sob controle e registro do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), conseguiu, com o título “Dai a César o que é de César”, transcrever trechos de cartas dos professores escritas em anos anteriores, apoiando a construção hospitalar.

Nesse sentido, a revista também se reporta ao próprio CAOC, desvendando suas práticas internas e a política estudantil do período vivida na Faculdade de Medicina de Medicina da Universidade de São Paulo (1934-), por meio de comentários sobre debates entre os alunos e sobre as mudanças de grupos, sempre dentro de sua “natureza fundante”, satirizando seus membros, criticando com bom humor posições e cerimônias. Exemplarmente, em “Rei morto, rei posto”, assinado por Metchnikoff, o artigo tentava rebater a “narração positiva” feita anteriormente pelo próprio jornal na sessão de posse da nova presidência do Centro Acadêmico

62 PEREIRA, Jayme R. Carta enviada no dia 1 de junho ao Caoc. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 23, 1937, p. 2.

63 FÁVERO, Flamínio. Carta enviada no dia 17 de abril ao Caoc. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 23, 1937, p. 3.

64 A vitoriosa Campanha do Hospital das Clínicas. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 24, p.1.

Page 103: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

103

Oswaldo Cruz, em 1934. O autor começa descrevendo o início da sessão, aberta pelo aluno Paulo Camargo, “finado presidente”:

“Essa abertura constou de um patético improviso, fraco apenas na forma e no fundo, durante a declamação do qual o ex-titular pôs à prova, com sopapos enérgicos, a solidez da escrivaninha. Em linhas gerais, o Sr. Camargo queixou-se da campanha que lhe moveram os adversários em 1934 e augurou ao simpático empos-sado uma gestão tranquila e próspera. Nessa parte, não nos pareceu muito sincero. Em certo ponto de seu arrazoado, encaixou um pe-ríodo de feição matemática, cujo efeito foi notável: ‘Se em minha presidência agradava a A, aborrecia a B...’ Imediatamente, os A en-calculados olharam para os B que iam tomar posse dos cargos. Ao relatar as atividades do CAOC em 1934, o Sr. Camargo acentuou o número notável de caravanas empreendidas, demonstrando, em certa altura, o vigor de seu fraseado: “Afora essas excursões, houve outra, que eu não me lembro, pois o coisa não me deu a lista...”. A assistência agitou-se ligeiramente, e recaiu o torpor primitivo.”65

Mas a ácida crítica de Metchnikoff não poupou a nova diretoria, ao analisar os primeiros movimentos do presidente empossado:

“Para mim, o Sr. Savoy já assistiu a alguma colação de grau, ficou impressionado com o juramento hipocrático e resolveu parodiá-lo. Como quer que seja, comprometeu-se perante o cético auditório a proceder dentro da justiça, da razão, a proteger os oprimidos, a fazer enterros dos colegas e a velar pelas viúvas e órfãos dos estudantes. Eu mesmo, já calejado por cinco anos de curso neste Templo, senti-me comovido e senti não haver uns calouros na sala, que aplaudissem o romântico titular. Para não ficar feio, o duce de 1935 disse alguma coisa. Dessa alguma coisa, ficou-me o seguinte: “Espero que estes instantes de alegria e concórdia se tornem pe-renes, caminhando nós sob um pálio indivisível, inquebrantável e harmônico...”66

As disputas pelos espaços da agremiação faziam surgir grupos diversos, criando, além de diferentes propostas para os rumos da vida estudantil, materiais divulgadores dessas ideias, muitos deles jornalísticos e de curta duração, enriquecendo os debates e apontando outras lideranças dento do próprio grêmio. Esse foi o caso do jornal 606, publicado em 1940,

65 METCHNIKOFF. Rei morto, rei posto. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano III, 5 abr. 1935, p. 6.

66 Idem, ibidem.

Page 104: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

104

ao defender a chapa encabeçada pelo estudante Bindo Guida Filho,67 opondo-se frontalmente à reeleição da chapa representada por Sylvio J. Griéco. Um desses ataques dirigidos a Griéco foi feito no artigo intitulado “Per omnia secula seculorum: os porquês da recandidatura do atual majoris capus do CAOC”. Entre os vários porquês apontados, alguns são bastante esclarecedores dos argumentos utilizados para barrar a campanha adversária:

“[...] porque sou El Griéco - o único e insubstituível? Porque te-nho dois carros, porque dei ao Centro uma quadra de tênis, porque sou um polido impoluto, porque esse negócio de bandeiras é com os bandeirantes e não comigo, porque sou natural e naturalizado, porque o Italo & Giorgi me previnem com seu preventório, porque sou um neutro anti-anti-semita ariano, porque tenho Wassermann negativo, porque não sou simpático nem com o Merrame, porque dou empregos em cargos, porque nós somos um país essencial-mente agrícola, porque em arte culinário prefiro minha panela...”68

Mesmo com intempéries dessa natureza, toda essa participação estudantil redundou num momento precioso para a gestão do centro acadêmico, com o Primeiro Congresso de Estudantes de Medicina,69 realizado na Associação dos Médicos de São Paulo, entre 30 de setembro e 5 de outubro de 1940 e sob a direção do CAOC. Foram inscritos 86 trabalhos de todo o país, numa clara demonstração da importância do centro acadêmico não apenas para a vida cotidiana da escola, mas também como núcleo potencial do conhecimento médico em formação.

Finalmente, cabe relatar a sociabilidade criada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo a partir dos encontros organizados pelos alunos e pelo próprio CAOC. O bisturi procurou obter opiniões sobre uma festa que acontecera no Salão Nobre do prédio central, quando as relações entre os alunos e a direção da Faculdade estavam longe dos tempos difíceis de outrora. Segundo o jornal, quase todos ficaram satisfeitos, menos um grupo, que alegou serem as piadas “muito fortes”. Como resposta, questionava se tais “donzelas reclamantes” não conheciam as “revistas de Aracy Côrtes” e a “companhia de Carmem Costa” ou se nunca tinham visitado os cassinos da Urca, Atlântico ou Copacabana. E finalizavam:

67 Chapa: Presidente: Bindo Guida Filho; Vice-presidente: José Cássio Macedo Soares; 1º Secretário: Carlos Augusto Gonçalves; 2º Secretário: Mario Andreucci; 1º Tesoureiro: Hermínio Lunardelli; 2º Tesoureiro: Plínio Cândido de Souza Dias; 1º Orador: Orlando Campos; 2º Orador: Joaquim Pacheco Cyrillo.

68 Per omnia secula seculorum: os porquês da recandidatura do atual majoris capus do Caoc. 606, São Paulo, ano 1, n. 2, 1940, p. 3.

69 Note-se que tal evento foi organizado pelo então doutorando Carlos da Silva Lacaz.

Page 105: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

105

“Assim, sim, mas assim também não! Sejamos recatados. Tenha-mos discrição, reserva e linha. Mas não caiamos no ridículo de não suportar uma piadinha um pouquinho picante, nós que já saímos há muito tempo do internato, usamos calças compridas e já pegamos o bonde andando [...] E é bem possível que muitas das pálidas don-zelas cujos delicados ouvidos foram feridos tão cruelmente costu-mem fazer muita coisa pouco bonita quando se pilham longe do Papá e da Mamã. Essa é que é a verdade. Convenhamos. A moral é uma grande coisa. Mas que a Jeanette é boa, é boa mesmo...”70

fontesActa da sessão ordinaria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz,

realizada em setembro de 1915.Acta da sessão ordinária da Diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo

Cruz, realizada em 5 de maio de 1917.Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo

Cruz, realizada em 18 de abril de 1918.A Gazeta Clinica, São Paulo, ano XVIII, n. 7, 1920.BADRA, Pedro. Faculdade de Medicina de S. Paulo à Exposição

Internacional de Paris. O bisturi, São Paulo, ano V, n. 22, 27 set. 1937.CAMPOS, Cantídio Moura. Discurso, 11 de junho, 1932, apud NOGUEIRA

FILHO, Paulo. A guerra cívica de 1932, v. 4, Resistência indômita, tomo 2, Mobilização épica. São Paulo: UAES/A.

CHRONICA. Revista de Medicina, São Paulo, ano XIII, n. 50, 1928.DIÓGENES71. Comentando... O bisturi (periódico literário, humorístico

e noticioso), ano VII, n. 33, 1939.DREYFUS, André. O estado actual da hereditariedade. Revista de

Medicina, São Paulo, XIV, n. 5, 1930.DREYFUS, André. Seara de esculápio (collectanea de discursos e

escriptos acerca de cultos e assumptos médicos). São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1932.

Gazeta Clinica, São Paulo, ano XVIII, n. 3, São Paulo, 1920.FÁVERO, Flamínio. Carta enviada ao Caoc. O bisturi (periódico literário,

humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 23, 17 abr. 1937.

70 Editorial- Comentando... O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano VII, n. 33, 1939, p. 2.

71 É isso mesmo, não há outro nome além desse? ESSA NOTA DEVE SER ELIMINADA. Asta o autor responder a essa pergunta que alguém lhe fez.

Page 106: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

106

LOBATO, Monteiro. Na antevéspera: reacções mentais dum ingênuo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.

METCHNIKOFF. Rei morto, rei posto. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), ano III, 5 abr. 1935.

PEREIRA, Jayme R. Carta enviada ao Caoc. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano V, n. 23, 1 jun. 1937.

Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, n.1, ano 1, jul. 1916.

Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, ano II, n.9-10, Secção de Obras do Estado de São Paulo, 1918.

Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, ano III, vol.II, no.11-12. Secção de Obras do Estado de São Paulo, 1919.

Per omnia secula seculorum: os porquês da recandidatura do atual majoris capus do CAOC. 606, São Paulo, ano 1, n.2, 1940.

SPILBORGHS, Gil. Há vinte anos... O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, ano 1, n. 2, 1933.

referênCiAs bibliográfiCAs

BITTENCOURT, Circe Bittencourt. Pátria, civilização e trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas, 1919-1930. São Paulo: Loyola, 1990.

CAMILO, Vagner. Risos entre pares: poesia e amor românticos. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998.

CAMPOS, Ernesto Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP/Comemorações do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo, 1954.

CHAUI, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

Page 107: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

107

ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a serviço do progresso. In: MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tânia Regina de. (Orgs.) História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.

FARINA, Duílio Crispin. Arnaldo Vieira de Carvalho, a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, 1973. p. 245-260.

FARINA, Duílio Crispim. A Revolução Constitucionalista e a Faculdade de Medicina. Academia Paulista de História, São Paulo, ano XIV, n. 84, 2001.

FARINA, Duílio Crispin. José Greff Borba, estudante-martir, em 1932, da Casa de Arnaldo. Academia Paulista de História, São Paulo, n. 85, 2001.

HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

MARINHO, Maria Gabriela S. M .C. Elites em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo, 1916-1931. Bragança Paulista: USF/CDAPH, 2003.

MARINHO, Maria Gabriela S. M .C. Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da ‘Casa de Arnaldo’. São Paulo: FMUSP, 2006.

MAZZIERI, Berta Ricardo. Símbolos da Medicina. São Paulo: Museu da Faculdade de Medicina da USP Professor Carlos da Silva Lacaz, 1995.

MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo: Edusp, 2005.

SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da belle époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

SANTOS, Marco Antonio; MOTA, André. 1932: história, mito e identidade. São Paulo: Alameda, 2008. No prelo.

SILVA, Márcia Regina Barros da. Estratégias da ciência: história da Escola Paulista de Medicina, 1933-1956. Bragança Paulista: USF/CDAPH, 2003.

Page 108: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 109: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

Parte 2Medicina e Saúde: especialidades

e institucionalização

Page 110: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 111: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

111

Hospital São Paulo/SPdM: atendimento à saúde entre o público e o privado nos anos 70 do século XX1

Ana Nemi

“O Sr. Presidente faz exposição da situação econômica, mencio-nando a situação de desequilíbrio entre a Receita e a Despesa. [...] Informa que a Sociedade tem a receber até dia 31/05/1969 as par-celas seguintes: da EPM NCr$ 40.000,00; Governo do Estado lei-to-dia: NCr$ 170.000,00; Prefeitura de São Paulo NCr$ 70.000,00; Instituto Nacional da Previdência Social NCr$ 300.000,00 [...]. No decorrente ano estão sendo mantidos 300 leito-ensino, incluindo os doentes. Em 1967, foi reduzido para 270 e em 1968 para menos de 100. Informa que a redução do número de leitos irá prejudicar o ensino, razão porque a Sociedade esforça-se por não adotar essa providência. Comunica que há interesse do INPS para a ampliação do convênio, o que, no momento não é possível, assunto esse que será objeto de apreciação na reorganização do Hospital.

(Ata da assembleia geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 7 de Julho de 1969, fl. 08, Arquivo SPDM.)”

A Escola Paulista de Medicina (EPM) foi fundada em 1933 como sociedade civil sem fins lucrativos com dois objetivos básicos: organizar um novo curso de ensino médico em São Paulo e edificar um Hospital-escola que pudesse dar conta do ensino de clínicas. Em 1940, o Hospital São Paulo (HSP) começou efetivamente a funcionar oferecendo leitos para indigentes e pensionistas a partir de convênios diversos assinados com os Institutos de Aposentadoria de então, e também com as esferas municipal

1 NEMI, Ana . “Hospital São Paulo: experiência de gestão pública de um ente privado no atendimento à saúde (anos 70)”. In: ST Assistência, políticas públicas e sociedade no Brasil no XXVII Simpósio Nacional de História, 2013, Natal. XXVII Simpósio Nacional de História - Conhecimento histórico e diálogo social. Natal: ANPUH, 2013.

Page 112: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

112

e estadual de governo.2 A manutenção da Escola privada e de seu Hospital, no entanto, foi esforço naufragado em dívidas que levou ao processo de federalização culminado em 1956. A lei que federalizou a Escola não incluiu o Hospital e seu enorme passivo, embora destacasse que o Hospital deveria oferecer, sem ônus para a Escola, seus leitos para as atividades de ensino.3 Partiu-se, assim, a sociedade civil fundada em 1933 em duas metades de natureza jurídica distintas: uma privada, sem fins lucrativos, gestora do Hospital São Paulo e que passou a se chamar Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM)4, e outra pública, a Escola Paulista de Medicina que, em 1964, se tornaria autarquia federal.5 Os professores que compunham as instâncias decisórias da Escola, porém, eram, ainda, os associados que geriam a SPDM e o HSP. As tramas desta separação/imbricação de origem são o fio condutor deste texto. O mapa do quarteirão principal do complexo é bastante elucidativo: a linha A separa a parte superior pública do quarteirão da parte inferior privada, onde se localiza o Hospital.

2 SILVA, Márcia Regina Barros da. Estratégias da Ciência: a história da Escola Paulista de Medicina (1933-1956). Bragança Paulista: EDUSF, 2003; NEMI, Ana. A construção da Escola Paulista de Medicina entre tradição e modernidade (1933-1956). In: RODRIGUES, Jaime. (Org.). A Universidade Federal de São Paulo aos 75 anos: ensaios sobre história e memória. São Paulo: Unifesp, 2008, p. 93-140.

3 Lei n° 2.712 de 21 de janeiro de 1956. Disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=110816>, acesso em maio 2007. Conforme o artigo 2 da Lei: “Para o ensino das clínicas da Escola Paulista de Medicina, a entidade mantenedora do Hospital de São Paulo assegurará, mediante cláusula na escritura referida neste artigo, a utilização de suas enfermarias gerais, instalações e equipamentos, independentemente de qualquer indenização”.

4 A Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina mudou seu nome para Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina no início do século XXI, em função de mudanças no Código Civil que não serão estudadas neste texto, mas manteve a sigla SPDM.

5 Convertida a EPM em autarquia. O Estado de S. Paulo, 13 ago. 1964. Arquivo do Jornal O Estado de S. Paulo, Pasta 5.746. Lei n° 4421, 29 de Setembro de 1964. Disponível em (acesso em janeiro de 2009): http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=115088

Page 113: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

113

Após 1956, especialmente nos anos 60, a Escola e a SPDM empreenderam esforços para a federalização do Hospital por meio da doação das instalações ao governo federal, mas as dificuldades de equacionar o “problema do passivo” acumulado, e que havia ficado quase integralmente nas contas do Hospital, sempre inviabilizaram tal proposta.6

A partição da sociedade civil em duas metades, uma pública e outra privada, implicou, na prática, na inédita situação em que um ente público geria um ente privado, dado que os associados do ente privado eram, e são ainda hoje, os professores da faculdade que fora federalizada7. Recolhidas as armas públicas que marcaram as tentativas de federalização do Hospital São Paulo nos anos 1960, a sociedade civil que o geria, SPDM, teria que encontrar os mecanismos para a manutenção dos leitos-ensino necessários à Escola e para o atendimento da população. Como fica evidente no trecho da Ata da Assembleia da SPDM de 1969 que abre este texto, a entidade mantinha convênios com a EPM, o governo do Estado de São Paulo, a prefeitura de São Paulo e o INPS. Nesse início de anos 1970, equacionar as necessidades da Escola parecia o mais difícil. Sabemos “que se este Hospital não fosse hospital de ensino da EPM o problema seria fácil”8, afirmavam os professores em suas reuniões na Congregação da Escola e na Assembleia dos sócios da SPDM. O que se destaca dos depoimentos dos professores é a constante preocupação com o financiamento dos leitos de indigentes, aqueles destinados ao ensino. O professor Osvaldo Luíz Ramos (1928-1999) chegou a sugerir que se tentasse “ensinar através das verbas que se obtém do INPS”, mas os valores pagos pelo INPS também não eram encorajadores.9O problema dos indigentes manifestava-se especialmente grave no Pronto Socorro do Hospital: de portas abertas e com demanda crescente de munícipes, apresentava despesa de Cr$ 100.000,00 por mês, em 197310, para a qual não havia a necessária cobertura. O professor Nestor Schor (1946 -...) chegou a sugerir o aumento das entradas no PS11

6 NEMI, Ana. A federalização da Escola Paulista de Medicina: imbricações de origem entre a norma e a experiência (1956-1970). Tempo Brasileiro, v. 178, p. 165-213, 2009.

7 De maneira geral, não houve alteração na composição dos sócios: são sempre membros da comunidade da Escola Paulista de Medicina. Acrescentaram-se representantes discentes e de funcionários, assim como associados honorários sem direito a voto. No que diz respeito aos professores, à medida que se complexificou a hierarquia da Escola em função do seu crescimento, do início das atividades de pós-graduação e da transformação em Universidade, passaram a ser representados de acordo com as suas respectivas categorias (titular, aposentado com função na Escola, chefes de departamento, etc.)

8 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 21/08/1972, fl. 02, Arquivo SPDM.

9 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 30/04/1973, fl. 02v, Arquivo SPDM. Na ata os valores são assim expressos: “Discorda que o INPS possa melhorar sobremaneira a situação [...] o preço real do nosso leito é maior na relação Cr$ 70,00 para Cr$ 109,00. [...] Em resumo, a SPDM viverá, eternamente, em crises e melhoras, isto é, sempre com ‘metabolismo baixo’.”

10 Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 17/08/1973, fl. 06f, Arquivo SPDM.

11 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 30/04/1973, fl. 02v, Arquivo SPDM.

