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Ocupao hum

e transfo das p na Amaznia b

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ormao e transformao das paisagens paisagens na Amaznia brasileira brasileira

mana Ocupao humana

GABRIEL HENRIQUE LUIUniversidade de So Paulo, Brasil

SILVIA MARIA GUERR A MOLINAUniversidade de So Paulo, Brasil

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Lui, G. H. | Molina, S. M. G.

Resumo A despeito da viso romntica que domina o senso comum, sobre a homogeneidade e a virgindade da floresta amaznica, as paisagens dessa regio so caracterizadas pela diversidade e pela longa convivncia com o ser humano. Por meio da complementao das perspectivas evolutivas, histricas e sociais, o presente artigo se prope a caracterizar as diferentes dinmicas de ocupao nessas paisagens, buscando compreender como o desenvolvimento das tecnologias e da organizao scio-poltica foram capazes de modificar as paisagens no passado e como o fazem atualmente. Os dados foram analisados em funo de um sequenciamento temporal que abrange desde a chegada do ser humano Amaznia at os dias de hoje. Trs dinmicas de ocupao distintas foram caracterizadas em funo dos diferentes nveis de transformao da paisagem: Dinmica da Diversificao (9000 a.C. a 1600 d.C.); Dinmica da Simplificao (1600 a 1960 d.C.) e Dinmica da Supresso (a partir de 1960 d.C.). Palavras-chave: Amaznia, paisagem, ocupao humana. Abstract Despite the romantic common sense view of the Amazon forest as an uniform and pristine environment, its landscapes are characterized by both diversity and long coexistence with human beings. Employing evolutionary, historical, and social approaches, this article aims to characterize the diverse settlement dynamics in the Amazon landscapes, from the arrival of the first human groups to the present, in order to understand how social development and the advance of new technologies were responsible for landscape changes in the past, and how it happens today. Three distinct settlement dynamics were observed, considering different levels of landscape transformation, along with the historical contexts: (1) Dynamic of Diversification (9000 BC to 1600 AD); (2) Dynamic of Simplification (1600 to 1960 AD); and (3) Dynamic of Suppression (from 1960 AD onwards). Keywords: Amazon, landscape, human settlement. Resumen A pesar de la visin romntica que domina el sentido comn, sobre la uniformidad y la virginidad de la selva amaznica, paisajes de esta regin se caracterizan por la diversidad y la larga convivencia con los seres humanos. A travs de la complementariedad de

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las perspectivas evolutiva, histrica y social, este artculo tiene por objetivo caracterizar las diferentes dinmicas de la ocupacin de estos paisajes. El perodo de estudio abarca desde la llegada de los seres humanos en la Amazona hasta el da de hoy, tratando de entender como el desarrollo de la organizacin social y la tecnologa fue capaz de alterar el paisaje en el pasado y como lo hace hoy. Los datos fueron analizados de acuerdo a una secuencia temporal. Tres diferentes dinmicas de ocupacin son caracterizadas por diferentes niveles de transformacin del paisaje: Dinmica de Diversificacin (9000 a.C. a 1600 d.C.); Dinmica de Simplificacin (1600 a 1960 d.C.) y Dinmica de Represin (a partir de 1960 AD). Palabras clave: Amazona, paisaje, ocupacin humana.

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INTRODUO Nas ltimas dcadas a Amaznia tem recebido crescente ateno da comunidade cientfica nacional e internacional. Isso se justifica por sua magnitude em termos de bioma florestal e complexidade de relaes ecolgicas e sociais. Entre suas caractersticas esto o posto de maior floresta tropical do mundo, com mais de 4 milhes de km de perfil florestal, correspondendo a cerca de 1/3 das reservas de florestas tropicais midas (INPE 2002). Abriga grande nmero de espcies vegetais e animais, muitas delas endmicas. Estima-se que detm a mais elevada biodiversidade, o maior banco gentico e um quinto da disponibilidade mundial de gua doce (IBGE 2004). A Amaznia Legal Brasileira, como denominada politicamente no Brasil, possui mais de 5 milhes de km, o que corresponde a cerca de 60% do territrio nacional (IBGE 2004, Brasil 2008). Detm ainda grande diversidade sciocultural. Dentro dos seus limites, vivem atualmente 60% dos 220 povos indgenas residentes no territrio brasileiro, que totalizam aproximadamente 370 mil indivduos no pas (ISA 2005). No se sabe ao certo a partir de que perodo a floresta amaznica passou a ser ocupada pelos seres humanos. A prpria histria da chegada do homem ao continente americano continua bastante controversa. Diversas disciplinas cientficas estudam e oferecem teorias sobre a dinmica desses deslocamentos humanos, como a arqueologia, a etnografia, a lingstica, a gentica, a paleoecologia, entre outras. Alm dis-

so, existem teorias e descobertas divergentes, que sugerem o incio da ocupao no continente, e na sua poro sul americana, desde 50 mil, at 10 mil anos atrs (Meggers 1987, Neves 2006, Miranda 2007, Neves & Pil 2008). Poucos ambientes terrestres escaparam de algum nvel de interferncia antrpica (Bale 1998, 2006a, Stahl 2008). Nesse sentido, para descrever as conseqncias das aes humanas sobre o espao natural, tem sido utilizado o conceito de paisagem. Dentre as diversas definies oferecidas para esse conceito (Forman & Godron 1986, Santos 1996, Metzger 2001, Turner et al. 2001, Bale, 2006b), observa-se a recorrncia de elementos comuns, como: 1) uma rea determinada; 2) componentes heterogneos e interativos; 3) referencial histrico; e 4) escala do observador. Paisagem pode ser definida, portanto, como um recorte heterogneo da realidade ambiental historicamente construda, compatvel com a capacidade de compreenso e interpretao do observador (Lui 2008: 38). Conforme a definio acima, o conceito de paisagem s ganha sentido no contexto humano. A paisagem formada, portanto, a partir de algum nvel de interao humana com o ambiente (Figura 1). As populaes pr-histricas tiveram um papel importante na formao de determinadas paisagens e seus efeitos passados contribuem para os padres da paisagem atual (Denevan 1992, Forman 1997, Bale 1998, Turner et al. 2001, Hornborg 2005). De maneira geral, esses efeitos podem ser caracterizados pela mudana na abundncia de

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Figura 1 - Paisagem amaznica prxima cidade de Santarm-PA, 2004.

