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PÓS-GRADUAÇÃO CIÊNCIAS PENAIS Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais PÓS-GRADUAÇÃO

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PÓS-GRADUAÇÃO

CiênCiAS PenAiS

Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais

PÓS-GRADUAÇÃO

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CursoCiências Penais

Disciplina Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais

AutoriaYuri Felix, Leonardo Schmitt de Bem, Vicente Cardoso de Figueiredo, Filipe Fialdini,

Caroline Valverde de Camargo, Bruno Silveira Rigon

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Índice ínDiCe

Tema 01: As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 05

Tema 02: Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 31

Tema 03: Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral 49

Tema 04: Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990 77

Tema 05: Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

107

© 2015 Kroton Educacional

Proibida a reprodução final ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.

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Como citar este material:

FELIX, Yuri; BEM, Leonardo Schmitt de; FIGUEIREDO, Vicente Cardoso de; FIALDINI, Filipe; CAMARGO, Caroline Valverde de; RIGON, Bruno Silveira. Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais. Valinhos: 2015.

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TeMA 01As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

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LEGENDA DE ÍCONES seções

5

início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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01

As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito BrasileiroLeonardo Schmitt de Bem

Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor

em Direito Penal Italiano, Comparado e Internacional pela Università degli Studi di Milano,

Itália. Doutor em Direitos e Garantias Fundamentais pela Universidad de Castilla-La Mancha,

Espanha. Mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Autor do

livro: Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Coautor do livro (com Luiz

Flávio Gomes): Nova Lei Seca. São Paulo: Saraiva, 2013.

Objetivos

Prezado aluno da Pós-Graduação em Ciências Penais LFG, este texto, bem como a

respectiva aula, tem como objetivo debater os intrincados pontos relacionados ao direito

penal do trânsito e todas suas características, principalmente no que tange às controvérsias

que envolvem a complexidade do tema.

Resumo da Aula

Esta aula aborda a problemática que envolve as reformas da legislação de trânsito,

apontando questões como a (im)possibilidade de retroatividade de lei, bem como realizando

uma reflexão crítica principalmente dos artigos 306 e 308 da legislação de trânsito e veículo

automotores.

1. nota introdutória

Não tenho dúvida de que a relevância de alguns setores sociais é uma receita para novas

propostas legislativas no âmbito criminal. A circulação viária, por exemplo, representa um

excelente âmbito para examinar algumas questões relacionadas à criminalização, porque,

desde a promulgação da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, sucederam várias

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

leis simbólicas e impregnadas de oportunismo, regulando contextos específicos como a

embriaguez ao volante e a participação em racha.

O compromisso deste texto é apresentar as controvérsias que decorreram da falta de reflexão

e de discussão político-criminal nos referidos contextos, seja no concernente ao objeto de

proteção e sua legitimidade, seja no relativo à necessidade de intervenção penal. Destaco

que a eleição do art. 306 e do art. 308 não é aleatória, senão decorre das últimas alterações

do Código de Trânsito Brasileiro.1

2. A Infração de Embriaguez ao Volante (Art. 306)

O delito do art. 306 é o que suscita maiores discussões na doutrina penal, especialmente

pelas inúmeras alterações legais verificadas nos últimos anos. Após a promulgação do Código

de Trânsito pela Lei n. 9.503/1997, seguiu-se a primeira revisão com a Lei n. 11.705/2008

e um novo preceito foi proposto com a Lei n. 12.760/2012.2 É interessante frisar que em

nenhuma das alterações o legislador incrementou a resposta penal. Seu objetivo maior foi

alcançar um maior número de punições.

Esse intento foi frustrado quando da primeira reforma, porque a redação do preceito primário

do art. 306 carecia de técnica legislativa. Ao mesmo tempo em que transmudou a natureza do

perigo para fins de punição do condutor pela infração, ou seja, de perigo concreto da redação

original para perigo abstrato com a proposta dada pela Lei n. 11.705/2008, o legislador exigia

que uma concentração mínima de álcool no sangue ou por ar alveolar fosse comprovada.

Tratando-se de índice técnico, apenas a prova pericial poderia dar certeza necessária sobre a

materialidade delitiva. Assim se posicionou o STJ (Resp. n. 1.111.566/DF, rel. Adilson Vieira

Macabu, DJ 04/09/2012), razão pela qual o fim punitivo apenas seria alcançado quando os

próprios condutores submetiam-se voluntariamente ao exame pericial.

1 Essa redução não encobre outras impropriedades técnicas do legislador, alguns equívocos de parte da doutrina e as decisões desacertadas do judiciário relacionadas aos outros crimes da Lei n. 9.503/1997. Recomendo, portanto, visando complementar os estudos, a leitura da obra de nossa autoria Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.2 A Lei n. 11.275/2006, embora com reflexos no âmbito penal, foi promulgada para regular a infração administrativa de embriaguez ao volante (art. 165, CTB). A Lei n. 12.971/2014 alterou a redação dos §§ 2° e 3° do art. 306 do CTB no que diz respeito à previsão da verificação da embriaguez também mediante testes toxicológicos.

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Verificando-se que a colaboração pessoal esbarrava na não autoincriminação, considerando

que o motorista não produzia prova contra si mesmo, e sendo inviável a comprovação da

materialidade pela prova testemunhal, nova proposta de redação foi sancionada no final de

20123. O novo preceito parece apresentar mais problemas do que soluções, razão pela qual

é dever destrinchar sua aplicação. Neste sentido, algumas questões merecerão atenção:

(1) Qual é o bem jurídico protegido? (2) Como se define a estrutura jurídica do delito? (3)

Como comprovar a alteração da capacidade psicomotora do condutor do veículo automotor?

(4) Como a substância psicoativa deve influenciar nessa condução? (5) O novo delito pode

retroagir para alcançar fatos praticados anteriormente à sua vigência?

(1) Na interpretação dos tipos penais, os magistrados têm a tarefa de analisar sobre qual

bem jurídico – individual ou coletivo – é estendida a proteção penal definida legalmente.

Infelizmente, nessa tarefa muitos preterem os melhores trabalhos e acabam por seguir, sem

muito refletir, o entendimento de que o delito do art. 306 do CTB contempla um bem jurídico

coletivo representado pela incolumidade pública no aspecto da segurança no trânsito ou, em

síntese, o que é denominado segurança viária.4 Isso também pode ser comprovado em vários

precedentes jurisprudenciais.5

Tratar-se-ia, portanto, de um bem jurídico supraindividual de titularidade coletiva. No entanto,

sendo objetivo central do Código de Trânsito a segurança das pessoas no trânsito, e, para

isso, seu fim instrumental é reduzir o número e os

efeitos dos acidentes nas vias terrestres, a atuação

dos órgãos e das entidades de trânsito deve visar,

com prioridade, as ações de defesa à disponibilidade

da vida, da integridade física e do patrimônio de um

3 Eis a redação do preceito primário do art. 306 do CTB: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alte-rada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência”.4 Neste sentido, entre outros, veja-se: JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 166. CA-PEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 308. MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 306. GÓMEZ PAVÓN, Pilar. El Delito de conducción bajo la influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas o estupefacientes. Barcelona: Bosch, 1998, p. 104.5 TJES, Ap. n. 24080260987; TJGO, Ap. n. 36377-27.2010.8.09; TJRO, Ap. n. 0004491-67.2010.8.22.0501; TJDFT, Ap. n. 2008.041.007.851-6; TJBA, Rec. Crim. n. 0157343-2/2009; TJRJ, Rec. Crim. n. 09.2010.8.19.0002, etc.

Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

Saiba MaisMARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009.

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número indeterminado de pessoas, pois são estes os verdadeiros bens jurídico-penais que

devem ser protegidos.6

E por que seria necessária uma maior reflexão pelos juízes? Porque de “expressões sonoras

e vazias de conteúdo”, para seguir com a feliz menção do Defensor Público Gustavo Quandt,7

utilizada em debate virtual, apenas se homenageia uma postura ideal de bem jurídico, com

o fim de legitimar o que o legislador entendeu desejável. No entanto, esse processo de

idealização de bens jurídicos representa um retrocesso e, assim, não deve prevalecer, seja

por problemas relacionados à essência de sua definição,8 seja por problemas relacionados à

excessiva pena cominada às infrações.9

A incolumidade pública nada mais é do que um bem jurídico fictício, devendo a proteção

penal recair sobre o sujeito individual ou seu patrimônio, contudo sobre um número

indeterminado deles. O bem jurídico protegido, ademais, deve ser uma realidade distinta

da finalidade legislativa, da intenção de alcançar o trânsito em condições seguras. Quanto

mais é desrespeitado o princípio da segurança do trânsito, menos protegidos estão os bens

jurídicos. Eis porque, segundo Paolo Veneziani, o trânsito em condições seguras é apenas

um “princípio geral claramente funcional”.10

6 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. Derecho Penal de la Circulación. Barcelona: Bosch, 2006, p. 183, por sua vez, afirma que “não se protege a segurança viária como um fim em si mesmo, senão com caráter instrumental, como meio para a tutela de bens jurídicos individuais, como a vida, a saúde e o patrimônio”.7 MORENO ALCÁZAR, Miguel Ángel. Los Delitos de Conducción Temeraria. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 51, des-creve que “a segurança do tráfico é um conceito carente de um conteúdo próprio que vá mais além de uma pura referên-cia formal à normativa administrativa que regula o âmbito de circulação rodoviária”. 8 GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 49, p. 89, 2004. 9 HIRSCH, Hans Joachim. Acerca del estado actual de la discusión sobre el concepto de bien jurídico. in Modernas Ten-dencias en la Ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid, 2006, p. 380. 10 VENEZIANI, Paolo. “I delitti contro la vita e l’incolumità individuale”, in Trattado di Diritto Penale. I Delitti Colposi. Milano: Antonio Milani, 2009, p. 587.

Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

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O Supremo Tribunal Federal, inclusive, delimitou corretamente a objetividade jurídica do

delito.11 Textualmente:

Habeas corpus. Penal. Delito de embriaguez ao volante. Art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Alegação de inconstitucionalidade do referido tipo penal por tratar-se de crime de perigo abstrato. Improcedência. Ordem denegada. […] Na espécie, a proibição da conduta pela qual o paciente foi condenado objetiva, especialmente, combater e prevenir a ocorrência de delitos de trânsito que possam colocar em risco a incolumidade física ou até mesmo a vida dos indivíduos da coletividade ou provocar danos patrimoniais […] (2ª Turma, HC n. 109.269/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/09/2011).

A legitimidade da punição tem por pressuposto a afetação de um bem jurídico. Significa

que o elemento fundamental do crime, sem embargo da ausência de previsão expressa

ou exterior nos tipos penais, é a ofensa ao bem jurídico. Definido o bem jurídico protegido

penalmente no atinente ao delito do art. 306 do Código de Trânsito, resta saber como protegê-

lo. Para tanto, é fundamental a análise das condutas ofensivas com respaldo do postulado

da ofensividade, pois este é a diretriz de política-criminal que se revela mais intrinsecamente

ligada à interpretação penal.

Os magistrados, com efeito, devem exercer uma função seletiva das ações humanas para

reduzir a incidência da norma penal apenas àquelas realmente ofensivas ao objeto jurídico,

isto é, “se o Direito penal deve ser chamado a preservar bens valiosos e essenciais de

determinadas condutas que a eles sejam ofensivas, deve-se examinar de qual maneira e em

que medida elas se apresentam, aferindo-se, portanto, a potencialidade lesiva”.12 Na esteira

de Luís Greco, “essa questão não deve ser discutida à luz de considerações sobre o bem

jurídico, e sim sobre outro tópico, chamado por alguns de estrutura do delito”.13 Não mais

deve questionar qual bem jurídico está relacionado com o presente delito, mas, sim, como se

deve realizar a proteção deste bem jurídico.

No âmbito do art. 306 do CTB, houve variação da estrutura jurídica do delito. Quanto à

redação original – “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou

11 Mesmo delimitando corretamente o objeto jurídico, insistiu o Ministro em justificá-lo mencionando precedente jurispru-dencial e parecer ministerial que se valeram da expressão sonora “incolumidade pública”.12 SILVA, Ângelo Roberto. Dos Crimes de Perigo Abstrato em Face da Constituição. São Paulo: RT, 2006, p. 95.13 GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 49, p. 117 e ss., 2004.

Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

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de substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” –, as mais diversas Instâncias de Controle indicavam se tratar de crime de perigo concreto, carecendo, portanto, de certificação judicial, caso a caso, da exposição dos bens jurídicos a uma situação de perigo efetivo. Por sua vez, com a edição da Lei n. 11.705/2008, atualmente revogada, o delito passou a ser classificado como perigo abstrato, inclusive com inúmeros precedentes jurisprudenciais neste sentido.14

Não obstante a resistência por parte de alguns magistrados estaduais destacando que os crimes de perigo abstrato ofendem o postulado da ofensividade – e por isso seriam inconstitucionais –, porque nenhum bem jurídico foi ofendido ou, no mínimo, correu o risco efetivo de agressão,15 o Supremo Tribunal Federal decidiu que esse não era o caminho a ser seguido, pois a lesividade é utilizada apenas como meio de interpretação da lei penal, e não como forma de proscrever a legitimidade de criação de um tipo de delito (HC n. 81.057-8/SP, relª Minª Ellen Gracie, j. 25/05/2004).

Em termos simples, deve o juiz, caso a caso, realizar uma interpretação restritiva da ratio de proteção do bem jurídico penal que não necessariamente será fiel à vontade objetiva do legislador. Isso não significa, porém, que a infração do art. 306 do Código de Trânsito se converta em um delito de perigo concreto. Em outras palavras, deverá o magistrado interpretar evolutivamente o delito proposto pelo legislador, isto é, deverá proceder a uma interpretação constitucionalmente orientada para legitimar o direito de punir, porque não pode punir uma

conduta que nem sequer gera um potencial perigo para o bem jurídico tutelado penalmente.16

14 TJSP, Ap. n. 0004702-58.2009.8.26.0168; TJRS, Ap. n. 700.452.908-22; TJPB, Ap. n. 00.2010.004.396.500-1; TJAL, Ap. n. 2011.008422-0; TJDFT, Ap. n. 2009.031032103-7; TJRJ, HC n. 0028680-44.2010.8.19.0000; etc. 15 Por exemplo: TJBA, Rec. crim. n. 0154343-2/2009; TJRJ, Rec. crim. n. 0010627-09.2010.8.19.0002; TJRJ, Rec. crim. n. 0049376-55.2008.8.19.0038. Parte da doutrina penal adota esse entendimento e especificamente sobre os delitos de trânsito: JESUS, Damásio. Crimes de Trânsito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 2 e ss.16 Neste sentido: BOTTINI, Pierpaolo. Crimes de perigo abstrato não são de mera conduta. Revista Consultor Jurídico, 29 maio 2012, esclarece: “[…] ainda que os crimes de perigo abstrato sejam constitucionais, devem ser interpretados sistematicamente, levando-se em consideração a orientação teleológica do Direito penal. Por isso, ainda que o tipo pe-nal descreva a mera conduta, cabe ao intérprete – ao juiz, em especial – a constatação de que o comportamento não é inócuo para afetar o bem jurídico tutelado pela norma. Em outras palavras, não basta a mera ação descrita na lei, faz-se necessária a verificação da periculosidade da conduta – mesmo que em abstrato – de colocar em perigo bens jurídicos”.

LinksPara mais informações e dados atua-lizados, acesse: <http://www.ibccrim.org.br>.

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Assim, por exemplo, de nada adianta o motorista estar alcoolizado se conduz o veículo

de modo anormal em rua deserta ou completamente inabitada. Mas não é porque conduz

anormalmente em rua deserta ou inabitada que a norma penal será inconstitucional, pois

pode dirigir alcoolizado e anormalmente em local com grande número de pessoas. Por

isso ressalto a posição de Pulitanò de que “não é qualquer conduta que é albergada pela

proibição penal”.17 A propósito, o STF declarou a constitucionalidade do delito de embriaguez

ao volante, quando vigia a Lei n. 11.705/2008 (2ª Turma, HC n. 109.269/MG, rel. Min. Ricardo

Lewandowski, DJE 11-10-2011).

Com a nova redação do art. 306 do CTB proposta pela Lei n. 12.760/2012, o delito de

embriaguez ao volante continua de perigo abstrato, mas com uma especificidade maior, isto

é, trata-se de um delito de perigo abstrato como delito de potencial perigo18 ou, para outros,

delito de perigo abstrato como delito de perigosidade real.19 Para não punir pela simples

desobediência ao comando normativo requer-se, primeiramente, que o agente crie um

risco proibido (superando o risco-base relacionado à norma de segurança no trânsito, ou

seja, dirigindo sob a influência de álcool ou drogas), e, em segundo lugar, que haja bens

jurídicos contra os quais as condutas arriscadas (condução em zigue-zague) possam estar

direcionadas.

Neste sentido, requer-se uma análise restritiva por parte dos juízes, pois, se não há ninguém

na rua ou nas imediações do veículo anormalmente conduzido pelo agente sob a influência

de substâncias psicoativas (álcool ou drogas), não há porque puni-lo, embora comprovada a

alteração de sua capacidade psicomotora. Além disso, existindo pessoas ou carros no raio

de ação do automotor conduzido por agente sob influência de álcool ou de drogas, a análise

deverá ser teleológica, porque a aferição da tipicidade penal não deverá ocorrer unicamente

pela descrição legislativa, sendo necessário precisar o potencial perigo ou a perigosidade da

ação preposta e oposta à proteção dos bens jurídicos. Deve-se orientar, portanto, o magistrado

na análise do novo art. 306 do Código de Trânsito.

17 PULITANÒ, Domenico. Sull’interpretazione e gli interpreti della legge penale. In: Studi in Onore di Giorgio Marinucci. Milano: Giuffrè, 2006, p. 683.18 BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 345.19 GOMES, Luiz Flávio. A Nova Lei Seca. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 51.

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(3) Tratando-se de requisito expresso no tipo penal, em cada caso concreto impõe-se comprovar

e não presumir a alteração da capacidade psicomotora, ou seja, “a afetação das faculdades

psicofísicas de percepção, autocontrole e reação, basicamente, originada pelo consumo de

bebidas alcoólicas, drogas tóxicas, estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”.20 Exige-se,

embora sem a definição legal de um grau, que o consumo das substâncias psicoativas que

causam dependência altere a capacidade psicomotora do condutor e, com efeito, diminua

suas faculdades para a condução do veículo.

A problemática que se apresenta na sequência, portanto, é delimitar os meios para constatação

da influência do álcool ou das demais substâncias psicoativas na condução do veículo. Neste

contexto, entendo pertinentes três critérios. Em primeiro lugar, é dispensável a superação da

concentração de álcool disciplinada no art. 306, § 1°, I, do CTB para fins de responsabilização

penal. Em segundo lugar, como o tipo penal proíbe conduzir anormalmente em razão da

influência de álcool, e não simplesmente conduzir com certo nível de álcool no sangue ou seu

equivalente por litro de ar alveolar, a prova de alcoolemia, por si só, não será suficiente para

confirmar a presença da influência e gerar a automática responsabilidade penal do condutor.