Page 114: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

114

como forma de auferir maior produtividade e pagamentos. Ocorre que eram exatamente as receitas do PS as mais irregulares e incertas porque especialmente relatadas às subvenções municipais e estaduais. Sendo assim, o aumento dos leitos particulares como medida para compensar o déficit no financiamento das atividades do HSP foi sempre aventado, mas, nesses anos 1970, as receitas faturadas junto ao INPS e as subvenções nos três níveis da federação, notadamente o municipal em função do PS, superaram sempre em pelo menos quatro vezes as receitas de pacientes particulares12. Organizar o Hospital para atender pacientes particulares implicava em novos gastos para melhorar o Centro Cirúrgico e criar uma Unidade de Terapia Intensiva, o que também permitiria que os médicos internassem os seus próprios pacientes no Hospital. Mas, para isso, havia que contar com os poderes públicos, o que, nesses anos de chumbo, especialmente em atividades de assistência à saúde, era bastante difícil, considerando-se que um hospital-escola possui vínculos com mais de um ministério e as atribuições deles não eram claras:

“Projetos já foram encaminhados ao Ministério da Saúde pelo Sr. Presidente da Sociedade e pela Diretoria da EPM. O estudo foi de-monstrado ao Sr. Deputado Dr. Ernesto Pereira Lopes, que aprovou e aconselhou pedir uma verba de Cr$ 1.800.000,00. A receptivida-de foi boa, mas o Sr. Ministro da Saúde já participou, por telegra-ma, a esta Diretoria que deveria ser ouvido e solicitado ao Ministro da Educação. [...]”13

Além disso, havia forte resistência dos acadêmicos que participavam das reuniões e se manifestavam contra a diminuição do número de leitos para indigentes, fato que sempre provocou, e ainda provoca, afirme-se, graves debates:

“O acadêmico Ronaldo Ramos Laranjeira, que fala em nome dos alunos da EPM, mostrando-se contrário à ideia da instalação de leitos particulares no Hospital São Paulo, esclarecendo que o en-sino médico seria prejudicado em consequência. O prof. Magid

12 As proporções entre receitas do INPS, das subvenções nas três esferas de poder e de pacientes particulares alteraram-se de ano para ano na década de 1970. Ao longo dessa década, no entanto, a diminuição das receitas auferidas junto a pacientes particulares é bastante evidente. No mesmo sentido, aumentou a importância das receitas do INPS/INAMPS e a dependência das subvenções municipais para o funcionamento do PS. Entre os pacientes particulares destacavam-se, até 1973, os conveniados que praticamente desaparecem a partir de 1974. Cf. Contabilidade do Hospital São Paulo, Livros 1576, 1579, 1583, 1585, 1588, 1589, 1590, 1599, 1600, Arquivo SPDM.

13 Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 17/08/1973, fl. 06f, Arquivo SPDM. Propunha-se a diminuição de 192 leitos para 100 reservados para indigentes.

Page 115: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

115

Iunes responde à questão, dizendo que a ênfase dada ao Hospital atualmente não é correta, visto que o ensino deve ter por objetivo colocar o aluno em condição para que este sobreviva fora de um hospital. Portanto, acredita que o doente particular não traz prejuí-zo algum para o ensino.”14

O fato era que as duas metades da sociedade civil partida em 1956 tinham que estabelecer esforços conjuntos para manter o Hospital funcionando. Em 1972, por exemplo, a SPDM assumiu o pagamento dos médicos residentes “em troca de mão de obra e material para as construções no Hospital” que vinham sendo feitas de acordo com o orçamento negociado pela Escola junto ao MEC.15 Mas tais esforços conjuntos não aconteciam sem problemas: o Hospital dependia basicamente de subvenções estaduais e municipais, insuficientes, irregulares e constantemente em atraso; dos pagamentos do INPS, também sempre em atraso e abaixo dos custos reais das atividades realizadas; e dos pagamentos do convênio estabelecido entre a SPDM e a EPM para manutenção dos leitos-ensino e, nesse caso, os pagamentos vinham em atraso ou eram retidos pela Escola16. Cabe aprofundar um pouco os termos desse convênio e, depois, discutir o problema da medicina previdenciária emblemada no INPS.

o finAnCiAmento dos leitos-ensino

O principal argumento utilizado nos anos 60 pelos gestores do Hospital e professores da Escola para justificar a proposta de doação do patrimônio da SPDM para a União, e sua consequente incorporação definitiva à Escola Paulista de Medicina, afirmava a impossibilidade de cumprir o exposto na Lei de federalização: o ensino de clínicas sem ônus para a mantenedora do Hospital.17 O Projeto n.° 2735/1961, em seu artigo terceiro, reconhecia tal dificuldade e afirmava que, procedida a federalização do Hospital, o Ministério da Educação e Cultura consignaria em seu orçamento os recursos

14 Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 10/10/1979, fl. 27f e 27v, Arquivo SPDM.

15 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 21/08/1972, fl. 01, Arquivo SPDM. Ver também Contabilidade do Hospital São Paulo, Livros 1576, 1577 e 1579, Arquivo SPDM.

16 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 21/08/1972, fl. 02, Arquivo SPDM.

17 Segundo a Lei: “Para o ensino das clínicas da Escola Paulista de Medicina, a entidade mantenedora do Hospital de São Paulo assegurará, mediante cláusula na escritura referida neste artigo, a utilização de suas enfermarias gerais, instalações e equipamentos, independentemente de qualquer indenização.” Lei 2.712 de 21 de Janeiro de 1956. Acessado em Maio de 2009 e disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=110816>

Page 116: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

116

necessários “ao custeio das despesas de manutenção do” Hospital São Paulo depois de efetivada a escritura de doação do imóvel e suas instalações. Na exposição dos motivos para a edição do Projeto, o MEC destacava a urgência de transformar o HSP em Hospital de clínicas da Escola em função das escassas possibilidades financeiras da SPDM e, ainda, da impossibilidade de a Escola proceder a reformas e melhorias no Hospital por ser ele instituição privada.18

As derrotas nas tentativas de federalização do Hospital exigiram que a Escola e a SPDM encontrassem um caminho para financiar os leitos-ensino disponibilizados pelo Hospital. Assim, se a norma pactuada em 1956 sugeria o oferecimento dos leitos-ensino sem indenização para a sociedade civil, a experiência cotidiana do ensino e os custos advindos dessa atividade exigiram a construção de outras normas e pactos. As duas metades da sociedade civil partida ao meio em 1956 assinaram um convênio por meio do qual a Escola se comprometia a pagar mensalmente pela utilização dos leitos das enfermarias do Hospital. Embora a contribuição federal resultante do convênio nunca tenha correspondido aos custos reais de manutenção dos referidos leitos19 e a retenção dessas verbas pela Escola fosse constantemente relatada nas assembleias e reuniões do Conselho Administrativo da SPDM20, os termos do convênio evidenciam a situação atípica criada pela Lei de 1956:

18 Diários do Congresso Nacional, Acessado em Janeiro de 2010 e disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/index.html# 19 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina,

22/03/1967, fl. 01, Arquivo SPDM.20 Ata da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina,

21/08/1972, fl. 02, Arquivo SPDM.

Page 117: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

117

21

Vejamos cada um dos pressupostos que justificam o convênio entre a EPM e a SPDM. Em primeiro lugar, afirma-se o comprometimento por Lei da SPDM no fornecimento dos leitos-ensino das enfermarias do Hospital São Paulo para a Escola e, em seguida, considera-se que tal já vem ocorrendo sem solução de continuidade, o que seguramente se explica pelos custos desses leitos para os quais não havia financiamento adequado. A manutenção do regime de parceria entre a sociedade civil filantrópica22 e a Escola federal parecia imprescindível em função das necessidades do ensino; a proximidade entre o Hospital e a Escola, localizados no mesmo quarteirão e geridos pelo mesmo grupo de professores, parece ser o principal argumento para a referida imprescindibilidade. A afirmação de que a Escola não possuía seu próprio Hospital de Clínicas parece guardar algo de ironia: se do ponto de vista formal, da norma legal, a autarquia federal Escola Paulista de Medicina não possuía um Hospital de Clínicas, do ponto de vista da experiência histórica o mesmo grupo de professores que fundou a sociedade civil em 1933 continuava a gerir as duas metades cindidas por Lei em 1956. O professor Azarias Andrade de Carvalho

21 Convênio EPM/SPDM 1970 -Livro Prestação de Contas 1970, Documento 30, Arquivo Contabilidade EPM. O pagamento de duodécimos previsto na minuta do convênio aqui reproduzido é relatado nos Livros de contabilidade do Hospital São Paulo durante as décadas de 1960, 1970, 1980 e até 1992, às vezes como “duodécimos”, às vezes como “Convênio MEC/EPM”, às vezes como “Convênio padrão universitário”. Os anos 70 são exatamente aqueles em que a regularidades desses pagamentos é menor.

22 No escopo deste texto, o tema da filantropia aparece citado, mas pouco desenvolvido; o tema central é o das imbricações público-privado; um estudo mais cuidadoso sobre o papel da filantropia no sistema de saúde brasileiro a partir da experiência do complexo HSP/SPDM/EPM será tema de outro texto.

Page 118: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

118

(1915-2005), por exemplo, que assinou esse convênio de 1970 pela SPDM, era então catedrático do departamento de Pediatria da EPM. No mesmo sentido, o professor Horácio Kneese de Mello (1914-1999), que assinou o convênio pela Escola, era sócio da SPDM, entidade que presidiu entre 1974 e 1976. Mas a Escola na qual eram professores não podia considerar o Hospital construído pelos seus professores como Hospital de Clínicas dela mesma... Mesmo diante de tal ironia, a letra do convênio considera que a Escola coopera financeiramente com o custeio dos leitos-ensino e que o faz mediante verba consignada pelo MEC para “ocorrer às despesas hospitalares”23, outra norma para efetivar o que era experiência e que era negado pela Lei de 1956.

Dessa forma, para garantir o custeio efetivo dos leitos-ensino, a Escola buscava verbas que melhorassem a qualidade do atendimento e dos equipamentos do Hospital. Havia negociações junto ao MEC para aumentar a “dotação própria do orçamento da União”, ao mesmo tempo em que se sugeria uma melhor racionalização da administração do Hospital24. Entre os anos 1960-1970, procedidas as federalizações de funcionários resultantes da transformação da Escola em autarquia federal, a Escola contribuiu sempre com um percentual em torno de 20 a 25% sobre a receita do Hospital, números representativos do seu pessoal lotado no Hospital.25 A movimentação junto aos poderes públicos para financiar as atividades do Hospital São Paulo podia ser feita pela Escola ou pela SPDM, e tal se justificava porque as enfermarias nas quais se realizava o ensino, e a partir das quais os médicos, técnicos e enfermeiros auferiam seus rendimentos, funcionavam a partir do trabalho de funcionários da Escola e da SPDM. Em 1979, por exemplo, a EPM tinha 11 funcionários trabalhando no Hospital, que, “além de receberem da EPM”, recebiam uma parcela das disciplinas.26

As constantes crises de financiamento do Hospital se tornavam mais graves quando diminuíam os percentuais recebidos pela Escola do MEC27, fato que marcou o relacionamento dos Institutos federais de ensino com o MEC ao longo dos anos 7028, além de levar à irregularidade no cumprimento

23 Na quinta cláusula do convênio explicita-se a origem do dinheiro: “As despesas oriundas da execução do presente convênio correrão à conta da Verba 15.05.2.076 – Serviços de Assistência Hospitalar – 3.2.7.2.30.00, que foi consignada à Escola no Orçamento da União”. In: Convênio EPM/SPDM 1970 -Livro Prestação de Contas 1970, Documento 30, fl. 02, Arquivo Contabilidade EPM.

24 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 9, 16/12/1969, fl. 08; IDEM, Livro 12, 08/03/79, fl. 15f. Arquivo da Reitoria da UNIFESP.

25 Atas da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, Livros 1 e 2, 21/06/1960 a 22/02/1980, Arquivo SPDM.

26 Atas da Assembleia Geral extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 10/10/1979, fl. 26v, Arquivo SPDM.

27 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 11, 27/02/1978, fl. 139f, Arquivo Reitoria da UNIFESP.

28 FÁVERO, Maria de Lourdes de A. A Universidade brasileira em busca de sua identidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1977; MATTOS, Pedro L. C. L. As universidades e o governo federal: a política de controle do governo em relação às universidades federais autárquicas e suas consequências sobre as estruturas administrativas destas instituições. Recife: Editora Universitária, 1983

Page 119: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

119

do convênio acima discutido. A nota abaixo aponta o pagamento pela Escola do sexto duodécimo de 1974, mas tais pagamentos não tinham a regularidade mensal esperada.

29

Os edifícios Jairo Ramos e Octávio de Carvalho30, interligados, mas localizados cada um em uma das metades da sociedade civil partida em 1956, tipificam essa situação de comprometimento recíproco na sustentação e crescimento da Escola e do Hospital São Paulo. O primeiro vinha sendo construído na metade privada da sociedade civil para abrigar novos ambulatórios para o Hospital desde os anos 1960. As verbas para sua construção vieram principalmente do MEC a partir de esforços feitos pela Escola. No relatório das suas atividades como diretor da Escola apresentado à congregação em 1969, Nylceo Marques de Castro afirmava acerca da primeira etapa desta construção:

29 “COMPROVANTE DE CAIXA: Natureza do pagamento: Auxilio, pago a: Soc. Paulista P/ o Desenvolvimento da Medicina – HSP. Ref.: Importância destinada a pagamento do 6 duodécimo, referente ao mês de junho de 1974, conf. Proc. n. 421/74. NC$ n258.000,00 (duzentos e cincoenta e oito mil cruzeiros)”. In: Documentos de Caixa 267 – N. 1680-1790, Arquivo Contabilidade EPM.

30 No primeiro mapa deste texto, página 2, o edifício Jairo Ramos tem o número 2, e o edifício Octávio de Carvalho tem o número 1.

Page 120: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

120

“O Edifício de Ambulatórios, obra prioritária, teve a sua primeira etapa concluída em nossa administração. Toda uma série de difi-culdades oriundas de restrições de ordem financeira, impostas pelo governo puderam ser enfrentadas e solucionadas, e a conclusão da primeira etapa vem coroar os esforços não só da atual administra-ção, como de outras que a antecederam. Gastou-se para essa con-clusão, mais ou menos NCr$ 650.000,00.”31

Inaugurado em 1972, o edifício Jairo Ramos teve a segunda etapa de suas obras concluída em 1976, quando os professores da Escola deliberaram, em reunião da congregação, sobre a ocupação32 e a administração do novo prédio. O “Plano de Transferência dos Serviços de Ambulatórios da Escola Paulista de Medicina para a responsabilidade Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina” foi apresentado em reunião da congregação do dia 02 de Junho de 1976. Destaco dois dos seus artigos:

“2º - A SPDM terá autonomia administrativa em todo o Edifício Professor Jairo Ramos e nas áreas anexas que lhe forem destina-das, responsabilizando-se pelos problemas financeiros atualmente a cargo da EPM. A EPM continuará responsabilizando-se pela ma-nutenção dos funcionários públicos aí lotados.

6º - A SPDM compromete-se a auxiliar financeiramente, dentro de suas possibilidades, a construção de uma nova instalação para o almoxarifado da EPM e a adaptação das novas áreas que serão por ela utilizadas. [...]Este plano foi aprovado pela Congregação quanto à filosofia da transferência, sem entrar no mérito da exe-quibilidade do mesmo.”33

Construção pública em terreno privado, parte dos funcionários lotados no edifício Jairo Ramos estavam na folha de pagamento da Escola. A administração do prédio, ou a sua gestão em termos um tanto mais contemporâneos, foi transferida para a metade privada da sociedade civil sem que se discutisse “a exequibilidade” do Plano proposto. A frase destacada sugere que os professores da Escola, que também eram os sócios da SPDM, conheciam as dificuldades que a parceria público-privada não

31 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 9, 16/12/1969, fl. 09, Arquivo da Reitoria da UNIFESP. Interessante observar que não há registros da construção do edifício Jairo Ramos nas reuniões do Conselho Administrativo da SPDM ou de suas Assembleias, mas foi construído em terreno seu...

32 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 11, 12/05/1976, fl. 55v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP. Cumpre destacar que o referido prédio dos ambulatórios “Jairo Ramos” ainda não tem a sua situação legalizada em cartório.

33 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 11, 02/06/1976, fl. 57v e 58f, Arquivo da Reitoria da UNIFESP. (Grifo meu).

Page 121: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

121

prevista em norma, mas experienciada cotidianamente, poderia trazer. Havia, no entanto, que ensinar e havia que oferecer assistência à saúde, havia que enfrentar a norma para auferir maiores rendimentos e melhores condições de trabalho.

O segundo edifício citado acima, o “Octávio de Carvalho”34, foi construído entre 1973 e 1978 na metade pública da sociedade civil, também com verbas do MEC, mas abrigava inicialmente 36 salas de ambulatórios e laboratórios multidisciplinares onde se desenvolviam atividades do Hospital que eram geridas pela SPDM35. A leitura dos Livros de Prestação de Contas da EPM36 demonstra que a compra de material para a construção dos dois edifícios implicava em uma espécie de re-união das metades partidas em 1956. As notas ficais talvez falem por mim:

34 Edifício 1 do mapa constante da página 2 deste texto.35 PRATES, José Carlos, Discurso proferido por ocasião da inauguração do Edifício ‘Octávio de

Carvalho’”, 22/05/1978, Arquivo CEHFI/UNIFESP. Cumpre destacar que tais ambulatórios estiveram sob gestão da SPDM no mesmo prédio público até mais ou menos 2008, quando começaram a ser transferidos para novo prédio alugado por ela na rua José Magalhães 340.

36 O trabalho de recuperação e conservação dos Livros da Contabilidade da Escola Paulista de Medicina, encontrados em 2009 com infestação por cupins e fungos, vem sendo recuperado no âmbito do projeto apoiado pela FAPESP, Ensino e saúde entre o público e o privado: a experiência do complexo HSP/SPDM/EPM-UNIFESP (1956-2010).

Page 122: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

122

37

A empresa contratada vendia “materiais para prosseguimento e conclusão de obras dos Ambulatórios”.38 Observe-se que a firma contratante e destinatária da mercadoria é denominada “Hospital São Paulo – Ambulatório Escola Paulista”, dois CNPJs... O destino é o Hospital São

37 “Documento N° 3925: Nome da firma: Hospital São Paulo / Ambulatório da EPM, endereço: R: Napoleão de Barros, 715, Local de entrega: o mesmo. ARTAP- Qtt: 209,07 m de VulcapisoTerrazo Azul”. In: Documentos de Caixa, Volume 83, Documentos 3910 a 4240, 1968, Arquivo Contabilidade EPM.

38 “Documento N° 3925:Artplasts/a- aquisição de vários materiais para prosseguimento e conclusão de Obras dos ambulatórios, conforme proposta”. In: Documentos de Caixa, Volume 83, Documentos 3910 a 4240, 1968, Arquivo Contabilidade EPM.

Page 123: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

123

Paulo, Rua Napoleão de Barros 715, o pagador era a Escola Paulista já que é nos seus Livros de Contabilidade que a nota está registrada.

Assim, quando a norma pactuada não permitia a expansão pretendida, havia que estabelecer novas regras, buscar nas normas caminhos não previstos, e um caminho encontrado pelas metades constantemente em diálogo foi exatamente a construção das novas edificações em terreno da SPDM mediante verbas conseguidas pela Escola junto aos poderes públicos, especialmente o MEC. Tal situação já se apresentara no início dos anos 1960, quando da construção do prédio do Instituto de Medicina Preventiva, e não acontecia sem tensões e disputas, tão difíceis de especificar quanto sempre latentes. Em 1960, a Escola se organizava para construir o Instituto e assinara convênio com o MEC no valor de dez milhões de cruzeiros para esse objetivo. O prédio foi construído ao lado do Hospital São Paulo, na metade do quarteirão partido em 1956 que se mantivera privada, mas com dinheiro do MEC. Eram os anos em que se acreditava na possibilidade da União incorporar o patrimônio restante da sociedade civil fundada em 1933, os anos do Projeto 2735/1961 sobre o qual já falamos. Na senda aberta por esta possibilidade, aventada junto às comissões do Congresso Nacional que tentavam encaminhar o referido projeto, foram aprovados dois decretos. O primeiro, 50.342/15-03-196139, tornava de utilidade pública terrenos destinados “à ampliação das instalações e serviços da Escola Paulista de Medicina”, conforme o mapa abaixo.