plantas na comunidade florestal, extenso ou diminuio da abrangncia de espcies, criao de oportunidades para a invaso de espcies daninhas, alterao dos nutrientes do solo e alterao do mosaico da paisagem (Delcourt 1987, Stahl 2008). Com relao Amaznia, estudos recentes indicam um elevado grau de desenvolvimento social e tecnolgico a partir do incio da era crist, que levou a modificaes no potencial dos grupos humanos no que se refere transformao da paisagem. Indcios de queimadas antropognicas, assentamentos, montculos, ilhas de florestas antropognicas, diques circulares, terra preta, campos elevados, redes de transporte e comunicao, estruturas para manejo da gua e da pesca, entre outros, apontam para o estabelecimento de sociedades organizadas e complexas (Erickson 2008, Heckenberger et al. 2003, Neves 2006). Com o contato e colonizao europia, a partir do sculo XVI, a ocupao hu-

mana na regio comeou a receber novas influncias. As tcnicas e relaes com os recursos naturais estabelecidos pelas populaes nativas foram muito pouco consideradas (Bueno 2002, Pdua 2005). A introduo de novas ferramentas, novas tecnologias e o choque cultural provocado pelos colonizadores alterou o nvel de mobilizao da energia do meio para as atividades produtivas, provocando mudanas nas tecnologias de subsistncia das populaes nativas (Denevan 1992, 2006). Foi o incio de um processo de explorao, no qual os recursos da paisagem foram, pela primeira vez, definitivamente retirados da floresta amaznica. A presso populacional, a busca por recursos naturais, a ascenso do modelo capitalista, o desenvolvimento tecnolgico, o valor da terra, a expanso da fronteira agrcola, entre outros fatores, imprimiram novas presses Amaznia (Diegues 1993, Margulis 2003). OAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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prprio governo brasileiro, a partir da dcada de 1960, promoveu polticas de colonizao e explorao da floresta, sob um planejamento equivocado ou inexistente (Margulis 2003, AbSaber 2004, Alencar et al. 2004). Esses processos levaram a fronteira agrcola e pecuria a se direcionar fortemente para a Amaznia, principalmente nas suas bordas sul e leste, em uma configurao espacial chamada de Arco do Desmatamento (Figura 2) (Fearnside

2001, INPE 2002, IBGE 2004). Sob esse contexto de intensificao da mudana de cobertura do solo ao qual a Amaznia est atualmente submetida, pesquisas que buscam compreender as transformaes da paisagem operadas pelas populaes humanas no passado ganham relevncia imediata, j que a manuteno dos vestgios dessas transformaes se coloca como uma premissa para a gerao dos dados e interpretao dos resultados.

Figura 2 - Limites da Amaznia Legal Brasileira e a distribuio espacial do desmatamento, com destaque para o Arco do Desmatamento (adaptado de Brasil 2008).

O presente artigo se prope a caracterizar as diferentes dinmicas de ocupao das paisagens amaznicas, desde a chegada do ser humano at os dias de hoje. Por meio da complementao

e do confronto das perspectivas evolutivas, histricas e sociais, busca-se entender como o desenvolvimento da organizao social e das tecnologias foi capaz de modificar os padres da pai-

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sagem no passado, e como o faz atualmente. Para atingir tais objetivos, foi realizada uma extensa pesquisa bibliogrfica em diversas linhas cientficas que abordam o processo de ocupao humana na Amaznia, como a arqueologia, a antropologia, a histria, a lingstica, a ecologia e a geografia humana. Com os dados obtidos atravs da pesquisa bibliogrfica, buscou-se identificar e caracterizar os momentos nos quais os nveis de alterao da paisagem pelas populaes humanas foram mais acentuados. As informaes foram organizadas em funo do estabelecimento de uma seqncia temporal categorizada a partir da identificao de indicadores comuns de transformao da paisagem. ESTABELECIMENTO DE SOCIEDADES COMPLEXAS NA AMAZNIA PR-COLONIAL A baixa disponibilidade e espacialidade dos dados constituem-se nos principais entraves para as pesquisas que buscam esclarecer o passado pr-colonial da regio amaznica. A carncia de dados faz com que a delimitao de grupos humanos distintos, a partir de caractersticas culturais e sua respectiva correlao com o domnio de tecnologias e (ou) um determinado nvel de organizao social, ainda no seja clara, apesar do esforo acadmico recente ter resultado em avanos significativos para algumas localidades. No entanto, o surgimento e adoo de novas tecnologias e novos padres de organizao social, mais complexos, parecem ter ocorrido com relativa simultaneidade em diversas regies da Amaznia (Petersen et al. 2001, Neves 2006). Nesse

sentido, o estabelecimento de uma seqncia temporal surge como a melhor forma de realizar uma descrio geral do desenvolvimento de sociedades humanas na Amaznia e suas respectivas alteraes da paisagem. A delimitao de perodos de tempo, a partir da ocorrncia de eventos que transformam uma determinada realidade vigente, se configura como um recurso metodolgico importante, amplamente utilizado em diversas disciplinas que realizam estudos relativos a perodos pr-histricos. Especificamente para a pr-histria dos grupos humanos que ocuparam as Amricas e o Brasil, encontram-se geralmente trs perodos principais, com seus respectivos limites temporais aproximados: (1) Perodo Paleoindgena, ocorrido entre 15.000 e 10.000 AP; (2) Perodo Arcaico, ocorrido entre 10.000 e 2500 AP e (3) Perodo Formativo, ocorrido entre 2500 AP e a chegada dos primeiros colonizadores europeus (De Blasis 2001). O Perodo Paleoindgena compreende o momento no qual, segundo os dados arqueolgicos mais consensuais, se deu a chegada e disperso inicial dos grupos humanos no continente americano e na Amaznia. Os mais antigos vestgios humanos para todo o continente foram encontrados no Nordeste dos Estados Unidos, datados de aproximadamente 14000 AP (Gilbert et al. 2008), enquanto os mais antigos vestgios de ocupao humana na Amaznia se referem a uma regio prxima a cidade de Santarm-PA, datados em at 11200 AP (Roosevelt et al. 1996). Esses primeiros grupos assistiram Amaznica 1 (1): 200-228, 2009

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transio entre os perodos geolgicos Pleistoceno e Holoceno, em uma poca marcada por mudanas climticas intensas que causaram modificaes importantes nas comunidades biticas, observadas tanto nas espcies vegetais quanto animais. Ao contrrio da caa especializada observada na Amrica do Norte, a variedade de animais e vegetais consumidos na floresta amaznica indica o emprego de uma tecnologia primria de subsistncia caracterizada pela caa e coleta generalista, em uma estratgia de explorao que se valia da biodiversidade local (Roosevelt et al. 1996, Neves 2006). No existem indcios do estabelecimento de organizao social alm de pequenos grupos de caadores e coletores no hierarquizados politicamente, bem como da ocorrncia de qualquer alterao significativa da paisagem nesse perodo. A transio do Perodo Paleoindgena para o Perodo Arcaico normalmente caracterizada em funo do incio da produo cermica (De Blasis 2001). exatamente no Baixo Amazonas, prximo cidade de Santarm-PA, que foram encontrados os vestgios cermicos mais antigos de todo o continente americano, datados em aproximadamente 8000 AP (Roosevelt et al. 1991). O Perodo Arcaico marcado ainda por outros importantes indicadores, como a diversificao dos grupos de caadores e coletores, com a formao de alguns dos principais agrupamentos etnolingsticos que ocuparam a regio amaznica (Arawak, Tupi, Karib e J) e a domesticao de espcies que se tornariam a base da dieta e dos

sistemas agrcolas amaznicos, como a pupunha (Bactris gasipaes) e a mandioca (Manihot esculenta). Contudo, uma das principais caractersticas desse perodo para a Amaznia a descontinuidade temporal de avanos sociais e tecnolgicos importantes. Existe um intervalo de aproximadamente 5000 anos (cerca de 8000 a 3000 AP) entre o surgimento de inovaes tecnolgicas, como o incio da produo cermica e a domesticao de espcies vegetais, at a adoo efetiva da cermica e da agricultura (Neves 2006). Duas hipteses principais contribuem para a compreenso desse cenrio: (1) a descontinuidade temporal de avanos sociais e tecnolgicos seria reflexo da resposta dos grupos humanos s mudanas climticas ocorridas no Holoceno mdio, que teriam tornado o clima mais seco e diminudo a disponibilidade de recursos, levando a um modo de vida mais simples e causando um esvaziamento demogrfico da floresta e (2) a descontinuidade temporal de avanos sociais e tecnolgicos seria explicada pelo prprio problema de amostragem, recorrente na arqueologia amaznica, que ainda no seria capaz de esclarecer o desenvolvimento tecnolgico e social ocorrido no Perodo Arcaico (Neves 2006). J a transio do Perodo Arcaico para o Perodo Formativo normalmente caracterizada em funo do surgimento de sociedades nas quais a agricultura adotada como tecnologia primria de subsistncia (De Blasis 2001). Em diversas partes do planeta observada uma relao direta entre fatores como a expanso e a adoo dos sistemas agrcolas, o aumento populacional,