Em último lugar, o decisivo para fins de verificação do delito será a convicção racional do juiz

a partir de todos os elementos destacados, da alteração real da capacidade psicomotora do

condutor para fins de realizar uma condução segura com o veículo automotor.

Como reiteradamente venho destacando, não basta que se alcance o grau de concentração

etílica proibido, senão que é necessária a constatação da influência do álcool na condução

anormal pelo motorista. Essa constatação pode realizar-se ou por teste de alcoolemia com

a concentração de álcool igual ou superior a 6 decigramas por litro de sangue ou por teste

em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro ou bafômetro) que resulte em concentração

de álcool igual ou superior a 0,3 miligramas por litro de ar expelido dos pulmões (art. 306, §

1°, I, do CTB). Na sua realização, como se trata de um direito de defesa, todas as garantias

processuais devem ser observadas.

É notório que a prova de alcoolemia realizada pelo bafômetro constitui um meio idôneo para

aferição da concentração etílica no condutor do veículo automotor. Inclusive o Poder Executivo

20 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. Derecho Penal de la Circulación. Barcelona: Bosch, 2006, p. 185.

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prevê que nos procedimentos de fiscalização se deva priorizar a utilização do bafômetro.21

É igualmente notório, porém, que a grande maioria dos condutores não se submete ao

exame, invocando o direito de não produzir prova contra si mesmo. No entanto, a prova

técnica de alcoolemia tornou-se prescindível com a promulgação da Lei n. 12.760/2012, pois

o legislador previu, no segundo inciso do § 1° do art. 306 do CTB, acudindo a disciplina

regulada pelo CONTRAN, a possibilidade de outros critérios (sinais) indicarem a alteração

da capacidade psicomotora do agente. Entendo, em especial porque o exame não é feito

com laudo conclusivo e firmado por médico perito, que um conjunto de sinais que comprove

a situação do condutor deverá ser considerado (ao menos um relacionado a cada critério

proposto).22 Mas o mais importante é que esses sinais próprios de quem ingeriu álcool ou

fez uso de drogas deverão influenciar a condução do veículo, caracterizando conduta com

potencial perigo aos bens jurídicos tutelados.

(4) É muitíssimo relevante precisar o alcance da expressão “em razão da influência” constante

no preceito primário do art. 306 do CTB. Como elemento normativo do tipo penal, exige

valoração pelo magistrado consistente na análise, caso a caso, da influência do álcool ou das

drogas na condução do veículo automotor. Além da alteração da capacidade psicofísica da

pessoa do condutor, é necessário que se estabeleça o efeito que o álcool ou as substâncias

psicoativas causam na própria condução realizada pelo agente infrator.

É decisivo avaliar, portanto, a forma de condução do veículo automotor (por exemplo: deve-

se verificar a inconstância no modo de dirigir, o desrespeito às faixas de sinalização na pista,

o ziguezague, a aceleração demasiada, a lentidão injustificada, a mudança brusca de faixa

sem sinalizar, o avanço de sinais fechados, o ato de dirigir pelo acostamento, de conduzir

à noite com os faróis apagados, entre tantas outras possibilidades de condução anormal),

porque todo aquele que consegue controlar o perigo do consumo prévio de álcool ou das

drogas não deve responder pelo delito, de sorte que não criou contexto de risco potencial aos

bens jurídicos penalmente tutelados ou sua conduta não apresentou perigosidade real.

21 Art. 3°, § 1°, da Resolução n. 432/2013.22 Anexo II da Resolução n. 432/2013 apresenta os requisitos necessários para constatação do consumo de álcool.

Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

Não é suficiente certo nível de álcool ou de drogas no sangue para a configuração do tipo

penal, senão é preciso que o álcool ou as drogas influenciem realmente na condução do

veículo pelo agente. Em uma perspectiva teleológica, portanto, deve-se acrescentar outro

elemento na descrição da conduta proibida e consistente na criação de um potencial perigo

ao bem jurídico. Trata-se de “um critério material-individual, segundo o qual haverá que

determinar se certo nível de ingestão de álcool ou de drogas, influenciou realmente sobre a

condução do sujeito no caso concreto que se examine”.23

Essa circunstância é essencial, inclusive, para delimitar a distinção qualitativa entre a infração

administrativa (art. 165) e a penal (art. 306). Assim, segundo Vicente Martínez, “para fins

de tipicidade delitiva requer-se um perigo abstrato com um mínimo de perigosidade real da

conduta para os bens jurídicos”.24 Por conseguinte, conduzir o veículo automotor com elevada

concentração etílica no sangue pode não constituir delito, apenas infração administrativa, se

nenhum bem jurídico entrar no raio de ação da condução perigosa. É apenas neste sentido

que o delito do art. 306 do Código de Trânsito poderá ser interpretado em sua completude.

(5) Como visto, o art. 306 do Código de Trânsito ganhou nova redação com a Lei n.

12.760/2012. O preceito primário foi modificado, e, com efeito, nasceu a discussão se a

nova lei – em comparação à anterior previsão – é ou não mais prejudicial. Alguns Tribunais

de Justiça adotaram a irretroatividade da lei, isto é, consideraram a nova lei mais gravosa

especialmente quanto ao sistema de aferição da dosagem etílica para condutas praticadas

antes de sua vigência, pois o legislador ampliou as formas de constatação da materialidade

delitiva, admitindo todos os meios probatórios lícitos, como o exame clínico, a prova de

vídeo, testemunhas etc. Seguem os precedentes.25 Vê-se que a ausência da prova técnica

– imprescindível para a caracterização do tipo penal do art. 306 com redação dada pela Lei

n. 11.705/2008 – não pode ser suprida por outras provas admitidas em direito e que foram

consagradas, para esse âmbito social, somente com a promulgação da Lei n. 12.760/2012.

23 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Consideraciones sobre el delito del art. 340 bis a). 1° del Código penal. Revista Jurídica de Cataluña, v. 92, n. 1, p. 31, 1993.24 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. El delito de conducción bajo la influencia de drogas tóxicas, estupefacientes, sustan-cias psicotrópicas o bebidas alcohólicas y su propuesta de reforma. La cuestionable necesidad de modificar el artículo 379 del Código penal. Revista Jurídica Española La Ley, p. 6, 2007.25 TJRJ, Ap. Crim., n. 2009.8.19.0066; TJSC, Rec. Crim., n. 2012.088330-8, TJSC, Ap. Crim., n. 2012.070945-9.

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

Entendo, porém, que o juiz apenas poderá atestar a (ir)retroatividade da Lei n. 12.760/2012

se realizar uma análise comparativa entre os preceitos primários dos tipos penais, e não

entre as possíveis formas de aferição da materialidade delitiva, como resta evidente nos

julgados citados. No sentido aqui destacado, por exemplo, a Corte Catarinense entendeu

pela irretroatividade da lei sob o argumento de que o legislador – em comparação com o

tipo penal do art. 306 da Lei n. 11.705/2008 – afastou a quantificação da dosagem alcoólica

à constatação típica, bem como suprimiu a expressão “via pública” constante do antigo art.

306 da Lei de Trânsito. Assim, a nova lei teria aumentado significativamente a abrangência

do tipo penal. Textualmente: “A nova redação dada ao art. 306 da Lei 9.503/1997 pela Lei

12.760/2012, por se tratar de norma penal mais severa que a anterior, não se aplica aos casos

anteriores à sua vigência em razão da irretroatividade da lei penal mais gravosa” (TJSC 1ª C.

Crim., Apelação n. 2013.076034-0, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 18/02/2014).

É necessário destacar que não houve na novel lei a eliminação do limite de concentração de

álcool por litro de sangue, senão apenas sua conversão em simples elemento probatório do

delito. A ausência do limite de tolerância à ingestão do álcool na redação do tipo penal não

tornou a lei mais severa, pois o que houve foi a inclusão de uma diferente hipótese na qual

resta caracterizada a infração do art. 306 do CTB. Em outras palavras, o legislador abandonou

a dosagem alcoólica como critério à realização do tipo, para dar lugar ao parâmetro da efetiva

afetação da capacidade psicomotora. Neste sentido, perfilhou a Corte do Rio Grande do Sul:

Apelação. Embriaguez ao volante. Alteração da capacidade psicomotora. Lei n. 12.760/12. Retroatividade. Com a alteração do artigo 306 da Lei 9503/97 pela Lei 12.760/12, foi inserida no tipo penal uma nova elementar normativa: a alteração da capacidade psicomotora. Assim, a adequação típica da conduta, agora, depende não apenas da constatação da embriaguez (seis dg de álcool por litro de sangue), mas, também, da comprovação da alteração da capacidade psicomotora pelos meios de prova admitidos em direito. Aplicação retroativa da Lei 12.760/12 ao caso concreto, pois mais benéfica ao réu. Ausência de provas da alteração da capacidade psicomotora, notadamente em razão do depoimento do policial responsável pela abordagem, que afirmou que o réu conduzia a motocicleta normalmente. Absolvição decretada (TJRS, 3ª C Crim., rel. Des. Nereu Giacomolli).

Esclarecendo de forma objetiva: com base na lei anterior, era possível o condutor do veículo

automotor se apresentar com capacidade psicomotora alterada, porém não se submeter a

exame pericial. Nesse sentido, a lei anterior não poderia ser aplicada porque não foi provada

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

a materialidade delitiva, ou seja, a mínima concentração de seis decigramas de álcool por

litro de sangue, tampouco a nova lei penal o seria, pois, não obstante o agente estivesse

com sua capacidade psicomotora alterada, a prova desse elemento dependeria dos recursos

admitidos com a promulgação da Lei n. 12.760/2012. É nessa linha que a lei penal mais

recente é prejudicial. Mas, em um paralelo apenas entre os preceitos primários dos tipos

penais, por certo a novel legislação é mais benéfica, visto que exige mais elementos para

punição do condutor infrator.

O segundo argumento para justificar a irretroatividade da nova lei penal é falacioso. A omissão

da expressão constante do tipo penal – “via pública” – em nada prejudica o condutor, porque,

se o fato ocorreu em via particular antes da vigência da nova lei, nem ao menos teria sido

oferecida a denúncia em respeito ao princípio da legalidade. Posto isto, reiteramos que a

nova lei é mais benéfica ao agente.

Com a nova redação dada pela Lei n. 12.760/2012, independentemente da substância

previamente ingerida pelo condutor, dever-se-á provar sua influência sobre a condução

anormal do veículo. Esse elemento não constava do tipo legal com redação dada pela Lei

n. 11.705/2008 e deve ser levado em consideração, pois, conforme destaquei, é essencial

para distinguir a infração criminal de embriaguez ao volante de sua correspondente infração

administrativa.

Realizando uma análise evolutiva do art. 306 do CTB no que diz respeito ao consumo

preliminar de álcool, quando foi publicada a Lei n. 11.705/2008, exigiu-se um requisito

adicional em comparação com a Lei n. 9.503/1997 (concentração etílica no sangue). Disso

decorreu a retroatividade penal! Com a Lei n. 12.760/2012 outro requisito adicional foi exigido

em um paralelo com a Lei n. 11.705/2008 (influência do álcool na condução). Quanto mais o

legislador exige para punir, melhor é a situação do condutor.

Sendo uma lei posterior, e, nesse particular, favorecendo aos agentes, deve ser aplicada aos

fatos anteriores, embora já decididos em sentença condenatória transitada em julgado, a teor

do art. 2°, parágrafo único, do Código Penal. A nova lei penal deve retroagir para favorecer

os agentes, em especial nos casos de investigações criminais em curso – relacionadas com

a Lei n. 11.705/2008 – nas quais não se fez prova da influência do álcool/drogas na condução

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

anormal do veículo por agente com capacidade psicomotora alterada. Muitas denúncias

estarão fadadas ao insucesso, e esse é o preço a pagar por outra alteração legislativa

desastrosa.

3. A Infração de Participação em Racha (Art. 308)

A nova redação do caput do art. 308 do CTB, determinada pela Lei n. 12.971/2014, não

alterou a estrutura jurídica do delito, pois o elemento normativo consignado na expressão

“gerando situação de risco” revela idêntica estrutura jurídica em comparação com a

expressão revogada “desde que resulte perigo concreto”, ou seja, continua sendo um delito

de perigo concreto. Com efeito, deve-se comprovar que o comportamento do condutor gerou,

efetivamente, risco aos bens jurídicos protegidos.

Trata-se de crime de concurso necessário, pois participar de corrida, disputa ou de competição

pressupõe a presença de mais de um sujeito, sendo que qualquer pessoa, desde que

imputável, pode ser o agente delitivo.26 Trata-se de crime simples.27 Eventuais organizadores da

competição irregular responderão como partícipes do delito (art. 29 do Código Penal). Logo, é

possível o concurso de agentes. Eles também podem ser sancionados administrativamente.28

Em relação à vítima do delito, aduz Renato Marcão que “a lei não retira da esfera de proteção

à incolumidade dos participantes, de forma que basta a exposição de perigo concreto de

qualquer deles para que se tenha por verificado o crime”.29 Tenho por imprecisa sua afirmação.

Em primeiro lugar, considerando apenas o outro participante, estar-se-ia diante de um delito

de perigo individual, sendo a punição restrita ao art. 132 do Código Penal. Em segundo lugar,

todos aqueles que participam de uma competição sabem suficientemente os riscos que estão

voluntariamente assumindo. Estão dispondo de suas vidas e/ou integridades físicas de forma

consciente. Há um abandono da proteção penal ou um retrocesso na tutela penal em razão

de uma própria conduta dos competidores.

26 Classificando como crime unissubjetivo em relação à modalidade corrida, vide: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis pe-nais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 853. 27 Contrariamente, classificando como crime próprio, vide: ARAÚJO, Marcelo Cunha; Calhau, Lélio Braga. Crimes de trânsito. 2. ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 95. 28 Art. 174, § 1° do Código de Trânsito, com redação dada pela Lei n. 12.791/2014, de 9 de maio.29 MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 188.

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Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro

Exige-se, como condição inicial para existência do delito, que o acusado conduza um veículo

automotor. Conduzir, para fins do dispositivo, significa dirigir, colocar em movimento, embora

pequeno o espaço percorrido, mediante acionamento dos mecanismos do veículo. A definição

e os exemplos de veículo automotor constam do Anexo I do Código de Trânsito. O teor do

preceito restringe o local da prática delitiva às vias públicas. Considerando a inexistência de

definição do conceito de via pública no Código de Trânsito, entendo que a conceituação deve

considerar dois aspectos alternativos: a abertura à circulação ou a utilização comum da via

de tráfego. Assim, ocorrendo em área privada que não esteja franqueada ao uso público, não

há a caracterização do delito do art. 308 da Lei n. 9.503/1997.

As práticas proibidas apresentam-se em contextos semelhantes. O popular “racha” ou

“pega” é uma competição entre dois ou mais condutores envolvendo uma disputa. Também

a corrida é considerada uma competição, com a diferença de que se realiza em um trajeto

predefinido. A interpretação da expressão “competição automobilística” contida no preceito

deve ser extensiva, pois a linguagem da lei afirma menos do que diz, devendo o juiz ampliar a

vontade do legislador para albergar a prática da competição por qualquer veículo automotor,

especialmente as motocicletas. Neste sentido, há harmonia com a própria redação do

dispositivo, uma vez que o agente deve estar na direção de veículo automotor.

Quando a lei posterior agravar, de qualquer modo, a conduta criminosa praticada sob a égide

da lei anterior, aplicar-se-á o princípio da ultra-atividade, pelo qual a lei anterior postergará

seus efeitos para o futuro, por ser mais benigna, e a posterior, por ser mais severa, será

irretroativa por força constitucional (art. 5°, XL). E, de fato, a Lei n. 12.971/2014 modificou a

pena máxima de dois para três anos.

Uma vez mais se vislumbra que o legislador ignorou o princípio da proporcionalidade, visto

que um delito de perigo (art. 308) novamente foi sancionado mais gravemente que um delito

de dano (art. 303). Impõem-se cumulativamente as penas de multa e a pena acessória

consistente na suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir

veículo automotor, cujo prazo varia entre dois meses e cinco anos. Essa sanção, segundo

entendo, não poderá ser aplicada aos motoristas que já possuem a habilitação definitiva. A

reforma legislativa também alterou a natureza jurídica do delito, pois deixou de ser menor

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potencial ofensivo em razão de a pena máxima cominada superar dois anos. Não obstante,

ainda é possível aplicar o benefício da suspensão condicional do processo.

Outra novidade decorrente da Lei n. 12.971/2014 foi a inserção de qualificadoras ao crime do art. 308 do Código de Trânsito Brasileiro. A primeira delas diz respeito à ocorrência de lesão corporal grave como resultado da prática de racha. Para evitar as controvérsias doutrinárias ou os embates de julgados, deveria o legislador ter seguido uma melhor técnica de tipificação para dar efetividade ao princípio da legalidade, porém, ao contrário, afastou-se da invocação casuística para enaltecer a opção por uma cláusula genérica delineada na expressão “lesão corporal de natureza grave”. Como o legislador se preocupou apenas com o resultado objetivo, pensamos, assim, que se deva fazer uso, por analogia, de situações enumeradas nos parágrafos do art. 129 do Código Penal. Há neste, igualmente, a previsão de exemplos de crime preterdoloso, pois o agente pratica a ação dolosa, menos grave, porém obtém um resultado danoso mais grave do que o pretendido na forma culposa. Resultando lesão corporal leve, por exclusão, o participante do racha deverá responder pela lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303), não obstante seja punido de maneira mais branda em razão da patente ofensa à proporcionalidade. Verificando-se o resultado qualificador nesse contexto, o participante da corrida, disputa ou competição será punido com pena de três a seis anos de reclusão.

A segunda qualificadora se refere à ocorrência de morte como resultado da prática do racha ou pega. A maior polêmica reside na circunstância de o seu conteúdo ser quase idêntico à

redação do art. 302, § 2° introduzido no Código de Trânsito por meio da Lei n. 12.971/2014.

Eis as duas redações:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de dois a quatro anos [...].

§ 2° Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:

Penas - reclusão, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, de disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

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Penas - detenção, de seis meses a três anos [...].

§ 2° Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 5 a 10 anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.

A princípio, a mesma conduta está retratada nos dois preceitos, sendo que, como na

matemática, a ordem dos fatores não altera o produto, ou seja, estar-se-ia diante do mesmo

crime qualificado, mas com duplicidade de previsão. Esta conclusão foi alcançada em

relatório da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania30 e por Luiz Flávio Gomes, que,

solucionando aquilo que adjetivou de excrescência legis, optou por respeitar a norma mais

favorável ao réu em razão do princípio in dubio pro libertate,31 isto é, o art. 302, § 2° do Código

de Trânsito Brasileiro.