39 Decreto 50342 do Senado Federal de 15 de março de 1961. Acessado em março de 2011 e disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=180807&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB

Page 124: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

124

40

O segundo, 313/01/12/196141, autorizava “o Patrimônio da União a aceitar a doação do terreno” onde se construiriam o edifício da Preventiva e o dos Ambulatórios (edifício Jairo Ramos citado acima). A doação deveria der efetivada por escritura lavrada em cartório, conforme cobrava a Congregação da Escola em outubro de 1967:

40 Transformação da EPM em Universidade, Anteprojeto de Decreto-Lei, Mapa s/d, s/assin. Documentos do professor Manuel Lopes dos Santos. Arquivo da Reitoria da UNIFESP. O quarteirão A do mapa é o quarteirão original da Sociedade Civil Escola Paulista de Medicina, é o que está apresentado no primeiro mapa deste texto, página 02.

41 Decreto 313 do Senado Federal de 07 de Dezembro de 1961. Acessado em março de 2011 e disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=181967&tipoDocumento=DCM&tipoTexto=PUB

Page 125: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

125

“A seguir o Senhor Diretor solicita autorização da Congregação no sentido de oficiar à Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, pleiteando a escritura de doação do terreno onde a Esco-la construiu o Instituto de Medicina Preventiva e está construindo o edifício dos Ambulatórios. Tal solicitação foi aprovada.”42

No mesmo sentido, o processo de federalização da Escola de Enfermagem, consumado pelo decreto 79.656 de 197743, também é bastante elucidativo da dificuldade de se entenderem os mecanismos de separação e imbricação entre as metades partidas de que falamos aqui. O custeio da Escola de enfermagem pela SPDM implicava gastos com os quais ela não podia arcar, boa parte das alunas eram bolsistas e as rendas do Hospital deveriam suportar as atividades da Escola de enfermagem, o que vinha se mostrando insustentável.44 A solução encontrada foi federalizar a Escola, transformando-a em departamento da Escola Paulista de Medicina e estabelecendo uma situação de comodato por meio da qual a SPDM, permitia que o novo departamento continuasse funcionando no edifício de sua propriedade45, mas reforçou ainda mais as tintas que caracterizaram a federalização da EPM: assim como muitos dos departamentos da Escola funcionavam no Hospital privado, o novo departamento, além de ter atividades no Hospital privado, mantinha a sua sede em prédio da SPDM46. Os funcionários da Escola de enfermagem foram incorporados à

42 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 8,10/10/1967, fls. 224 e 225, Arquivo da Reitoria. 43 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, 11/06/1977, Livro 11, fl. 108 v, Arquivo da

Reitoria da UNIFESP. Os detalhes do processo de federalização do curso de enfermagem foram fornecidos por José Carlos PRATES, então diretor da EPM, em entrevista a Ana NEMI de Outubro de 2008. Decreto 79.656 de 1977 que autoriza “incorporação a Escola Paulista de Medicina dos cursos atualmente oferecidos pela Escola Paulista de Enfermagem”, acessado em março de 2011 e disponível em: http://www6.senado.gov.br/sicon/#

44 Segundo relatado em Ata da Congregação da EPM, os motivos para a federalização da Escola de enfermagem foram os seguintes: “Desses inconvenientes, os principais são: 1º - Onera a Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, já sobrecarregada com a manutenção do Hospital São Paulo; 2º - Dificulta o perfeito entrosamento entre a Escola de Medicina e a Escola de Enfermagem; 3º - não permite uma expansão do curso de enfermagem como seria de se desejar. Por esse motivo, um trabalho vem sendo feito, junto com o ministério da Educação e Cultura e com muito boa compreensão por parte deste, no sentido de ser a Escola Paulista de Enfermagem federalizada e incorporada ao conjunto Escola Paulista de Medicina. [...]”. Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, 30/06/1976, Livro 11, fl. 61v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP.

45 O acordo feito entre as duas metades partidas é bastante esclarecedor da movimentação conjunta das mesmas: “Por parte da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina propomos o seguinte: 1º - A Sociedade cederá à Escola Paulista de Medicina, em comodato, o prédio onde funciona a Escola Paulista de Enfermagem; 2º - A Sociedade cederá, por doação, todo material permanente, e equipamentos de sua prioridade, em uso na Escola Paulista de Enfermagem; 3º - A Sociedade colocará todo pessoal, tanto docente, como técnico, à disposição da Escola Paulista de Medicina e do Ministério da Educação e Cultura, para ser por essas entidades absorvido seguindo seus critérios, responsabilizando-se pelo pessoal eventualmente não aproveitado e dando destinação adequada a cada caso; 4º - A Sociedade compromete-se a fornecer integralmente à Escola Paulista de Enfermagem, os recursos financeiros programados para o ano de 1976, ao total de Cr$...1.300.000,00 (hum milhão e trezentos mil cruzeiros).” Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, 30/06/1976, Livro 11, fl. 61v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP. (Grifos meus).

46 O edifício da Escola de Enfermagem é o número 2 no quarteirão de letra D do mapa referente à nota 44 deste texto, frente para a Rua Napoleão de Barros.

Page 126: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

126

folha da autarquia Escola Paulista de Medicina e continuaram a trabalhar nos mesmos espaços privados, mas agora como funcionários públicos, um único vínculo com duas interpretações possíveis... É interessante observar que, nos debates que antecederam à federalização do curso de enfermagem, as Atas da Assembleia Geral da SPDM citavam, na ordem do dia, o assunto “Alienação dos bens da Escola de Paulista de Enfermagem, visando a sua federalização”47, fato que nunca se efetivou. Tal alienação, por meio de doação, só seria possível com escritura de doação simples, que a SPDM nunca escreveu, para esse edifício que abriga até hoje o curso de Enfermagem da UNIFESP, ou para o edifício do Instituto de Medicina Preventiva, ou para o prédio dos Ambulatórios “Jairo Ramos”, ou para o prédio original do Hospital São Paulo, ou para toda a metade do quarteirão partido voltada para a Rua Napoleão de Barros, conforme sugeria o Decreto 62.202/1968. Todos os decretos que previam doação de patrimônio para a União não foram cumpridos, as desapropriações dos quatro quarteirões desenhados no mapa abaixo também nunca se efetivaram, foram todos revogados em 1991. Apenas o curso de Enfermagem tornou-se, de fato, um departamento da Escola, mas funcionando em prédio e terreno da SPDM. Escrituras não seriam registradas e nenhuma doação se efetivaria se a União não se comprometesse a resolver o problema do passivo acumulado pelo Hospital e do justo custeio das suas atividades de ensino, pesquisa e assistência.

o inps no hospitAl são pAulo

Ao longo da década de 1970, a importância do faturamento junto ao INPS no total da receita do Hospital cresceu substantivamente, sobretudo após 1973, quando as receitas de conveniados praticamente desapareceram e as dos pacientes particulares eram contabilizadas na casa de 2% apenas48. Resultante das opções feitas nos anos 60, quando a Lei Orgânica da Previdência Social de 1960 propôs a uniformização dos benefícios previdenciários, vinculando a eles a assistência à saúde, e levou à criação do INPS em 1966, tal dependência vinha acompanhada da indefinição acerca das fontes de financiamento relativas ao atendimento médico. O Estado se

47 Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 03/03/1977, fl. 18 f e v, Arquivo SPDM.

48 Contabilidade do Hospital São Paulo, Livros 1576, 1579, 1583, 1585, 1588, 1589, 1590, 1599, 1600, Arquivo SPDM.

Page 127: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

127

tornou o organizador dos serviços de assistência à saúde, submetendo a atividade médica à Previdência Social, enfraquecendo a medicina liberal e fortalecendo o modelo hospitalocêntrico que se desenhara nos anos 1940 e 1950. Tratou-se, portanto, da formação de um complexo previdenciário baseado no atendimento individual, curativo e hospitalar no qual as empresas filantrópicas tinham grande importância. Responsáveis por hospitais em todo o Brasil, notadamente aqueles chamados de “Misericórdia”, essas empresas assinavam convênios com o INPS de modo a prover a assistência prevista no novo modelo. Uma “articulação entre o público e o privado” que marcou o desenvolvimento da assistência à saúde no Brasil e que promoveu “formas híbridas” de organização desses serviços.49 A experiência do complexo HSP-SPDM/EPM, sem dúvida, tipifica e radicaliza essa trajetória da história da saúde pública no Brasil, na medida em que sua existência foi marcada pela gestão parceira, mas não sem conflitos, de uma metade pública e outra metade privada.

Observe-se que se trata do crescimento da assistência à saúde representada pela previdência individual recolhida pelo trabalhador e que os gastos do Estado com saúde coletiva e medicina preventiva foram sempre proporcionalmente menores nesses anos 1970. As opções políticas que estavam sendo feitas e efetivadas, e que se evidenciavam na diminuição da participação do Ministério da Saúde no orçamento total da União50, seguramente explicam tragédias silenciadas como a epidemia de meningite que se alastrou nessa época e só mereceu destinação de verba para vacinação a partir de dezembro de 1974.

“A campanha de vacinação – definida como uma ‘verdadeira ope-ração militar’ foi realizada até 1977, quando a meningite foi decla-rada sob controle. Nunca se soube com precisão o número de atin-gidos e de mortos, informação mantida em sigilo pela ditadura.”51

O sistema montado a partir da invenção do INPS era tão grande quanto frágil. A contratação de uma rede hospitalar privada, na qual se destacavam as empresas filantrópicas, e com remuneração por Unidades de Serviço, era de difícil fiscalização e foi, normalmente, fonte de corrupção. Por outro lado, os preços pagos pelo INPS para os serviços médicos prestados eram baixos e a transferência dos recursos não era feita sem atrasos e glosas resultantes da desconfiança recíproca que se estabeleceu entre o INPS e a rede conveniada. Os relatos das assembleias da SPDM, indicando as constantes visitas feitas

49 MENICUCCI, Telma Maria G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007, p. 34 e 46.

50 CAMPOS, Gastão W de S. Planejamento sem normas. São Paulo: HUCITEC, 1989; BRAGA & PAULA, Saúde e previdência: estudos de política social. São Paulo: Cebes/HUCITEC, 1981; BUSS, Paulo M. Ministério da Saúde e saúde coletiva. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ, 1976.

51 BERTOLLI F., Cláudio, História da Saúde Pública no Brasil. São Paulo: Ática, 2008, p. 53.

Page 128: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

128

pelo presidente da instituição ao INPS para negociar melhores termos para o convênio e cobrar pagamentos em atraso, são bastante elucidativos:

“O Sr. Presidente (Horácio Kneese de Mello) informa que o INPS está em atraso no pagamento das contas hospitalares, no montan-te de Cr$ 5.000.000,00, e ter pedido ao MEC sua intercessão no sentido da liberação dessa verba e que irá ao Rio para falar com o Presidente do INPS. Informa, ainda, que apesar desse contratempo, o pagamento do pessoal está em dia e o dos fornecedores com o atraso de apenas um mês.52

O Sr. Presidente esclarece que irá hoje a Brasília assinar convênio com o MEC. Esboça apenas a situação do Hospital São Paulo, di-vulgada pela imprensa e fala sobre o pedido feito à Prefeitura de um auxílio no valor de 25 milhões de cruzeiros. Comunica que o INPS mudou seu sistema de faturamento e pagamento, prejudi-cando assim, o ritmo tranquilo que seguia o Hospital. A situação é difícil porque não podemos baixar o nível de atendimento e a despesa.53

Em discussão, o prof. Pedro Luiz M. Albernaz pergunta sobre a situação da SPDM em relação ao pedido que fez ao INAMPS de autorização para realização de cirurgias eletivas e atendimento ambulatorial, e em que isso afetaria o HSP, se caso houvesse re-jeição da solicitação feita. Comunica o Sr. Presidente que após 6 meses recebeu do INAMPS a resposta negativa do pedido feito, o qual especificou que no momento atual não há possibilidade de autorização para o caso.”54

As dificuldades decorrentes do gigantismo frágil do INPS para a operacionalização do Hospital São Paulo são tão evidentes quanto graves: problemas para pagar residentes, fornecedores e funcionários, impossibilidade de oferecer atendimento com a qualidade esperada e necessária, constantes esforços envidados pela Escola e pela SPDM para renegociar o convênio e conseguir subvenções que pudessem cobrir o déficit decorrente da dependência das receitas advindas do INPS. Além disso, a urgência de expansão do Hospital, cujos espaços disponíveis dificultavam o atendimento à clientela cada vez maior que acorria aos ambulatórios e ao PS,

52 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 30/04/1975, fl. 14f, Arquivo SPDM. (Grifo meu).

53 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 25/04/1977, fl. 19f, Arquivo SPDM.

54 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 10/10/1979, fl. 26f, Arquivo SPDM. (Grifo meu).

Page 129: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

129

levou a diretoria da SPDM a aderir ao Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). “Destinado a dar apoio financeiro a programas e projetos de caráter social, que se enquadrem nas diretrizes e prioridades da estratégia de desenvolvimento social dos Planos Nacionais de Desenvolvimento”, o Fundo, criado por Lei em 1974, permitia o levantamento de empréstimos junto à Caixa Econômica Federal para “projetos de interesse do setor público, nas áreas de Saúde e Saneamento, Educação, Trabalho e Previdência e Assistência social”.55 Considerando-se que, durante a década de 1970, a rede particular de hospitais chegou a ser responsável por mais ou menos 90% dos atendimentos faturados junto ao INPS, e que os hospitais se consolidaram como principal “porta de entrada” dos cidadãos no sistema de saúde, as intenções do governo eram claras... No mesmo sentido, as dificuldades de se organizarem sistemas de atenção primária, a partir da criação do SUS em 1988, também se tornam historicamente explicáveis tendo-se em vista as políticas públicas construídas nos anos 1960 e 1970. O debate que se estabeleceu dentro da própria burocracia estatal já foi bastante estudado56 e permite compreender as “idas e vindas” nas decisões governamentais no período: o INPS chegou a baixar portaria para incentivar a ampliação da sua rede hospitalar própria, mas o padrão definido pelas forças sociais envolvidas e reforçado pela criação do FAS não pôde ser revertido.

Para a SPDM a adesão ao novo Fundo trazia problemas a serem administrados: seria preciso onerar bens imóveis da Sociedade como garantia para o empréstimo, finalizar reformas que vinham sendo feitas no Hospital e, de novo a velha ideia, “construir uma ala especial para doentes particulares”, de forma a “fixar o professor no ambiente escolar e aumentar subsídios para a manutenção do Hospital”.57 A engenharia financeira que caracterizou a sociedade civil desde a sua fundação em 1933, e que se mantivera após a sua partição em 1956, mostrava a força da experiência na história do Hospital: expandir como possibilidade de aumentar rendimentos e assegurar a operacionalização das atividades de assistência, ensino e pesquisa que nele se desenvolviam. No contrato assinado com a CEF em 1977, o prédio original do Hospital São Paulo foi avaliado pela Caixa em 59

55 Lei 6168 de 09 de Dezembro de 1974. Acessada em Março de 2011 e disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=122582&tipoDocumento=LEI&tipoTexto=PUB

56 LIMA, FONSECA & HOCHMAN. A saúde na construção do Estado Nacional no Brasil: a Reforma Sanitária em perspectiva histórica”. In: LIMA, GERSCHMAN, EDLER & SUÁREZ, Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 27-58; ESCOREL, NASCIMENTO & EDLER. As origens da reforma sanitária e do SUS. In: LIMA, GERSCHMAN, EDLER & SUÁREZ, op. cit., p. 59-82; ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

57 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 10/01/1977, fl. 17v, Arquivo SPDM. O assunto também foi discutido em reunião da Congregação da EPM e recebeu crítica dos acadêmicos presentes, mas os professores apoiaram a negociação. Cf. Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 11, 25/02/1977, fl. 89v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP.

Page 130: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

130

milhões e o empréstimo foi de 35 milhões, a hipoteca foi resgatada em 1987.58 A negociação deste novo empréstimo parece ter envolvido um antigo crédito que sobrara das tratativas de 1949, quando a Escola conseguiu liberação de crédito para saldar a dívida que contraíra com a Caixa para a construção do HSP59. Isso porque a certidão conseguida junto ao 14.° Cartório de Registro de Imóveis indica que, entre os meses de janeiro e março de 1977, a SPDM resgatou a hipoteca restante do empréstimo contraído em 1944 e assinou nova hipoteca referente à adesão ao FAS.60

A adesão ao FAS/CEF permitiu uma ampla reforma no edifício original do HSP com a criação de novos serviços e a compra de equipamentos modernos.61 O déficit operacional nas contas do Hospital, no entanto, mantinha-se na casa de 18 milhões de cruzeiros no ano seguinte ao início da vigência do contrato62; a construção de novo prédio para pacientes particulares ainda esperaria pela década de 90.

O novo Fundo criado pela Ditadura Militar deixou marcas no desenvolvimento da saúde pública no Brasil. Além de privilegiar o Hospital como porta de entrada para o sistema de saúde, modelo que recentemente o SUS vem bravamente tentando desmontar, financiou a expansão da rede privada sem que houvesse contrapartida contratual obrigatória para o atendimento dos pacientes previdenciários e, após 1988, dos pacientes SUS. Para os hospitais-escola que aderiram às condições de pagamento oferecidas pelo Fundo havia que administrar a assistência prevista na letra da Lei com as suas funções na formação de recursos humanos e desenvolvimento de pesquisa. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), por exemplo, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aderiu ao FAS em 1975 para expandir a capacidade do Hospital em 400 leitos63, “para cobrir despesas da empresa”, investir em obras, equipamentos e instalações. Também nesse caso, como no HSP, relatava-se a necessidade de adaptar as instalações do Hospital às demandas do ensino64, o que implicava em distribuição diferente das enfermarias, já que essas estão normalmente

58 14° Cartório de Registro de Imóveis, Registro Geral Livro n.° 02, matrícula 11.482, ficha 01v, Pedido 939316 em 04/02/2011.

59 NEMI, Ana. A construção da Escola Paulista de Medicina entre tradição e modernidade (1933-1956). In: RODRIGUES, Jaime (Org.). A Universidade Federal de São Paulo aos 75 anos: ensaios sobre história e memória. São Paulo: Unifesp, 2008, p. 93-140.

60 14° Cartório de Registro de Imóveis, Registro Geral Livro n.° 02, matrícula 11.482, ficha 01v, Pedido 939316 em 04/02/2011.

61 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 28/04/1978, fl. 20v, Arquivo SPDM.

62 Idem, fl. 21f.63 Ata da 27° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 20/04/1975, fl. 01;

HCPA, Relatório da Administração Geral, Relatório contábil, Balanço Geral – Exercício 1977; Arquivo HCPA.

64 Ata da 29° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 20/08/1975, fl. 02, Arquivo HCPA. Cabe destacar que o empréstimo auferido pelo HCPA foi de 100 milhões de cruzeiros e que recebeu uma suplementação de 40 milhões em 1976 e outra de 25 milhões em 1979. Cf. Ata da 48° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 13/11/1979, fls. 01 e 02, Arquivo HCPA.

Page 131: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

131

relacionadas às disciplinas dos cursos que funcionam nas dependências do Hospital. Assim, o pagamento efetuado por Unidades de Serviço (US) não era capaz de prover todas as atividades desenvolvidas nos hospitais de ensino. Quando o MEC e o MPAS propuseram um novo “Convênio padrão universitário”, a partir de 1974, a resistência foi muito grande. Além da memória dos constantes atrasos nos pagamentos do INPS, não resolvidos com criação do INAMPS, em 1977, havia o risco de redução das já insuficientes receitas65.

O Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) foi criado em 1974 e, na esteira da sua concepção, foi feito um acordo com o MEC para a proposição do novo “Convênio padrão universitário” que deveria substituir os antigos convênios baseados nas USs. Em 1977, vinculado ao MPAS, criou-se o SINPAS, Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, no qual se reuniam o INPS e o INAMPS, o primeiro responsável pela previdência do trabalhador e o segundo pela assistência médica. Na avaliação dos técnicos dos dois ministérios, através do INPS e, a partir de 1977, do INAMPS, os hospitais realizavam exames, cirurgias e procedimentos médicos desnecessários, ministravam medicamentos inferiores aos prescritos e, no caso dos hospitais de ensino, o atendimento médico era muitas vezes feito por estudantes. O novo convênio, chamado de global, seria baseado em “altas hospitalares” e recebeu parecer positivo da ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica), em 1974:

“Destacamos, na minuta do convênio padrão, como pontos inti-mamente ligados à filosofia da ABEM: a.) integração do hospital de ensino à rede regional de saúde; b.) ênfase ao atendimento am-bulatorial e seguimento dos pacientes; c.) necessidade de unida-des de medicina preventiva, saúde mental e sistema de avaliação contínua. Referência especial deve ser feita ao regime de subsídio a ser prestado pela previdência. Determinado em função de altas hospitalares e fixado em termos de múltiplos de salário mínimo, importante medida de combate à mercantilização da medicina e modelo aplicável a outros convênios semelhantes. [...]”66

Mas não era assim que pensavam os médicos:

“[...] a SPDM estudou o convênio global, mas a avaliação feita mos-trou que o nível de pagamentos efetuados é carente e pouco viável.

65 Cf. para o HCPA: Ata da 44° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 05/09/1978, fl. 02, Arquivo HCPA; cf. para o HSP: Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 28/05/1979, fl. 23f e v, 24f, Arquivo SPDM.

66 ABEM, Boletim,n.° 50, quarto trimestre de 1974, Arquivo ABEM. (Grifo meu).

Page 132: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

132

Salienta que talvez esta semana a Sociedade consiga alguma respos-ta junto ao Ministro da Previdência e Assistência Social [...].”67

De fato, as dificuldades de financiamento do HSP se mantiveram e logo se fizeram notar nos balanços anuais e nos debates tanto do HSP quanto do HCPA. Difícil é ajuizar o quanto a diminuição dessas receitas possa estar relacionada à dificuldade de se lançarem procedimentos não realizados com o novo modelo de subsídio, considerando que os gastos com saúde no orçamento da União foram sempre instáveis, insuficientes e em escala decrescente entre 1960 e 198068. A Escola assinou o novo convênio padrão em 198169, o HCPA resistiu até 198470. Em um primeiro momento, no caso do HSP, o antigo convênio baseado em USs conviveu com o novo, mas o faturamento dos dois hospitais citados continuava aquém dos custos dos serviços prestados, segundo relatos dos seus conselhos administrativos71, fato que comprometia ainda mais o passivo que já administravam. A partir de 198472 observam-se apenas os lançamentos referentes ao novo Convênio padrão universitário no HSP. Aumentaram as denúncias de subfaturamento e atrasos contra o INAMPS no HCPA73 e no HSP. As glosas promovidas pelo INAMPS em função das acusações de fraudes, por sua vez, também aumentaram nos dois hospitais.

A dissolução do Conselho AdministrAtiVo dA spdm: solução pArA As Crises CíCliCAs?

Os atrasos nos pagamentos do INPS/INAMPS, nesses anos 70, além de os valores acordados serem inferiores às operações realizadas e das dificuldades decorrentes do convênio MEC/EPM/SPDM, acumularam-se no final da década. O ano de 1979 foi de crise e greves no âmbito do complexo. A possibilidade de o Hospital suspender os atendimentos já no mês de março foi discutida em reunião da congregação da EPM, na qual a diretoria da SPDM comunicava um déficit operacional de três milhões de cruzeiros mensais nas contas do Hospital. A Escola vinha se movimentando para aumentar as suas dotações junto ao MEC, assim como para conseguir verbas

67 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 10/10/1979, fl. 26f, Arquivo SPDM. (Grifo meu).

68 CAMPOS, Gastão W de S. Planejamento sem normas. São Paulo: HUCITEC, 1989; BRAGA & PAULA, Saúde e previdência: estudos de política social. São Paulo: Cebes/HUCITEC, 1981; BUSS, Paulo M. Ministério da Saúde e saúde coletiva. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ, 1976.

69 Contabilidade Hospital São Paulo, Livro 1603, Arquivo SPDM.70 Ata da 67° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 24/04/1984, fl. 02,

Arquivo HCPA.71 Idem, fls. 4 a 6. Para o HSP cf.: Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o

Desenvolvimento da Medicina, 18/01/1984, fls. 29v e 30f, Arquivo SPDM.72 Contabilidade Hospital São Paulo, Livro 1606, Arquivo SPDM.73 Ata da 69° reunião do Conselho Diretor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 29/06/1984, fl. 02,

Arquivo HCPA.

Page 133: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

133

suplementares que pudessem complementar o convênio para os leitos-ensino, mas os resultados eram sempre inferiores às necessidades e a crise levou à formação de uma “Comissão Permanente” para avaliar possíveis soluções para a crise.74 Caberia à Comissão estudar a “viabilidade da manutenção de pacientes particulares”75 no Hospital e os fundos especiais das disciplinas no que diz respeito aos honorários médicos. No Hospital movimentavam-se funcionários públicos da folha da Escola e funcionários celetistas da folha da SPDM, esses últimos constituindo a grande maioria nesse momento. Entre os médicos havia aqueles do quadro funcional de professores da Escola e aqueles contratados pelo Hospital. Sendo as enfermarias da responsabilidade das disciplinas, cabia a elas gerir o citado fundo que decidia sobre os honorários médicos. Na situação de crise em que o Hospital se encontrava, sequer os médicos da folha da Escola percebiam boa remuneração, já que eram funcionários em dedicação parcial que completavam seus rendimentos com a sua produtividade no Hospital, pelo menos em tese... Como destacou o parecer da ABEM citado acima, o tratamento do paciente não se resume à realização do procedimento médico ensinado pelo professor. Os trabalhos da Comissão, no entanto, não conseguiram evitar a greve iniciada pelos funcionários e médicos residentes no dia 23 de abril. No dia 24 de abril, a congregação da Escola declarou-se em “sessão permanente” para deliberar acerca das atividades didáticas desenvolvidas no Hospital.

Em 1978, os residentes já haviam feito uma greve, de porte menor, reivindicando cinco salários mínimos como menor valor para as suas bolsas. Também os funcionários do Hospital participaram dessa greve por melhores salários. Tratou-se de um movimento organizado pelos 141 médicos residentes76, que se espalhou entre os funcionários e parte dos alunos, e que foi resolvido no âmbito do MEC77, mas os residentes não conseguiram os níveis salariais propostos.78 A suspensão do movimento não diminuiria a tensão. Essa nova greve seria mais longa. Embora de novo capitaneada por residentes e funcionários, teve apoio do Centro Acadêmico Pereira Barreto (CAPB) e acabaria por envolver todos os setores da comunidade no debate deflagrado sobre a “deficiência didática e assistencial” 79 que, para os grevistas, era causa da greve, mas para uma grande parte dos professores

74 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 12, 08/03/1979, fl. 18v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP.

75 Ibidem.76 Greve atinge toda a Paulista de Medicina. Folha de S. Paulo, 09/06/1978, Arquivo Banco de Dados

Folha.77 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 11, 14/06/1978, fl. 159, Arquivo da Reitoria

da UNIFESP. Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 28/05/1979, fl. 26f, Arquivo SPDM.

78 MEC precisaria dois meses para obter suplementação. Folha de S. Paulo, 15/06/1978, Arquivo Banco de Dados Folha.

79 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 12, 24/04/1979, fl. 20v, Arquivo da Reitoria da UNIFESP.

Page 134: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

134

congregados era consequência dela. A congregação da Escola decidiu manter as atividades de ensino e atendimento no Hospital, dentro dos constrangimentos impostos pela situação, apesar da greve. Segundo relato do presidente da SPDM à época, Horácio Kneese de Mello, o Hospital tinha 100 doentes internados em 27 de abril de 1979, os serviços funcionavam com alguma razoabilidade com o apoio das enfermeiras que não aderiram à greve, os ambulatórios haviam sido fechados e o PS funcionava abaixo da sua capacidade.80 Diante desse quadro, as atividades de ensino chegaram a ficar completamente suspensas no início de maio. A situação do Hospital se normalizaria na primeira quinzena de Maio, mas, como em 1978, a suspensão do movimento não diminuía as tensões porque os resultados das conquistas eram sempre inferiores aos esperados pelos grevistas. Dado que o Hospital mantinha-se funcionando com grande déficit operacional, isso se refletia nos níveis salariais e nos atrasos de pagamentos dos funcionários.

O problema dos débitos do INAMPS com o Hospital parecia não ter solução; a Escola e a SPDM reivindicavam, junto com outras instituições federais de ensino, uma reformulação do convênio padrão INAMPS/Hospitais de ensino “com o objetivo de dar aos hospitais de ensino uma receita que lhes”81 garantisse melhor equilíbrio econômico. No mesmo sentido, a Escola advogava junto à União melhor dotação para o convênio EPM/HSP.82 As decisões da congregação, endossadas pelas assembleias da SPDM, eram enfáticas e visavam racionalizar e aumentar a produtividade interna, ao mesmo tempo em que se mantinham negociações com os poderes públicos:

“[...] para que se obtenha maior aproveitamento dos atuais leitos de ensino, que as comissões existentes para este fim, deem maior ênfase aos seguintes itens: a) maior rotatividade dos leitos e para tanto solicitar a colaboração dos chefes de disciplinas, docentes, residentes e internos, em relação a este objetivo; b) que continuem as gestões junto ao MEC e INAMPS, no sentido de tomar os con-vênios como Hospital São Paulo capazes de resolver crises cícli-cas deste hospital.”83

Mas os resultados de tantas reuniões, tratativas e promessas não se notavam. As dificuldades em garantir melhor financiamento para as atividades do Hospital agravaram-se nos dois últimos meses de 1979:

80 Idem, fl.22v.81 Atas da Congregação da Escola Paulista de Medicina, Livro 12, 06/06/1979, fl. 27f e v, Arquivo da

Reitoria da UNIFESP.82 Idem, fl. 27v.83 Ibidem. Cf. também: Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento

da Medicina, 28/05/1979, fl. 26f, Arquivo SPDM. (Grifo meu).

Page 135: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

135

“De acordo com a convocação e seus respectivos anexos onde é relatada a situação financeira do HSP, o Senhor Presidente (Jair Guimarães) esclarece que como resultado das gestões feitas, o MEC nos enviou um RETEMEC, comunicando haver conseguido junto ao Ministério do Planejamento uma subvenção da ordem de 22 milhões de cruzeiros e há cerca de um mês também nos enviou uma pequena subvenção de 3 milhões de cruzeiros, totalizando 25 milhões de cruzeiros. [...] Apesar dos esforços a situação finan-ceira do Hospital vem se agravando progressivamente, tornando--se insustentável. Foram feitos várias promessas de atendimento às nossas solicitações e pudemos então ir levando o hospital até a situação atual. Como tais promessas não se concretizaram, até o momento não temos condições de manter o Hospital em funciona-mento uma vez que até a própria segurança do doente comece a ser prejudicada pela falta de material e medicamentos. Ressalta ainda e principalmente a falta de recursos para pagamento do pessoal.”84

A reunião da congregação na qual o então diretor da Escola, Jair Guimarães (1918-2008), apresentou o relatório acima se transformou em assembleia da SPDM, em “reunião conjunta” para avaliar problemas do Hospital que seriam de responsabilidade conjunta das duas instituições. O Conselho Deliberativo da SPDM havia decidido desativar o Hospital em função da sua “completa inviabilidade financeira”.85 Tal decisão, secundada pela congregação, por um lado comprometeu os poderes públicos nas suas três esferas na liberação de recursos emergenciais.86 Por outro lado, no entanto, a desativação implicou no acúmulo das dívidas já que as receitas provinham da produtividade do Hospital. Desativado, o Hospital acumulou débitos da ordem de Cr$ 500.000,00 diários87, fato que provocava acalorados debates nas duas metades da sociedade civil: manter a desativação para garantir um efetivo financiamento para o Hospital junto ao MEC, ou retomar as atividades para garantir a produtividade e as rendas próprias do Hospital, mesmo que inferiores ao desejado e necessário? No fundo, a comunidade do complexo EPM/SPDM preocupava-se com as crises cíclicas que marcavam a sua trajetória, o velho problema do subfinanciamento aliado à irregularidade das subvenções. As verbas excepcionais liberadas permitiram saldar parte das dívidas e compromissos com os proventos atrasados e o 13° salário dos funcionários do Hospital, mas a sua reativação exigia a resolução do déficit crônico operacional.

Uma proposta aventada nessa época e viabilizada graças à colaboração do professor José Carlos Reys (1932-...) junto ao então ministro Antônio

84 Atas da Congregação, Livro 12, 20/11/1979, fl. 52-3, Arquivo Reitoria UNIFESP.85 Idem, fl. 53-55.86 Atas da Congregação, Livro 12, 10/12/1979, fl. 58, Arquivo Reitoria UNIFESP. Foram Cr$ 75 milhões

do governo federal e Cr$ 20 milhões do governo do estado. 87 Atas da Congregação, Livro 12, 28/12/1979, fl. 60, Arquivo Reitoria UNIFESP.

Page 136: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

136

Delfim Neto (1928-...), foi incorporar a folha de pagamento do Hospital à Escola, desonerando parte da receita.88 O processo já havia ocorrido, parcialmente, quando a Escola foi federalizada em 1956 e parte dos funcionários do Hospital foi transferida para a União. Embora lenta, a federalização dos funcionários aconteceu entre 1981 e 198489 e significou algum alívio nas contas do Hospital. Em 1980, a SPDM mantinha em sua folha 1.339 funcionários, número que caiu para 703 em 1981, 368 em 1982, 385 em 1983 e 124 em 1984, conforme se pode observar na tabela abaixo90. A SPDM só voltaria a aumentar significativamente a sua folha em 1990, reflexos do enfraquecimento do Estado como condutor de políticas públicas, assunto que será objeto de estudo em outro texto.

Ano N° Func. Bruto Líquido1971 956 418856,76 344607,671972 982 529542,16 434052,721973 949 619738,71 536954,221974 945 861981,47 695779,871975 1213 1362756,86 1173267,421976 1423 2472305,46 21179631977 1460 4478159,43 35208381978 1706 6163726,04 N/C1979 1624 13533798,51 73339651980 1339 25857309,02 20450496,31981 703 20451151,16 1982 368 22796200,5 18124307,211983 385 56591438,43 44626883,151984 124 71138341,76 55508094,61985 239004339,8 182452503,71986 124 330120,8 257612,981987 153 1749393,59 1404038,661988 173 52219761,73 36264673,931989 235 1286079,42 916854,211990 818 32941300,25 23587289,49

Nos primeiros dias de 1980, o Hospital retomou gradativamente as suas atividades, mas não sem que se observassem as antigas tensões sempre

88 Atas da Congregação, Livro 12, 20/11/1979, fl. 58, Arquivo Reitoria UNIFESP.89 Portaria n° 000249, de 25/02/1081”, Diário Oficial da União (26/02/1981); Exposição de motivos n°

249, de 22/09/1981, Diário Oficial da União (08/10/1981); Exposição de Motivos n° 89, de 11/07/1983, Diário Oficial da União (15/07/1983).

90 Caixas 4694,4702, 4698, 4705, 4700, 4704, 4707, 4708,4690, 4682, 4692, 4709, 4714, RH SPDM, Arquivo SPDM. As partes em branco na tabela justificam-se pela ausência de informação nos documentos pesquisados.

Page 137: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

137

latentes. A matéria do Jornal da Tarde de 5 de janeiro de 1980, embora longa, traduz os problemas enfrentados pela EPM/SPDM na década de 70:

“Depois de dois meses quase que totalmente paralisado, com ape-nas 10 leitos ocupados, o Hospital São Paulo volta, aos poucos, a ser reativado. E isso foi possível porque o Ministério da Educação e o Governo do Estado entraram com uma verba de 50 milhões de cruzeiros. Mas, segundo Horácio Kneese Melo, presidente da So-ciedade Paulista pelo Desenvolvimento da Medicina, entidade que mantém o Hospital, esse dinheiro foi suficiente apenas para pagar os fornecedores de material. Ele cita como exemplo de despesas a folha de pagamento do seu pessoal, que em dezembro chegou a Cr$. 28.835.000,00.Por se tratar de um hospital-escola o MEC sempre prevê em seu orçamento uma verba para o Hospital São Paulo. Em 1979 a ver-ba orçamentária que o Ministério da Educação havia destinado ao Hospital São Paulo foi de seis milhões de cruzeiros, ou seja, Cr$ 500 mil por mês. Essa quantia é gasta mensalmente só com cha-pas de raios X. Com a complementação de verba feita de forma extraorçamentária, o MEC pagou ao HSP, no ano passado, Cr$ 100 milhões. O problema é que, por não estar no orçamento, esse dinheiro deve ser pedido – ou chorado, como diz Horácio – men-salmente pelo Hospital.Para este ano, o MEC previu no seu orçamento para o Hospital uma verba de Cr$ 9 milhões, quando o pedido da Sociedade foi de Cr$ 105 milhões. Com os reajustas salariais e o aumento no preço dos medicamentos, as duas quantias já estão totalmente desatuali-zadas. Calcula-se que, quando voltar a funcionar completamente, o Hospital estará custando cerca de Cr$ 1 milhão por dia.A prefeitura do Município de São Paulo, por exemplo, paga Cr$ 5 milhões por ano para ajudar a manter 38 leitos desse hospital. Outra coisa que chama a atenção – dizem os diretores – é o fato de o Ministério da Saúde não colaborar com a manutenção desse hospital, sob a alegação de que é de sua competência apenas a pre-venção de doenças.”91

Novos números, velhos problemas. Entre a era Vargas, o curto verão da democracia nos anos 50 e a ditadura militar, em meio ao desenvolvimento da medicina previdenciária e às dificuldades da saúde coletiva e da medicina preventiva, o estabelecimento de regras claras para o financiamento da

91 O Hospital São Paulo vai sendo reativado – mas ainda não é o fim da crise, dizem os diretores. Falta dinheiro do INAMPS, do MEC... Jornal da Tarde, 05/01/1980, Arquivo O Estado de S. Paulo.

Page 138: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

138

assistência à saúde realizada em hospitais de ensino não se resolveu. E não se tratava do fato de ser o HSP um hospital pertencente a uma empresa privada de caráter filantrópico, vinculado à EPM por Lei federal e convênios renovados anualmente. Os hospitais de administração direta ou o HCPA, uma empresa pública de direito privado criada por Lei em 197092, também enfrentavam os mesmos problemas. Destaque-se, porém, a maior facilidade do Clínicas de Porto Alegre em conseguir complementações para suas dotações anuais em função de compor a estrutura do MEC.