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o estabelecimento do sedentarismo e o aumento da complexidade social (Lathrap 1977, Bellwood 2001). Esse processo desencadeou modificaes intensas em algumas das espcies vegetais utilizadas, ao ponto destas no se reproduzirem mais sem a interveno humana. Contudo, as modificaes mais importantes parecem ter sido reservadas para a prpria espcie humana, que experimentou um novo estgio de desenvolvimento social atravs do estabelecimento de novos modos de vida e novas relaes com a natureza. Conforme coloca Lathrap (1977: 715), ns tendemos a pensar que o Homem domesticou totalmente o cultivo ... mas o que realmente aconteceu que o cultivo domesticou totalmente o Homem. A Amaznia parece no ter fugido regra. A partir de aproximadamente 2500 AP, os registros arqueolgicos apontam para o aumento no tamanho, densidade e durao das ocupaes humanas. Para o contexto amaznico, essa nova etapa do desenvolvimento social foi possvel atravs da combinao da explorao de diversos produtos base de mandioca, no manejo de recursos aquticos (principalmente peixes e tartarugas) e na explorao de outros produtos vegetais, com grande peso para diversas espcies de palmeiras e seus frutos (Bale 1989, Denevan 1996, Neves 2001, Petersen et al. 2001, Neves 2006, Erickson 2008). O Perodo Formativo assistiu ainda ao estabelecimento de sociedades complexas na Amaznia, s custas de uma revoluo tecnolgica e social que resultou em um indito e elaborado n-

vel de transformao da paisagem nas terras baixas da Amrica do Sul. O mais claro indicador das transformaes realizadas nesse perodo tem sido a terra preta. Apesar dos primeiros indcios da formao desse tipo de solo se remeterem ainda ao Perodo Arcaico, em uma regio que corresponde ao atual estado de Rondnia, foi no Perodo Formativo que sua distribuio e freqncia aumentaram, associadas s transformaes tecnolgicas e sociais que caracterizam essa etapa da pr-histria amaznica. A distribuio dos stios de terra preta nos registros arqueolgicos atuais indica um processo de ocupao humana intensivo em vrios pontos da Amaznia (Petersen et al. 2001, Neves 2006). Alm da terra preta, outras importantes alteraes deixaram marcas visveis na paisagem atual e so utilizadas como indicadores do domnio de tecnologias, como a ocorrncia de assentamentos de grandes propores; a construo de montculos e tesos; a formao de ilhas de florestas antropognicas; a construo de diques e outras estruturas de terra em formato geomtrico (geoglifos); a construo de campos elevados; o estabelecimento de estradas e redes de comunicao; a construo de estruturas para manejo da gua e da pesca e o domnio de prticas agroflorestais (Bale 1989, Denevan 1992, Schaan et al. 2007, Erickson 2008). Os indicadores tecnolgicos so ainda uma importante referncia para a compreenso das transformaes sociais que ocorreram nesse perodo. Somadas s informaes etnolingsticas, aos primeiros relatos histricos e aosAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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prprios vestgios arqueolgicos, essas informaes apontam para o aumento da complexidade social a partir do primeiro milnio da era crist, atravs do registro de adensamento populacional; diferenas no tamanho das habitaes, no modo de sepultamento e na localizao de bens de prestgio, o que sinaliza a estratificao social e a existncia de chefias; produo de cermicas e artesanato elaborados, que indicam a especializao do trabalho; existncia de territrios com centros poltico-administrativos definidos; a construo de praas pblicas com indicaes de manifestaes religiosas e a existncia de redes de troca e comrcio que atravessavam milhares de quilmetros na floresta (Myers 1992, Porro 1995, Fausto 2005). A ocorrncia de extensas redes de troca e comrcio se coloca como um dos mais surpreendentes indicadores da complexidade social amaznica e tem implicaes tericas importantes, no sentido em que dificulta a delimitao de traos culturais distintos e a respectiva correlao tecnolgica com os grupos humanos que ocuparam a regio. A diversidade de bens produzidos e comercializados sinaliza ainda a diversidade cultural existente na floresta amaznica, atravs de um complexo nvel de especializao do trabalho. Dentre esses produtos encontram-se cermicas, machados, lminas, arcos, flechas, venenos, remos, sal, peixes defumados, leo de tartaruga, manteiga de ovos de tartaruga, algodo, ouro, colares de conchas, raladores de mandioca, redes, cestas e escravos

(Porro 1995, Hornborg 2005). A partir da chegada dos europeus no litoral da Amrica do Sul, suas ferramentas passaram a ser encontradas no interior da floresta, antes de qualquer indcio de contato direto com as populaes nativas que a possuam, o que comprova a extenso e a intensidade das trocas realizadas (Porro 1995). Os relatos dos cronistas indicam ainda que as estradas pelas quais se davam as redes de troca e comrcio contavam inclusive com pousadas e postos de abastecimento ao longo do caminho, evidenciando algum nvel de administrao regional (Porro 1995). Nesse sentido, a intensificao do uso de recursos que se presume ter ocorrido durante o Perodo Formativo deve ser compreendida como um indicador da complexificao social, refletindo a relao com as trocas comerciais entre os diferentes grupos. A economia dessas sociedades passou a se concentrar no s na subsistncia, mas tambm na produo destinada exportao, na demanda por produtos suprfluos destinados aos nveis mais elevados da hierarquia social e na produo de artigos cerimoniais, como as cervejas de mandioca e de milho (Hornborg 2005). A despeito da dificuldade metodolgica imposta pelo contexto inter-relacional, a delimitao cultural dos grupos amaznicos mais complexos se configura como um objetivo importante para a compreenso da pr-histria amaznica. Os principais indcios sobre os provveis portadores das caractersticas tecnolgicas e sociais descritas acima apontam para populaes pertencentes

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aos grupos etnolingsticos Arawak e Tupi. A linguagem pode ser considerada como uma unidade de anlise que define os limites sociais e constitui o ncleo da identidade cultural para populaes antigas (Hornborg 2005). Segundo Hornborg (2005), o grupo Arawak teria se constitudo na mais poderosa fora poltica e expansiva da Amaznia pr-colonial. A identidade das sociedades Arawak seria definida em funo de caractersticas como a apropriao das plancies frteis, o domnio da navegao e do comrcio nos rios principais, o estabelecimento de densos assentamentos populacionais, a prtica de agricultura intensiva, a formao de alianas entre as tribos nas rotas comerciais fluviais e a distribuio geogrfica da identidade do grupo. Nenhum dos outros grupos etnolingsticos amaznicos, como o Karib, o Pano ou J aparentam ter atingido o mesmo grau de centralizao poltica e estratificao social, em comparao com o grupo Arawak (Heckenberger 2002, Hornborg 2005). Somente o grupo Tupi teria atingido nveis de complexidade tecnolgica e social semelhantes, estabelecendo assentamentos de grandes propores ao Sul e ao Leste da esfera de influncia Arawak. Porm, sua forma de atuao teria sido distinta. Enquanto o grupo Arawak teria optado pelo comrcio e diplomacia, o grupo Tupi teria optado pelos conflitos e conquistas militares (Brochado 1984, Hornborg 2005). Com relao distribuio espacial dos grupos, o rio Amazonas parece ter funcionado como um divisor de territrios, com a concentrao de populaes Arawak na margem