Por sua vez, preservando ambas as infrações, o juiz Márcio Cavalcanti – cuja tese foi

aplaudida por Greco32 – entendeu que a antevisão do resultado morte pelo condutor que

participa em racha configura o crime do art. 308, § 2° do Código de Trânsito, pois incidiria

em culpa consciente, modalidade mais grave, ao passo que no contexto de morte por

culpa inconsciente o condutor do veículo automotor responderia pelo crime do art. 302, §

2° do CTB.33

Prevalecendo essa vertente, nos três contextos do § 2° do art. 302 com a redação dada pela

Lei n. 12.971/2014 (embriaguez ao volante e participação em manobras arriscadas), deverá

o agente agir com culpa inconsciente, de sorte que não seria crível que o mesmo parágrafo,

mas em âmbitos diversos, apresente-se com espécies distintas de culpa. Sendo correta esta

30 “Vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2° do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei n. 2592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/04/2013, existe duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda do Plenário, esqueceu o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo. Há, assim, conflito de penalidades nos dispositivos aprovados pela Casa, uma emenda de técnica legislativa deve ser aprovada nesta ocasião para que não subsista qual-quer dúvida futura na jurisprudência”, conforme a Deputada Sandra Rosado no Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei n. 2592/2007 analisado na Comissão de Constituição e Justiça.31 GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador? Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 27-28. 32 Disponível em: <http://www.rogeriogreco.com.br/?p=2568>. Acesso em: jun. 2015.33 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014. O texto estava disponível em 13 de maio de 2014 no seguinte link: <http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html>.

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advertência, por exemplo, nunca haveria culpa consciente no crime de homicídio de trânsito

quando o agente conduzisse o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em

razão da influência de álcool.

Uma forma de contestar a tese de Luiz Flávio Gomes de que existe ofensa ao princípio do bis in idem e, assim, preservar ambos os preceitos, como sugeriu Márcio Cavalcanti, mas com

fundamento diverso, é defender – não querendo ser mais realista que o rei – que o § 2° do art.

308 constitui uma norma penal especial em relação ao § 2° do art. 302, visto que naquela há

uma restrição espacial, pois a ação apenas se pode verificar em “via pública”. Deve-se admitir a

existência de um concurso aparente de tipos legais que é resolvido pela especialidade, embora

Eduardo Cabette não tenha observado a singela diferença e refutado a aplicação do princípio

por entender que a especialidade não seria hábil a resolver satisfatoriamente a situação.34

Admitindo-se essa forma de interpretação,35 o tipo legal que deve ceder passo é o art. 302,

§ 2° – por evidente, no contexto da participação do agente em racha – até porque, salvo

raríssimas exceções, a conduta ocorre em locais abertos ao público ou de utilização comum,

como as pistas de circulação e seu entorno (calçadas, canteiros, acostamentos). Essa tese

pode ser corroborada e está em harmonia com o crime de participação em racha previsto

no caput do art. 308 do Código de Trânsito, uma vez que, para sua configuração, exige-se

a geração de risco à incolumidade pública ou privada. Por evidente, nas vias públicas, há a

circulação de muitas pessoas e outros veículos, de sorte que a possibilidade de ofensa ao

bem jurídico é bem maior, razão pela qual a reprovação também pode ser mais elevada.

Saliento, inclusive, que essa interpretação impede a violação do princípio da proporcionalidade

quando se compara o § 2° do art. 302 – preservado por Luiz Flávio Gomes36 e por Rogério

34 CABETTE, Eduardo Santos. Lei n. 12.971/2014 e suas alterações na Parte Geral do Código de Trânsito Brasileiro: o ápice da insanidade na Legislação Pátria. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 38.35 Foi também a sugestão da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania no Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei n. 2592/2007, de relatoria da Deputada Sandra Rosado. In verbis: “O crime de ‘racha’ no trânsito, já está contemplado de forma detalhada nos parágrafos 1º e 2º do art. 308 modificado pelo referido projeto, razão pela qual emenda deve ser apresentada”, sendo a emenda sugerida no Projeto de Lei n. 2592-B/2007: “Suprima-se a expressão ‘ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente’ do §2º do art. 302”.36 GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador? Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 27-28.

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Greco37 – com o § 1° do art. 308, que qualifica o crime de participação em racha com resultado

de lesão corporal grave, mas de natureza culposa, pois se está diante de crime preterdoloso.

Basta verificar que a pena cominada para esta forma qualificada de crime de lesão corporal

(reclusão, de três a seis anos) é superior àquela (reclusão, de dois a quatro anos), ainda

que o resultado lesivo seja menor. Defender outra posição é não respeitar o princípio da

proporcionalidade que deve imperar quanto à tutela dos bens jurídicos.

Verificando-se o resultado qualificador no contexto indicado pelo legislador, o participante da

corrida, disputa ou competição será punido com pena de cinco a dez anos de reclusão. Notam-

se, assim, mudanças de ordem quantitativa e qualitativa em um paralelo com a conduta do

art. 308, caput, do CTB. Essa modificação pode ensejar, respeitados certos requisitos, um

possível início de cumprimento da privação de liberdade no regime fechado (art. 33, CP).

Resultando a pena final no quantum mínimo cominado, não será possível a substituição por

outras espécies de pena (art. 44, I, CP). Neste contexto, o crime também não é de menor

potencial ofensivo.

4. Conclusão

Com milhões de quilômetros de malha rodoviária, o Brasil enfrenta inúmeras questões que

se relacionam aos crimes ocorridos no tráfego viário. O texto convidou o leitor a refletir sobre

as recentes leis promulgadas no âmbito dos crimes de embriaguez ao volante e participação

em racha. Essa escolha, por certo, não desejou encobrir outras polêmicas operadas em

mais de quinze anos de CTB. Pense-se só na celeuma para distinguir o dolo eventual da

culpa consciente no âmbito do homicídio. Mais do que apontar as incongruências legais, meu

objetivo foi afastar a velha máxima de que “em temas de Direito Penal vale o argumento da

autoridade e não a autoridade do argumento”.

37 GRECO, Rogério. Os absurdos da Lei n. 12. 971, de 9 de maio de 2014. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 50.

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Vamos pensar

Elabore um breve texto a respeito das alterações promovidas pelo legislador referentes

aos crimes de trânsito.

Zigue-zague: “linha quebrada em ângulos salientes e reentrantes alternados. Traçado que

lembra essa forma”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011, p. 978).

• Introdução.

• A Infração de Embriaguez ao Volante (Art. 306).

• A Infração de Participação em Racha (Art. 308).

• Conclusão.

Pontuando

Glossário

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inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1

A infração de embriaguez ao volante de veí-

culo automotor é tratada em qual artigo?

a) Art. 121 do CP.

b) Art. 308 da Lei n. 9.503/1997.

c) Art. 22 da Lei n. 7.492/1986.

d) Art. 306 da Lei n. 9.503/1997.

e) Art. 129 do CP.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2

Qual foi a última alteração legislativa propos-

ta na Lei n. 9.503/1997 (Lei de Trânsito)?

a) Lei n. 12.654/2013.

b) Lei n. 11.343/2006.

c) Lei n. 8.072/1990.

d) Não ocorreu nenhuma alteração legislativa.

e) Lei n. 12.760/2012.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3

O bem jurídico tutelado no crime de trânsito é:

a) Supraindividual de titularidade coletiva.

b) Individual de titularidade coletiva.

c) Supraindividual de titularidade individual.

d) Individual de titularidade pessoal.

e) Não possui bem jurídico tutelado.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4

A infração de participação em racha é trata-

da em qual artigo?

a) Art. 129 do CP.

b) Art. 308 do CP.

c) Art. 308 do CTB, determinada pela Lei n. 12.971/2014.

d) Art. 306 da Lei n. 9.503/1997.

e) Art. 149 do CP.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5

A infração de participação em racha é um cri-

me de:

a) Concurso desnecessário.

b) Concurso necessário.

c) Concurso simples.

d) Concurso autônomo.

e) Não exige concurso.

Verificaçãode leitura

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Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa D.

Resolução: Vide redação do artigo 306 da Lei n. 9.503/1997.

Questão 2

Resposta: Alternativa E.

Resolução: Vide redação da Lei n. 12.760/2012.

Gabarito

Referências

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Gabarito

Questão 3

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Trata-se de um bem jurídico supraindividual de titularidade coletiva.

Questão 4

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Vide a nova redação do caput do art. 308 do CTB, determinada pela Lei n.

12.971/2014.

Questão 5

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Trata-se de crime de concurso necessário, pois participar de corrida, disputa ou

de competição pressupõe a presença de mais de um sujeito, sendo que qualquer pessoa,

desde que imputável, pode ser o agente delitivo.

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TeMA 02Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

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LEGENDA DE ÍCONES seções

31

início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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02

Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio AmbienteVicente Cardoso de Figueiredo

Advogado.

Mestre em Ciências Criminais.

Especialista em Direito Penal e Processo Penal.

Yuri Felix

Doutorando e Mestre do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia

UniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul‒PUCRS.

Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-

graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – UniderpLFG. Presidente da

Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Professor

e palestrante, autor de artigos publicados em revistas especializadas. Advogado criminal.

Objetivos

Esta aula tem como objetivo problematizar a questão ambiental e analisar a necessidade

de tutela do meio ambiente por meio de um direito penal democrático no Estado de Direito.

Resumo da Aula

Esta aula visa abordar de forma clara e precisa as questões que envolvem o direito penal

ambiental na sociedade do risco, problematizando os pontos relacionados ao bem jurídico

tutelado e ao desenvolvimento legislativo da tutela ambiental no mundo contemporâneo.

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Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

Introdução

Pretende-se analisar, nesta aula, os processos que conduziram a humanidade ao

atual estágio de preocupação com a problemática ambiental, a partir do recrudescimento

da agressividade da ação humana sobre o meio ambiente e os efeitos reflexivos dessas

agressões sobre a própria civilização humana.

Partindo do reconhecimento do incremento dos riscos no atual modelo de produção capitalista,

eminente e representativo da modernidade contemporânea, busca-se verificar como ocorre

sua distribuição em detrimento da riqueza produzida na sociedade. Com o desenvolvimento

da técnica nos campos científicos e tecnológicos, os riscos produzidos pelo homem passam

a ameaçar a humanidade em nível global, na medida em que alteram drasticamente as

condições do meio e do ecossistema terreno.

Também é analisada a iniciativa internacional de mobilização das nações para que o tratamento

da problemática ambiental receba a devida atenção e tutela por parte dos Estados, com a

criação de dispositivos legais que possibilitem a efetividade desta tarefa.

No caso específico do Brasil, expõe-se o assento constitucional dado à questão ambiental,

erigida ao status de princípio fundamental pelo Constituinte de 1988, percebendo tratamento

legal a partir da Lei n. 9.605/1998, que define os Crimes contra o Meio Ambiente.

1. A Questão Ambiental

Sem receio de quedar-se em equívoco, pode-se conceber que a forma de relacionamento do

homem com o meio ambiente definiu os rumos da civilização humana desde seus primórdios. A

partir dos primeiros grupos sociais coletores, que sobreviviam dos recursos naturais disponíveis,

até a atual sociedade pós-industrial, em que técnicas de produção dos recursos necessários

são dominadas pela humanidade, o meio impõe desafios ao homem, que busca compreendê-lo

e dominá-lo em um embate inglório sem maiores perspectivas de êxito.

A busca do controle da natureza parte do incremento do conhecimento de seus processos

e peculiaridades. Reconhecendo a impossibilidade de plena cognição de qualquer objeto do

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saber, mais ainda do exercício de plena dominação do meio pelo homem, buscou-se identificar

os riscos inerentes aos fenômenos naturais, como forma de reduzir os efeitos indesejados da

imprevisibilidade destes para a sociedade.

Entretanto, no modelo social capitalista, inerente à pós-modernidade, em que a escassez é

traço determinante, o processo de produção social da riqueza é concomitante à produção

social de riscos. Aos problemas e conflitos distributivos da sociedade marcada pela escassez

sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição

de riscos produzidos científico-tecnologicamente.1 Porém, a divisão desigual da riqueza social

legitimada pelo formato econômico assumido não se espelha no que se refere aos riscos, que

são socializados e globalizados.

As mudanças observadas atualmente no sistema da Terra não encontram precedentes na

história da humanidade, mostrando que os esforços para reduzir o ritmo ou tamanho destas

modificações não lograram o êxito esperado. Pelo contrário, ao passo que a ação humana

acelera, estamos próximos de alcançar diversos limiares críticos globais, regionais e locais,

sendo que é provável que alguns pontos de irreversibilidade tenham sido ultrapassados, podendo

ocasionar mudanças abruptas e potencialmente irreversíveis às funções que sustentam a vida

do planeta, com implicações adversas significativas para o bem-estar humano.2

Vislumbrando mudanças na vida humana face à Terra nos últimos anos, fica claro que

não passaram desapercebidas, tendo havido uma inegável conscientização acerca destas

alterações e da crise ecológica, sendo crescente a preocupação da humanidade com a

questão ambiental.3

Em 1972, a ONU promulgou a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente

como resultado da Conferência realizada em Estocolmo, criando um programa específico

(PNUMA) para tratar de questões ambientais e elencando critérios e princípios comuns para

1 BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 27.2 ONU. Relatório Panorama Global Ambiental – Geo5. Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente. 2012. Dis-ponível em: <http://www.pnuma.org.br/admin/publicacoes/texto/GEO5_RESUMO_FORMULADORES_POLITICAS.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015. 3 RIEGER, Renata Jardim da Cunha. A posição de garantia no Direito Penal Ambiental – O dever de tutela do Meio-Ambiente na criminalidade de empresa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25.

Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

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a preservação do meio ambiente. Este documento serviu de paradigma e referencial ético

para a comunidade internacional, a partir da recomendação da inclusão da problemática

ambiental nos ordenamentos jurídicos como direito humano fundamental.4

Em 1992, realizou-se novo encontro, desta vez no Rio de Janeiro, conhecido como “Eco-92”,

em que os princípios do encontro realizado na Suécia foram reafirmados e complementados,

com vistas a “estabelecer uma nova e justa parceria global mediante a criação de novos níveis

de cooperação entre os Estados, os setores-chaves da sociedade e os indivíduos”.5 O grande

êxito do encontro recaiu sobre o reconhecimento da assimetria entre países desenvolvidos e

poluentes e aqueles em estágio de desenvolvimento, no que tange à responsabilidade destes

no plano internacional.

Na contemporaneidade, a tutela jurídica do am-biente é uma exigência globalmente reconhecida,

desenvolvendo-se a evolução normativa a partir de

um imperativo elementar de sobrevivência e solida-

riedade de responsabilidade histórica das nações

pela preservação da natureza para o presente e

para o futuro.6

O Direito Ambiental apresenta-se com traços de elevada complexidade, por causa de sua

dependência científica e interdisciplinar, além da considerável incidência de conflitos de

interesses, motivações econômicas e políticas na sua formulação e aplicação. Situa-se em

uma área de confluência de decisões políticas que refletem na escolha de valores éticos,

jurídicos, culturais, econômicos e sociais novos, ainda em fase de afirmação.7

4 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2079.5 ONU. Declaração do Rio sobre meio-ambiente e desenvolvimento, 1992. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015.6 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 12.7 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2078.

Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

Saiba MaisFIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Neste cenário, o recurso ao Direito Penal decorre de uma opção político-criminal do legislador

brasileiro, que segue a tendência global de instrumentalização jurídico-criminal do aparato

repressivo do Estado, percebida nos movimentos de expansionismo penal.

2. O expansionismo Penal

As mais recentes mudanças nos meios de controle do crime foram conduzidas não

apenas por considerações criminológicas, mas também por forças históricas que transforma-

ram a vida social e econômica da segunda metade

do século XX.8 Jesús-Maria Silva Sánchez afirma: “a

existência de uma tendência claramente dominante

em todas as legislações no sentido da introdução

de novos tipos penais, com um agravamento dos já

existentes”.9

Desde a década de 1970, a evolução do Direito Penal material e processual se caracteriza,

sobretudo, por sua notável expansão. Tal ampliação da pretensão de controle penal pode

perceber-se facilmente em uma série de subsistemas sociais (por exemplo, meio ambiente,

economia, comunicação, política etc.). Assim, o Direito Penal simbólico substitui nestes

âmbitos a antiga forma de intervenção de caráter político-social; o controle penal deve

conseguir o que aos outros meios (políticos) não parece alcançável: a prevenção e a evitação

de condutas socialmente lesivas.10

Atualmente, a realidade afasta o pensamento penal de sua forma classicamente concebida,11

mostrando-se inconcebível o estudo das relações jurídico-penais “deste cenário complexo por

um viés moderno, baseado em aparatos legais ultrapassados, datados de quando apenas a

8 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nasci-mento. Rio de Janeiro:.Revan, 2008, p. 181.9 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 28.10 BESTE, Hubert; VOB, Michael. Las deformaciones del derecho penal por los servicios privados de seguridád. In: CA-SABONA, Carlos Maria Romeo (Coord.). La insostenible situación del derecho penal. Albolote: Comares, 1999, p. 347.11 CAPELLARI, Álisson dos Santos. Controle penal das movimentações financeiras: dever de informar versus direito à privacidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013, p. 117.

Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

LinksPara mais informações e dados atua-lizados, veja: <http://www.ibccrim.org.br>.

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criminalidade clássica apresentava uma real ameaça à dinâmica social”.12

A expansão do Direito Penal é analisada por Löic Wacquant como fruto da aplicação do modelo

neoliberal13 – que sustenta o “Estado Social Mínimo” em favor de um “Estado Penal Máximo”,

apontando este como o grande paradoxo dessa ideologia, ao tempo em que a penalidade

neoliberal intenta sanar com uma maior intervenção estatal policialesca e penitenciária,

“o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da

insegurança objetiva e subjetiva em todos os países [...]”.14

Jesús-Maria Silva Sánchez contrapõe-se a essa perspectiva, aludindo que a expansão do

Direito Penal deve-se à limitada capacidade do Direito Penal Clássico de combater delitos

diversos originados da constatação deste novo contexto paradigmático da complexidade na

sociedade pós-moderna:

[...] Criação de novos ‘bens jurídico-penais’, ampliação dos espaços de risco jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios políticos-criminais de garantia não seriam mais que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo ‘expansão’. [...]15

Silva Sánchez refere-se, ainda, ao fato de que o fenômeno da expansão do direito penal

manifesta-se como resultante de “uma espécie de perversidade do aparato estatal, que

buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas

sociais [...]”,16 ao mesmo tempo em que deslocaria tal resolução do plano da proteção efetiva

(instrumentalidade) para um plano simbólico.17

12 CAPELLARI, Álisson dos Santos. Controle penal das movimentações financeiras: dever de informar versus direito à privacidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013, p. 118.13 Norberto Bobbio define o neoliberalismo como a doutrina econômica consequente da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário, ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997, p. 87).14 WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001, p. 7.15 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 28.16 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.17 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.

Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente

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A tensão percebida entre a ideia de uma maior ou menor intervenção penal do Estado é

referida por Luigi Ferrajoli sob a perspectiva da tendenciosidade de determinado Estado a

um “Direito Penal Mínimo” e “Direito Penal Máximo”, referindo-se a maiores ou menores

“vínculos garantistas estruturalmente internos ao sistema quanto à quantidade e qualidade

das proibições e das penas nele estabelecidas”.18

Entre os extremos, Ferrajoli aponta “sistemas intermediários, até o ponto de que se deverá

falar mais apropriadamente, a propósito das instituições e dos ordenamentos concretos, de

uma tendência ao direito penal máximo [...]”.19 Como Sérgio Salomão Shecaira leciona:

O modelo padrão de comportamento social dos países globalizados sugere a existência de novos paradigmas normativos de análise jurídica. Surgem novos patamares punitivos com o incremento da repressão penal. Manifesta-se, sobremaneira, em determinadas esferas, com a criação de novos tipos penais e com o aumento da severidade das penas.20

Analisada polêmica acerca das justificações para o expansionismo penal, constata-se que

esse incremento dos espaços da resposta jurídico-criminal forjou-se por meio de “arsenal

punitivo construído sob categorias escassamente garantistas”,21 “a partir de uma ideia de

‘expansão’ do Direito Penal sem qualquer consideração com a busca de uma resposta

racional”.22

No que tange à ideia de racionalidade na resposta jurídico-penal, “existe um nexo profundo

entre garantismo e racionalismo”,23 referindo-se ao modelo do direito penal mínimo,

sustentando acerca do Direito Penal que o mesmo apenas pode ser considerado racional e

18 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 101. 19 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 103.20 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Ainda a expansão do direito penal: o papel do dolo eventual. Revista Brasileira de Ciên-cias Criminais, São Paulo, v. 15, n. 64, p. 234, jan./fev. 2007.21 FAYET JUNIOR, Ney. Criminalidade Econômica e Princípio da Racionalidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 173-196.22 Ibidem, p. 173-196. 23 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102.

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correto “à medida em que suas intervenções são previsíveis; apenas aquelas motivadas por

argumentos cognitivos de que resultem como determinável a ‘verdade formal’”.24

De outra banda, há de se assumir que o modelo do direito penal máximo apresenta-se como

“incondicionado e ilimitado”, caracterizado por uma severidade excessiva, bem como pela

incerteza e pela imprevisibilidade nas condenações e nas penas, que se configura “como um

sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e

racionais de convalidação e anulação”.25

Partindo dos apontamentos suscitados anteriormente, há de se focar os fundamentos

constitucionais de proteção do meio ambiente, bem como os principais dispositivos criminais

presentes na legislação criminal brasileira.

3. Fundamentos Constitucionais da Tutela Jurídico-Penal do Meio Ambiente

O reconhecimento do meio ambiente como interesse da humanidade, na medida do incremento da necessidade de enfrentamento dos problemas decorrentes das questões ambientais, levou o constituinte brasileiro a estabelecer um direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, conforme disposto no artigo 225 da Constituição Brasileira de 1988, que estende e reforça o significado dos direitos à vida e à saúde, além da dignidade da pessoa humana, para garantir uma vida saudável e digna que propicie o desenvolvimento humano,26 resguardando inclusive o direito de futuras gerações (“solidariedade geracional”).

Como objeto de proteção constitucional, o conceito de meio ambiente não abarca somente elementos naturais (como água, ar, solo etc.), mas também seus aspectos artificiais e culturais, no que se inclui a estética da paisagem natural e o ambiente construído pelo próprio homem,

como o patrimônio histórico e cultural.

24 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102.25 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102.26 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2078.

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Desta forma, o ambiente apresenta-se como um bem jurídico de natureza metaindividual,

de cunho difuso, dirigido ao coletivo ou ao social, de representação informal em certos

setores da sociedade, com sujeitos indeterminados e cuja lesão tem natureza extensiva ou

disseminada.27 Trata-se de bem jurídico peculiar à própria natureza do Estado democrático e

social de direito (estado-coletividade), materialmente considerado.28

A partir da inclusão de um mandado expresso de criminalização que prevê a cominação de

sanções penais e administrativas para pessoas físicas e jurídicas que causem lesão ao bem

jurídico, o constituinte originário determinou a intervenção, reduzindo a discricionariedade

do legislador infraconstitucional e estabelecendo a imposição de medidas coercitivas a

transgressores do bem jurídico meio ambiente.29

Outro aspecto relevante refere-se à responsabilização penal da pessoa jurídica, consoante

disposição do artigo 173, § 5º da Constituição Federal,30 na hipótese do artigo 225, §3º,31 de

ocorrência de condutas lesivas ao meio ambiente, que não encontra similar no ordenamento

jurídico brasileiro. A temática ainda é polêmica na doutrina brasileira, coexistindo opiniões

contrárias32 acerca da adequação dogmática do instituto perante o modelo brasileiro de

imputação da responsabilidade penal.33

27 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 78.28 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 78.29 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79.30 Art. 173 [...]

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e finan-ceira e contra a economia popular.31 Art. 225 [...]

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídi-cas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.32 “Logo a criminalização da pessoa jurídica, como forma de responsabilidade penal impessoal, é inconstitucional: as normas do art. 173, § 5º e do art. 225, §5º, da Constituição, não instituíram – nem autorizaram o legislador ordinário a instituir a exceção da responsabilidade penal da pessoa jurídica”. Conforme DOS SANTOS, Juarez Cirino. Responsabili-dade Penal da Pessoa Jurídica. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica – em defesa do princípio da pessoa jurídica - em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 279.33 Dá-se o nome de “Sistema de dupla imputação” ao mecanismo de imputação de responsabilidade penal às pessoas jurídicas, sem prejuízo da responsabilidade pessoal das pessoas físicas que contribuíram para a consecução do ato. (SHECAIRA, Sérgio Salomão. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 137.

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Passa-se, assim, a analisar os principais dispositivos jurídico-penais constantes em nosso

ordenamento, que, reconhecendo o meio ambiente como bem jurídico digno da tutela penal,

pretendem perfazer sua tutela.

4. A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente

A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (Lei n. 9.605, de 12 fev. 1998) apresenta

natureza híbrida, constituída de conteúdo penal, administrativo e internacional.34 Os artigos

2º e 3º tratam dos critérios de imputação da responsabilidade penal individual pelas condutas

previstas na lei, bem como a regulação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, que

ocorrerá sem prejuízo da individual.

Os critérios de aplicação da pena constam do artigo 6º ao 24, basicamente repetindo os

preceitos constantes do Código Penal. Do artigo 22 em diante, detalham-se as sanções à

pessoa jurídica responsabilizada penalmente, quais sejam, a suspensão parcial ou total das

atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; e a proibição de

contratar com o Poder Público ou obter qualquer forma de subvenção (pelo prazo máximo de

10 anos).

A ação penal será pública incondicionada, segundo o artigo 26, sendo possível a transação

penal prevista na Lei n. 9.099/1995 no caso de crimes de menor potencial ofensivo mediante

a prévia composição do dano ambiental, sendo que a declaração de extinção de punibilidade

depende de laudo de constatação de reparação do dano ambiental (artigo 27).

A partir do capítulo V da lei, estão elencados os crimes propriamente ditos, entre aqueles

contra a fauna e a flora (artigo 29 a 53); os crimes de poluição (artigo 54 ao 61); crimes contra

o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural (art. 62 a 65); e as condutas criminais contra

a administração ambiental (art. 65 a 69-A).

A Lei n. 9.605/1998 demonstra um caráter criminalizador, tendo o legislador utilizado do

recurso à norma penal em branco, concebendo os tipos incriminadores com conceitos amplos

34 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 163.

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e indeterminados, eivados de impropriedades técnicas, linguísticas e lógicas35 que beiram,

por vezes, a violação do princípio da taxatividade.

Também se verifica na Lei de Crimes Ambientais a responsabilidade penal por omissão

imprópria, a partir da figura do garante, indivíduo que ocupa posição especial diferenciada

que faz com que deva agir para evitar o perigo e o resultado danoso ao bem jurídico, advindo

na hipótese dos delitos ambientais ocorridos no âmbito da responsabilidade da empresa, do

vínculo material do sujeito com a fonte de perigo.36

Considerações Finais

É inegável a premência da causa ambiental nos dias de hoje, em razão dos demonstrados

efeitos deletérios da ação agressiva do homem sobre o meio, que gera graves desequilíbrios

no ecossistema terrestre, refletindo contra a própria civilização humana, que se vê ameaçada

de extinção.

A preocupação com um meio ambiente sustentável tem o escopo de promover um cuidado

transgeracional, considerando que gerações futuras têm direito ao equilíbrio ambiental que

só pode ser propiciado pela ação do homem contemporâneo. O reconhecimento internacional

da premência da questão ambiental e sua difusão pelos ordenamentos jurídicos dos mais

diversos países demonstra o relevo com o qual a temática deve ser tratada na atualidade.

O assento constitucional do meio ambiente como princípio fundamental remonta o alto grau de

responsabilidade atribuído ao Poder Público e à coletividade, ao impor um dever de precaução

e de uma ação proativa em favor da manutenção de um meio ambiente hígido e equilibrado,

reconhecido como interesse difuso e configurado como bem jurídico relevante, sobre o qual

recai dever de tutela penal, ressalvada a necessária conformidade com os princípios vetores

do Direito Penal.

35 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 164.36 RIEGER, Renata Jardim da Cunha. A posição de garantia no Direito Penal Ambiental – O dever de tutela do Meio-Ambiente na criminalidade de empresa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 112.

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Vamos pensar

Escreva algumas linhas sobre a expansão do direito penal abordando pontos como perigo,

risco, tecnologia e sociedade complexa.

Ambiente: “que rodeia e constitui o meio em que se vive [...] conjunto dos aspectos de

um meio social, natural ou histórico em que se situa uma ação”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011, p. 51).

• Introdução.

• A Questão Ambiental.

• O Expansionismo Penal.

• A Constituição Federal e o Meio Ambiente.

• A Lei de Crimes Ambientais.

Pontuando

Glossário

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inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1

Qual documento internacional foi promul-

gado pela ONU (Organizações das Nações

Unidas) em 1972?

a) Não ocorreu a promulgação de Declaração em 1972.

b) Declaração das Américas.

c) Declaração da Liga das Nações.

d) Declaração Universal do Homem.

e) Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2

Qual o nome da Conferência que deu origem

ao documento das Nações Unidas de prote-

ção ao meio ambiente?

a) Conferência de Paris.

b) Conferência de Estocolmo.

c) Conferência das Américas.

d) Conferência de San Jose da Costa Rica.

e) Conferência de Dublin.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3

Em qual cidade ocorreu a Eco-92?

a) Rio de Janeiro.

b) Doha.

c) Paris.

d) Santiago.

e) Bogotá.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4

Pode-se afirmar que a CF/88 prescreve al-

gum tipo de mandado de criminalização rela-

cionado à questão de meio ambiente?

a) Não, a CF/88 não trata de questões ambien-tais.

b) Sim, em seu art. 225, §3°.

c) Sim, em seu art. 1°.

d) Sim, em seu art. 5°, XLIII.

e) Não, deixou exclusivamente a cargo do le-gislador infraconstitucional.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5

A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente

(Lei n. 9.605, de 12 fev. 1998) apresenta na-

tureza:

a) Estritamente penal.

b) Estritamente processual.

Verificaçãode leitura

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c) Híbrida, constituída de conteúdo penal, ad-ministrativo e internacional.

d) Híbrida, constituída de conteúdo penal e in-ternacional.

e) Híbrida, constituída de conteúdo penal e ad-ministrativo.

Verificação de Leitura

BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nasci-mento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

BESTE, Hubert; VOB, Michael. Las deformaciones del derecho penal por los servicios privados de seguridád. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (Coord.) La insostenible situación del derecho pe-nal. Albolote: Comares, 1999.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDS, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

CAPELLARI, Álisson dos Santos. Controle penal das movimentações financeiras: dever de informar versus direito à privacidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.

FAYET JUNIOR, Ney. Criminalidade Econômica e Princípio da Racionalidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradu-ção de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

ONU. Declaração do Rio sobre meio-ambiente e desenvolvimento, 1992. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015.

Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa E.

Resolução: Em 1972, a ONU promulgou a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente como resultado da Conferência realizada em Estocolmo, criando programa específico

(PNUMA) para tratar questões ambientais e elencando critérios e princípios comuns para a

preservação do meio ambiente. Este documento serviu de paradigma e referencial ético para

a comunidade internacional, a partir da recomendação da inclusão da problemática ambiental

nos ordenamentos jurídicos como direito humano fundamental.

Gabarito

Referências

_______. Relatório Panorama Global Ambiental – Geo5. Programa das Nações Unidas para o Meio--Ambiente. 2012. Disponível em: <http://www.pnuma.org.br/admin/publicacoes/texto/GEO5_RESU-MO_FORMULADORES_POLITICAS.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.) Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica – em defesa do princípio da pessoa jurídica - em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

RIEGER, Renata Jardim da Cunha. A posição de garantia no Direito Penal Ambiental – O dever de tutela do Meio-Ambiente na criminalidade de empresa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

_______. Ainda a expansão do direito penal: o papel do dolo eventual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 64, jan./fev. 2007.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós--industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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Questão 2

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Em 1972, a ONU promulgou a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente como resultado da Conferência realizada em Estocolmo.

Questão 3

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Em 1992, realizou-se um encontro visando avançar nos debates a respeito da

questão ambiental, desta vez no Rio de Janeiro, conhecido como “Eco-92”.

Questão 4

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Vide redação do art. 225, §3°, CF/88.

Questão 5

Resposta: Alternativa C.

Resolução: A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (Lei n. 9.605, de 12 fev. 1998) apresenta

natureza híbrida, constituída de conteúdo penal, administrativo e internacional.

Gabarito

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TeMA 03Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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LEGENDA DE ÍCONES seções

49

início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

50

03

Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal eleitoralFilipe Fialdini

Advogado Criminal, Especialista em Crimes Econômicos e Processo Penal pela Fundação

Getúlio Vargas (GVLaw/SP), Ouvidor-Adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

(IBCCrim) e Membro Coordenador da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados

do Brasil, Secção de São Paulo (OAB/SP). Foi Vice-Presidente da Comissão de Direito

Criminal da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo (OAB/SP), foi Professor

de Direito Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e da Faculdade de Direito

Professor Damásio de Jesus (FDDJ). Além disso, integrou o Conselho da Comunidade da

Comarca de São Paulo e coordenou a subcomissão de Direito Penal da Comissão dos Novos

Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Foi Coordenador do Grupo de

Diálogo Universidade, Cárcere e Comunidade da Universidade de São Paulo (GDUCC/USP).

Objetivos

Caro aluno da Pós-Graduação de Ciências Penais LFG, este texto visa abordar algumas

questões referentes ao direito penal eleitoral e suas principais características na atualidade.

Resumo da Aula

Esta aula aborda o direito penal eleitoral na perspectiva de uma democracia em construção,

marcada pela representatividade eleitoral e desigualdade social. Além disso, visa trazer uma

série de ponderações a respeito da tormentosa questão relacionada ao crime comum/crime

político, com os respectivos precedentes jurisprudenciais da matéria.

1. O Direito Penal eleitoral no Contexto da Democracia Brasileira

Por que vocês são tão anti-ditadores? Imaginem se a América fosse uma ditadura. Vocês poderiam deixar um por cento da população com toda a riqueza da nação. Vocês poderiam ajudar os seus amigos ricos a ficarem mais ricos, cortando seus impostos e socorrê-los quando eles jogarem e perderem. Vocês

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Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

poderiam ignorar as necessidades dos pobres de saúde e educação. A mídia pareceria livre, mas secretamente seria controlada por uma pessoa e sua família. Vocês poderiam grampear telefones. Vocês poderiam torturar prisioneiros estrangeiros. Vocês poderiam ter eleições fraudulentas. Vocês poderiam mentir sobre o motivo de irem para a guerra. Vocês poderiam preencher suas prisões com um determinado grupo racial e ninguém iria reclamar. Vocês poderiam usar a mídia para aterrorizar as pessoas a apoiarem as políticas que são contra os seus interesses.

(Discurso final da personagem de Sasha Baron Cohen no filme norte-americano O Ditador, de 2012)

O debate sobre a coisa pública aqueceu-se e multiplicou-se no país desde os últimos

protestos populares iniciados em junho de 2013, nos quais explodiram reivindicações sociais,

econômicas e políticas relativas a transporte público, educação, saúde, eleições etc. Essas

manifestações de descontentamento público nos relembram que, para que uma sociedade

possa ser considerada um Estado materialmente democrático, não basta que seu sistema

jurídico se autoproclame democrático. Afinal, a democracia não poderia ser confundida com

uma simples carta de boas intenções.

Etimologicamente, “democracia” significa “governo do povo” (NASCENTES, 1955, p. 151).

A despeito disso, ao longo do século XX, espalhou-se pelo mundo o modelo da democracia

representativa ou indireta, o qual Boaventura de Souza Santos denominou “teoria hegemônica da democracia” e que acabou por restringir sobremaneira a participação política

da grande maioria da população, limitando-a à ocasional eleição de um pequeno número de

representantes, não garantindo “mais que uma democracia de baixa intensidade baseada na

privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre

representantes e representados e em uma inclusão política abstrata feita de exclusão social”

(SOUZA SANTOS, 2002, p. 31-32).

Com relação ao caso específico do Brasil, Fábio Konder Comparato (2009) assevera que

vigoraria por aqui uma duplicidade de ordenamentos jurídicos paralelos, sendo um o direito

oficial publicado, o qual, todavia, sucumbiria ante um ordenamento mais efetivo e não oficial.

Para esse autor, ainda que a Constituição Federal afirme em seu primeiro artigo que “todo

o poder emana do povo” – isto é, declare uma democracia plena –, a realidade é que a

grande maioria da população sequer participou da redação de tal norma fundamental, e,

ademais, este enorme contingente populacional nunca dispôs de instrumentos efetivos de

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participação no poder, o que, na prática, acabou por perpetuar a tradicional oligarquia brasileira:

“Constitucionalizamos, por essa forma, um duplo regime político: o efetivo, de natureza

tradicionalmente oligárquica, e o simbólico, de expressão democrática” (COMPARATO, 2009,

p. 17).1

Ainda assim, Comparato (2009, p. 18) reconhece que “com o grande avanço realizado em

matéria de proteção dos direitos humanos sob a égide da Constituição de 1988 [...] seria

tolo e injusto negar esse progresso ético no nível do direito escrito”. Em outras palavras, a

superação da ditadura militar, a conquista do voto direito, da democracia representativa e

de uma Constituição cheia de novos direitos não consistem no fim da história de lutas pela

busca de uma democracia efetiva, mas também não podem tais novidades ser desprezadas.