A experiência de reunião conjunta das duas metades partidas em 1956 para o enfrentamento das crises de 1979 certamente inspirou o professor Jair Guimarães na proposta que fez aos congregados da Escola e aos sócios da SPDM em 1980: promover a vinculação progressiva do Hospital à Escola a partir da reformulação dos estatutos da sociedade civil.93 Assim, partida a sociedade civil em 1956, falhadas as tentativas de reuni-la por meio da federalização do Hospital, o professor Jair pensou em poder realizar, na prática, aquilo que os esforços políticos não conseguiram: integrar as direções das duas metades da sociedade original, extinguindo-se a direção autônoma da SPDM. As medidas tomadas para viabilizar a proposta não seriam de pouca monta: as licitações todas ficariam sob controle e gestão da EPM; a contabilidade do HSP seria de responsabilidade do Diretor do Departamento de Contabilidade e Finanças da Escola; o Departamento de Engenharia da Escola cuidaria dos procedimentos relativos a obras e reformas no Hospital; os programas do Hospital, “folhas de pagamento de pessoal, controle de estoque do almoxarifado e Farmácia, faturamento das contas do INAMPS”, seriam incorporados ao Departamento de Processamento de Dados da Escola.94 Se até esse momento havia duas direções em busca de recursos para o financiamento do Hospital, se a SPDM tinha autonomia para decidir sobre as destinações das verbas auferidas nos contratos e convênios que ela assinava junto ao INAMPS, ou aos órgãos públicos estaduais e municipais, se ela podia negar-se a escrever escrituras de doação de patrimônio reservando-se o direito de esperar pela resolução do problema do passivo, se ela podia decidir sobre pagamento e reajustes de salário do seu pessoal, sobre contratações e empréstimos, a partir da vinculação proposta por Jair Guimarães tais atitudes não se verificaram mais. Poder-se-ia argumentar que, sendo os sócios da SPDM e os congregados da Escola quase o mesmo grupo de pessoas, não houve grande alteração no âmbito mesmo dos “tomadores de decisão”. Ocorre que há grupos que se formam mais ligados ao Hospital ou à Escola (nesse caso, os professores das

92 Lei 5904 de 2 de setembro de 1970. Acessada em março de 2011 e disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=120096&tipoDocumento=LEI&tipoTexto=PUB

93 Ata da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 07/01/1980, fl. 30v, Arquivo SPDM. GUIMARÃES, Jair X. Memorial: Hospital São Paulo (26/11/1982), Arquivo CEHFI/UNIFESP.

94 GUIMARÃES, Jair X., op. cit.

Page 139: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

139

disciplinas básicas são bastante emblemáticos), e se esse fato gerava tensões por um lado, por outro lado garantia alguma autonomia para o Hospital em relação à Escola. Mesmo que as enfermarias fossem controladas pelas disciplinas da Escola, trabalhavam nelas funcionários que não eram da Escola, suas práticas cotidianas eram outras e estavam mais relatadas ao sistema de saúde como um todo. O novo formato de convivência das duas metades da sociedade civil original evidencia a ideia que apresento aqui:

“De acordo com o Estatuto vigente da Sociedade, a reforma do Estatuto propiciou a criação de um Conselho de Administração e extinguiu a Diretoria Executiva da SPDM. Este Conselho de Ad-ministração é constituído pelo Diretor da Escola Paulista de Me-dicina, como Presidente do Conselho; o Vice-Presidente da Escola Paulista de Medicina, como vice-presidente, os chefes dos Depar-tamentos que atuam no Hospital São Paulo [...] e também todos os presidentes de todas as entidades da comunidade epemista. [...] O sr. Presidente [Jair Guimarães] diz que esta reforma foi inspirada exatamente em dois propósitos: o primeiro é conseguir, na prática, a vinculação definitiva do Hospital São Paulo à Escola Paulista de Medicina; o segundo seria propiciar aos representantes da co-munidade epemista a condição de participar da vida do Hospital São Paulo, tanto quanto participam da vida da Escola Paulista de Medicina.”95

Assim, se antes da fusão promovida pelo professor Jair Guimarães, a SPDM tinha autonomia para realizar injunções junto aos poderes públicos para assinar convênios e administrar a sua consecução, 80 a Escola, nos anos 1980, assumiu o controle dessas ações, transformando o seu Diretor, depois Reitor quando a EPM se tornou Universidade Federal em 1994, em presidente da SPDM. Cabe indagar: Qual a previsibilidade jurídica para tal atitude? Qual norma poderia ancorar essa experiência? É esse um dos desafios desta pesquisa que segue em andamento: buscar as dissonâncias, aproximações e possibilidades da experiência em relação às normas pactuadas.

Mas. nesses anos 1970, esmiuçadas as contas, perscrutadas as normas e a experiência de gestão pública de um hospital privado, o que se destaca é o profundo esgarçamento da norma pactuada quando da federalização da EPM, em 1956. Do ponto de vista da operacionalização cotidiana do ensino, assistência à saúde e pesquisa no âmbito do Hospital, os números que a documentação estudada apresenta sugerem que a imbricação entre público e

95 Atas da reunião do Conselho de Administração da Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, 21/10/1981, p. 1v., Arquivo SPDM. (Grifo meu).

Page 140: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

140

privado aqui sumariada na experiência do complexo HSP/SPDM/EPM, além de tipificar escolhas políticas na constituição do sistema de atendimento à saúde no Brasil, tipifica, também, o crônico problema de financiamento da saúde pública que é resultado dessas mesmas escolhas políticas.

Page 141: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

141

Medicina legal e perícias médicas em processos criminais.constituição de saberes e aplicação de procedimentos médico-legais.campo, personagens e práticas periciais: São Paulo e bragança.(1890-1940)1

Maria Gabriela S. M. C. Marinho

Fernando Salla

instituições, sAberes e personAgens: AproximAções

O artigo seleciona e analisa as imbricações de alguns membros das elites locais na constituição da Medicina Legal como especialidade médica2 em São Paulo e toma como dimensão relevante desse processo a instalação da cadeira de Medicina Legal em 1918, na então recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Ao mesmo tempo, procura analisar como se organizava ou se pleiteava, no campo jurídico, o uso de práticas periciais legitimadas pelo saber médico-legal em um contexto no qual a institucionalização da especialidade se encontrava em processo de afirmação. As análises fundamentam-se na documentação coletada em duas fontes distintas: de um lado, os processos oriundos do sistema de justiça criminal do Fundo do Poder Judiciário da Comarca de Bragança; de outro,

1 MARINHO, Maria Gabriela S.M.C e SALLA, Fernando. Medicina Legal e perícias médicas em processos criminais. Constituição de saberes e aplicação de procedimentos médico-legais. Campo, personagens e práticas periciais: São Paulo e Bragança (1890-1940), in: Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom

2 A disciplina de Medicina Legal compunha o currículo do curso de Direito e foi ministrada, dentre outros docentes, por Alcântara Machado e pelo médico Antônio Almeida Prado.

Page 142: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

142

pelo material identificado no acervo do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)3.

A periodização proposta, de 1890 a 1940, articula-se a um conjunto de elementos entrelaçados. Além de recortar o período de vigência do primeiro Código Penal Republicano4, considera também que a Medicina Legal como especialidade médica obteve plena institucionalização na década de 1940, em São Paulo, a partir do funcionamento efetivo da disciplina e de entidades correlatas. A periodização recobre também a trajetória de Flamínio Favero, personagem-chave no processo de institucionalização da especialidade no interior da Faculdade de Medicina de São Paulo.

Diplomado pela primeira turma em 1919, logo depois de formado Flamínio permaneceu vinculado à escola, inicialmente como preparador, na época o primeiro grau da carreira docente. Em seguida, mediante concurso, foi nomeado professor substituto5. Em 1923, com a morte de Oscar Freire, assumiu a vaga de catedrático, posição que ocupou por 32 anos, até 1955, quando foi jubilado. Em 1923, a Medicina Legal foi desmembrada da Cadeira de Higiene. Em seguida, o ensino de Higiene desvinculou-se da Faculdade de Medicina para se tornar uma unidade autônoma com a criação do Instituto de Higiene, em 19256. Mais tarde, em 1931, Favero organizou o “Instituto Oscar Freire” (IOF) que reuniu as cadeiras de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho.7

3 As informações das perícias médicas resultam de coleta realizada no projeto de pesquisa A modernização do sistema de justiça criminal da região de Bragança Paulista (1890-1940), financiado pelo CNPq-USF (Processo: CNPq 475915/2006-2). A documentação, proveniente do Fundo do Arquivo do Poder Judiciário da Comarca de Bragança, encontra-se depositado no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História e História da Educação da Universidade São Francisco (CDAPH-USF), localizado no campus de Bragança Paulista. No Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), encontra-se documentação diversificada proveniente de arquivos pessoais e institucionais do campo médico.

4 Sobre o Código Penal de 1890, consultar ALVAREZ, SALLA e SOUZA (2003).5 Cf. Acervo Museu Histórico (FMUSP)6 Conferir: FARIA (1994 e 2003), ROCHA (2003) e CAMPOS (2002).7 Flamínio Favero assumiu várias funções de relevo no campo médico. Na Faculdade de Medicina, foi vice-

diretor em 1930 e diretor em 1937 e 1938. Foi também presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, quando realizou a Primeira Semana Paulista de Medicina Legal. Subsequentemente, tornou-se presidente da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, diretor da Penitenciária do Estado e membro do Conselho Penitenciário. Autor do clássico Tratado de Medicina Legal, em três volumes, cujas edições se sucederam entre 1938, data da primeira edição, até 1980 (11ª edição), quando ainda era utilizado por alunos de Medicina e de Direito, além de médicos e advogados em suas práticas profissionais. Orientou cerca de 200 teses e formou professores na área da Medicina Legal. Ainda assim, o culto a Oscar Freire prevaleceu, mesmo o médico baiano tendo exercido sua cátedra em São Paulo por apenas cinco anos. Para detalhes da trajetória de Flamínio Favero, conferir o acervo do Museu Histórico-FMUSP.

Page 143: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

143

A formAção do CAmpo: pArâmetros de Análise e CirCulAção dos sAberes

A institucionalização da disciplina e do campo da Medicina Legal é compreendia aqui a partir de dois parâmetros de análise. Como especialidade médica, em seu viés acadêmico e científico, toma-se como referência a instalação da Cadeira de Medicina Legal, em 1918. O segundo parâmetro desloca a análise para a consolidação do campo científico em sua expressão institucional, ou seja, pela criação de associações e sociedades científicas, pela edição de publicações específicas e realização de eventos na área.

Nessa perspectiva, verifica-se, ao longo da década de 1920, uma intensa atividade organizacional. A criação de associações científicas, publicações especializadas e a realização de eventos dedicados ao tema tornaram-se frequentes no período. Em 1921, por exemplo, professores da Faculdade de Direito e da Faculdade de Medicina instalaram a Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo. Subsequentemente, criaram a revista Archivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, cujo primeiro número circulou entre 1922 e 1924. Mais tarde, em 1929, a publicação ampliou seu espectro institucional e editorial. Sob a denominação de Revista de Criminologia e Medicina Legal, incorporou novas seções e novos colaboradores. Ampliou-se também o número de entidades responsáveis por sua edição, entre elas, a Penitenciária do Estado, órgão que se tornou coeditor da publicação.

Contudo, se a consolidação de um campo institucional propício à produção, reprodução e disseminação de conhecimentos na área médico-legal pode ser considerada evidente na capital paulista na década de 1920, o quadro se apresenta distinto em relação às práticas periciais realizadas no interior do Estado de São Paulo. No caso da documentação coletada no Fundo do Poder Judiciário de Bragança, encontram-se registros da atuação de peritos locais e das condições de realização das respectivas perícias. A análise de oito processos criminais contendo exames de corpo de delito, relativos a casos de defloramento, aborto, tentativa de suicídio e lesões corporais,8 aponta para condições precárias de atuação dos peritos locais, seja pela inexistência de espaços ou qualificação adequados, seja pela

8 Relação dos processos examinados:1. Processo Crime 1899: Defloramento (Delfim Bueno de Camargo: réu, Ana Maria de Jesus: ofendida)2. Processo Criminal 1902: Defloramento (Antônio Manoel Gonçalves Junior: réu, Fausta Maria da

Conceição: vítima)3. Sumário de Culpa 1903: Defloramento (Benedito Salgado: réu, Sebastiana Felisbina Moreira: vítima)4. Sumário de Culpa 1907: Tentativa de homicídio (Maria Joana, ré)5. Processo Crime 1912: Defloramento (João Evangelista: réu)6. Sumário de Culpa 1915 Ferimento (Major Francisco de Assis Gonçalves: réu)7. Inquérito Policial 1915: Abortamento (Francisco de Assis Durvalim: indiciado, Aurora Maria de

Jesus: ofendida)8. Inquérito Policial 1937: Tentativa de Suicídio (Claro Franco e Ernesto de Oliveira: vítimas)

Page 144: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

144

irrelevância dos laudos no julgamento dos processos ou no andamento dos inquéritos.

Um dos elementos mais evidentes dessa precariedade refere-se ao perfil dos peritos designados para a realização das perícias, procedentes, em sua grande maioria, de ocupações distintas ou apenas correlatas ao campo específico da medicina, tais como “coronéis” ou farmacêuticos. Mais tarde, médicos de formação clínica passariam a ser convocados para a participação ou realização das perícias.

Apesar das condições inadequadas para o exercício pericial, há uma questão de fundo relevante: a introdução de dispositivos de autoridade e racionalidade legitimados pelo saber médico-científico havia encontrado espaço no ambiente social de Bragança no início do século XX9. Em 1906, por exemplo, o delegado de Polícia, Euclides da Silva, dirigiu ofício à Câmara de Vereadores no qual solicitava a instalação na cidade de um gabinete antropométrico, conforme publicação do jornal A Notícia (apud, Bueno, 2007, p. 57), cujo trecho encontra-se transcrito a seguir.

“Na Polícia, Gabinete antropometrico

Um officio

No louvável intento de dotar nossa cidade de uma delegacia de po-lícia que, mais ou menos, satisfaça às complexas exigências duma repartição, o sr. Dr. Euclides Silva, como delegado, dirigiu a câma-ra municipal desta cidade um officio solicitando um auxilio para a fundação de um gabinete antropometrico.

Esta medida fará, si for levada a effeito, que a nossa cidade, ex-ceptuando a capital, seja a única do Estado dotada de tal melho-ramento...

“Delegacia de Policia de Bragança, em 12 de abril de 1906.

Illustres cidadãos,

Desejando, na medida de minhas forças, contribuir como Delegado de Policia para o engrandecimento dessa localidade, já tao pros-pera de vida graças aos esforços ingentes de honrados cidadãos

9 Sobre o sistema de Justiça Criminal de Bragança, ver MARINHO e SALLA (2012). As versões eletrônicas deste artigo podem ser obtidas em dois endereços: https://ufabc.academia.edu/MariaGabrielaMarinho ouhttp://www2.fm.usp.br/gdc/docs/museu_78_vol_1.pdf

Page 145: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

145

sobretudo de vós, resolvi endereçar-vos o presente officio, comu-nicando que tenho o desejo de installar, na repartiçao de Policia dessa cidade, um pequeno gabinete antropometrico. As vantagens que advêm de tal melhoramento,não só para o serviço de identifi-cação de criminosos, como também para as notações chromaticas e as observações antropometricas sobre os vagabundos e desordei-ros que forem presos, são de muito alcance assas consideraveis; não contando com o auxilio que prestara as pessoas que desejarem passaportes para se ausentarem, as quaes, com sua respectiva fixas, poderão ser reconhecidas em qualquer parte do mundo.

Accresce que, si o meu plano for coroado de êxito, como espero, ficará esta cidade como a primeira que, no Estado de São Paulo, afora a capital, ficará possuindo o gabinete de antropometria [...]

O Delegado de PoliciaDr. Euclides Silva”

(A Noticia, 21/04/1906, ano I, nº 53, p.1)

A mediCinA legAl Como espeCiAlidAde médiCA: disputAs nA formAção do CAmpo

Como assinalado anteriormente, a criação da Cadeira de Medicina Legal, em 1918, compôs a última etapa de implantação do curso médico da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. O processo de instalação da escola, assim como a disputa pelas nomeações e modelos científicos ou organizacionais apontam para um complexo arranjo político e institucional para o qual concorriam interesses particulares, diferentes posições sociais e de prestígio e forças, por vezes, muito maiores, como foi o caso da presença da Fundação Rockefeller em São Paulo, em meados da década de 1910.

A instalação da Cadeira de Medicina Legal ocorreu em conjunto com a Cadeira de Higiene, para a qual haviam sido destinados os primeiros recursos provenientes dos acordos assinados com a Fundação Rockefeller,10 em 1916. A sua instalação no curso de medicina resultava de um longo e penoso processo de afirmação e busca de diferenciação no interior do curso jurídico que, em São Paulo, havia sido criado em 1827. Na estrutura

10 Para detalhes do acordo, consultar MARINHO (2003) e MARINHO e MOTA (2013) in: http://www2.fm.usp.br/gdc/docs/museu_80_vol_3.pdf . A edição on line pode ser consultada também no seguinte endereço: https://ufabc.academia.edu/MariaGabrielaMarinho

Page 146: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

146

do curso de Direito, a disciplina passou por várias denominações, entre as quais Medicina Pública, e esteve sujeita às diferentes mudanças curriculares promovidas durante o século XIX.

Por sua vez, o primeiro curso de medicina custeado pelo poder público estadual foi criado no final de 1912 e as primeiras aulas ocorreram no ano seguinte. O processo de instalação do primeiro curso médico bancado pelo poder público era resultado da recomposição política promovida pela recondução de Rodrigues Alves ao governo de São Paulo. A primeira legislação em torno da criação do ensino médico oficial no Estado havia sido promulgada por Américo Brasiliense em 1891, em meio a um conturbado cenário político que levou à sua deposição cerca de um mês depois da assinatura do decreto11. Nesse sentido, o esforço de acomodação das forças políticas, ou de deslocamento dos indesejáveis, será marcante na construção da escola médica em São Paulo.

Instalada por etapas a partir de 1913, o funcionamento provisório da escola sucedia-se em locais adaptados: inicialmente, as aulas teóricas eram promovidas na Escola de Comércio Alvares Penteado, no Largo São Francisco; posteriormente, na Escola Politécnica e, por ultimo, no casarão de número 45 da rua Brigadeiro Tobias, no centro da cidade de São Paulo. O ensino clínico realizado por cerca de três décadas na Santa Casa de Misericórdia reforçava, na crônica desses tempos iniciais, o registro direto e indireto da precariedade do curso12. Contudo, ao quadro de instabilidade dos anos iniciais, seriam agregadas novas circunstâncias que contribuiriam para redefinir as diretrizes da Faculdade de Medicina e da Cadeira de Medicina Legal, entre as quais, em intervalo de apenas três anos, as mortes de Arnaldo Vieira de Carvalho, em 1920, e de Oscar Freire, em 1923.

Imersos numa conjuntura social e política em que as relações individuais e o prestígio pessoal assumiam um peso preponderante na construção das instituições e dos espaços de poder, ambos haviam sido escolhas muito bem demarcadas no projeto de instalação da Faculdade de Medicina. Arnaldo, por exemplo, provinha da cidade de Campinas, era filho do vice-presidente da Província, José Joaquim Vieira de Carvalho, advogado e antigo diretor da Faculdade de Direito. Médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Arnaldo, desde cedo, ocupou um leque de posições proeminentes: foi diretor do Instituto Vacinogênico, da Hospedaria dos Imigrantes e da Policlínica de São Paulo. A condução ao cargo de direção da Faculdade de Medicina, portanto, cercava-se de grande legitimidade conferida por seus contemporâneos. A morte de Arnaldo em 1920, aos 54 anos, por outro lado,

11 Entre a primeira e a segunda legislação, um curso médico chegou a funcionar em condições adversas na Capital e esteve inserido na Universidade Livre de São Paulo, criada em 1911, cujas atividades foram encerradas em 1917.