esquerda e populaes Tupi na margem direita (Hornborg 2005). Apesar da opo pela descrio atemporal, realizada em funo dos grupos etnolingsticos, Hornborg (2005) reconhece que a distribuio das identidades lingsticas possui limitaes e no necessariamente reflete os movimentos populacionais ocorridos, j que existiam intensos contatos e trocas comerciais entre os grupos. Hornborg (2005) defende ainda que a cronologia cermica e de tcnicas agrcolas deve ser interpretada como a difuso de uma tcnica agrcola pelo continente, integrado por agricultores de terras midas com trocas culturais e identidade etnolingstica comum, e no como o processo migratrio de determinados grupos isolados. Em sntese, o que se observaria na Amaznia pr-colonial seria a migrao da cultura com grande destaque para a cultura desenvolvida pelo grupo Arawak. Retomando a perspectiva evolutiva para a compreenso do Perodo Formativo, pode-se assumir que as evidncias arqueolgicas mais recentes permitem classificar as sociedades amaznicas mais complexas como cacicados. Cacicado uma categoria evolutiva que se originou a partir da classificao realizada por Steward (1948), na qual no se enquadravam as populaes amaznicas (Meggers & Evans 1957, Meggers 1977, 1987). Na mesma oportunidade em que elaborou a categoria de cultura de floresta tropical, na qual se encaixariam a maioria das populaes humanas amaznicas, Steward (1948) elaborou outra categoria, supe-

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rior em termos de complexidade social, relativa s populaes que ocupavam a regio do Caribe e ao Norte da Cordilheira dos Andes. Ao desembarcar na regio das Antilhas, em 1492, Colombo se deparou com uma populao conhecida como Taino, de lngua Arawak, na qual seus chefes eram denominados kasik. A partir desse termo, os espanhis criaram o termo cacicazgo para determinar uma regio subordinada a esse chefe (Fausto, 2005). Oberg (1955) definiu pela primeira vez o termo cacicado como uma categoria tipolgica, em um artigo sobre estrutura social na Amrica do Sul e Central, com base na classificao apresentada previamente no livro de Steward (1948). Posteriormente, Service (1962) estabeleceu uma tipologia geral dos estgios de desenvolvimento sociopoltico, definindo-os seqencialmente como Bando, Tribo, Cacicado e Estado, em uma categorizao evolutiva que ainda influente na Arqueologia e em outras perspectivas antropolgicas. A utilizao do termo cacicado para designar diferentes sociedades ao redor do mundo fez com que essa classificao se tornasse demasiadamente genrica. Sua caracterstica principal passou a ser a indicao de um estgio evolutivo intermedirio, no qual as sociedades apresentavam hierarquizao social e organizao poltica, mas ainda no configuravam um estado (Fausto 2005). A partir das descobertas que apontavam para a existncia de sociedades complexas na Amaznia, o termo foi utilizado por autores como Roosevelt (1987), Roosevelt e outros (1991), Myers (1992) e Hornborg

(2005) para definir o novo estgio social conquistado pelas populaes amaznicas pr-coloniais. Contudo, o termo cacicado deve ser empregado com cautela, j que a complexificao social e tecnolgica observada na Amaznia durante o Perodo Formativo possui caractersticas especficas, cuja interpretao no pode incorrer no erro de uma possvel simplificao em funo do atendimento a uma tipologia evolutiva que j no as contempla. Conforme coloca Fausto (2005: 41) h vrios modos de integrao, regionalizao e complexificao, e precisamos ampliar nossa imaginao sociolgica para estudlos...advogo a necessidade de rompermos com o carter estanque das tipologias e pensarmos toda a Amrica do Sul em outra escala e nvel de complexidade...com freqncia confundiu-se o tipo com as formaes sociopolticas reais... Sob esse contexto, cabe destacar que a utilizao do termo sociedades complexas, como ocorre diversas vezes no presente artigo, se refere a algumas das sociedades amaznicas que se estabeleceram a partir do Perodo Formativo e apresentavam caractersticas como estratificao social, organizao poltica regionalmente articulada, especializao do trabalho, produo de bens de prestgio e bens destinados a troca e ao comrcio, alm do domnio de tecnologias que suportam o adensamento populacional e o sedentarismo, como a agricultura e o manejo de recursos aquticos e florestais. O resultado de todo esse processo de desenvolvimento tecnolgico e social operado pelas populaes nativas est marcado nas paisagens amaznicas

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de uma forma que se torna cada vez mais compreensvel cientificamente. Bale (1989) estabelece que pelo menos 11,8% da floresta de terra firme da Amaznia brasileira possui origem antrpica, totalizando quase 390.000 km, mensurados atravs da distribuio espacial de formaes vegetais que no ocorreriam naturalmente, como florestas de bambu, castanhais e florestas de cips. Denevan (1992) refora ainda o carter acumulativo das alteraes na comunidade bitica, j que a floresta tropical levaria de 60 a 80 anos para recuperar biodiversidade e de 140 a 200 anos para recuperar biomassa. Partindo de um pressuposto de 15.000 anos de ocupao humana, Denevan (1992) estima que 40% das florestas latino-americanas estejam em estado de sucesso florestal secundrio devido presso antrpica. J observando o potencial de transformao da paisagem operado pelas sociedades mais complexas, Magalhes (2008) estima que 60% da floresta amaznica possam ter experimentado algum nvel de manejo antrpico no perodo pr-colonial. Dois estudos recentes tambm colaboram para a compreenso desse cenrio. Heckenbeger e outros (2003) encontraram evidncias de grandes assentamentos distribudos por uma rea de aproximadamente 400 km na regio do Alto Xingu, estado de Mato Grosso, com ocupao contnua entre 1250 e 1650 d.C., os quais podem ter suportado a convivncia de at 5000 pessoas. Entre os indicadores de domnio tecnolgico e complexidade social foram