Conforme sugere o título da já referida obra de Boaventura de Souza Santos, ainda é

necessário “Democratizar a Democracia”, não só aprimorando o instrumental da democracia

representativa, mas, principalmente, ampliando as formas de participação popular no poder.

O Direito e o processo eleitorais constituem o coração jurídico da democracia representativa ou

indireta, determinando as regras que norteiam todo o percurso que começa com o alistamento

do eleitor e termina com a diplomação da elite escolhida para governar. Trata-se de complexo

processo, que tem por finalidade garantir a transparência e a segurança das eleições (por

meio do combate às fraudes nas votações e à compra de votos), a autonomia do eleitor, a

lisura da propaganda política e a paridade entre os postulantes aos mandatos políticos.

Especialmente em uma jovem democracia, como o Brasil – na qual, como dito, vigora uma

oligarquia –, a realização de eleições efetivamente justas ainda é uma pretensão bastante

ambiciosa. Os altos níveis de desigualdade social, a miséria e a brutal concentração de renda

têm impulsionado o crescente intervencionismo do Direito Eleitoral para tentar limitar os

abusos do poder econômico e midiático,2 em todas as suas sutilezas, por exemplo, impedindo

não só a escancarada compra de votos, mas a simples concessão de favores ocasionais,

1 No mesmo sentido, ensina Paulo Bonavides (2001, p. 10-11): “É essa, indubitavelmente, a grande tragédia jurídica dos povos do Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não têm a práxis. [...]”. 2 Quanto ao abuso do poder midiático, comenta Paulo Bonavides (2001, p. 12): “A mídia escravizada ao capital deforma, entorpece e anula a livre vontade, o livre raciocínio, a livre consciência do ser político, rebaixado a cidadão nominal, a cidadão súdito, a cidadão vassalo - que enorme contradição isto representa! E assim as ditaduras constitucionais sobem ao poder e nele se conservam ostentando a imagem da pseudo-democracia e do pseudo-regime representativo.”

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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como o oferecimento de transporte ou alimentação “gratuitos” a eleitores, o que, costumeira

e lamentavelmente, ainda define o voto dos estratos mais vulneráveis da população.

Neste mesmo sentido, o atual sistema de financiamento das campanhas políticas tem sido bastante questionado, em especial, o sabido fato de que as eleições, na prática, são decididas pelos faraônicos aportes de capital feitos pelas maiores corporações privadas do país, as quais têm tornado as campanhas políticas excessivamente caras, desequilibrando os pleitos eleitorais e deixando os políticos eleitos altamente comprometidos com os interesses de seus financiadores. Bruno Wilhelm Speck (2014, p. 30) pondera que, “Se buscarmos um símbolo de todos os males do sistema político no Brasil, o financiamento da política seria um forte candidato”.

É fácil perceber que a estruturação de um Direito Eleitoral eficiente não corresponde à conquista de uma democracia plena, a qual demanda a efetivação concreta de uma série de direitos e garantias que vão muito além do sufrágio universal. A existência de eleições livres e justas é apenas o primeiro passo para a implantação do regime democrático. Ainda assim estamos longe de conquistar tal marco importante, o qual merece uma cautelosa e estudada proteção jurídica.

Neste sentido, o Direito Penal Eleitoral consiste na manifestação mais cruel do Direito Eleitoral, caracterizada pela previsão de regras que, no limite, podem acarretar não apenas a aplicação de penas privativas de liberdade, mas também a estigmatização e marginalização social que costumam acompanhar a criminalização de qualquer indivíduo.

É preciso nunca se esquecer de que o Direito Penal, em geral, é um instrumento extremamente delicado e, não raro, bastante antidemocrático, na medida em que é largamente utilizado para intimidar a coletividade a se comportar de determinadas formas, por meio do temor ao poder punitivo, ou seja, nada mais que puro terrorismo estatal.

Este aspecto não é simplesmente um acidente indesejado do Direito Penal, mas,

contrariamente, uma das principais funções declaradas da pena,3 conhecida como a teoria

3 Não é raro encontrar defensores desse tipo de submissão do indivíduo por meio do Direito Penal, a exemplo de Djalma Pinto (2008, p. 316), para o qual “A descrição prévia do crime e da pena cominada, exigida pelo princípio da legalidade, exerce de fato, no âmbito do Direito Eleitoral, uma coação psicológica impeditiva do crime, tal como visualizada por Feuerbach ao estudar aquele princípio”.

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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preventivo-geral-negativa ou teoria da coação psicológica, cuja mais famosa formulação é

atribuída ao jurista alemão Feuerbach (1775-1833), para o qual o impulso do indivíduo à

prática do crime “pode ser cancelado com a condição de que cada um saiba que ao seu

feito há de seguir, inevitavelmente, um mal que será maior que o desgosto emergente da

insatisfação de seu impulso ao feito” (FEUERBACH, 2007, p. 52). Curiosamente, essa

concepção ganhou proeminência como discurso humanitário, ao ser empregada pelo famoso

Marquês de Beccaria (1738-1794) como argumento contra penas cruéis. Segundo a famosa

tese do aristocrata milanês, não seria a gravidade da pena, porém a certeza da punição que

desestimularia a prática de crimes (BECCARIA, 1999, p. 62; 92).

Evidentemente, essa antiga concepção padece da fantasia da certeza de punição. Felizmente,

não há registro histórico de uma sociedade em que toda a privacidade humana tenha sido

exterminada e panoptizada, ao ponto de que todos os atos individuais sejam observados e

punidos, a exemplo do distópico romance 1984, de George Orwell.

Aliás, como há muito demonstrado pela criminologia internacional, em especial, pela teoria

do labelling approach, da rotulação ou do etiquetamento, há uma enorme cifra negra

da criminalidade em todos os países do mundo, isto é, a esmagadora maioria dos fatos

criminosos praticados pela população não chega sequer ao conhecimento das autoridades,

restando impune, até porque, “se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas

as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças,

etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse,

por diversas vezes, criminalizado” (ZAFFARONI, 2001, p. 26).

Ante a impossibilidade concreta de se levar a cabo o faraônico programa punitivo estatal,

as autoridades precisam selecionar a ínfima parcela dos infratores que serão efetivamente

rotulados de criminosos e, por conseguinte, terão de sofrer as mazelas inerentes a tal estigma.

Como sabido, a distribuição da repressão penal é extremamente desigual e costuma ser

inversamente proporcional à distribuição de riquezas e poder na sociedade (cf. BARATTA,

2002, p. 108; SANTOS, 2006, p. 47). Somente em casos excepcionalíssimos, o sistema

repressivo atinge representantes da elite financeira ou política, como muito bem pontuado por

Maria Lúcia Karam (2004, p. 81) ao tratar da “esquerda punitiva”:

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Não percebem estes setores da esquerda que a posição política, social e econômica dos autores dos abusos do poder político e econômico lhes dá imunidade à persecução penal e à imposição da pena, ou, na melhor das hipóteses, lhes assegura um tratamento privilegiado por parte do sistema penal, a retirada da cobertura de invulnerabilidade dos membros das classes dominantes só se dando em pouquíssimos casos, em que conflitos entre setores hegemônicos permitem o sacrifício de um ou de outro responsável por fatos desta natureza, que colida com o poder maior, a que já não sirva. Não percebem que, quando chega a haver alguma punição relacionada com fatos desta natureza, esta acaba recaindo sobre personagens subalternos.

Por essas razões, a busca por um regime efetivamente democrático não se compactua com o

emprego do Direito Penal como um instrumento de transformação social – por melhores que

sejam as intenções do legislador –, pois isso corresponderia não só a uma postura terrorista

estatal, mas também seria profundamente hipócrita, na medida em que esse ramo do Direito

é notoriamente tendencioso contra os cidadãos mais vulneráveis. Em outras palavras, o

Direito Penal Eleitoral jamais irá contribuir para a democratização da sociedade, já que ele

não é capaz de implementar direitos sociais nem de reverter a perniciosa influência do poder

econômico e midiático nas eleições.

A punição severa do político que compra votos, por exemplo, jamais mudará o fato de que há

um eleitorado tão miserável, capaz, inclusive, de vender esse direito em troca de um pouco

de comida. Da mesma forma, a própria corrupção encontra solo fértil no atual sistema de

financiamento majoritariamente privado de campanhas políticas, contra o qual o Direito Penal

Eleitoral nada pode.

Sobretudo, é preciso tomar muito cuidado com o papel alienador desempenhado pelo Direito

Penal, pois seu discurso legitimador tende a lançar nos ombros dos indivíduos incriminados

a culpa pelas mais graves mazelas sociais, como a violência e a corrupção, por exemplo,

individualizando e privatizando a responsabilidade por meio da espetacularização do processo

penal e da pena, tão apreciada pela maior parte da população desavisada – inclusive, muitos

intelectuais e juristas –, de forma a encobrir ou jogar para segundo plano os mais contundentes

golpes praticados contra a democracia, como já alertava Foucault (2004, p. 230): “a prisão,

ao aparentemente ‘fracassar’, não erra seu objetivo [...] ela desenha, isola e sublinha uma

forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite

deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”.

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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Por fim, nosso Direito Penal Eleitoral demanda um cuidado ainda maior, visto que contém

muitas normas instituídas no auge da repressão militar, a exemplo do ainda vigente Código

Eleitoral Brasileiro, promulgado em 1965, demandando uma minuciosa filtragem constitucional,

ainda pendente.

Em conclusão, a construção de um Direito Penal Eleitoral deve ser pensada democraticamente,

de forma que tal ramo draconiano não seja empregado como a panaceia de todos os males

do processo eleitoral – o que apenas encobre as verdadeiras causas de tais problemas –,

mas tenha lugar excepcional, limitando sua incidência aos mais brutais ataques ao processo

eleitoral, e, ainda assim, em último caso, quando não houver outra forma menos terrível de

se proteger o justo resultado das eleições.

2. A Natureza do Crime Eleitoral

O Direito Penal Eleitoral tem por finalidade declarada a criminalização das mais execráveis

violações ao processo eleitoral. Em sua maioria, os delitos eleitorais estão previstos no velho

Código Eleitoral (Lei n. 4.737/1965). Todavia, há delitos dessa natureza descritos em leis

eleitorais esparsas, a exemplo da famosa “boca de urna”, positivada na lei geral das eleições

(art. 39, § 5º, II, da Lei n. 9.504/1997), sendo outros exemplos a lei que trata do transporte de

eleitores (Lei n. 6.091/1974) e a lei das inelegibilidades (Lei Complementar n. 64/1990), as

quais também trazem disposições penais.

Não há dúvida de que o Direito Penal Eleitoral tem natureza política, na acepção mais ampla

desta palavra. Neste sentido, questão instigante consiste em definir se os crimes eleitorais

são crimes políticos, em sentido estrito, ou não (GOMES, 2012, p. 13). Tal discussão é de

grande importância, pois o ordenamento jurídico brasileiro confere à criminalidade política

stricto sensu um regime jurídico muito peculiar, garantindo-lhe várias benesses, chegando

ao extremo de impedir a extradição de pessoas acusadas ou condenadas pela prática de tal

espécie delitiva, por meio de cláusula pétrea, conforme previsto no inciso LII, do artigo 5º, da

Constituição Federal.4

4 “Art. 5º [...] LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.

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Mas não é só. A condenação por crime político deve ser esquecida para efeitos de apuração

da reincidência (Código Penal, art. 64, inciso II), isto é, o sujeito anteriormente condenado

por um crime político, ao ser novamente condenado por um crime comum, não poderá ter

sua pena agravada em razão do prévio delito de natureza política, o que indica que, para o

legislador, a prática desse tipo de crime não revela a mesma reprovabilidade de um crime

comum. Não bastasse isso, o condenado por crime político é o único que não está obrigado

a trabalhar no cárcere (Lei das Execuções Penais, art. 200).

A despeito da relevância do crime político em sentido estrito, o ordenamento jurídico pátrio não

possui uma definição expressa de tal espécie delitiva, relegando à doutrina e à jurisprudência

a missão de delimitar tal conceito, o que sempre contribuiu para a dúvida sobre a natureza

política dos crimes eleitorais.

Os poucos precedentes jurisprudenciais sobre

o assunto afastaram a natureza política dos crimes

eleitorais, reconhecendo-os como crimes comuns, a

exemplo do Recurso Especial Eleitoral nº 16.048/SP,

julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral e do qual se

pode extrair o seguinte excerto do voto do Ministro

Relator:

Entende o recorrente que crime eleitoral é crime político e que não pode ser considerado para efeito de reincidência, a teor do que dispõe o art. 64, inciso II do Código Penal. [...] De fato, a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que crime eleitoral é crime comum conforme entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal. Cito como precedente o Acórdão TSE 20.312, que se fundamentou em decisão proferida pelo Pretório Excelso na Reclamação 511/PB, em 9.2.95 [...] (Tribunal Superior Eleitoral, Recurso Especial Eleitoral nº 16.048/SP, Relator Ministro Eduardo Alckmin, julgado em 16.03.2000).

Ainda assim, até o presente, o debate travado judicialmente sobre a questão foi pouco

produtivo e esclarecedor, sendo que as principais decisões sobre o assunto bastam por

se fundamentar em precedentes, os quais, por sua vez, referem-se a outros precedentes,

culminando em decisões que, no final, não abordaram especificamente esse tema.

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

Saiba MaisRecomenda-se a consulta periódica dos informativos em formato PDF do Tribunal Superior Eleitoral, em que é possível verificar diversos precedentes da referida matéria. Veja: <http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/informativo--tse-1/informativo-tse>. Acesso em: 12 jun. 2015.

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Neste sentido, o julgado citado do Tribunal Superior Eleitoral se fundamenta em outro

precedente dessa própria Corte e afirma expressamente que tal precedente se escorou na

Reclamação n. 511, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. A despeito disso, a consulta ao

acórdão de tal Reclamação revela que, neste caso, a Suprema Corte não tratou do conceito

de crime político – o termo “crime político” sequer consta em tal decisão –, tendo apenas

afirmado que os crimes eleitorais são delitos comuns, para efeitos de se aferir a competência

do Supremo Tribunal Federal no que se refere ao julgamento da criminalidade eleitoral

atribuída a autoridades com prerrogativa de foro, nos termos da alínea “b” do inciso I, artigo

102, da Constituição Federal.5

Por tal razão, esta questão está longe de ser pacificada. Verifica-se que o debate é muito

anterior à Constituição Federal de 1988, sendo que um dos mais renomados autores do

Direito nacional de todos os tempos, Nelson Hungria, considerava a criminalidade eleitoral

caracteristicamente política. A linha de argumentação desse autor é extremamente

antidemocrática, consentânea com o regime militar então vigente. Postula que o sistema

eleitoral não estaria erigido em função dos direitos dos eleitores ao voto, considerando os

cidadãos meros “instrumentos do Estado” para o sucesso da eleição “da élite ou dos right

men a que devem ser confiadas a elaboração das leis e a suprema gestão da coisa pública”,

concluindo que “A tutela penal, na espécie, é estatuída, primacialmente, no interesse das

instituições representativas”, e, por tal razão, os crimes eleitorais seriam “crimes contra o

Estado ou contra a ordem política” (HUNGRIA, 1977, p. 195-196, nota de rodapé n. 44).

Na atualidade, célebres nomes da doutrina nacional seguem insistindo que os crimes eleitorais

são crimes políticos em sentido estrito, mas, por razões inversas, a exemplo de Luiz Régis

Prado, para quem tal espécie de criminalidade atinge

os direitos políticos dos cidadãos, em especial o livre exercício do direito ao voto [...] o que afeta de modo reflexo, a organização política de um Estado de Direito democrático e social que tem no pluralismo e na livre participação uma condicionante inafastável de seu regular funcionamento. (PRADO, 2010, p. 216).

5 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”.

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Como seguidores de tal entendimento, podemos citar, ainda, os renomados doutrinadores

da família Delmanto (2002, p. 128) e Guilherme Nucci (2010, p. 433). Por esta razão, é

importante analisar os parâmetros utilizados para se definir o conceito de crime político e

verificar se a criminalidade eleitoral realmente deve ser enquadrada em tal conceito e ser

beneficiada pelo regime jurídico atinente.

Há certo consenso de que o crime político consiste na prática de ato ilícito contra a segurança

do Estado, imbuído de motivação política: “A doutrina define como crimes políticos os dirigidos,

subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das

instituições políticas e sociais” (RANGEL, 2010, p. 346).6

Tradicionalmente, a literatura jurídica apresenta três teorias para definir o crime político, quais

sejam: a objetiva, a subjetiva e a mista (PRADO, 2010, p. 212-215). Segundo a teoria objetiva,

os crimes políticos são definidos pelo bem jurídico periclitado, qual seja, a segurança interna

ou externa de um Estado; a teoria subjetiva, por sua vez, define tal espécie delitiva em razão

da motivação política do agente, independentemente do objeto concreto que seja agredido;

por fim, a teoria mista determina que somente pode ser considerado político o crime que

contenha cumulativamente os dois componentes objetivo e subjetivo mencionados. Tanto a

doutrina como a jurisprudência pátrias têm optado por restringir o conceito de crime político,

elegendo a teoria mista como a mais acertada.7

Em especial, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem lançado mão dos artigos 1º e

2º da lei de segurança nacional (Lei n. 7.170/1983) para amparar a imposição de um conceito

de crime político,8 de forma a evitar a formulação de uma definição totalmente desvinculada

de qualquer legalidade. A lei de segurança nacional não definiu expressamente o conceito de

6 Aliás, já no final do século XIX, Von Liszt ensinava que “Segundo o direito vigente que não tem em conta o motivo do acto, devem ser considerados como politicos os crimes dolosos que attentam contra a existência e a segurança do Es-tado, bem como contra o chefe do Estado e os direitos políticos dos cidadãos (não contra a administração publica) [...]” (LISZT, 2006, p. 174).7 “Como já oportunamente defendemos a teoria mista/eclética parece a mais acertada, e acolhida pela jurisprudência pá-tria (STF, Rc 1468, Rel. Mauricio Correa, DJ 16/08/2000, sem grifos no original, STF, HC 73451, rel. Min. Mauricio Correa, DJ 06/06/1997, sem grifos no original, ROC 1470, rel. Carlos Velloso, HC nº 73.451-RJ, in DJU de 06.06.97 / Rel. Min. Mauricio Correa).” (BOTTINI, 2014).8 Cf. Gomes (2012, p. 14), o qual aponta o seguinte precedente: Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Relator Min-istro Maurício Corrêa, Recurso Ordinário Criminal n. 1.468/RJ, DJ de 16.8.2000, p. 88.