12 Uma produção memorialística consagradora em torno da Faculdade de Medicina vem sendo substituída nos últimos anos por uma produção acadêmica mais crítica. Ver, por exemplo, NADAI (1987) ou MARINHO (2003), MOTA (2005) e SILVA (2003).

Page 147: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

147

produziu um culto à sua memória que, embora mitigado pelo tempo e um tanto difuso, ainda permanece nos dias atuais.

A documentação disponível aponta a indicação de Oscar Freire para a Cadeira de Medicina Legal como objeto de disputa em São Paulo, mas também resultado da escolha pessoal de Arnaldo, como de resto, aparentemente, teria ocorrido na montagem do corpo docente da Faculdade de Medicina desde 1912. Um elemento esclarecedor dos componentes pessoais presentes nos arranjos institucionais pode ser verificado pela troca de correspondência entre Arnaldo Vieira de Carvalho e Luiz Fellipe Jardim, antigo colega de turma no Rio de Janeiro, que pleiteou insistentemente a vaga de professor de Medicina Legal.

Na correspondência enviada, o timbre do papel registra: Dr. Luiz F. Jardim -

Médico Operador – Especialista em Moléstias de Senhoras – Telephone 487 São Paulo.

Como se trata de um material elucidativo, alguns trechos foram transcritos a seguir. Na primeira carta, enviada em1917, Luiz Jardim dirige-se a Arnaldo nos seguintes termos:

“S. Paulo, 7 de Fevereiro 191713

Distinto collega dr. Arnaldo Vieira de Carvalho .Saudações

Acreditando ser digno de aspirar uma cadeira de professor de me-dicina legal ou de hygiene da Faculdade deMedicina de S. Paulo, da qual o illustre collega é muito digno Director. Não venho pedir, porque lugar de professor cathedratico ou substituto não se pede, más, sim apresentar-mecandidato ao lugar de lente cathedratico ou substituto de uma das referidas matérias, para as quaes já tive occazião de inscrever-me em 1915 no concurso d’Academia de Direito de S.Paulo. Devido à uma arbitrariedade que redundou em benefício e proteção ao úni-co bacharél em sciencias jurídicas e sociaes, que havia à aquella occazião. Um simples aviso do Ministro do Interior do governo Prudente de Moraes, prohibiu a entrada no concurso de médicos. Porém, logo depois, que o bacharel foi aprovado simplesmente em concurso e nomeado lente de medicina legal e hygiene, o mes-mo ministro baixou outro aviso declarando, que d’aquella data em diante os médicos terião direito de apresentarem-se em concurso

13 O documento original manuscrito encontra-se no acervo do Museu Histórico FMUSP. Manteve-se a grafia original da época e a pontuação, conforme constante nos originais.

Page 148: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

148

para os lugares de lentes de medicina legal e hygiene das Acade-mias de Direito do Brazil.

Facto esse simplesmente edificante!

Não sei se serei digno ou não de ser escolhido pelo respeitável col-lega, para professor da Faculdade de Medicina de S. Paulo. Apre-sento-me candidato, porque além de ser paulista, e medico clinico no hospital haverá muitos annos, tenho prestado muitos serviços ao Estado, e quanto a minha habilitação e capacidade, já que não posso manifestal-a em concurso, pessoa alguma melhor do que a meu distincto collega poderá avaliar, porque o nosso conhecimen-to vem de longa data, tive a honra de diplomar-me em Medicina juntamente com o collega em 1888. Esperando uma avaliação da minha justa pretensão, agradecido subscrevo-me.

Do collega, amigo e admiradorLuiz Felippe Jardim

Rua, 15 de novembro 29”

A resposta de Arnaldo Vieira foi prontamente encaminhada. A polêmica se instalaria no ano seguinte, conforme exposto adiante.

“Em 9 de fevreiro de 1917.

Meu caro collega.

De posse de sua presada carta, onde se declara candidato a cadeira de lente de medicina legal na Faculdade que, por mal cabida con-fiança do Governo, dirijo, me apresso a responder, nenhuma objec-ção fazer a essa sua pretensão. Reconheço no velho companheiro de estudos todas as qualidades e requisitos para ser um professor brilhante e perfeito, capaz de hombrear com os mais reputados médicos legistas, levantar bem alta a reputação dos paulistas no desempenho do professorado.Executo, porém, ordens no posto de confiança em que estou e a escolha dos professores não é minha e sim do Governo. Minha intervenção como seu orientador, nestes casos, obedece sempre as injunções do desenrolar dos acontecimentos e, por isso, não posso nem devo assumir compromissos prévios na questão.

Page 149: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

149

Depende do amigo e Collega sua nomeação. Imponha-se ao Go-verno pelos títulos que possue e pelos muitos que conquistará em pesquisas scientificas de que é e será capaz até o momento de se tratar do provimento das cadeiras emquestão. E então o Governo do Estado, como sempre acontece, obedecerá às indicações da opi-nião publica e indicações da classe medica. Será para mim, creia, immenso prazer dar ao velho amigo e companheiro de estudos pos-se da cadeira de medicina legal.

Do amigo e Collega14”

No dia seguinte, Luiz Jardim responde nos seguintes termos:

“S. Paulo, 10 de Fevereiro 1917

Prezadissimo amigo e distincto collega Dr.Arnaldo Vieira de Car-valho

Penhoradissimo pela elevada e criteriosa linguagem do egrégio collega, que sempre mereceu-me toda consideração eadmiração, acabo de receber a sua gentillissima carta.Agradecendo de coração os elevados conceitos que bondosamente faz da minha humilde personalidade, aceito o seu conselho.

Apresentar-me-hei candidato ao lugar de professor demedicina le-gal da Faculdade de Medicina de S. Paulo, procurarei em occazião opportuna, reunir dados e documentos para facilitar tal aspiração. Porém, se não for escolhido e nomeado lente, jamais procederei como um despeitado, deixando de reconhecer o inquestionavel mérito e valor do meu distincto collega, cuja bella reputação de que goza, é principalmente oriunda de seu reconhecido talento e do seu brilhantismo no exercício da cirurgia e da medicina, da no-breza indiscutível do seu caracter, que por todos os homens debem respeitado e acatado.

14 Sem assinatura no documento original que foi datilografado.

Page 150: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

150

Mais de uma vez, com a devida independência e franqueza, que sempre me caracterizou, tenho-lhe defendido de mesquinhas e malcabidas censuras.Sou de opinião e serei sempre, que a Faculdade de Medicina e Cirurgia de S. Paulo, não podia ter um Director mais digno e mais abalisado, nenhuma das escolas de Medicinas do Brazil, possue um Director superior à de S.Paulo, creio poder affirmar que as es-colas de Medicina e Cirurgia estrangeiras possuirão excellentes directôres, porém jamais superiores em qualidades Moraes, em illustração e habilitação ao meu respeitável collega.

Veritas superominia.

Com todo respeito e estima subscrevo-me:

Do collega e amigo gratoLuiz Felippe Jardim

Rua 15 de Novembro, 29”

Em 1918, Oscar Freire, proveniente da Faculdade de Medicina da Bahia, discípulo de Nina Rodrigues, foi nomeado para a Cadeira de Medicina Legal e chegou a São Paulo cercado de prestígio. Diante da nomeação, Luiz Jardim dirigiu-se novamente a Arnaldo, dessa vez de modo formal, ácido e contundente:

“São Paulo, 15 de Janeiro de 191815

Exmo. Senhor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, Digno Director Faculdade de Medicina e Cirurgia de S. Paulo

Respeitosos cumprimentos. Acreditando de accordo com a noticia do Diário Popular de 12 do corrente mez já foi nomeado um me-dico da Bahia, para reger a cadeira de medicina legal da Faculdade de S. Paulo. Em carta que lhe escrevi em principios do anno de 1917, apresentei-me candidato a essa cadeira, de accordo com o direito, com a razão de ser dos factos e da justiça, sendo suplantado e despresado sem conhecer qual o motivo.

15 Ao contrário das duas cartas anteriores, essa e as demais foram datilografadas.

Page 151: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

151

Peço-lhe o favor de declarar-me quaes as causas que concorreram para que não fosse noméado professor de medicina legal da refe-rida Faculdade. Somente deante de uma explicação justa e razoa-vel não terei necessidade de explicar aos meus collegas, amigos e conterranéos, porque motivo deixei de ser nomeado para o lugar de lente de medicina, apesar contar com todos requisitos necessários; desde que a nomeação fosse feita com o direito e a justiça.

Com a estima e consideração, sou:

De Vexa. collega e admiradorLuz Fellipe Jardim”

A resposta de Arnaldo, enviada no dia seguinte, retoma os argumentos do ano anterior e transfere a responsabilidade pela nomeação para uma órbita alheia a seu âmbito de decisões:

“16 Janeiro 8

Ilmo Snr. Dr. Luiz Felippe Jardim

Respeitosos cumprimentos,

Em resposta ao favor de V.S. de 15 do corrente, me apresso em dizer que como affirmei em carta anterior, as indicações por mim feitas ao Governo obedeceram sempre a suggestao da classe medi-ca. É ella quem me aponta as competências a escolher. Ora, no caso em questão, entre múltiplas consultas, nem uma só vez foi V. S. designado pelos nossos pares para o cargo a preencher. E por esse motivo não foi V. S indicado para a cadeira de Medicina Legal.

Não queria dizer isto com franqueza, mas a carta de V.S. a tanto me obriga. Não fosse isso e immenso seria o meu prazer em distinguir um companheiro de Academia.”

A réplica de Luiz Jardim revela a percepção de um jogo político que o discurso de Arnaldo Vieira de Carvalho tentava dissimular e do qual ele próprio, Jardim, afinal quisera participar.

Page 152: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

152

“São Paulo, 15 de janeiro, de 1918

Senhor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, Digno Director daFaculda-de de Medicina e de Cirurgia de S. PAULO.

Saúdações.

Respondendo a carta de Vsa. de 16 do corrente, fico sciente do conteudo, e em tempo, approveitando a opportunidade, discutirei o assumpto. Não sei o que Vsa. entende por classe medica, constitui-rão a classe medica sómente os seus collégas e amigos dedicados, ou todos os médicos rezidentes no Brazil e principalmente em S. Paulo.

Innumeros collégas nas minhas condições estão convencidos de accordo com a opinião geral per toto Orbe ET per toto Urbe, que a Faculdade de Medicina de S. Paulo, não é propriedade do glorioso Estado de S. Paulo, más, sim de alguns politicos, e [por] esse mo-tivo aboliram o concurso, unico meio de reconhecer devidamente a capacidade dos candidatos a professor de uma Faculdade. Con-segui o que desejava; prova cathegorica de facto[s] consummados, e a consummar-se[?].

Não desejava fallar com tanta altivez e independencia, más a sua carta assim obrigou-me a proceder. Desculpe incommodar-lhe.

D Vsa. CDo e OBdoLuiz Felippe Jardim”

Na Cadeira de Medicina Legal, Freire contou, inicialmente, com dois assistentes: Pedro Dias da Silva, pelo período de um ano, e Flamínio Favero. Internamente, a morte de Arnaldo provocou uma conjuntura de crise e instabilidade que só seria contida pela ascensão à posição de diretor da Faculdade, justamente, pela figura de Pedro Dias da Silva. Pedro Dias, por sua vez, desempenharia um papel crucial na execução dos acordos com a Fundação Rockefeller, inclusive na imposição da reforma curricular prescrita nos moldes norte-americanos16.

16 Detalhes dos acordos e da figura de Pedro Dias da Silva podem ser encontrados em MARINHO (2003).

Page 153: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

153

ConsiderAções finAisOs estudos que analisam as articulações entre o campo médico, de

um lado, e o saber, as instituições e as práticas jurídicas, de outro, ainda são relativamente escassos, sobretudo, em relação à experiência de São Paulo. Contudo, a análise da documentação proveniente de acervos como os depositados nos Fundos do Poder Judiciário ou recolhidos nos museus, arquivos públicos ou centros de memória podem elucidar as frequentes associações entre membros das elites letradas e os arranjos que resultaram nos modelos ainda vigentes. Inseridos em posições de mando nos aparatos profissionais, esses grupos oriundos da Medicina e do Direito contribuíram para estabelecer ou reforçar uma ordem social excludente, amparada, porém, por uma racionalidade que a justifica e legitima.

referênCiAs bibliográfiCAs

ALVAREZ, Marcos; SALLA, Fernando A. e SOUZA. Justiça e história. Porto Alegre: a. 3, v. 6, 2003.

ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp/Fapesp, 1999. 306p.

BUENO, Maria de Fátima Guimarães. O corpo e as sensibilidades modernas: Bragança (1900-1920). 2007. 314 f. Tese (Doutorado) - FE/Unicamp, Campinas, 2007.

CAMPOS, Cristina de. São Paulo pela lente da higiene: as propostas de Geraldo Horácio de Paula Souza para a cidade: 1925-1945. São Carlos: Rima, 2002. 274p.

CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 1998.

FARIA, Lina Rodrigues de. A fase pioneira da reforma sanitária no Brasil: a atuação da Fundação Rockefeller (1915-1930). 1994. 154 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social/UERJ, Rio de Janeiro, 1994.

FARIA, Lina Rodrigues de. Ciência, ensino e administração em saúde: a Fundação Rockefeller e a criação do Instituto de Higiene de São Paulo. 2003. 219 f. Tese (Doutorado) - Instituto de Medicina Social/UERJ, Rio de Janeiro, 2003.

Page 154: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

154

FAVERO, Flamínio. Medicina legal. 3 v. São Paulo: Martins, 1962.MARINHO, Maria Gabriela S. M. C.; MOTA, André. (Orgs.). Caminhos

e trajetos da filantropia científica em São Paulo: a Fundação Rockefeller e suas articulações no ensino, pesquisa e assistência para a medicina e saúde (1916-1952). São Paulo: UFABC-FMUSP/CD.G Casa de Soluções e Editora, 2013.

_____; _____. (Orgs.). Práticas médicas e de saúde nos municípios paulistas: a história e suas interfaces. 2. ed. São Paulo: UFABC-FMUSP/CD.G Casa de Soluções e Editora, 2013.

_____. Elites em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo: 1916-1931. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco (Edusf), 2003. 142p.

_____; SALLA, Fernando. A medicina e a lei: o Código Penal de 1890 e o exercício de curar. Práticas médicas e autos criminais em Bragança: assimetrias da modernização. In: MARINHO, Maria Gabriela S. M. C.; MOTA, André. (Orgs.). Práticas médicas e de saúde nos municípios paulistas: a história e suas interfaces. 2. ed. São Paulo: UFABC-FMUSP/CD.G Casa de Soluções e Editora, 2013.

MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista, 1892-1920. Prefácio de Tania Regina de Luca. São Paulo: Edusp, 2005.

NADAI, Elza. Ideologia do progresso e ensino superior: São Paulo 1891-1934. Prefácio de Maria de Lourdes Monaco Janotti. São Paulo: Loyola, 1987. 280p.

ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes: educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo: 1918-1925. Apresentação de Marta Maria Chagas de Carvalho. 4ª capa de Maria Gabriela S. M. C. Marinho. Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/Fapesp, 2003. 272p.

SILVA, Márcia Regina Barros da. O mundo transformado em laboratório: ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo de 1891-1933. 2003. [Tese Doutorado] - História/FFLCH/USP, São Paulo, 2003.

Page 155: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

155

fisioterApiA Como oCupAção: indíCios de umA prátiCA no brAsil1

Ana Luiza de Oliveira e Oliveira

André Mota

introdução

As profissões de saúde no Brasil têm sido discutidas, teórica e empiricamente, em investigações socio-históricas (SCHRAIBER, 1993; MACHADO, 1995, 1997; MOTA & SCHRAIBER, 2009; CASTRO-SANTOS & FARIA, 2010). Nessa perspectiva, a história das profissões pode ser considerada como aspecto social para reflexão e análise de certas práticas terapêuticas em suas relações com os contextos sociais, políticos e econômicos mais amplos.

Nos dias hodiernos, a fisioterapia como profissão, legalmente reconhecida no país pelo Decreto-lei n° 938, de 13 de outubro de 1969, é definida, pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), como “uma ciência da Saúde que estuda, previne e trata os distúrbios cinéticos e funcionais intercorrentes em órgãos e sistemas do corpo humano [...]”.

Tendo isso em vista, é no referido Decreto-lei que encontramos o ponto de partida para as análises realizadas neste estudo. Podemos afirmar que, à época de sua promulgação, já havia no Brasil um grupo de praticantes que poderia ser considerado como o “embrião” da fisioterapia, conforme se lê em seu artigo 10:

“todos aqueles que, até a data da publicação do presente Decreto--lei, exerçam, sem habilitação profissional, em serviço público, atividades [...] [próprias dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacio-

1 OLIVEIRA, Ana Luiza O. E. ; MOTA, André . Fisioterapia como ocupação: indícios de uma prática no Brasil. In: MOTA, André; TARELOW, Gustavo Querodia. (Orgs.). Fisioterapia no Complexo Hospital das Clínicas da FMUSP: memórias e marcos históricos. 1ª. ed.São Paulo: CD.G Casa de Soluções Editora, 2012, v. 1o., p. 15-24.

Page 156: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

156

nais], serão mantidos nos níveis funcionais que ocupam e poderão ter as denominações de auxiliar-de-fisioterapia [...], se obtiverem certificado em exame de suficiência. (BRASIL, 1969).”

Tomando como pressuposto a definição de profissão como um tipo de trabalho que tem por base um conhecimento sistemático, teoricamente fundamentado e formalmente ensinado (FREIDSON, 1988), encontraremos, no período de 1951 até 1969, importantes elementos para justificar o processo de fortalecimento profissional e a institucionalização da fisioterapia como um saber sistemático.

Pode-se considerar como elementos desses processos a criação, em 1951, do curso de “Técnicos e Operadores em Fisioterapia”; a incorporação, em 1958, desse grupo profissional ao Instituto Nacional de Reabilitação; a criação, em 1963, do curso superior em Fisioterapia, com Currículo Mínimo de três anos de duração; e a regulamentação, em 1967, do curso de Fisioterapia do Instituto de Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (MARQUES & SANCHES, 1994; TRIGO-DE-SOUZA et al., 2008).

Por meio desses marcos legais, expõe-se, estrategicamente, o movimento de organização e legitimação da fisioterapia como profissão na segunda metade do século XX. Trata-se, portanto, de pensar uma profissão como objeto multideterminado: i) social: no que concerne às formas históricas de divisão e organização do trabalho; ii) institucional: por meio de processos em que os atores sociais defendem seus interesses e pressionam o Estado a reconhecê-los como detentores de um conhecimento exclusivo; e iii) individual (DUBAR, 2005).

Neste capítulo, encaminharemos a discussão às dimensões social e institucional, em um momento anterior à transformação da fisioterapia em profissão. O objetivo deste estudo é identificar, na legislação brasileira da primeira metade do século XX, a existência de praticantes da fisioterapia como uma ocupação, entendida como um tipo de trabalho que tem sua formação na prática e se coloca dentro da informalidade de ensino (FREIDSON, 1996), reconhecida e credenciada pelo Estado.

Ao analisar a legislação vigente no Brasil e, especificamente no Estado de São Paulo, durante a primeira metade do século XX, reconhecemos que o Estado, desde o início dos anos 1900, foi responsável pela mediação entre o conhecimento, a legitimação e a institucionalização das práticas de saúde no país. No que se refere à fisioterapia, defendemos que, o conhecimento dessa categoria se materializou na divisão e organização do trabalho em saúde como uma ocupação e, portanto, sem sistematização do saber (FREIDSON, 1988).