encontrados indcios de praas, pontes, represas, canais e do cultivo de mandioca e outras plantas caractersticas que apontam para uma relao com o grupo Arawak (Heckenberger et al. 2003). Essas caractersticas apontam tambm para uma sociedade articulada regionalmente em assentamentos permanentes, com hierarquia social definida e dependente da agricultura intensiva de mandioca e do manejo de outros recursos florestais, como as rvores frutferas (Heckenberger et al. 2003). Schaan e outros (2007) encontraram e interpretaram dados sobre uma srie de estruturas de terra em formato geomtrico, denominadas de geoglifos, no estado do Acre. Apesar de estar em fase preliminar de pesquisa, a quantidade de trabalho e capacidade de transformao da paisagem que a construo dessas estruturas demanda parece indicar a ocorrncia de uma sociedade complexa, regionalmente organizada e densamente povoada em reas de terra firme, da mesma forma que os assentamentos encontrados por Heckenberger e outros (2003). A funo dessas estruturas de terra ainda no clara, j que a localizao geogrfica privilegia tanto a observao distncia, o que aponta para uma possvel estrutura de defesa, quanto correlao com nascentes de boa qualidade, o que aponta para uma possvel estrutura de manejo de gua. Schaan e outros (2007) estabelecem que, caso esses geoglifos se correlacionem temporalmente com outras estruturas de terra semelhantes encontradas no Alto Xingu e na Bolvia, seria possvel presumir a disseAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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minao regional de uma prtica para responder a situaes similares, como a conflitos, por exemplo. De qualquer forma, a geometria perfeita dessas estruturas indica um carter simblico em sua construo (Schaan et al. 2007). Schaan e outros (2007: 69) colocam que a histria amaznica plena de episdios de superao das supostas dificuldades ecolgicas e que as evidncias de sociedades complexas na terra firme, observadas tambm no trabalho de Heckenberger e outros (2003), no suportam mais um modelo no qual somente a vrzea sustentaria tais sociedades. Como observado anteriormente, boa parte da discusso acadmica sobre o estabelecimento de sociedades complexas na Amaznia se d em funo da generalizante dicotomia entre a vrzea e a terra firme. A vrzea reconhecida, genericamente, pela sua riqueza de recursos e instabilidade nas condies de ocupao, enquanto a terra firme reconhecida, genericamente, sua pela pobreza de recursos e estabilidade nas condies de ocupao. Entretanto, uma anlise mais detalhada mostra que esses ambientes so muito diversos dentro de suas prprias categorias, j que a regio amaznica heterognea em tipos de solos, regimes pluviais, temperaturas mdias e tipos vegetacionais. Na tentativa de concluir esse embate, Denevan (1996) prope um modelo chamado de bluff [barranco], segundo o qual os grandes assentamentos se dariam nas reas adjacentes s elevaes das margens dos rios que no so atingidas pelas inundaes, ca-

racterizadas pelo encontro da terra firme com o canal principal do rio (Figura 3). Dessa forma, as reas de vrzea seriam utilizadas predominantemente para a obteno de recursos para a subsistncia. Considerando a distribuio espacial dos bluffs ao longo dos rios, a ocupao humana seria conseqentemente descontnua e concentrada prxima aos bluffs que permitissem o acesso ao curso dgua principal e a fontes de gua limpa. Segundo Denevan (1996), alm dos registros arqueolgicos, os registros histricos das primeiras expedies europias confirmariam o adensamento populacional nos bluffs. As prprias misses jesuticas do sculo XVII, responsveis pela fundao de algumas das atuais cidades amaznicas, se estabeleceram nos bluffs (Denevan, 1996). Porm, o modelo de Denevan (1996) no explicaria as descobertas mais recentes observadas nos trabalhos de Heckenberger e outros (2003) e Schaan e outros (2007), sobre as sociedades complexas e densamente povoadas que pareceram existir longe da vrzea. Partindo do pressuposto de que havia disponibilidade de circulao pelo territrio, seria pouco provvel que as sociedades amaznicas no fizessem uso dos recursos de todos os ambientes que as circundavam, fossem eles a vrzea, a terra firme ou qualquer outra classificao que se pretenda estabelecer atualmente. Aps mais de 10.000 anos de convivncia e aprendizado, as potencialidades e limites desses ambientes deviam ser muito bem conhecidos e seria muito pouco provvel que as populaes humanas no tirassem

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Figura 3 - Representao de um bluff do rio Amazonas (destacado) a partir de uma imagem de radar, na qual se observa o encontro da terra firme com o canal principal do rio (adaptado de Klamer 1984).

proveito das vantagens de todos eles, caso no houvesse nenhuma restrio. Tal restrio poderia se configurar a partir da ocorrncia de conflitos e disputas territoriais que limitassem o acesso a um determinado ambiente ou em decorrncia de alguma outra barreira cultural desconhecida. Contudo, a

anlise das limitaes ecolgicas gerais da vrzea ou da terra firme parece j no se configurar como uma varivel to determinante para o desenvolvimento das sociedades amaznicas pr-coloniais. Conforme concluem Petersen e outros (2001), o suporte de grandes sociedades na Amaznia foiAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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uma combinao de recursos da vrzea com a terra firme, em graus relativos s condies ecolgicas locais. Cabe ressaltar que a opo efetivada no presente artigo por descrever o Perodo Formativo em funo das sociedades que atingiram os nveis mais complexos no implica em assumir que todos os grupos da regio amaznica atingiram, ou sequer almejaram atingir a esses nveis durante esse perodo. No significa tambm que haja um julgamento de valor entre modos de vida mais ou menos complexos. Essa opo reflete apenas a possibilidade de uma anlise mais precisa em funo do principal indicador utilizado durante o trabalho as transformaes das paisagens, que foram potencialmente mais intensas nas sociedades mais complexas. O estabelecimento de uma seqncia temporal tambm no implica necessariamente em uma linearidade progressista para o desenvolvimento da ocupao humana na Amaznia. Apesar de algumas sociedades aparentemente conhecerem seus mais altos nveis de complexidade no limiar dos primeiros contatos com os europeus, outras sucumbiram ainda antes, por fatores ainda no plenamente esclarecidos. Os registros arqueolgicos apontam que a densidade demogrfica mais elevada no centro da Amaznia se deu no sculo XI, enquanto o colapso da sociedade marajoara aparentemente se deu no sculo XIV (Schaan 2001, Neves 2006, Miranda 2007). Desconsiderando-se a anomalia representada pelo fator presso europia, que se deu no final do Pe-

rodo Formativo, as transformaes tecnolgicas e sociais operadas pelos grupos humanos na Amaznia podem ser interpretadas no contexto de escolhas. Nesse sentido, seria possvel que alguns desses grupos alternassem entre diferentes tecnologias primrias de subsistncia, refletindo uma escolha consciente de utilizao mais eficaz dos recursos frente a uma nova realidade, que pode ser imposta tanto por fatores ambientais quanto socioculturais (Neves 2006). O grupo dos Guaj, que vive atualmente no Oeste do estado de Maranho, seria um exemplo dessa alternncia. Existem evidncias etnohistricas que sugerem que esse grupo viveu em assentamentos e praticou horticultura. Porm, devido a conflitos internos, acabou adotando posteriormente o modo de vida nmade, baseado na caa e coleta (Bale 1989). A despeito da viso romntica que domina o senso comum, sobre a homogeneidade e a virgindade da floresta, a intensificao das atividades realizadas pelos grupos humanos no Perodo Formativo torna mais fiel a representao da Amaznia como um imenso jardim cultivado pelas populaes nativas, em contraposio a uma suposta natureza intocada (Erickson 2008). Com o desenvolvimento de atividades como a realocao, atrao, proteo, cultivo, transplante, semidomesticao, domesticao e uso dos recursos, os grupos humanos manipularam no s as espcies, mas tambm os prprios processos ecolgicos (Bale 1989). Conforme coloca Bale (1989: 6) a maioria dos ndios amaznicos no