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crime político, porém positivou um conceito legal de crime contra a segurança nacional, em

seus artigos 1º9 e 2º10, o qual é de todo semelhante à definição trazida pela teoria mista do

crime político. O referido artigo 1º elenca os bens jurídicos protegidos pelos crimes contra a segurança nacional, os quais podem ser resumidos como a própria segurança nacional

e representam o aspecto objetivo da definição (teoria objetiva). O artigo 2º, por sua vez,

determina que a motivação política também é essencial para a caracterização de tal espécie

delitiva, principalmente quando houver o conflito aparente entre um tipo penal previsto na

lei de segurança nacional e um delito previsto na legislação penal ordinária, adicionando o

aspecto subjetivo à definição dos crimes contra a segurança nacional (teoria subjetiva).

O principal problema dessa definição – a qual equipara o crime político ao conceito de crime

contra a segurança nacional – é que ela acaba por estender a aplicação do privilegiadíssimo

regime que beneficia a criminalidade política para crimes de alta gravidade, a exemplo do

genocídio e do terrorismo, pois tais espécies delitivas podem atentar contra a segurança

nacional e, inclusive, serem cometidas por motivos políticos.

Neste sentido, a justificativa histórica para o tratamento benigno dispensado ao crime

político parece ser a motivação altruística de seus agentes, os quais intentam modificar

determinado regime político para melhorar as condições sociais e políticas de seu povo e

que, em determinados contextos históricos de opressão, justificam, inclusive, medidas de

extrema violência por parte dos oprimidos. Por tais razões, à luz do Direito Internacional,

o crime político sequer consiste em ilícito (MAZZUOLI, 2011, p. 734), sendo considerado

uma forma justa de resistência. Daí a justificação à denegação da extradição e, ainda, a

desconsideração da condenação por crime político, para efeitos de apuração da reincidência

(Código Penal, art. 64, inciso II). É justamente esse enorme altruísmo que distingue o crime

político da criminalidade comum e, principalmente, dos atos puramente terroristas, conforme

explicado pelo Ministro Aires Brito, em seu voto apresentado no famoso julgamento do Pedido

de Extradição n. 994:

9 “Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I – a integridade territorial e a soberania nacional; II – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III – a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.10 “Art. 2º - Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis es-peciais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei: I - a motivação e os objetivos do agente; II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.”

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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No caso, o problema está em diferenciar a atividade de natureza política e a atividade de natureza terrorista. E aí é preciso que nos lembremos que o terrorismo é movido pela irracionalidade, pelo fanatismo, na busca do paradoxo da construção do caos, do niilismo absoluto; ao passo que os movimentos políticos têm uma inspiração bem mais nobre, bem mais altruísta. Esses movimentos políticos não visam nem mesmo à tomada do Governo. São até mais ambiciosos, visam à tomada do próprio Estado, para a implantação de uma nova ordem social, de uma nova ordem econômica (Excerto do voto do Ministro Aires Brito no Pedido de Extradição n. 994, julgado em 14/12/2005 pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Marco Aurélio).

Bem esclarecido o conceito de crime político em sentido estrito, facilmente se percebe que a

criminalidade eleitoral não deve ser equiparada a tal categoria, a despeito de seus contornos

políticos, pois “os crimes eleitorais atingem não a organização política do Estado de forma

direta, mas a organização do processo democrático eleitoral [...]” (RAMAYANA, 2010, p.

676). Em outras palavras, a prática dos delitos eleitorais não tem o condão de conduzir a

implantação de uma nova ordem social ou a mudança de regime político, não atenta contra

a segurança nacional interna ou externa, e, ademais, “Nenhuma das figuras típicas eleitorais

visa coibir a desestruturação ou a desarticulação da organização política do Estado, seja do

ponto de vista interno, seja do externo” (GOMES, 2012, p. 16). Em uma frase, o crime eleitoral

é prejudicial à democracia, mas não é vocacionado à derrubada do regime democrático.

O delinquente eleitoral, a exemplo do criminoso mais ordinário, objetiva apenas benefícios

egoísticos, para si ou para os seus, dentro do status quo, desequilibrando o resultado das

eleições ou logrando votos indevidos, tudo isso sem alarde ou revolução, até para garantir a

própria impunidade.

Além de tudo isso, uma reflexão pragmática revela que não faria sentido algum estender

ao nefasto delinquente eleitoral o privilegiadíssimo regime que beneficia a criminalidade

política stricto sensu, por exemplo, concedendo asilo ou negando o pedido de extradição

manejado contra o criminoso estrangeiro que por aqui aportasse, buscando abrigo contra a

persecução penal sofrida em seu país de origem pela compra de votos ou por alguma fraude

eleitoral. Igualmente, também não há razão para desconsiderar o crime eleitoral para efeito

de reincidência ou eximir o condenado por tal espécie de delito do trabalho, que, nos termos

da legislação, deveria ser imposto à generalidade dos condenados comuns.

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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3. Princípios Particulares ao Direito Penal eleitoral

A despeito da existência de alguns princípios próprios, o Direito Penal Eleitoral não possui

uma teoria geral autônoma ao Direito Penal ordinário, conforme expressamente previsto no

artigo 287 do Código Eleitoral.11 Nesta derradeira parte deste texto, tentaremos pontuar as

principais particularidades do regime jurídico próprio dos crimes eleitorais.

Os delitos eleitorais são aqueles definidos na legislação eleitoral e, como salientado pela

doutrina especializada, têm por finalidade o resguardo da lisura do processo eleitoral,

protegendo bens jurídicos como

o livre exercício da cidadania e dos direitos políticos ativos e passivos; o resguardo do direito fundamental de sufrágio; a regularidade da campanha política, da propaganda eleitoral, da arrecadação e do dispêndio de recursos; a veracidade do voto e a representatividade (GOMES, 2012, p. 10).

A natureza preponderantemente pública dos bens

jurídicos tutelados exclui a possibilidade da atribuição

à iniciativa privada, da ação penal com relação aos

crimes eleitorais, mesmos aqueles definidos contra a

honra. Neste sentido, o artigo 355 do Código Eleitoral

determina, expressamente, que as infrações penais

contidas em tal compêndio legal devem ser processadas mediante ação penal de iniciativa

pública, isto é, de titularidade exclusiva do Ministério Público. Os crimes eleitorais previstos

na legislação eleitoral esparsa não estão expressamente abrangidos por tal dispositivo, o qual

limita seu alcance exclusivamente aos delitos previstos no Código Eleitoral. Ainda assim, os

delitos eleitorais positivados na legislação eleitoral extravagante são abrangidos pela regra

geral do artigo 100 do Código Penal, segundo a qual a ação penal é de iniciativa exclusiva

do Ministério Público, “salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido”,

ressalva essa que ainda não foi contemplada em nenhuma lei eleitoral.

11 “Art. 287. Aplicam-se aos fatos incriminados nesta lei as regras gerais do Código Penal.”

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

LinksPara mais informações e dados atua-lizados, veja: <http://www.ibccrim.org.br>.

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A exemplo dos crimes, em geral, a legislação penal eleitoral também está submetida ao

princípio da anterioridade penal, segundo o qual qualquer delito somente pode ser punido

quando praticado após a entrada em vigor da lei que o definiu.

Por outro lado, os crimes eleitorais não se sujeitam ao correlato princípio da anualidade

eleitoral (BARROS, 2012, p. 17). Esse princípio é consagrado no artigo 16 da Constituição

Federal12 e, propositalmente, atrasa ainda mais o prazo inicial para que a nova legislação

relativa ao processo eleitoral possa produzir efeitos nas eleições, postergando esse prazo

em um ano, contado da data de entrada em vigor da nova norma eleitoral. O princípio da

anualidade tem por finalidade evitar que as maiorias legislativas de ocasião aproveitem de

sua superioridade numérica para alterar as regras do jogo eleitoral de forma oportunista e

de última hora, prejudicando injustamente seus adversários políticos em determinado pleito.

Sucede que a legislação penal eleitoral não tem vocação para modificar as regras do jogo

eleitoral, já que tal espécie normativa não define o processo eleitoral em si, destinando-se tão

somente à punição dos atentados mais gravosos a tal processo, o qual é traçado por outras

normas extrapenais.

Tendo em vista a extrema gravidade das consequências advindas da violação das normas

penais, os crimes em geral são puníveis, exclusivamente, a título doloso, sendo sempre

excepcional a repressão a condutas culposas, nos termos da previsão contida no parágrafo

único do artigo 18 do Código Penal. Em outras palavras, para que determinado fato seja punível

também a título de culpa, a legislação deve expressamente ressalvar essa circunstância.

Atualmente, não existe nenhum crime eleitoral previsto na legislação vigente que seja punível

a título culposo.

Com relação às regras da dosimetria penal, o artigo 285 do Código Eleitoral trouxe uma

previsão especial, não contemplada no Código Penal, redigida à revelia da boa técnica

legislativa e destinada a provocar confusões na aferição das penas aplicadas aos crimes

eleitorais. Segundo tal previsão: “Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena

sem mencionar o ‘quantum’, deve o juiz fixá-lo entre um quinto e um terço, guardados os

limites da pena cominada ao crime”.

12 “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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Como sabido, as regras atinentes à dosimetria penal estão previstas, em linhas gerais, no

artigo 68 do Código Penal, que adota o sistema trifásico de aplicação da pena, por meio

do qual se fixa inicialmente a pena-base (1ª fase), depois são aplicadas as circunstâncias

agravantes e atenuantes (2ª fase) e, por fim, as causas de aumento e diminuição da pena

(3ª fase).

Nas duas primeiras fases desse procedimento, devem ser adotadas operações de cálculo

semelhantes, já que para ambas o Código Penal não predetermina as frações específicas

a serem acrescidas ou subtraídas à pena, conforme as circunstâncias judiciais e legais

identificadas, impondo apenas que o juiz não extrapole os limites mínimo e máximo

abstratamente cominados pelo legislador ao delito, até porque, do contrário, o juiz não teria

limite algum para a determinação da pena nessas duas fases iniciais. A terceira fase da

dosimetria penal, por outro lado, adota um sistema de cálculo particular, no qual são indicadas

expressamente as frações a serem aplicadas em razão do reconhecimento de causas de

aumento ou de diminuição da pena, e, ademais, somente nesta última fase tais causas

podem levar à extrapolação dos limites mínimo e máximo cominados ao crime, justamente por

estarem previamente determinadas em montantes fixos, limitando a arbitrariedade judicial.

A referida previsão do artigo 285 do Código Eleitoral não inaugurou um sistema totalmente

autônomo de fixação da pena para os crimes eleitorais, mantendo-se dependente do regime

trifásico, tal qual delineado no Código Penal. O problema é que tal dispositivo trouxe uma

previsão especial totalmente conflitante com o sistema tradicional, misturando o método

de cálculo próprio da segunda fase da dosimetria penal com o sistema aplicável à terceira

fase, já que fala em “agravação” e “atenuação” da pena, dando a entender que está se

referindo à segunda fase; entretanto, estabelece frações específicas para esse agravamento

ou atenuação, o que é característica da terceira fase do cálculo penal. Para piorar, no final

do dispositivo ainda se estipula que devem ser “guardados os limites da pena cominada ao

crime”, o que é característico das primeiras duas fases da dosimetria penal, e não da terceira.

Em outras palavras, a redação desse dispositivo é uma verdadeira “mistura” da teoria da

dosimetria penal.

Em uma análise mais superficial, um incauto poderia ser levado a concluir que o dispositivo

em questão se refere à segunda fase do cálculo da pena, estipulando um regime especial

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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para a dosimetria dos crimes eleitorais, por meio do qual são atribuídas frações predefinidas

às agravantes e atenuantes próprias dessa categoria delitiva. Tal conclusão poderia ainda

ser reforçada por duas razões. Em primeiro lugar, o dispositivo em questão menciona, em

sua parte final, que a aplicação das frações estipuladas deve respeitar os limites mínimo e

máximo da pena abstratamente cominada ao crime, o que é característica típica da segunda

fase do cálculo da pena, e não da terceira fase. Em segundo lugar – e mais importante –,

seria possível ponderar que o artigo 285 do Código Eleitoral não teria sentido caso fosse

empregado para estipular frações de pena a serem aplicadas às causas de aumento ou de

diminuição previstas na terceira fase da dosimetria penal, já que, como sabido, todas essas

causas previstas no Código Penal possuem frações devidamente estipuladas, não carecendo

da especificação por outro dispositivo.

Uma análise mais minuciosa dos tipos penais contidos no Código Eleitoral, todavia, revela

que a previsão do artigo 285 se refere à terceira fase de fixação da pena, isto é, às causas

de aumento ou de diminuição da pena, e não propriamente às agravantes e atenuantes.13

Ocorre que apenas seis tipos penais do Código Eleitoral preveem o “agravamento” de suas

penas em razão de determinadas circunstâncias especiais, “sem mencionar o ‘quantum’”,

exatamente como preconizado pelo dispositivo em questão, quais sejam: parágrafo único do

artigo 300 (coação pelo servidor público eleitoral), parágrafo único do artigo 323 (divulgação

de fatos inverídicos por meio da imprensa), parágrafo único do artigo 339 (destruição de

votos e documentos pelo servidor público eleitoral), parágrafo único do artigo 340 (fabricação

ou subtração de objetos de uso exclusivo da Justiça Eleitoral pelo servidor público eleitoral),

parágrafo único do artigo 348 (falsificação de documento público para fins eleitorais pelo

servidor público eleitoral), e parágrafo único do artigo 350 (falsidade ideológica para fins

eleitorais de assentamento de registro civil ou praticada pelo servidor público eleitoral).

Em cinco dos seis referidos tipos penais do Código Eleitoral, a pena é majorada em seus

parágrafos únicos, na hipótese de esses crimes serem cometidos por servidor público

eleitoral no exercício da função, empregando-se a seguinte fórmula: “Parágrafo único: Se

o agente é membro ou funcionário da Justiça Eleitoral e comete o crime prevalecendo-se

do cargo a pena é agravada”. A toda evidência, essas “agravantes” não são circunstâncias

13 Compartilham dessa conclusão Marcos Ramayana (2010, p. 678) e José Jairo Gomes (2012, p. 28).

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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agravantes referentes à segunda fase da dosimetria penal, pois as agravantes e atenuantes,

propriamente ditas, tal como referidas pelo artigo 68 do Código Penal, somente estão previstas

na Parte Geral desse Codex, são genéricas e não possuem montantes predeterminados para

a majoração ou redução das penas, tal como as impróprias “agravantes” previstas nos seis

tipos penais do Código Eleitoral referidos.

A título de exemplo, imagine a hipótese de um crime eleitoral “agravado” por ter sido

cometido por servidor público eleitoral e, cumulativamente, tal agente ser menor de vinte e

um anos, por conseguinte, beneficiário da atenuante pertinente à menoridade relativa. Em tal

hipótese, restaria impossível efetuar o cálculo da pena, acaso considerássemos a imprópria

“agravante” prevista pelo Código Eleitoral na segunda fase da dosimetria penal, pois, dessa

forma, teríamos o concurso de uma circunstância que possui um montante predeterminado

a ser acrescido à pena (crime cometido por servidor público eleitoral) e uma circunstância

carente de tal predefinição (menoridade relativa). Como sabido, o regime jurídico aplicável ao

concurso das circunstâncias agravantes e atenuantes não é o do cálculo aritmético, próprio

das causas de aumento e diminuição, mas, sim, o da preponderância e da compensação, tal

como preconizado pelo artigo 67 do Código Penal e pela jurisprudência. Por essa razão, as

impróprias agravantes positivadas pelo Código Eleitoral, na verdade, tratam-se de evidentes

causas de aumento a serem computadas na terceira fase da dosimetria penal.

Questão interessante consiste em analisar a parte final do artigo 285 do Código Eleitoral,

a qual estipula que, na aplicação das impróprias agravantes previstas no diploma eleitoral,

devem ser “guardados os limites da pena cominada ao crime”, o que é característico do

regime de cálculo da pena aplicável às duas primeiras fases da dosimetria penal, e não

da terceira, atinente às causas de aumento ou de diminuição da pena. José Jairo Gomes

(2012, p. 28) pondera que essa cláusula final deveria ser simplesmente desconsiderada,

sob o argumento de que, na hipótese de a pena-base ser estabelecida no mínimo legal, não

seria possível a aplicação de uma causa de diminuição preconizada pelo Código Eleitoral,

já que a pena não poderia ser fixada aquém do limite mínimo abstratamente cominado para

o delito. Tal argumentação, entretanto, não convence, pois, a despeito de o artigo 285 do

Código Eleitoral mencionar a existência das impróprias “agravantes” e “atenuantes”, o fato é

que os tipos penais previstos em tal diploma eleitoral somente contemplam seis impróprias

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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“agravantes” (rectius causas de aumento de pena), não havendo previsão de nenhuma

“atenuante” (rectius causa de diminuição de pena). Não bastasse isso, a cláusula em questão

deve ser obrigatoriamente aplicada, simplesmente por estar prevista em lei, em atenção ao

princípio da legalidade, de forma a limitar as frações de aumento a serem acrescidas a esses

crimes eleitorais, não podendo ser ignorada, principalmente, em prejuízo do condenado.

Outra característica própria do Código Eleitoral consiste na generalização das penas

mínimas privativas de liberdade, abstratamente cominadas para todos os delitos previstos

em tal diploma. Nos termos do artigo 284 desse Codex, as penas mínimas abstratamente

cominadas são sempre de quinze dias para os delitos apenados com detenção e de um ano

para aqueles punidos com reclusão. Ocorre que os preceitos secundários dos tipos penais

incriminadores previstos no Código Eleitoral não contemplaram a previsão individualizada

de penas mínimas, somente de penas máximas, a exemplo do crime de coação previsto no

artigo 300 do Código Eleitoral, o qual estabelece a pena de “detenção até seis meses [...]”, omitindo a cominação mínima, a qual é localizada no referido artigo 284.

O regime da pena de multa também é um pouco diferenciado para os delitos previstos no

Código Eleitoral, nos termos do artigo 286 de tal diploma. À semelhança do Código Penal,

o cálculo da pena de multa também é efetuado pelo método bifásico, por meio do qual se

atribui ao condenado o pagamento de determinado número de dias-multa. Esse número é

obtido na primeira fase do cálculo, sendo fixado segundo as circunstâncias judiciais, legais

e a presença de causas de aumento e diminuição da pena. Por essa razão, a quantidade de

dias-multa será proporcional à pena privativa de liberdade aplicada. Segundo o artigo 286 do

Código Eleitoral, o número de dias-multa varia entre um a, no máximo, trezentos, sendo que

o preceito secundário de cada um dos tipos penais incriminadores previstos nesse Codex

também indica um número máximo e mínimo de dias-multa, aplicável particularmente a cada

crime eleitoral.