Page 157: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

157

Tal informalidade fez com que a fisioterapia, durante 50 anos, fosse reconhecida como prática, disciplina ou técnica utilizada por outras categorias profissionais. Assim, partimos do entendimento de que, para investigar o processo de apropriação dos saberes pela fisioterapia como ocupação assistencial da saúde e suas modificações como processo social determinado, devemos aproximá-las das profissões institucionalizadas no Brasil no período em análise, medicina e enfermagem, pois, a partir delas, os conhecimentos da ocupação “fisioterapia” passam a ser regulamentados pelo Estado.

Identificar certos elementos da fisioterapia na legislação brasileira é relevante para estabelecer os limites entre a ocupação e o Estado no período de pré-institucionalização da profissão. Para isso, tentaremos responder às questões: Como se comportou o Estado na organização da fisioterapia como ocupação? Como tal ocupação se relacionou com os saberes biomédicos na primeira metade do século XX? Pretende-se, como resposta, desenvolver um trabalho descritivo que usa, na leitura de documentos oficiais, o conceito de história indiciária proposto por Carlo Ginzburg (1989) para localizar a fisioterapia como ocupação no campo do trabalho em saúde.

Este texto será estruturado em quatro partes. A primeira tem como objetivo relacionar a organização do Estado brasileiro com as políticas de fiscalização e controle das atividades ocupacionais profissionais na saúde do país, na primeira metade do século XX. Na segunda parte, nos aproximaremos dos pilares da fisioterapia na Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, para confirmar que a organização do conhecimento da fisioterapia estava em processo de legitimação em diferentes países, sendo sintomático para a constituição da fisioterapia brasileira. Na terceira parte, analisaremos a legislação federal e estadual, mostrando o papel do Estado como regulador e fiscalizador das práticas em saúde aproximando a fisioterapia da medicina e da enfermagem. Por fim, na conclusão, faremos uma reflexão acerca dos impactos gerados pela posição da ocupação como racionalidade biomédica regulamentada pelo Estado, na institucionalização da fisioterapia como profissão.

estAdo, polítiCA e sAúde

No Brasil, o final do século XIX marca um momento de grandes transformações políticas e sociais. No entanto, a saúde só se constituiu

Page 158: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

158

como questão social2 no início do século XX. Ou seja, no bojo da economia capitalista, no qual o Estado passou a desenvolver medidas econômicas e sociais, o que demandou ramos de especialização e instituições de saúde que lhe servissem de instrumento para o alcance dos fins econômicos e políticos.

A economia, que da segunda metade do século XIX até os anos 1930 caracterizou-se por um modelo agroexportador, passou a adotar um modelo urbano-industrial com crescimento numérico dos trabalhadores da saúde. Tais transformações não podem ser vistas sem considerar o papel do Estado e suas limitações, enquanto agente transformador da sociedade, no que se refere à fiscalização e controle das atividades ocupacionais profissionais na saúde.

No início do século XX, o Brasil dispunha de baixo patamar científico e tecnológico referente às práticas ‘profissionais’ em saúde. Um dos efeitos desse contexto foi o desenvolvimento de políticas referentes à fiscalização do exercício da medicina. Para isso, aprovou-se o regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (BRASIL, 1923a) e estabeleceram-se as atribuições do Governo Federal: o saneamento rural e urbano; a higiene infantil, industrial e profissional; atividades de fiscalização e supervisão; saúde dos portos e do Distrito Federal; e o combate às endemias rurais. A partir de então, a participação e a intervenção do Estado na área de saúde ampliou-se e solidificou-se. A diversificação de atendimentos médico e não médico para os trabalhadores do país foi um dos motivos para a criação, em 1923, da Lei Eloi Chaves (BRASIL, 1923b), como precursora de um novo modelo de assistência à saúde e previdência social em construção.

O processo histórico que se instalou após 1930 se caracterizou por uma crise política e redefinições do desenvolvimento econômico. As ações propostas na Era Vargas (1930-1945) centravam-se em reformas legislativas que evidenciam, além da centralização do poder político, a tentativa da instalação de um Estado liberal, dando condições para a continuidade do processo de acumulação de capital (HOCHMAN, 2005). A industrialização do país se tornava perene com políticas sociais que impulsionavam a legislação trabalhista e os aparelhos organizacionais referentes aos trabalhadores no país. Apesar das continuidades, as modificações operadas no regime varguista marcaram, de forma profunda, a organização do campo da saúde pública no Brasil como, por exemplo, a criação de um dispositivo

2 Questão social pensada como manifestação de práticas políticas e ideológicas constituindo-se como objeto de políticas públicas. Assim, parece possível apreender os processos e suas respectivas políticas de regulação distribuídas por diferentes planos como, por exemplo, a regulação do mercado de trabalho pelo Estado.

Page 159: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

159

político que permitisse reorganizar e impulsionar as políticas de saúde no país: o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina.

Com a instituição do Estado Novo (1937-1945) e a tentativa de consolidar o Brasil como nação, através de forte repressão social e política, a Lei n° 378 (BRASIL, 1937) dividiu o território brasileiro em oito regiões, ampliando a permeabilidade e capilaridade das instituições estatais em todo o país. No caso específico da saúde, isso ocorreu com o fim último de implementar e supervisionar as ações de saúde pública e, consequentemente, dos profissionais de saúde. Cada região contava com uma Delegacia Federal de Saúde responsável pela inspeção dos serviços federais de saúde, dentre outras funções (HOCHMAN, 2005).

A reorganização do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) 3, em 1941, fez que o Estado assumisse o controle da formação de técnicos em saúde pública. Com isso, a habilitação e fiscalização do exercício profissional passaram a pertencer ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia (SNFM). Como exemplo, podemos citar a regulamentação, pelo Decreto-lei nº 8.778 de 1946, dos exames de habilitação para as categorias de práticos de enfermagem, de parteiras e daqueles que tivessem mais de dois anos de efetivo exercício profissional em estabelecimentos hospitalares, para a obtenção de certificado intitulado ““prático de enfermagem” e “parteira prática” (BRASIL, 1974).

Será na década de 1950, momento de inflexão da economia brasileira e de reaparelhamento do Estado, que o setor de saúde atingirá a estrutura do aparelho estatal que vinha sendo montada desde o Estado Novo com a criação do Ministério da Saúde como órgão desvinculado da Educação. Assim, a estrutura burocrática e política da saúde estavam delimitadas. Com isso, muitas ocupações e profissões de saúde iniciaram seu processo de reconhecimento e aceitação social após regulamentação estatal, baseada em procedimentos técnico-operativos (BRAGA, 1981). Portanto, consolidou-se o papel do Estado como produtor e reprodutor da ideologia do profissionalismo, dando ênfase na capacidade geradora de sentimentos partilhados por grupos ocupacionais profissionais, decorrentes da crença no mérito, no conhecimento e na autonomia (BONELLI, 2005).

3 Podemos afirmar, concordando com Hochman que a criação do MESP estava inserida numa perspectiva de reforma administrativa do Estado que buscava a formação de um Estado robusto e centralizado pela constituição de um aparato governamental que alcançasse todo o território nacional, integrando as esferas federal, estadual e municipal em um projeto político-administrativo mais unificado (HOCHMAN, 2005).

Page 160: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

160

fisioterApiA Como oCupAção

Em alguns dicionários publicados ao longo do século XX, a Fisioterapia é definida como uma especialidade da saúde que emprega agentes físicos e naturais (água doce ou salgada, sol, calor, frio, eletricidade, massagens e exercícios) no tratamento de doenças (ALMOYA, 1952; SILVA, 1961; SILVA, 1970; AULETE, 1986; HOUAISS, 2004). Essa definição corrobora o estudo de Barclay (1994), no qual as práticas ocupacionais da fisioterapia se fundamentam em seis pilares: hidroterapia, exercícios terapêuticos, eletroterapia, termoterapia, fototerapia e massagem. De maneira geral, todas as práticas acima relacionadas têm sua origem como recurso terapêutico na Antiguidade, período no qual se utilizavam, empiricamente, recursos como o sol, o calor, a água, a eletricidade e o movimento humano para fins terapêuticos4 (OLIVEIRA, 2011).

Para situarmos as práticas tomadas como pilares da profissão, usaremos dois termos distintos, de acordo com o período histórico no qual foram empregadas: para as práticas anteriores à institucionalização da Fisioterapia no Brasil, usaremos práticas fisioterapistas; para o período após 1951, práticas fisioterápicas. Ressalta-se que o termo práticas fisioterapistas é uma operação metodológica realizada por Oliveira (2011), no sentido de expressar as particularidades do desenvolvimento histórico da fisioterapia brasileira e, mais especificamente, do Estado de São Paulo, em relação, por exemplo, ao desenvolvimento da profissão em países como Inglaterra e Estados Unidos.

Em todo caso, cumpre destacar que o desenvolvimento da Fisioterapia brasileira guarda a influência britânica e norte-americana, não só na prática profissional e em suas bases teóricas, como na atuação regulamentadora do Estado (OLIVEIRA, 2002, 2005; OLIVEIRA, 2011). Sendo assim, as práticas fisioterapistas foram paulatinamente fundamentadas no paradigma biomédico, já hegemônico na Medicina e na Enfermagem brasileira.

A influência britânica, na fisioterapia brasileira, pode ser analisada pelo movimento de estruturação e legitimação da Chartered Society of

4 No antigo Egito os “Sinu” (os homens que sofrem ou estão doentes) utilizavam agentes físicos para tratar as enfermidades: “No Papiro de Ebers, encontrado pelo egiptólogo alemão George Moritz Ebers, são descritas práticas de fisioterapia (massagens, hidroterapia e helioterapia) relativas à 1ª dinastia egípcia cerca de 3000 anos a.C.” (BARROS, 2002). Na antiga Mesopotâmia, a casta de sacerdotes denominada “Asu” se encarregava dessa função, além de utilizar as plantas para tratar os enfermos; o livro Kong-fou, a arte do homem, escrito pelos discípulos de Lao-Tse em 2700 a.C, reconhece as práticas de massagem e ginástica respiratória com fins terapêuticos (DAMIÁN, s/d).

Page 161: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

161

Physiotherapy (CSP),5 que, na busca de reconhecimento e consolidação do campo da fisioterapia, estabeleceu modelos de funcionamento e de práticas fisioterápicas (MCMILLAN , 1921; FRENCH & DOWDS, 2008; SPARKS, 2008; PARIS, 2008). Essa postura, centrada no associativismo profissional e posterior reconhecimento das práticas fisioterapistas pelo Estado, foi importante para a institucionalização do conhecimento da fisioterapia no Brasil.

Diferentemente da Inglaterra, nos Estados Unidos, mesmo havendo intensa mobilização das Associações Profissionais6, as práticas fisioterapistas foram inicialmente reconhecidas pelo Estado. Um dos exemplos é a autorização pelo Congresso, decorrente da participação americana na I Guerra Mundial, do seguro financeiro para reabilitação dos homens “inválidos” e a consequente contratação de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e dietistas para o departamento médico do Exército, impulsionando a abertura da divisão de hospitais especiais e reconstrução física (OLIVEIRA, 2002; OLIVEIRA, 2011). Centradas no Estado, na educação formal, as práticas fisioterapistas ganham força no interior da American Medical Association (AMA). A influência dos EUA na fisioterapia brasileira é percebida, principalmente, na relação com o Estado e na configuração dos modelos de ensino das práticas fisioterápicas.

Esses países, nos anos 1950, vivenciavam o momento de reorganização da Fisioterapia como ciência, o que reverberou no Brasil com a criação, em 1951, do curso de Técnicos Operadores em Fisioterapia. Com a institucionalização das práticas fisioterapistas, a ocupação entra para a racionalidade biomédica, impulsionada pela necessidade social desse profissional, em decorrência de elementos como a epidemia de poliomielite, a urbanização e industrialização do país e os reflexos da Segunda Guerra Mundial, sendo transformada em profissão.

O período pós-guerra caracterizou-se por mudanças e expansão na esfera de ação das atividades do serviço público de saúde nos Estados Unidos, Inglaterra e Brasil. O maior crescimento ocorreu nas áreas de pesquisa, treinamento e desenvolvimento das tecnologias biomédicas e a legislação dos países favoreceu os serviços de reabilitação através de doações financeiras, fundos federais e estaduais.

5 A disputa pelo reconhecimento da Fisioterapia na Inglaterra foi conduzida pelas Associações Profissionais que acompanharam o desenvolvimento técnico-científico das práticas fisioterapistas no país e tentaram desvincular a prática da massagem da imagem relacionada à prostituição (NICHOLLS, 2006). Podemos citar as transformações na nomenclatura das Associações como exemplo da movimentação política para reconhecimento do Estado: Society of Trained Masseu, em 1884; Incorporated Society of Trained Masseuses, em 1910; The Chartered Society of Massage and Medical Gymnastic, em 1920; Chartered Society of Physiotherapy, em 1943 (CSP, 1994).

6 American Women’s Physical Therapeutic Association, em 1922; American Physical Therapy Association, no final dos anos 1930; American Physical Therapy Association, no final dos anos 1940.

Page 162: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

162

A prática ocupacional, a relação com o Estado, o intercambio de informações e o fortalecimento das associações representativas da Fisioterapia em diferentes países delinearam o uso da fisioterapia no mundo. No Brasil, a institucionalização das práticas fisioterapistas teve um percurso singular. Algumas das práticas, como hidroterapia (hidrologia médica) e eletroterapia (eletricidade médica) foram incorporadas ao discurso médico dos anos 1920.

Apesar de constituírem um campo técnico da medicina, as práticas fisioterapistas passam a ser ensinadas no curso de enfermagem, no módulo “Artes da Enfermagem”. Como campo teórico, a medicina se responsabilizou pela pesquisa de práticas fisioterapistas, cabendo à enfermagem a sua aplicação. Em São Paulo 7, podemos citar a hidroterapia como um exemplo. Na primeira metade do século XX, a hidroterapia, ao se consolidar no ensino das ciências médicas, oferece indícios da existência de um grupo de praticantes com competências técnicas para a utilização terapêutica da água: os enfermeiros duchistas. Dessa maneira, as práticas fisioterapistas, no Estado de São Paulo, são legitimadas e regulamentadas pelo Estado à sombra da consolidação da profissão médica e de enfermagem e de suas especialidades.

Discurso oficial: a Fisioterapia na legislação brasileira da primeira metade do século XXAo contrário de alguns estudos brasileiros que consideram que a eletroterapia determinou o surgimento da Fisioterapia, a partir de 1919, com a criação do Departamento de Eletricidade Médica na Faculdade de Medicina8 da USP, acreditamos que essa prática se enquadra apenas como a institucionalização de um dos pilares da fisioterapia. A prática da eletroterapia foi fulcral para a aceitação de outros recursos físicos e naturais no modelo médico hegemônico, bem como indício da existência de um grupo ocupacional que somaria forças para a criação, em 1929, do Serviço de Fisioterapia do Instituto Radium Arnaldo Vieira de Carvalho.

Neste estudo, apesar de ser um elemento na institucionalização da fisioterapia profissional, a combinação dessas práticas ocupacionais, no interior da medicina paulistana, não é suficiente para a análise do papel do Estado nesse processo. Centramo-nos, portanto, na legislação brasileira

7 Instituições hospitalares, nos anos 1930 e 1940, contavam com setores próprios de hidroterapia havendo registros, por exemplo, no Hospital do Juquery (PIZZOLATO, 2008), no pavilhão Fernandinho Simonsen na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e, a partir dos anos 1940, no Departamento de Ortopedia e Traumatologia do IOT da FM/USP. Amplamente utilizada para o tratamento ortopédico e neurológico, a hidroterapia em São Paulo foi introduzida ao campo das ciências médicas já nos anos 1920.

8 O Departamento de Eletricidade Médica, apesar das poucas informações sobre seu funcionamento, foi organizado por médicos cuja prática de assistência fundamentava-se no uso da eletroterapia associado à massagem e à hidroterapia (OLIVEIRA, 2002), que prestava serviço a diversos departamentos no interior da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (OLIVEIRA, 2011).

Page 163: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

163

e estadual da fisioterapia como ocupação e não no movimento de sua institucionalização.

A regulamentação do exercício profissional da Saúde, a fiscalização e a punição de infratores (médicos, cirurgiões, sangradores, curandeiros, boticários e parteiras que exercessem as práticas de cura sem licença) vinham sendo realizadas desde o período colonial (MOTT, 2009). Com a proclamação da República e o regime federalista, o poder central da República Federativa do Brasil atribuiu maior autonomia aos Estados, em relação à organização e regulamentação do exercício profissional na área da Saúde, restringindo a fiscalização a quatro categorias: médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras. A prática de alguma dessas atividades por pessoas não habilitadas era ilegal e passível de penalidades.9Nesta análise, identificamos os seis pilares da fisioterapia como práticas ocupacionais na legislação brasileira para pensar a fisioterapia a partir do encontro com a medicina e a enfermagem.

A palavra physiotherapia aparece pela primeira vez na legislação brasileira no Decreto n° 15.230, de 1921, que “aprova o regulamento para o serviço de saúde do Exército em tempo de paz” (BRASIL, 1921). Até a década de 1930 não foi encontrada nenhuma referência à fisioterapia como profissão. Os termos fisioterapia, institutos de fisioterapia, eletroterapia, crioterapia e ginástica cirúrgica foram sempre associados a uma prática vinculada à enfermagem ou à ortopedia e traumatologia.

A massagem é referenciada no Decreto n° 16.300, de 31 de dezembro de 1923, que aprovou o regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública, determinando:

“Art. 22. A fiscalização do exercício profissional dos médicos, pharmaceuticos, dentistas, parteiras, massagistas, enfermeiros e optometristas será exercida pelo Departamento de Saúde Pública, por intermédio da Inspetoria de Fiscalização do Exercício da Me-dicina (BRASIL, 1923a).”

9 O Decreto Estadual nº 87, de 29 de julho de 1892 estabeleceu que só seria permitida a prática da arte de curar, em quaisquer de seus ramos e por quaisquer de suas formas, aos titulares diplomados que se mostrassem habilitados por título conferido pelas faculdades de medicina da República dos Estados Unidos do Brasil e àqueles que, sendo graduados por escola ou universidade estrangeira reconhecida, se habilitassem perante as ditas faculdades, na forma dos respectivos estatutos. O decreto estabeleceu ainda que médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas deveriam se registrar nas Inspetorias dos Estados. O registro seria feito em livro especial nos quais os dados apresentados nos respectivos títulos ou licenças seriam transcritos. O Serviço Sanitário também seria responsável pela organização e publicação da relação dos profissionais inscritos.

Page 164: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

164

Nos anos de 1930, o Decreto nº 20.931, de 11 de janeiro de 1932, estabeleceu a regulamentação e a fiscalização do exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira (BRASIL, 1932). Em seu artigo 3º, estabeleceu, também, que “os optometristas, práticos de farmácia, massagistas e duchistas estão também sujeitos à fiscalização, só podendo exercer a profissão respectiva se provarem a sua habilitação a juízo da autoridade sanitária”.

Mais adiante, nos artigos 24, 25 e 27, “Dos estabelecimentos dirigidos por médicos”, encontramos menção, além dos banhos e duchas, à fisioterapia e aos agentes fisioterápicos vinculados à medicina, mas não ao fisioterapeuta ou enfermeiro fisioterapista, massagista e duchista:

“Art. 24. Os institutos hospitalares de qualquer natureza, públicos ou particulares, […] e os institutos de psicoterapia, fisioterapia e ortopedia, e os estabelecimentos de duchas ou banhos medicinais, só poderão funcionar sob responsabilidade e direção técnica de médicos ou farmacêuticos, nos casos compatíveis com esta pro-fissão, sendo indispensável para o seu funcionamento, licença da autoridade sanitária.Art. 25. Os institutos de beleza, sem direção médica, limitar-se--ão aos serviços compatíveis com sua finalidade, sendo terminan-temente proibida aos que neles trabalham a prática de intervenções de cirurgia plástica, por mais rudimentares que sejam, bem como a aplicação de agentes fisioterápicos e a prescrição de medicamen-tos.Art. 27. Os estabelecimentos eletro, rádio e fisioterápicos e orto-pédicos só poderão funcionar sob a direção técnica profissional de médico cujo nome será indicado no requerimento dos interessados à autoridade sanitária competente, salvo se esses estabelecimentos forem de propriedade individual de um médico.”