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so meros forrageadores de recursos. Eles so gestores de recursos. Sob a mesma perspectiva, Mann (2005: 331) coloca que confrontados a um problema ecolgico, os ndios o trataram. Em vez de se adaptar natureza, eles a criaram...quando Colombo apareceu e arruinou tudo. COLONIZAO EUROPIA NA AMAZNIA Os primeiros contatos europeus no Novo Mundo podem ser considerados como um dos acontecimentos mais revolucionrios da histria da humanidade. No tanto pelo sucesso das perigosas e dispendiosas viagens transocenicas, mas por colocar em contato novamente dois dos maiores contingentes de uma espcie que havia se separado h pelo menos 20 mil anos. E tambm, pelas trgicas conseqncias para os pelo menos 40 milhes de habitantes que ocupavam a Amrica (Denevan 1992), que sucumbiram s novas doenas e assistiram desarticulao de suas sofisticadas sociedades. Depois de um processo de explorao e colonizao inicial, protagonizado por espanhis, ingleses, franceses, holandeses e portugueses, o domnio da maior parte da regio amaznica permaneceu nas mos das duas naes ibricas. O ponto de partida para a ocupao da Amaznia pelos portugueses era o Forte do Prespio, atual cidade de Belm, fundado em 1616 na baa de Guajar pelo capito Francisco Castelo Branco. A colonizao portuguesa na regio tinha como principais objetivos garantir a posse do territrio, dispor

de mo-de-obra barata de origem indgena e obter lucro com o extrativismo vegetal. As chamadas "drogas do serto", como o urucum, o guaran, o cravo, o cacau, a castanha e alguns tipos de pimenta rendiam bons lucros no mercado internacional e foram alguns dos produtos monopolizados pela metrpole. sua procura, milhares de pessoas internaram-se na floresta e os vilarejos foram surgindo s margens dos rios (Bueno 2002, Gadelha 2002, Miranda 2007, Costa 2008). Como conseqncia do avano da ocupao provocado pela busca s drogas do serto e das misses jesuticas, vrias cidades foram fundadas nas margens montante da foz do rio Amazonas. Entre elas esto GurupPA (1639), Santarm-PA (1661), So Gabriel da Cachoeira-AM (1690), Manaus-AM (1699) e Tef-AM (1709) (Miranda 2007). Apesar do foco econmico da regio se concentrar na explorao do extrativismo vegetal, as atividades agrcolas foram sempre incentivadas pela Coroa portuguesa (Figueiredo et al. 2008). J no sculo XVI se iniciaram as atividades produtivas na Amaznia, inaugurando uma nova forma de lidar com a paisagem. Em 1622 os portugueses introduziram a pecuria na regio, trazendo animais mestios das ilhas de Cabo Verde (Homma 2003 apud Miranda 2007). Em 1682 foi fundada a Companhia do Comrcio do Maranho, que tambm atuava na agricultura exportadora de acar e algodo com fornecimento de crdito, transporte e escravos aos produtores (Miranda 2007). Sob a influncia daAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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poltica do Marqus de Pombal, em meados do sculo XVIII, a agricultura passou a ser vista como um projeto civilizatrio para a regio amaznica, para qual foram oferecidos incentivos tributrios, financiamento para importao de escravos, estmulo migrao e concesso de terras pblicas (Figueiredo et al. 2008). A organizao e a institucionalizao da produo marcaram o incio de um processo de transformao do uso do solo, ainda que concentrado nas regies litorneas e ao redor dos centros urbanos, no qual a floresta passou a ser substituda e simplificada em detrimento da produo de espcies exticas agrcolas, com base na monocultura. Os impactos sociais do contato europeu se tornam mais claros quando so observados dados quantitativos. Atravs de estimativas de densidade populacional para diferentes regies do continente americano, Denevan (1992, 1996) calcula que aproximadamente 5 milhes de pessoas ocupavam a bacia amaznica no ano de 1492. Essa populao experimentou uma reduo de aproximadamente 90% at 1650, sendo que em 1750, somando-se ndios, europeus e escravos, havia apenas 30% do total de habitantes em relao a 1492 (Denevan 1992). Dessa forma, em termos da transformao da paisagem (exclusivamente), pode-se dizer que os primeiros sculos de ocupao europia representaram uma trgua para a floresta amaznica. Com a expressiva diminuio populacional provocada pelos colonizadores, o ser humano deixou de ser um elemento que atuava na paisagem

florestal como um todo. Com isso, a partir da uma floresta antropizada, passou a ser estabelecida uma nova dinmica de relaes ecolgicas, que se aproximariam do natural. A explorao europia se concentrava em locais e elementos especficos da paisagem, no repetindo o mesmo grau de transformaes conduzido pelas sociedades nativas anteriores. Contudo, a mentalidade europia inauguraria trs marcos que, em grande extenso, dominam a forma de atuao humana na floresta at hoje: (1) a supresso da floresta para introduo de espcies exticas, trazendo como conseqncia a simplificao da paisagem; (2) a explorao localizada, mas intensiva, de produtos de interesse comercial para a metrpole e (3) a exportao dos recursos naturais para fora do sistema delimitado pela floresta. INTENSIFICAO DA OCUPAO HUMANA NA AMAZNIA Depois do processo inicial de colonizao pelos portugueses e a incorporao de boa parte da Amaznia ao territrio brasileiro nos sculos XVII e XVIII, a ocupao mais intensiva da regio dependeria da descoberta e (ou) realizao de alguma atividade com potencial lucratividade, j que a produo e acumulao de riquezas se apresentava como um dos maiores objetivos dos Estados e suas sociedades. Ao exemplo das atividades econmicas realizadas no litoral e centro-sul do Brasil, como o acar, a minerao e o caf, a regio amaznica precisaria tambm de um atrativo econmico para se integrar economia nacional.

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Com a descoberta e a explorao da borracha a partir de meados do sculo XIX, foram observados dois ciclos econmicos que incrementaram o fluxo de dinheiro e pessoas, principalmente para as duas maiores cidades amaznicas (Manaus e Belm), dando perspectivas de progresso para toda a Amaznia. Contudo, com o trmino desses ciclos e o declnio econmico da regio, os impactos sociais se mostraram mais significativos do que os impactos ambientais. O aumento da presso exploratria na regio amaznica, decorrente do acrscimo populacional, ainda no havia sido suficiente para alterar a floresta como um todo, j que as cidades e vilas se concentravam nas margens dos grandes rios. At o ano de 1950, a Amaznia Legal Brasileira possua menos de 4 milhes de habitantes (Barreto et al. 2006) e at o ano de 1970, apenas 3% de reas desmatadas (Margulis 2003). A primeira ameaa a grandes extenses da floresta ainda estava por vir. Em 1964 os militares assumiram o governo brasileiro e estabeleceram uma nova dimenso ideolgica, segundo qual a regio amaznica representava um vazio demogrfico que deveria ser ocupado a qualquer custo, nos mesmos moldes de uma operao de guerra. Atravs da Lei 5.173 de 27 de outubro de 1966, foi criada a Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM) que substitua a antiga Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVA), criada no governo de Getlio Vargas. Alm de delimitar espacialmen-