Por exemplo, o crime de coação previsto no artigo 300 do Código Eleitoral prevê a pena de

“detenção até seis meses e pagamento de 60 a 100 dias-multa”. Na segunda fase de cálculo

da pena de multa, o valor do dia-multa deve ser individualizado segundo a condição financeira

do sentenciado e deveria também variar entre o valor do “salário-mínimo diário da região” e

o valor de um “salário-mínimo mensal”. O problema é que o “salário-mínimo diário da região”

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

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não é um índice vigente na atualidade, de modo que, em atenção ao princípio do favor rei, não há outra alternativa senão considerar o valor mínimo do dia-multa igual a zero. Em outras

palavras, o valor do dia-multa deve variar de zero a, no máximo, um salário mínimo. Por fim,

o §2º do artigo 286 do Código Eleitoral permite, ainda, a triplicação do valor final da pena de

multa alcançado, após o cumprimento do método bifásico, quando tal valor for ineficaz para a

punição do condenado, em razão de sua privilegiadíssima situação econômica. Ainda assim,

esse mesmo dispositivo limita esse valor ao máximo genérico previsto no caput do artigo 286,

qual seja, trezentos dias-multa fixados no valor máximo de um salário mínimo. Tomando-se

por base o valor atual do salário-mínimo nacional, montado em setecentos e oitenta e oito

reais, tem-se que o valor máximo da pena de multa aplicável ao condenado por crime previsto

no Código Eleitoral é de duzentos e trinta e seis mil e quatrocentos reais.

Aula 03 | Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral

Vamos pensar

Elabore uma resenha a respeito da Lei de Segurança Nacional à luz da Constituição

Federal de 1988.

• O Direito Penal Eleitoral no Contexto da Democracia Brasileira.

• A Democracia Representativa.

• A Natureza do Crime Eleitoral.

• Crime Comum/Crime Político.

• Princípios Particulares ao Direito Penal Eleitoral.

Pontuando

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Pragmática: “Conjunto de considerações práticas”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011,

p. 747).

Glossário

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1

Etimologicamente, “democracia” significa:

a) Governo de Elites.

b) Governo do Povo.

c) Governo de Alguns.

d) Governo dos Outros.

e) Governo Político.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2

O fato de o Brasil ser uma democracia rela-

tivamente jovem acarreta, entre outras con-

sequências:

a) Um desequilíbrio na disputa eleitoral.

b) Um equilíbrio na disputa eleitoral.

c) Uma ajuda mútua.

d) Uma colaboração do poder público para o desenvolvimento social.

e) Uma série de debates políticos.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3

Em termos de política criminal, o Direito Pe-

nal Eleitoral consiste:

a) Na manifestação mais esperada do Direito Eleitoral.

b) Na manifestação mais branda do Direito Eleitoral.

c) Na manifestação mais cruel do Direito Elei-toral.

d) Na manifestação mais desejada do Direito Eleitoral.

e) Na manifestação mais característica do Di-reito Eleitoral.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4

O Direito Penal Eleitoral tem por finalidade:

a) Não possui nenhuma finalidade.

b) A criminalização das mais execráveis viola-ções ao processo eleitoral.

Verificaçãode leitura

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c) A descriminalização das mais execráveis violações ao processo eleitoral.

d) A criminalização dos movimentos democrá-ticos.

e) A criminalização dos movimentos popula-res.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5

No que tange ao denominado Crime Políti-

co, e as teorias objetiva, subjetiva e mista, a

doutrina e a jurisprudência dominante enten-

dem:

a) Que se deve levar em consideração unica-mente a teoria subjetiva.

b) Que se deve levar em consideração unica-mente a teoria objetiva.

c) Que se deve levar em consideração a teoria híbrida.

d) Que, para a configuração de crime político, a teoria mista é a mais acertada.

e) Que, para a configuração de crime político, a teoria mista é a mais desacertada.

Verificação de Leitura

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Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Segundo Antenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio

de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1955), “democracia” significa “governo do povo”.

Questão 2

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Especialmente em uma jovem democracia, como o Brasil – na qual vigora uma

oligarquia –, a realização de eleições efetivamente justas ainda é uma pretensão bastante

ambiciosa.

Questão 3

Resposta: Alternativa C.

Resolução: O Direito Penal Eleitoral consiste na manifestação mais cruel do Direito Eleitoral,

caracterizada pela previsão de regras que, no limite, podem acarretar não apenas a aplicação

de penas privativas de liberdade, mas também a estigmatização e marginalização social que

costumam acompanhar a criminalização de qualquer indivíduo.

Questão 4

Resposta: Alternativa B.

Resolução: O Direito Penal Eleitoral tem por finalidade declarada a criminalização das mais

execráveis violações ao processo eleitoral.

Gabarito

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Questão 5

Resposta: Alternativa D.

Resolução: Tradicionalmente, a literatura jurídica apresenta três teorias para definir o

crime político, quais sejam: a objetiva, a subjetiva e a mista. Segundo a teoria objetiva, os

crimes políticos são definidos pelo bem jurídico periclitado, qual seja, a segurança interna ou

externa de um Estado; a teoria subjetiva, por sua vez, define tal espécie delitiva em razão

da motivação política do agente, independentemente do objeto concreto que seja agredido;

por fim, a teoria mista determina que somente pode ser considerado político o crime que

contenha cumulativamente os dois componentes objetivo e subjetivo mencionados. Tanto a

doutrina como a jurisprudência pátrias têm optado por restringir o conceito de crime político,

elegendo a teoria mista como a mais acertada.

Referências

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TeMA 04Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990

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LEGENDA DE ÍCONES seções

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início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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04

Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990Caroline Valverde de Camargo

Advogada.

Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Direito Previdenciário e Direito de Família e

Sucessões.

Objetivos

O presente escrito tem como objetivo refletir a respeito das questões que envolvem o

Estatuto da Criança e do Adolescente.

Resumo da Aula

O presente estudo tem o escopo de explanar o que estabelece a Lei nº 8.069, de 13 de

julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, incluídas as suas atualizações. Parte-

se de um breve discorrer acerca da evolução jurídica do direito da criança e do adolescente

no Brasil, que se iniciou em 1830 com o surgimento da doutrina penal do menor, por meio

do Código Criminal, passando pelas Constituições Brasileiras, até nossa vigente legislação,

tratando dos princípios gerais trazidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu

Livro I- Parte Geral, compreendendo do artigo 1º ao 85, e em seu Livro II- Parte Especial,

compreendendo do artigo 86 ao 267, dando maior ênfase ao Título III, que trata da Prática de

Ato Infracional.

1. Evolução Histórica Mundial do Direito da Criança e do Adolescente

No século XVIII houve uma evolução a respeito do significado de infância, derivado do

interesse das Grandes Ordens Religiosas Europeias e de sua preocupação com a educação

das crianças, com a finalidade de prepará-las para a vida adulta, uma vez que o amparo ao

infante era realizado precipuamente pela Igreja Católica.

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Aula 04 | Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990

Porém, apenas um século mais tarde a criança passou a ser considerada como indivíduo

dentro da família, carecedora de investimento afetivo, econômico, educativo e existencial,

fazendo com que surgisse a primeira concepção de criança enquanto pessoa, ainda que com

alguns resquícios de coisificação (BARROS, 2005).

Mais tarde, na Idade Contemporânea, tanto internacionalmente como no Brasil houve

importantes avanços na proteção social e nos direitos infantojuvenis, manifestados inicialmente

em 1919 com a criação do Comitê de Proteção da Infância, gerando obrigações coletivas em

relação à criança no Direito Internacional, deixando o Estado de ser o único a tratar acerca

da matéria.

Com o surgimento da primeira Declaração dos Direitos da Criança, fora recomendado aos

Estados a ela filiados criar e regulamentar legislação própria para a defesa dos direitos das

crianças e da juventude.

Segundo José de Farias Tavares e Luciane Potter Bitencourt (TAVARES, 2001; BITENCOURT,

2009), logo após o término da Segunda Guerra Mundial a Organização das Nações Unidas

(ONU) criou o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF), em que se recomendou que fosse estabelecido um direito de proteção especial

às crianças.

Com a vigência do Pacto de São José da Costa Rica, apenas adotado pela Organização dos

Estados Americanos em 1978, com o escopo de voltar a atenção mundial para as questões

do Direito dos infantojuvenis, fora iniciada uma consolidação mundial acerca da importância

da proteção às crianças e adolescentes, sendo que apenas em 1985 se estabeleceram regras

mínimas para as Nações Unidas administrarem o Direito da Infância e da Juventude.

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 1989, se apresenta como primeiro

documento que instituiu as bases para consignar a doutrina da proteção integral da criança e

do adolescente, ficando estabelecido pela Cúpula Mundial de Presidentes, em 1990, o “plano

de ação de dez anos em favor da infância”. Concomitantemente, no Brasil é criada a Lei nº

8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

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O Direito Infantojuvenil no Brasil surgiu por meio da doutrina penal do menor, no Código

Criminal de 1830, se mantendo no Código Penal de 1890, durante a vigência da Constituição

Federal de 1824, conforme descrito por Luciane Potter Bitencourt (BITENCOURT, 2009).

Entra em vigor em 1891 a Constituição Republicana, e alguns anos depois o 1º Código de

Menores do Brasil, instituído em 12 de outubro de 1927 por meio do Decreto nº 17.943-

A, que segundo Alberton (2005), dividia os menores de dezoito anos em duas classes: os

abandonados e os delinquentes. O maior avanço desta lei está no fato da punição por prática

infracional cometida deixar de ser entendida como sanção-castigo e passar a assumir caráter

de sanção-educação, com a finalidade de reeducação de comportamentos “delituosos”,

imputando ao Estado assistir os menores desemparados.

Este código fora revogado em 1979, por meio da Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 -

Código de Menores, que passou a tratar da assistência, vigilância e proteção do menor, não

apenas dos delinquentes e abandonados, como também dos menores em situação irregular,

segundo o aludido por Maria Regina Fay de Azambuja (AZAMBUJA, 2004).

Segundo o que trata Bitencourt (2009), este código passou a ser alvo de inúmeras críticas,

devido ao fato de restringir o amparo apenas aos menores delinquentes, abandonados e em

situação irregular, não abrangendo todo e qualquer menor de idade, e também ao fato de

estabelecer que ao Juiz de Menores caberia decidir os encaminhamentos e penas, assumindo

este magistrado uma tutela de caráter de controle social em relação àqueles “menores em

situações desfavoráveis” (ALBERTON, 2005).

Em 20 de novembro de 1989, com o objetivo de efetivar os direitos da criança e do adolescente,

membros de diversos países aprovaram a Convenção Internacional sobre os Direitos da

Criança e do Adolescente, delineando as politicas legislativas futuras dos Estados-membros, com o objetivo de fazer com que os países incentivassem e criassem políticas públicas possibilitando o desenvolvimento pleno e harmônico da criança e do adolescente, em um ambiente familiar sadio, os tornando aptos a viverem em sociedade, educados nos princípios

estabelecidos na Carta das Nações Unidas.

Dentre os mais importantes princípios estabelecidos na Convenção das Nações Unidas

estão o reconhecimento de Direitos Fundamentais, dentre eles o da proteção, sobrevivência,

Aula 04 | Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990

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participação e desenvolvimento; a proteção integral à criança, por meio de políticas básicas

de proteção ao infantojuvenil; a prioridade imediata para a infância e o princípio do melhor

interesse da criança, por esta ser pessoa em via de desenvolvimento (PEREIRA, 2008).

Quando da promulgação da referida convenção, o Brasil, membro signatário desta, já havia

instituído em sua Constituição Federal de 1988 dispositivos de proteção à criança e ao

adolescente, base fundante do Estatuto da Criança e do Adolescente, editado dois anos após

a promulgação da carta Magna Pátria.

2. Evolução Histórica Constitucional Brasileira

A primeira Constituição Brasileira a fazer referência aos direitos da criança e do adolescente

foi a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, a qual,

em seu Título IV- “Da Ordem Econômica e Social”, trouxe à baila de forma minimalista a

defesa e a proteção das crianças e adolescentes, em seu artigo 138 in verbis:

Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municipios, nos termos das leis respectivas:

a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços sociaes, cuja orientação procurarão coordenar;

b) estimular a educação eugenica;

c) amparar a maternidade e a infancia;

d) soccorrer as familias de prole numerosa;

e) proteger a juventude contra toda exploração, bem como contra o abandono physico, moral e intellectual;

f) adoptar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de hygiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissiveis;

g) cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os venenos sociaes1.

1 Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publi-cacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 06 jun. 2015.

Aula 04 | Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990

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Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, passou a ser dever do Estado garantir o direito da criança e do adolescente, passando a ser competência da União legislar sobre a proteção e defesa da saúde da criança, trazida no inciso XXVII, do

artigo 16, do aludido diploma. Vejamos:

Art. 16. Compete privativamente á União o poder de legislar sobre as seguintes materias:

[...]

XXVII - normas fundamentaes da defesa e protecção da saude, especialmente da saude da creança2.

Ainda na mesma Constituição é possível se deparar com outros três artigos garantidores da proteção à infância e juventude por parte do Estado, trazendo em sede de competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios a garantia do acesso ao ensino público

e gratuito, citado nos artigos 127, 129 e 130 respectivamente, dos quais se transcreve:

Art. 127. A infancia e a juventude devem ser objecto de cuidados e garantias especiaes por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições physicas e moraes de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intellectual ou physico da infancia e da juventude importará falta grave dos responsaveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provel-as do conforto e dos cuidados indispensaveis á preservação physica e moral. Aos paes miseraveis assiste o direito de invocar o auxilio e protecção do Estado para a subsistencia e educação da sua prole.

Art. 129. A infancia e á juventude, a que faltarem os recursos necessarios á educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municipios assegurar, pela fundação de instituições publicas de ensino em todos os seus gráos, a possibilidade de receber uma educação adequada ás suas faculdades, aptidões e tendências vocacionaes.

O ensino prevocacional profissional destinado ás classes menos favorecidas é, em materia de educação, o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municipios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionaes.

É dever das industrias e dos syndicatos economicos crear, na esphera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operarios ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsidios a lhes serem concedidos pelo poder publico.

2 Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-35093-10-novembro-1937-532849-publicacaooriginal-15246-pe.html>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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Art. 130. O ensino primario é obrigatorio e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por occasião da matricula, será exigida aos que não allegarem, ou notoriamente não puderem allegar escassez de recursos, uma contribuição modica e mensal para a caixa escolar3.

Não obstante a reafirmação do dever do Estado acerca da garantia do ensino gratuito aos

depostos de recursos, a Constituição de 18 de setembro de 1946, em seu artigo 164, instituiu

a obrigatoriedade de assistência na maternidade, bem como o legal amparo a famílias de

prole numerosa, como se observa a seguir: “Art. 164 - É obrigatória, em todo o território

nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo

de famílias de prole numerosa4”.

Complementando o que já estava instituído em 1946, a Constituição da República Federativa

do Brasil de 24 de janeiro de 1967 determinou a instituição de assistência à maternidade, à

infância e à adolescência, por meio de lei, preconizada no artigo 167, §4º, qual seja: “Art. 167

- A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. [...] §

4º - A lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência5”.

A Emenda Constitucional nº 1, datada de 17 de outubro de 1969, manteve a assistência à

maternidade, à infância e à adolescência, trazendo o direito à educação do excepcional,

regulamentada por lei especial, nos termos do artigo 175, §4º. Assim, vejamos:

Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos.

[...]

§ 4º Lei especial disporá sôbre a assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sôbre a educação de excepcionais6.

3 Disponível em :<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-35093-10-novembro-1937-532849-publicacaooriginal-15246-pe.html>. Acesso em: 06 jun. 2015.4 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.5 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015. 6 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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O maior avanço legislativo no que se refere à proteção aos direitos e garantias da criança e do

adolescente se deu com a presente Constituição Federal de 1988. Nesta, não coube apenas

ao Estado o dever de garantir a proteção das crianças e dos adolescentes, ficando a cargo

também da família e da sociedade a proteção de toda população infantojuvenil, conforme

consoante no artigo 227, que em seu § 4º estabelece punição, na forma da lei, em casos de

abuso, violência e exploração sexual cometidos contra a criança e o adolescente. A partir

deste momento, a população infantojuvenil passa a se tornar sujeito de direitos.

3. Lei Nº 8.069 de 13 de Julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente

3.1 Objetivos

O Estatuto da Criança e do Adolescente fora criado com o desígnio de regulamentar e

conferir efetividade às normas constitucionais que tratam das crianças e dos adolescentes.

Na concepção de Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Procurador-Geral de Justiça do Ministério

Público do Estado do Paraná, o Estatuto da Criança e do Adolescente se apresenta no

ordenamento jurídico pátrio para regulamentar o artigo 227 da Constituição Federal de 1988,

que submergiu os ditames da doutrina da proteção integral, contemplando o princípio da

prioridade absoluta.

O Estatuto da Criança e do Adolescente adveio com o objetivo de “intervir positivamente

na tragédia de exclusão experimentada pela nossa infância e juventude”, por meio da

efetivação da garantia das crianças e adolescentes serem reconhecidos e tratados como

sujeitos de direito, não mais sendo entendidos como objetos de intervenção da família e

do Estado, e também para desenvolver uma nova política de atendimento ao infantojuvenil,

apoiada nos princípios constitucionais da descentralização político-administrativa, por meio

de municipalização de ações e participação efetiva da sociedade civil7 (DIGIÁCOMO, 2013).

7 Disponível em: <http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/Legislacao%20e%20Jurisprudencia/ECA_comentado.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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3.2 estrutura

O ECA está constituído por dois livros, quais sejam:

a) Livro I, que corresponde à parte geral e que trata de matéria de natureza civil; das formas

de colocação em família substituta, da definição da família natural e demais temas cíveis

relacionados. Contém três títulos: o primeiro (Título I) nomeado Disposições Preliminares,

o segundo que dispõe sobre os Direitos Fundamentais (Título II) e o terceiro que trata das

Formas de Prevenção (Título III).

b) Livro II, que corresponde à parte especial, trata do acesso à Justiça; os procedimentos

de apuração de ato infracional, infrações administrativas e crimes contra a criança

e adolescente, dentre outros. Composto por sete títulos, denominados: Políticas de

Atendimento (Título I), Medidas de Proteção (Título II), Prática de Ato Infracional (Título

III), Medidas pertinentes aos pais ou responsáveis (Título IV), Conselho Tutelar (Título V),

Acesso à Justiça (Título VI) e, por fim, Crimes e Infrações Administrativas (Livro VII).

O presente estudo será focado no Livro II- Parte Especial, por se tratar de matéria voltada à

área criminal, porém, nenhum conceito relevante ao pleno entendimento do tema contido no

Livro I deixará de ser apresentado.

3.3 Conceitos de Criança e de Adolescente e aplicação excepcional do estatuto

A conceituação de criança e adolescente vem inserida no artigo 2º, caput8, do diploma

legal suscitado, considerando criança a pessoa de até doze anos incompletos de idade e

adolescente a pessoa entre quatorze anos completos e dezoito anos incompletos de idade.

Tal distinção se faz de extrema importância, principalmente quando se trata de ato infracional

cometido por criança e adolescente e das medidas socioeducativas a eles aplicáveis.