Percebemos, nesse período, que a ação do Estado se centrava na organização dos limites ocupacionais e profissionais e na regulamentação das atividades desempenhadas pelos grupos ocupacionais reconhecidos legalmente, assemelhando-se ao modelo americano de regulamentação profissional. Além disso, a ação patrimonialista do Estado direcionava-se para as instituições de socialização do conhecimento e, para a fisioterapia,

Page 165: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

165

na ausência de um campo disciplinar próprio, se fazia por meio de ensinamentos médicos nos currículos dos cursos de enfermagem.

A primeira menção encontrada acerca do ensino das práticas fisioterapistas pode ser encontrada no Decreto nº 21.142, de 10 de março de 1932, que aprovou o regulamento para organização do quadro de enfermeiros do Exército. No capítulo VIII, “Do curso de enfermeiros do Exército”, encontramos, no artigo 55, a necessidade de ensinar massagens, ginástica e eletroterapia aos alunos aprovados no concurso (BRASIL, 1932).

Em 1934, com o Decreto n° 23.774, os enfermeiros que apresentassem atestados provando mais de cinco anos de prática de enfermagem receberiam o título de “enfermeiros práticos”, pelo DNSP, depois de realizada um prova de habilitação (BRASIL, 1934). Assim como na Inglaterra, para receberem o certificado de enfermeiras práticas, massagistas ou duchistas, os candidatos deveriam realizar um exame recebendo, assim, o título de enfermeiro prático habilitado. O exame referia-se a três módulos: história do Brasil, anatomia e técnica de massagem. Os aprovados na prova teórica deveriam realizar uma prova prática com supervisão de médicos e enfermeiras, realizando massagens em diferentes regiões do corpo (SPINK, 1995).

Somente em 1939, a legislação do Estado de São Paulo regulamentou, pelo Decreto Estadual n° 10.068, a forma de habilitação dos enfermeiros:

“Art. 1° - Considera-se atividade de enfermagem exercida pelos enfermeiros propriamente ditos e pelos seguintes profissionais: parteiras, massagistas, duchistas, calistas e pedicuros.” (SÃO PAULO, 1939).

Todos os “práticos” deveriam se registrar no Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional, do Serviço Sanitário de São Paulo. A legalização do registro profissional seria feito por meio de bancas examinadoras para as habilitações oferecidas, uma ou mais vezes por mês, composta por médicos e enfermeiros (SÃO PAULO, 1939). A exigência de registro vigorou até a aprovação do Decreto n° 150, de 1967, que dispensou de registro os diplomas de profissões relacionadas com a medicina, farmácia, odontologia e veterinária, desde que os respectivos conselhos profissionais viessem a ser legalmente criados, regularmente instalados e funcionassem normalmente, reconhecidos por ato do Ministério da Saúde. Apesar de não haver menção na lei de enfermeiras fisioterapistas, registros estaduais foram encontrados com essa denominação o que nos oferece indícios da aplicação de varias praticas fisioterapistas concentradas em um praticante.

Page 166: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

166

Ilustração 1: Registro profissional de enfermeiro fisioterapista.

Fonte: Coleção Livros de Registro do Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional do Serviço Sanitário de São Paulo; Museu Emílio Ribas, Instituto Butantã, São Paulo, SP.

Page 167: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

167

Até o final da década de 1930, o reconhecimento legal era sustentado pela comprovação prática de certa ocupação. Com a criação da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), em 31 de outubro de 1942, além de se habilitar os diplomados por escolas estrangeiras, assegurou-se a formação em enfermagem com caráter científico, contribuindo para sua autonomia dentro da jurisdição da Faculdade de Medicina. O ensino dava ênfase aos trabalhos práticos, valorizando a formação técnica e científica dos profissionais. Como técnica terapêutica, podemos encontrar referências acerca da fisioterapia no currículo do curso formal de enfermagem da Escola de Enfermagem da USP, no módulo “Artes de Enfermagem” (CARVALHO, 1980).

É a relação direta com o ensino das ciências da saúde que nos possibilita afirmar que os recursos físicos e naturais, tão caros à Fisioterapia desde seus primórdios, a partir de meados dos anos 1940, são cientificamente reconhecidos como terapêuticos, passando a ser disputados pelos campos da medicina e da enfermagem.

Tal valorização e incorporação refletiram na institucionalização do curso de Técnicos e Operadores em Fisioterapia no interior da Faculdade de Medicina da USP, e não na Escola de Enfermagem. O curso, com duração de um ano, alocado no Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo, formou os primeiros profissionais capacitados a exercer atividades diretamente relacionadas com a Fisioterapia (TRIGO-DE-SOUZA ET AL, 2008). O curso “Técnicos e Operadores em Fisioterapia” formou técnicos até 1956: “ao final (do curso) os alunos eram submetidos a uma prova teórica e a uma avaliação teórico-prática com a participação de fiscais (médicos e enfermeiros) do Serviço de Fiscalização Profissional do Estado de São Paulo.” (SANCHEZ, 1984; MARQUES & SANCHEZ, 1994, REBELLATO & BOTOMÉ, 1999).

A disputa por práticas ocupacionais reconhecidas pelo Estado indica, claramente, o papel das profissões já institucionalizadas no Brasil no início do século XX. O papel regulador do Estado, o poder da profissão médica e a legitimação das práticas fisioterapistas legal e socialmente introduz no paradigma científico a Fisioterapia como profissão. A enfermagem perde, nessa disputa de poder, a possibilidade de institucionalização do conhecimento fisioterápico.

ConClusão

O contexto histórico do processo de institucionalização da Fisioterapia no Brasil é importante para a compreensão da construção do perfil profissional do Fisioterapeuta na atualidade, de seu lugar sociopolítico na

Page 168: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

168

saúde brasileira e dos limites de jurisprudência entre diferentes categorias profissionais. Para isso, a profissionalização deve ser pensada de maneira processual.

Assim, ao tomarmos as práticas fisioterapistas como ocupação, sem sistematização do conhecimento e informalidade do ensino, percebemos que, no início de seu projeto de profissionalização, elas foram foco de disputa entre a medicina e a enfermagem. Compreender as disputas por certas ocupações e as relações entre profissões de saúde no Brasil, na primeira metade do século XX, mostra o poder do Estado na definição dos limites e das áreas de atuação de cada categoria.

Influenciadas pela expansão da Fisioterapia como profissão na Inglaterra e nos Estados Unidos, pela epidemia de poliomielite no Brasil (BARROS, 2009), pela industrialização e urbanização de São Paulo, as práticas fisioterapistas passam a ser necessárias para o campo da biomedicina e recebem, assim, atenção do Estado nacional. Essa relação socio-histórica nos oferece elementos para pensar a história da fisioterapia através de diferentes dispositivos, reverberando múltiplos instrumentos, ideias, práticas, modelos organizacionais e delimitações de uma ocupação em busca de regulamentação baseada no modelo profissional.

Imersas na ideologia do profissionalismo, regulamentadas pelo Estado, aceitas pela racionalidade biomédica e incorporadas como conhecimento científico no campo da saúde brasileira, as práticas fisioterapistas se tornam práticas fisioterápicas. A fisioterapia como ocupação passa a ser, a partir de 1951, uma profissão passível de socialização do conhecimento sistematizado e em busca de autonomia em seu campo de atuação.

Esse lugar de disputa ocupado pelas práticas fisioterapistas tem resquícios históricos. A Fisioterapia, mesmo considerada uma profissão de relativo sucesso em seu processo de profissionalização, disputa campos de trabalho, técnicas e conhecimento com profissões fronteiriças como a medicina, a enfermagem e a educação física. Essa permanência pode ser justificada pelas particularidades socio-históricas da Fisioterapia como profissão especializada na reabilitação física. Esse fato contribui para a cultura de atuação limitada à clínica e aos recursos materiais, supostamente indispensáveis para o tratamento fisioterápico. Essa visão mantém a Fisioterapia à margem de muitas discussões cruciais para o avanço da saúde brasileira e de seu papel como elemento de transformação da prática profissional na saúde do país.

Page 169: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

169

referênCiAs bibliográfiCAs

ALMOYA, J. M. Dicionário de espanhol-português. 2. ed. Porto: Porto Editora 1952.

AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1986.

BARCLAY, J. In good hands: the history of Charteres Society of Physiotherapy (1894-1994). Trowbridge: Redwood Books, 1994.

BARROS F. M. B. A formação do fisioterapeuta na UFRJ e a profissionalização da fisioterapia. 2002. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

_____. Fisioterapia, poliomielite e filantropia: a ABBR e a formação do fisioterapeuta no Rio de Janeiro (1954-1965). 2009. Tese (Doutorado) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.

BONELLI, MG. Ideologias do profissionalismo em disputa na magistratura paulista. Sociologias [online] n.13, p. 110-135, 2005.

BRAGA, J. C. S.; PAULA, S. G. Industrialização e políticas de saúde no Brasil. In: _____. Saúde e Previdência: estudos de política social. São Paulo: CEBES/HUCITEC, 1981.

BRASIL. Decreto 4.682, de 24 de janeiro de 1923a. Crea, em cada uma das empresas de estradas de ferro existentes no país, uma Caixa de Aposentadoria e Pensões para os respectivos empregados. Disponível em: http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/23/1923/4682.htm. Acesso em: 08 jun.2009.

_____. Decreto lei n°16.300 de 31 de dezembro de 1923a. Approva o regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública. Diário Oficial República Federativa do Brasil, 1924.

_____. Decreto n° 15.230 de 1921. Aprova o regulamento para o serviço de saúde do Exercito em tempo de paz. Collecção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil de 1921.

_____. Decreto n° 23.774 de 22 de janeiro de 1934. Torna extensiva aos enfermeiros práticos as regalias concedidas aos farmacêuticos e dentistas práticos quanto ao exercício de suas respectivas funções.

_____. Decreto nº 20.931 de 11 de janeiro de 1932. Regula e fiscaliza o exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira, no Brasil.

Page 170: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

170

_____. Decreto-lei n. 8.778, de 22 de janeiro de 1946. Regula os exames de habilitação para os Auxiliares de Enfermagem e Parteiras Práticas. In: Ministério da Saúde/Fundação e Serviço de Saúde Pública. Enfermagem, legislação e assuntos correlatos. 3 ed. Rio de Janeiro: Artes Gráficas da FSESP, 1974a. v.1, p. 1-209.

_____. Decreto-Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Provê sôbre as profissões de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, e dá outras providências. Publicado no DOU em 14 de outubro de 1969.

_____. Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937. Dá nova organização ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Diário Oficial da União, p. 1210, coluna 1, 15 de janeiro de 1937.

_____. Ministério da Saúde/Fundação e Serviço de Saúde Pública. Enfermagem. Legislação e assuntos correlatos 1972. 3. ed. Rio de Janeiro: Artes Gráficas da FSESP, (1), 209p.

CARVALHO, A. C. Escola de Enfermagem da USP: resumo histórico 1942-1980. São Paulo, 1980. 271p.

CASTRO-SANTOS, L, A; FARIA, L. Saúde e história. São Paulo: Hucitec, 2010. 328p.

CSP (CHARTERED SOCIETY OF PHYSIOTHERAPY). Over 100 years of CSP history has been condensed onto one page Journal of the Chartered Society of Physiotherapy. Londres 1994, 8 [online] disponível em: http://www.csp.org.uk/director/aboutcsp/history.cfm. Acesso: 25 de abril de 2010

DAMIÁN, P. G. Fisioterapia: passado, presente y futuro. www.efisioterapia.net; acesso: 23 de março de 2010.

DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FREIDSON, E. Para uma análise comparada das profissões: a institucionalização do discurso e do conhecimento formais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1996 11(31): 141-45.

_____. Profissão medica: um estudo de sociologia do conhecimento aplicado. Tradução André de Faria Pereira Neto e Kvieta Brezinova de Morais. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 451p. Título original: Profession of medicine.

_____. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política. Tradução Celso Mauro Paciornik. São Paulo: EDUSP, 1988. 280p. (Coleção Clássicos, n. 12).

FRENCH, H. P.; DOWDS, J. Na overview of continuing Professional development in physiotherapy. Physiotherapy, 2008, 94:190-7.

Page 171: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

171

GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GUINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfología e história. Tradução Frederico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras 1989. 281p. Título original: Miti, emblemi, spie: morfologia e storia.

HOCHMAN, G. Reformas, instituições e políticas de saúde no Brasil (1930-1945). Educar, Curitiba, 2005, 25: 127-141.

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MACHADO, M. H. (Org.). Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. 244p.

_____. (Org.). Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. 193p.

MARQUES, A. P.; SANCHEZ, E. L. Origem e evolução da fisioterapia: aspectos históricos e legais. Revista de Fisioterapia da USP, 1994, 1(1): 5-10.

MCMILLAN, M. Massage and therapeutic exercises. Philadelphia and London WB Saunders Company 1921 [on line] disponível em: http://www.archive.org/stream/massageandthera00mcmigoog#page/n4/mode/2up acesso em: 13 de setembro de 2010.

MOTA, A.; SCHRAIBER, L. B. Mudanças corporativas e tecnológicas da medicina paulista em 1930. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, 2009, 16(2): 345-60.

MOTT, M. L.; MUNIZ, M. A.; ALVES, O. S. F.; MAESTRINI, K.; SANTOS, T. Médicos e médicas em São Paulo e os Livros de Registros do Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional (1892-1932). Ciênc. saúde coletiva [serial on line] 2008 [acesso em 10 de out de 2009]; Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v13n3/08.pdf.

NICHOLLS, D.; CHEEK, J. Physiotherapy and the shadow of prostitution: the society of trained masseuses and the massage scandals of 1894. Social Science & Medicine 2006, 62: 2336-48.

OLIVEIRA, A. L. O. Da prática fisioterapista à fisioterapia como profissão. 2011. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.

OLIVEIRA, V. R. A História dos Currículos de Fisioterapia: a construção de uma identidade profissional. 2002. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2002.

_____. Reconstruindo a história da fisioterapia no mundo. Revista Estudos, São Paulo, 2005, 32(4):509-34.

Page 172: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

172

PARIS, S. V. Autonomy and future of physiotherapy. New Zealand Journal of Physiotherapy, 2008, 36(2):67-75.

PIZZOLATO, P. P. B. O Juquery: sua implantação, projeto arquitetônico e diretrizes para uma nova intervenção. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

REBELLATO, J. R.; BOTOMÉ, S. P. Fisioterapia no Brasil: perspectivas de evolução como campo profissional e como área de conhecimento. São Paulo: Manole,1999.

SANCHEZ, EL. Histórico da fisioterapia no Brasil e no mundo: atualização Brasileira de Fisioterapia. São Paulo: Panamed, 1984.

SÃO PAULO. Coleção de leis e decretos do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa oficial do Estado, v.1, 1° trimestre, 1939.

SCHRAIBER, L. B. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993. 229p.

SILVA, A, M. Novo dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Lisboa: Edições Confluência 1961; 1.

SILVA, A. P. Novo dicionário brasileiro. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos 1970; 3.

SPARKS, VJ. Profession and professionalization part 1: role and identity of undergraduate physiotherapy educators. Physiotherapy, 2008, 88(8):481-92.

SPINK, M. J. P. Regulamentação das profissões de saúde: o espaço de cada um. Cadernos FUNDAP, São Paulo, 1985, 5(10): 23-43.

TRIGO-DE-SOUZA, L. M.; ANDRADE, C. R. F. A.; TANAKA, C.; MOTA, A.; MARINHO, M. G. S. M. C. FOFITO: 50 anos de pioneirismo e lutas. 1. ed. São Paulo: Fundação Faculdade de Medicina, 2008.

Page 173: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

173

sobre os Autores

Ana Lúcia Lana Nemi: É Mestre em História Social pela USP e Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Fez Pós-doutorado na USP, Universidade de Lisboa e na UNICAMP. Atualmente desenvolve pesquisa em História e Historiografia da Saúde Pública com financiamento da FAPESP.

Ana Luiza de Oliveira e Oliveira: Graduada em Fisioterapia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2005). Programa de Aprimoramento Profissional (PAP) em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo (2007-2008). É Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (2009-2011) e Doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (2011-).

André Mota: Graduou-se em História pelo Depto. de História, FFLCH-USP, em 1994 e desenvolveu seu projeto de Doutorado, pelo mesmo departamento, no ano de 2001 defendendo a Tese: “Tropeços da medicina bandeirante, São Paulo, 1892-1920”. Entre 2006-2008 realizou seu Pós-doutoramento pelo Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP com o projeto: “Mudanças corporativas e tecnológicas da medicina no Brasil: o caso paulista nos anos de 1930”. Atualmente é Professor Credenciado do Programa de Pós-graduação do Depto. de Medicina Preventiva - FMUSP e Coordenador do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz da FMUSP. Organizou, juntamente com a Professora Maria Gabriela S.M.C Marinho, o livro sobre o centenário da Faculdade de Medicina da USP intitulado, “Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da ‘Casa de Arnaldo’”.

Fernando Salla: Possui Graduação em Ciências Politicas e Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1975), Mestrado (1991) e Doutorado (1997) em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

Maria Gabriela S. M. C. Marinho: Doutora em História Social pela FFLCH – USP, é atualmente, Coordenadora do Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal do ABC (NCTS-UFABC), onde atua também como professora e pesquisadora do Programa de Mestrado em Ciências Humanas e Sociais (MCHS-UFABC). Organizou, juntamente com o Professor André Mota, o livro sobre o centenário da Faculdade de Medicina da USP, intitulado “Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da ‘Casa de Arnaldo’”.

Page 174: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com
Page 175: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com

Conselho Editorial

Cássio Silveira (FCM-Santa Casa)Claudio Bertolli Filho (Unesp-Bauru)Cristina de Campos (DPCT- Unicamp)Cyro Festa Neto (FMUSP)Fernando Salla (NEV-USP)Flavio Edler (COC-Fiocruz)Gisele Sanglard (COC-Fiocruz)José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres (FMUSP)Laura Degaspare Mascaro (Instituto Norberto Bobbio) Lilia Blima Schraiber (FMUSP) Lilia Moritz Schwarcz (Depto. de Antropologia FFLCHUSP)Luiz Antonio de Castro Santos (UERJ)Mara Helena de Andréa Gomes (Unifesp)Márcia Tereza Couto (FMUSP)Marcos Cezar Alvarez (Depto. de Sociologia-FFLCH-USP)Maria Amélia Mascarenhas Dantes (Depto. de História - FFLCH-USP)Maria Cristina da Costa Marques (FSP-USP)Márcia Regina Barros da Silva (Depto. de História - FFLCH-USP)Maurício Antunes Tavares (Fundação Joaquim Nabuco) Nelson Filice de Barros (FCM-Unicamp) Nelson Ibañez (FCM-Santa Casa/Instituto Butantã)Nicolau Sevcenko (Depto. de História FFLCHUSP/Harvard University)Ricardo Mendes Antas Jr. (Depto. de Geografia-FFLCH-USP)Rosa Ballester (Universidad de Alicante)Tania Regina de Luca (Unesp-Assis)

Page 176: registrar, documentar e analisar um campo formativo cujas ...fm.usp.br/museu/conteudo/museu_132_volume__6.pdf · ciência, das humanidades e das artes no século XX. (...) Junto com