te a Amaznia Legal Brasileira, o estabelecimento da SUDAM tinha como objetivo acelerar o desenvolvimento econmico e a ocupao humana na regio (Brasil 1966). Desconsiderando toda a histria de ocupao humana precedente, o governo militar deu incio aos grandes projetos de colonizao e desenvolvimento da Amaznia, como o Programa de Integrao Nacional (1970), o Programa Poloamaznia (1974), o Programa Grande Carajs (1980) e o Programa Polonoroeste (1983) (Hecht & Cockburn 1990, Kohlhepp 2002). Esses grandes programas institucionais tinham como objetivos principais o incentivo s atividades econmicas e colonizao de grandes extenses de terra. Para atingir o primeiro objetivo, o governo investiu bilhes de dlares na construo de infra-estrutura, na forma de portos, aeroportos e, principalmente, na construo de estradas que atravessariam a floresta, como a Cuiab-Porto Velho (BR-364, em 1968), a Transamaznica (BR-230, em 1972) e a CuiabSantarm (BR-163, em 1973), alm de milhares de quilmetros de estradas secundrias para incrementar o potencial de explorao e ocupao da floresta. Alm disso, concedeu incentivos fiscais e criou mecanismos legais para transferncia de terra para grandes produtores e empresas, para que essas se motivassem a iniciar suas atividades produtivas na Amaznia. Como no havia controle rgido sobre a concentrao de terras, apesar do limite legal de 60.000 hectares, algumas empresas chegaram a tomar posse de mais de 690.000 hectares contnuos na regioAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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(Hecht & Cockburn 1990, Kohlhepp 2002, Loureiro & Pinto 2005). Para atingir o segundo objetivo, o governo estimulou a chegada de camponeses do Nordeste e do Sul do Brasil para ocupar lotes determinados ao longo das estradas. Para organizar essas atividades, criou em 1970 o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), que somente entre 1970 e 1974 enviou cerca de 400.000 colonos para a Amaznia, sob o lema uma terra sem homens para homens sem terra (Ibase 1985 apud Ferreira & Salati 2005). A rea total disponibilizada para a reforma agrria no bioma amaznico chegou a 200.000 km (Barreto et al. 2006). Essas centenas de milhares de pessoas foram atradas para a regio sem o conhecimento prvio de prticas agrcolas adequadas a um ambiente de floresta tropical. Como seria previsvel, grande parte dos agricultores fracassou devido baixa fertilidade das terras e carncia de servios bsicos, como a possibilidade de comercializao da produo, a falta de extenso rural e a ausncia de infra-estrutura (Diegues 1993). Depois da interferncia inicial do Estado, que permitiu o acesso rodovirio, disponibilizou e atraiu recursos financeiros e estimulou um intenso fluxo migratrio, o processo de ocupao ganhou caractersticas prprias. A varivel mais determinante para a transformao das paisagens amaznicas deixava gradualmente de ser a ao do Governo Federal e passava a se caracterizar pelos agentes privados, em suas diferentes formas de atuao. Sob esse contexto, as transformaes

de grande escala das paisagens amaznicas deixaram de obedecer lgica do planejamento estatal para se adaptar lgica econmica capitalista, com grande peso para a atividade pecuria, que corresponde por aproximadamente 80% da converso das florestas da regio (Margulis 2003). A distribuio espacial das estradas e dos programas de colonizao tambm se coloca como uma varivel determinante em relao aos processos de transformao das paisagens amaznicas. Alm de permitirem o acesso e a colonizao da floresta, as estradas possuem um papel fundamental ao permitirem tambm o escoamento da produo. A construo e a distribuio das estradas reduzem o custo do transporte, aumentam a rentabilidade e potencializam o prprio desenvolvimento atividade econmica. Considerando as principais atividades produtivas que foram incentivadas na regio a partir da dcada de 1970, a opo por esse modelo de transporte se constituiu em uma das importantes variveis que levaram ao avano do desmatamento. Segundo os dados oficiais do Governo Federal, os estados da Amaznia Legal Brasileira possuem atualmente uma malha rodoviria de 251.760 km, sendo que 27.774 km esto pavimentados, enquanto outros 4.792 km esto em pavimentao (Brasil 2008). Como conseqncia de todo esse processo, sem entrar no mrito dos problemas sociais, cerca de 730.000 km da vegetao original da Amaznia Legal Brasileira foram convertidos para outros usos at o ano de 2007 (Figura

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Figura 4 - Desmatamento acumulado na Amaznia Legal Brasileira, entre 1992 e 2007 (em km2), chegando a 15%, com base nos dados do INPE (2008).

4) (INPE 2008). Alm do desmatamento captado pelas imagens de satlite, que atingiu aproximadamente 15% da regio em 2007, Barreto e outros (2006) estimam que outras reas sejam perturbadas por atividades humanas espordicas, como as queimadas e a extrao madeireira, perfazendo um total de 47% do bioma amaznico sob algum grau de alterao antrpica. Em termos ecolgicos, essa escala espao-temporal de supresso da floresta e fragmentao da paisagem responsvel pela alterao no funcionamento do ciclo hidrolgico e da ciclagem de nutrientes; aumento das emisses de gases e diminuio da capacidade de estocagem da biomassa; interferncia nas condies climticas regionais e de grande parte do pas, alm do deslocamento e extino de espcies, diminuindo a biodiversidade. Nenhum dos impactos a que a Amaznia foi submetida nos ltimos 40 anos

pode ser considerado indito, com exceo dos produtos qumicos decorrentes da atividade agropecuria, como fertilizantes e pesticidas. Nos mais de 11.000 anos de convivncia com a espcie humana, a floresta amaznica j havia experimentado o desmatamento, as queimadas, a introduo de espcies exticas, a retirada de espcies de valor comercial, os ciclos econmicos e a fragmentao da paisagem. A grande novidade implementada nos ltimos anos foi o aumento exponencial no tamanho e na velocidade dos impactos, refletindo uma lgica econmica na qual a expanso da lucratividade se colocou como a principal motivao para a transformao da paisagem, alm da desvalorizao e da falta de apego terra, num processo de ocupao conduzido por pessoas que no tinham nenhuma relao prvia com a regio.Amaznica 1 (1): 200-228, 2009

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CARACTERIZAO DAS DINMICAS DE OCUPAO HUMANA NA AMAZNIA Como observado nos itens anteriores, o processo de ocupao humana ao longo dos ltimos 11.000 anos foi caracterizado pela diversidade de relaes estabelecidas com a floresta. Contudo, eventos histricos especficos, como a colonizao europia e os programas institucionais de colonizao causaram mudanas bruscas na motivao dos seres humanos em relao s transformaes das paisagens amaznicas. Nesse sentido, trs dinmicas de ocupao distintas foram delimitadas em funo das caractersticas dessas motivaes e seus reflexos na transformao da paisagem, ao longo dos diferentes contextos histricos do perodo de estudo. A primeira dinmica compreende o perodo estabelecido entre a chegada dos primeiros grupos humanos na Amaznia at o desaparecimento das sociedades mais complexas, que foi marcado pela diversificao cultural e pelo desenvolvimento de diferentes formas de lidar com a paisagem. Ao mesmo tempo em que grupos de caadores e coletores nmades residiam com poucos indivduos no interior da floresta, havia assentamentos habitados por milhares de pessoas, que se estendiam por centenas de km, com a presena de praas cerimoniais, conexo por estradas, proteo por estruturas defensivas, abastecimento de gua por diques e tanques de criao de animais. No limiar do contato europeu, os cinco milhes de habitantes da bacia amaznica haviam transformado a floresta em

uma paisagem adaptada que, alm de atender s suas necessidades de subsistncia, atendia aos seus desejos simblicos. bastante plausvel que algumas dessas sociedades tenham atingido nveis de impactos ambientais suficientes para desestruturar seu modo de vida. Contudo, o que caracteriza todos os grupos humanos desse perodo em uma mesma dinmica a motivao de transformar a paisagem em funo da manuteno da vida humana local, seja pela subsistncia ou pelo simbolismo. A colonizao europia marca o incio de uma nova dinmica em relao transformao das paisagens amaznicas. Por mais que os impactos das populaes nativas se tornassem significativos quando a densidade populacional passou a ser elevada, eles no implicavam em retiradas de elementos do sistema delimitado pela floresta. Nesse sentido, a colonizao europia inaugurou uma nova motivao para transformar a paisagem, que atendia a uma lgica externa floresta, demandando produtos especficos na maior quantidade possvel. O objetivo principal no era mais a manuteno da vida humana local, mas sim o atendimento s demandas econmicas e aos desejos simblicos externos. O contato com os europeus causou ainda a reduo da populao nativa e a extino dos modos de vida mais complexos o que, paradoxalmente, reduziu a presso sobre a paisagem como um todo e permitiu o restabelecimento dos processos ecolgicos naturais. Cerca de trs sculos depois, a valorizao da borracha no comrcio internacional suportou o

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desenvolvimento de dois ciclos econmicos que repetiram exatamente a mesma lgica da colonizao europia produo e retirada mxima de um elemento especfico da paisagem, ao custo da diminuio da populao, j que uma estimativa conservadora de pelo menos 35.000 mortes em decorrncia dos ciclos da borracha. Os programas institucionais implantados a partir da dcada de 1960 deram origem a uma motivao ainda mais impactante para a transformao das paisagens amaznicas, que se somou anterior. A partir desse perodo, a extrao dos produtos florestais passou a ser uma atividade secundria, para dar lugar a uma lgica de supresso da floresta para introduo de novos elementos na paisagem, que continuariam sendo produzidos e retirados para atender a um contexto externo. Alm disso, o espao passou a ser delimitado em propriedades privadas, que s seriam reconhecidas em funo da supresso da floresta para dar incio s atividades produtivas. Dessa forma, houve um crescimento exponencial na escala espao-temporal das transformaes das paisagens. Enquanto toda a histria de ocupao humana at o ano de 1970 tinha acumulado cerca de 120.000 km de supresso da floresta, apenas entre os anos de 1995 e 2005 foram desmatados mais de 220.000 km (INPE 2008). As trs dinmicas delimitadas podem ser categorizadas em funo dos seus principais indicadores de transformao da paisagem, da seguinte maneira: Dinmica da Diversificao (entre

9000 a.C. e 1600 d.C.): crescimento populacional; ocupao humana por toda a floresta; transporte e domesticao de espcies; alterao e supresso da paisagem em nveis locais; explorao manejada de diversas espcies para a manuteno da vida humana local. Dinmica da Simplificao (entre 1600 d.C. e 1960 d.C.): reduo populacional; ocupao humana determinada pela acessibilidade dos rios; explorao excessiva de determinadas espcies; retirada de elementos do sistema para explorao comercial. Dinmica da Supresso (a partir de 1960 d.C.): crescimento populacional; ocupao humana determinada pela acessibilidade dos rios e pela abertura de estradas; supresso e fragmentao da paisagem em nveis regionais, espacialmente distribuda pela floresta; apropriao do territrio; introduo e manejo de novas espcies que no permitem a recuperao da floresta; retirada de elementos do sistema para explorao comercial. A Amaznia ainda aguarda o estabelecimento de uma quarta dinmica a dinmica do equilbrio, na qual as transformaes da paisagem sejam caracterizadas pelo controle estatal para regular as atividades produtivas, pela capacidade tcnica para exercer o manejo sustentvel e pelo desejo coletivo de valorizar os recursos da floresta. CONSIDERAES FINAIS A construo de um trabalho interdisciplinar apresenta algumas dificuldades inerentes, como a falta de sustentao terica e metodolgica para estabelecerAmaznica 1 (1): 200-228, 2009

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correlaes entre diferentes disciplinas e a dificuldade de manter o foco de anlise, frente variedade de assuntos abordados pelas diversas disciplinas revisadas. Apesar da discusso no presente artigo ter caminhado em alguns momentos para temas variados, como a metodologia antropolgica, a justia social e a postura poltica, o foco principal sempre foi a capacidade de transformao da paisagem, atravs da descrio dos grupos humanos e de suas relaes com a natureza que de fato deixaram marcas e impactos na paisagem atual. Um dos episdios que parecem consolidados a presena de sociedades na Amaznia pr-colonial que atingiram nveis de complexidade social e tecnolgica que nunca mais foram equiparados na regio. Algumas dessas sociedades podem ter existido por mais de 1000 anos, mantendo um grande contingente populacional e operando transformaes na paisagem que iam desde pequenas modificaes na comunidade florestal at grandes estruturas pblicas, como praas e estradas. Como resultado desse processo, grande parte da floresta amaznica deve ter experimentado algum nvel de manejo antrpico no perodo pr-colonial. Essas informaes so fundamentais para o estabelecimento dos princpios das polticas pblicas atuais para a Amaznia, no sentido de conhecer melhor as caractersticas da floresta, redefinir a funo das reas protegidas e adequar o papel do ser humano no manejo dos recursos. Como conseqncia do maior nmero de informaes sobre a ocupao humana na Amaznia durante o perodo

pr-colonial, a Dinmica de Simplificao, estabelecida a partir da colonizao europia tambm se torna mais clara, principalmente pela magnitude do impacto demogrfico. Somente na dcada de 1960, quase 500 anos depois dos primeiros contatos europeus e muitos anos aps a consolidao do Estado brasileiro, a populao amaznica conseguiu retornar ao mesmo patamar de 5 milhes de habitantes estimado para o sculo XV. E exatamente na dcada de 1960 que se inicia a Dinmica da Supresso, inaugurada pela vontade poltica das instituies pblicas, tendo como resultado cerca de 600.000 km de supresso da vegetao nativa em apenas 40 anos, o que representa cinco vezes mais do que toda a histria humana precedente. Nesse sentido, a reduo nas taxas de desmatamento nos ltimos quatro anos s pode ser comemorada caso ela faa parte de um processo de mudana de lgica produtiva em longo prazo. Caso contrrio, a reduo nas taxas refletir somente um acrscimo no tempo de existncia da floresta. Sob o patamar atual de desmatamento, que se reduziu para aproximadamente 11.000 km anuais, a floresta amaznica somente existir por aproximadamente 370 anos. Por mais que esse parea um prazo muito longo para pensar em polticas pblicas e at mesmo nas variveis que determinaro as relaes humanas com a floresta, os ltimos 370 anos no oferecem uma perspectiva positiva. Sob esse contexto, difcil pensar em sustentabilidade da floresta, quando esta j tem data marcada para deixar de existir.

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Ocupao humana e transformao das paisagens na Amaznia brasileira

O conceito de paisagem pressupe a existncia de dois elementos: natureza e humanidade. Enquanto esses dois elementos coexistirem, a paisagem sempre estar presente, independentemente de suas qualidades. Dessa forma, nos 11.000 anos de convivncia entre a humanidade e a floresta amaznica, no foi a sustentabilidade das paisagens que foi ameaada e sim a sustentabilidade das prprias sociedades que dependem dela. Uma paisagem devastada continua sendo uma paisagem, enquanto o ser humano estiver presente. Mas por quanto tempo o ser humano estar presente em uma paisagem devastada? A capacidade de transformao da paisagem, mais do que o domnio de uma tecnologia, envolve uma escolha. Escolha que reflete o que uma sociedade aprendeu do seu passado, o que ela precisa do seu presente e o que ela quer do seu futuro. Depois de milnios de coexistncia e aprendizagem, a maioria das sociedades amaznicas do passado parece ter lidado bem com esses trs nveis de deciso. Nesse sentido, as lies deixadas por esses grupos mostram que a sustentabilidade no uma caracterstica inerente aos povos nativos ou a qualquer sociedade. A sustentabilidade uma conquista e essa no uma tarefa fcil. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Professor William Bale pelas contribuies para a construo desse artigo e Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo financiamento da pesquisa.

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