8 “Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

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Segundo o doutrinador Eduardo Dompieri, na esfera Penal não se pode submeter a criança

infratora à aplicação de medida socioeducativa, uma vez que a esta, assim como aos

adolescentes, caberá a aplicação das medidas de proteção, conforme preceituado no artigo

112 do ECA9 . Porém, conforme estabelece o artigo 105 do ECA10, diferentemente do que

ocorre com o adolescente infrator, as crianças infratoras serão submetidas apenas às medidas

de proteção.

Embora o objetivo principal do Estatuto da Criança e do Adolescente seja a situação da criança e do adolescente, excepcionalmente este será aplicado às pessoas entre dezoito e vinte e um anos incompletos quando houver a necessidade de aplicação de medida socioeducativa de semiliberdade e de internação do adolescente.

Tais medidas serão aplicáveis impreterivelmente ao adolescente que tenha praticado ato infracional antes de completar dezoito anos de idade, levando em conta a data do fato, mesmo que a consumação do ato infracional tenha se efetivado após o adolescente ter atingido a maioridade. A duração máxima destas medidas deverá ser de até três anos e deverão necessariamente se findar até

os vinte e um anos da pessoa.

9 “Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.

§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.

§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições”.10 “Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101”.

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Saiba MaisALVES, Sirlei Fátima Tavares. Efeitos da internação sobre a psicodinâmica de adolescentes autores de ato infra-cional. São Paulo: Método, 2005.

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Acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Informativo 547, se posicionou no

sentido de que mesmo após o atingimento da maioridade a medida socioeducativa deverá

ser cumprida. Vejamos:

Medida Socioeducativa e Advento da Maioridade

A Turma reafirmou jurisprudência da Corte no sentido de que o atingimento da maioridade não impede o cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade e indeferiu habeas corpus em que se pleiteava a extinção dessa medida aplicada ao paciente que, durante o seu curso, atingira a maioridade penal. Sustentava a impetração constrangimento ilegal, dado que, como o paciente completara a maioridade civil — 18 anos —, e, portanto, alcançara a plena imputabilidade penal, não teria mais legitimação para sofrer a imposição dessa medida socioeducativa. Asseverou-se, todavia, que, se eventualmente a medida socioeducativa superar o limite etário dos 18 anos, ela poderá ser executada até os 21 anos de idade, quando a liberação tornar-se-á compulsória. Alguns precedentes citados: HC 91441/RJ (DJU de 29.6.2007); HC 91490/RJ (DJU de 15.6.2007) e HC 94938/RJ (DJE de 3.10.2008). HC 96355/RJ, rel. Min. Celso de Mello, 19.5.2009. (HC-96355).

4. Princípios Informadores Estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente

Para que se possa compreender a essência do ECA, é extremamente importante realizar

uma breve análise e estudo de alguns princípios básicos informadores deste diploma legal,

quais sejam:

4.1 Princípio da Proteção Integral

Previsto no artigo 1º do Estatuto, estabelece que todas as crianças e adolescentes, por

serem sujeitos de direitos, são merecedores de proteção integral, em todas as áreas, tais

como educação, saúde e proteção à infância, sendo vedado qualquer tipo de discriminação às

crianças e adolescentes vítimas, abandonados, autores ou não de atos infracionais, devendo

ser dispensado a todos o mesmo tipo de tratamento.

Pode ser citado como exemplo de proteção integral o que está estabelecido no artigo 6º, da

Constituição Federal de 1988, e no artigo 129, do ECA.

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4.2 Princípio da Prioridade Absoluta

Tal princípio impõe ao Estado, à sociedade e à família o dever de assegurar a preferência

da efetivação dos direitos da criança e do adolescente, assim como de seus tratamentos, em

face dos demais indivíduos.

Este tratamento preferencial compreende a primazia de receber proteção e socorro em

quaisquer circunstâncias, preferência na execução e formulação de políticas sociais públicas,

precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública e destinação

privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à

juventude. Este princípio está previsto no artigo 227, caput, da Constituição Federal vigente,

e artigo 4º, do ECA.

4.3 Princípio da Condição Peculiar de Pessoa em Desenvolvimento

As normas do Estatuto da Criança e do Adolescente são destinadas a um sujeito especial

de direito, que está em processo de formação em todas as esferas de sua vida, razão pela qual

toda medida e ele aplicada deve levar em conta essa peculiaridade, ou seja, a particularidade

de sua condição.

4.4 Princípio da excepcionalidade

Estabelece que apenas será aplicada a medida privativa de liberdade em caráter

excepcional, ou seja, na ausência de outra medida menos gravosa (artigo 227, §3º, inciso V,

da Constituição Federal).

4.5 Princípio da Brevidade

Previsto no artigo 227, §3º, inciso V, da Constituição Federal, estabelece que a medida

privativa de liberdade deve durar o menor prazo possível, sendo este apenas o necessário

para a ressocialização do adolescente infrator.

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5. Ato Infracional e Garantias Processuais à Criança e Adolescente

5.1 Conceituação

Em uma breve conceituação, o Ato Infracional tratado no artigo 103 do ECA é entendido

como a ação ilícita que viola as normas definidoras dos crimes ou das contravenções penais

praticados pela criança ou pelo adolescente, se di-

ferenciando da infração penal, que vem a ser a con-

duta aplicada pela pessoa imputável. Assim, devido

ao fato das crianças e adolescentes serem inim-putáveis, não estarão sujeitos à responsabilização

penal, pois deverão ser submetidos às medidas de

proteção ou socioeducativas.

É importante salientar que, assim como nos crimes, nos atos infracionais também deverão

ser observados os princípios do direito penal, como legalidade, reserva legal, anterioridade,

insignificância, adequação social, dentre outros. Além disso, deve também ser analisada a

culpabilidade da criança e do adolescente na prática do ato infracional.

5.2 Tempo do Ato infracional

O parágrafo único do artigo 104 do ECA estabelece que deve ser considerada a idade

do adolescente à data da conduta, ação ou omissão, na aplicação das medidas previstas no

Estatuto.

Assim, caso o adolescente cometa um ato infracional antes de completar dezoito anos de

idade, a ele será aplicada medida socioeducativa, não respondendo criminalmente pelo seu

ato, incorporando-se aqui a teoria da atividade, em que apenas se considerará praticado o

crime no momento da conduta, ainda que o resultado seja diverso; inteligência do artigo 4º

do Código Penal.

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LinksPara mais informações a respei-to do debate sobre a alteração da idade de imputabilidade penal, ver: <https://18razoes.wordpress.com/18--razoes/>.

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5.3 Ato Infracional Cometido pela Criança

O Estatuto da Criança e do Adolescente, compreendendo as diferentes etapas do

desenvolvimento da pessoa humana, espelhado na psicologia, percebeu que o adolescente

maior de 12 anos de idade possui maior conhecimento e capacidade de discernir entre o

correto e incorreto, assim, podem ser cominadas a ele as medidas socioeducativas, além das

medidas protetivas (artigos 105, 101 e 112, inciso VII, do ECA).

Diferentemente do adulto e do adolescente, a criança menor de 12 anos ainda não possui

total capacidade de compreender seus atos, o que dificultaria sua compreensão quanto ao

motivo do cumprimento de medida socioeducativa, passando esta a ser ineficaz.

Assim, o legislador, entendendo a problemática, estabeleceu no artigo 101 do ECA que à

criança infratora apenas caberá medida protetiva, não respondendo ela pelo procedimento de

apuração de ato infracional entabulado nos artigos 171 a 190 do Estatuto.

As medidas protetivas possuem natureza administrativa de caráter especial por serem

tratadas em legislação especial, e devem ser aplicadas pelo Conselho Tutelar se ainda não

houver um Juízo de Infância e Juventude instalado.

6. Direitos Individuais dos Adolescentes

O artigo 106 do Estatuto da Criança e do Adolescente nos traz hipóteses de aplicação da

privação da liberdade ao adolescente, quais sejam: nos casos de flagrante em ato infracional

ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, ou seja, do juiz da

Infância e da Juventude.

Já o artigo 108 do ECA trata da internação provisória, que deve ser entendida como medida

excepcional, aplicada antes da sentença e decretada em casos de extrema necessidade,

fundada em indício suficiente de autoria e materialidade do fato, após o oferecimento de

representação pelo Ministério Público, com duração máxima de 45 dias, prazo este também

aplicável ao encerramento do processo. Ao término dos 45 dias o adolescente deverá

ser liberado imediatamente, sendo que o descumprimento injustificado dessa norma será

caracterizado como crime, previsto no artigo 235 do ECA.

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Tal medida deverá ser cumprida em entidade de atendimento, porém, em caso de

impossibilidade de imediata transferência, o adolescente, em caráter excepcional, poderá

aguardar sua remoção em repartição policial, separado dos adultos, pelo prazo máximo de

cinco dias.

Com relação à identificação do adolescente, preceitua o artigo 109 do ECA, em consonância

com o artigo 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal, que apenas será realizada identificação

dactiloscópica diante de dúvida fundada, estabelecida no artigo 3º da lei nº 12.037/2009.

7. Garantias Processuais

O ECA aplica o princípio do devido Processo Legal, transcrevendo literalmente em seu

artigo 110 o que fora preceituado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988.

O devido processo legal consiste em assegurar um processo justo, atendendo aos

procedimentos estabelecidos em lei, respeitando o contraditório e a ampla defesa, sempre

que for atribuída ao adolescente a prática de ato infracional, mesmo quando se tratar de ato

que não resulte em restrição de sua liberdade, sendo nula a desistência de outras provas

em face de confissão do adolescente, nos casos de procedimento para aplicação de medida

socioeducativa11.

Decorrem deste princípio todas as demais garantias processuais, tais como a presunção de

inocência, o direito ao duplo grau de jurisdição, o contraditório, dentre outras, estendendo-se

ao adolescente todas as garantias asseguradas aos imputáveis.

Estabelece o artigo 111 do ECA um rol de garantias que deverão ser observadas quando

se trata de adolescente. É importante salientar que este rol não é exaustivo, haja vista o

emprego da expressão “entre outras” no caput do aludido artigo, caracterizando, assim, o

caráter meramente exemplificativo de seus incisos.

11 “Súmula 342 do STJ- No procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente.”(Súmula 342, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/06/2007, DJ 13/08/2007 p. 581)

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8. Medidas Socioeducativas

As medidas socioeducativas não possuem caráter punitivo, típico da doutrina penal-

repressora, pois trazem consigo o objetivo de proporcionar ao adolescente infrator uma

nova compreensão dos valores da vida em sociedade, com uma proposta de intervenção

socioeducativa baseada em noções de cidadania, resgatando seus direitos fundamentais.

Tais medidas apenas deverão ser aplicadas pelo Juiz da Infância e Juventude (arts. 112, 116

do ECA e Súmula 108 do STJ).

Para a imposição da medida socioeducativa de advertência, basta que haja prova da

materialidade e indícios suficientes de autoria (art. 114, § único). Nas demais medidas, se faz

necessária a existência de prova suficiente da autoria e materialidade da infração (art. 114,

caput), havendo a possibilidade de cumulação de tais medidas com as medidas de proteção

(art. 112, inciso VII).

As medidas socioeducativas deverão levar em conta a capacidade do adolescente em cumpri-

las, assim como as circunstâncias e a gravidade do ato praticado, sendo vedada a prestação

de trabalho forçado durante o cumprimento da medida.

Ao adolescente portador de doença ou deficiência mental não se aplicarão medidas

socioeducativas, pois receberá tratamento individual e especializado.

São espécies de medidas socioeducativas elencadas no artigo 112 do ECA:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semiliberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

Art. 101. [...] I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

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IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

9. Remissão

Prevista nos artigos 126 a 128 do ECA, também denominada como remissão ministerial,

é conceituada como perdão concedido administrativamente pelo Ministério Público ao

adolescente autor de ato infracional, dependendo de posterior homologação.

Uma vez iniciado o procedimento de remissão, esta não mais poderá ser concedida pelo

promotor de justiça, cabendo tal tarefa apenas à autoridade judiciária, sendo denominada

então remissão judicial, importando em extinção ou suspensão do processo.

10. Apuração de Ato Infracional Atribuído ao Adolescente

Anteriormente à provocação da função jurisdicional realizada pelo Ministério Público,

titular da denominada ação socioeducativa, por meio do exercício do direito de ação, algumas

medidas previstas e disciplinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente deverão ser

tomadas. A estas medidas que antecedem a instauração do processo perante a Justiça da

Infância e Juventude dá-se o nome de medidas pré-processuais.

Em determinados casos alguns pontos relevantes deverão ser observados, conforme se

verifica a seguir.

10.1 Apreensão do adolescente

Esta apenas se dará em caso de flagrante de ato infracional ou por força de ordem judicial

(arts. 106, 171 e 172 do ECA).

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10.2 Flagrante de ato infracional praticado por adolescente, cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa

Caberá, neste caso, à autoridade policial a quem deve ser encaminhado o adolescente

surpreendido na prática de ato infracional, providenciar a lavratura do auto de apreensão;

apreender o produto e os instrumentos da infração; requerer exames de perícia; assegurar

que o adolescente tenha conhecimento da identidade dos responsáveis pela sua apreensão;

informar ao adolescente seus direitos; comunicar imediatamente à sua família ou à pessoa

indicada pelo adolescente; liberá-lo ou conduzi-lo ao Ministério Público (arts. 302 do CPP e

173, caput, do ECA).

10.3 Flagrante de ato infracional praticado sem violência ou grave ameaça contra a pessoa

As providências a serem tomadas neste caso, conforme preceitua o artigo 173, parágrafo

único, do ECA, são a lavratura do boletim de ocorrência circunstanciada; a apreensão do

produto e dos instrumentos da infração; a requisição de exames e perícias; assegurar que

o adolescente conheça a identidade dos responsáveis por sua apreensão, bem como seja

informado de seus direitos; comunicar imediatamente à sua família ou à pessoa indicada pelo

adolescente, bem como à autoridade judiciária; liberação ou condução do adolescente ao

Ministério Público.

10.4 Liberação do adolescente

Na hipótese em que qualquer dos pais ou responsáveis compareça em local onde esteja

o adolescente apreendido, segundo o que preceitua o artigo 174 do ECA, este deverá

ser prontamente liberado pela autoridade policial, ficando o responsável comprometido a

apresentar o adolescente ao MP no primeiro dia útil subsequente, com exceção dos casos

em que o adolescente comete ato grave e de grande repercussão social, em razão do qual

ele deverá permanecer sob internação para que seja garantida a sua segurança pessoal ou

a manutenção da ordem pública (art. 175 do ECA).

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10.5 Oitiva informal do adolescente

Instituída no artigo 179 do ECA, trata-se de importante instrumento auxiliador do membro

do MP, na formação de sua convicção, já que lhe permite ouvir o adolescente, seus pais ou

responsáveis, vítimas e testemunhas.

Acerca da obrigatoriedade da medida prevalece atualmente no Brasil a corrente que entende

que a ausência de oitiva informal promovida pelo MP não possui força de gerar nulidade da

apresentação dos atos seguintes, conforme entendimento do STJ12.

Após a oitiva informal, o promotor de justiça promoverá o arquivamento dos autos, concedendo

a remissão ou oferecendo representação (art. 180).

Nos casos em que ocorra arquivamento ou remissão, os autos serão conclusos à autoridade

judiciária para sua homologação, porém, caso o juiz discorde, os autos serão remetidos ao

procurador geral de Justiça, a quem caberá oferecer representação, designar outro promotor

para fazê-lo ou ratificar o arquivamento ou remissão, sendo que apenas neste caso o juiz

será obrigado a realizar a homologação (art. 181 do ECA).

10.6 Fase processual

Na fase processual, aludida nos artigos 182 a 190 do ECA, terá o MP legitimidade exclusiva

para ajuizar a ação socioeducativa, sendo defeso à vítima tal legitimidade.

10.7 Representação

A representação é considerada a petição inicial da ação socioeducativa, estando prevista

no artigo 182 do ECA, equivalendo na ação penal pública à denúncia.

Poderá ser realizada tanto de forma escrita como oral, bastando apenas os indícios de autoria

e materialidade para o seu prosseguimento, devendo incluir em seu conteúdo o resumo dos

fatos e a classificação do ato infracional, e quando necessário, o rol de testemunhas.

12 STJ, 5ª T., REsp.662.449/SC, Rel. Min. Felix Fischer, j. 7.12.04.

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10.8 Providências Judiciais

Depois de oferecida a representação pelo MP, os autos vão à conclusão do juiz, ao

qual caberá rejeitá-la, determinar sua emenda ou recebê-la. Em caso de recebimento da

denúncia, o magistrado designará audiência de apresentação do adolescente, determinando

sua cientificação e notificação, assim como de seus pais ou responsáveis.

10.9 Audiência de apresentação

É na audiência de apresentação que se dará o primeiro contato entre o juiz, o adolescente

e seus pais ou representantes, momento em que todos serão ouvidos, aplicando-se ao

adolescente as regras do interrogatório previstas no CPP.

Imprescindível se faz nesta audiência a presença do advogado do adolescente (art. 186, §

3º, do ECA). Seu defensor constituído ou nomeado, no prazo de três dias, oferecerá defesa

prévia e rol de testemunhas.

Após a oitiva do adolescente, caberá ao magistrado ouvir os pais ou responsáveis pelo

adolescente. Em seguida, após ouvir-se o MP, será concedida remissão ou será designada

audiência em continuação.

10.10 Audiência em Continuação

Nesta audiência ocorrerão: a oitiva de testemunhas de acusação e defesa; a apresentação

de relatório realizado por uma equipe multidisciplinar, que será acostado aos autos do

processo; debates do promotor e, em seguida, da defesa; sentença.

11. Crimes e Infrações Administrativas

11.1 Dos Crimes

Caso não haja disposição contrária do Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicam-

se aos crimes nele definidos as regras da parte Geral do Código Penal, e no que tange ao

processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.

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Os crimes previstos no ECA são de ação penal pública incondicionada, sendo que os principais

delitos em espécie são abordados nos artigos 228 a 244-B.

11.2 Das infrações administrativas

As infrações administrativas estão contidas nos artigos 245 a 258 do ECA, e segundo

Josiane Rose Petry Veronese e Mayra Silveira (VERONESE; SILVEIRA, 2011), “comportam-

se como expressão do poder de polícia do Estado na medida em que interferem na esfera

particular, restringindo diretos individuais diante da determinado interesse público”.

O procedimento de apuração das infrações administrativas deverá ocorrer judicialmente

perante a Vara da Infância e da Juventude, obedecendo ao rito preceituado nos artigos 194

a 198 do ECA, sendo deflagrado por meio de autuação do Serviço Voluntário da Vara da

Infância e da Juventude, de Conselhos Tutelares e do MP.

Aplica-se aqui o princípio da legalidade, segundo o qual somente haverá infração administrativa

se houver previsão legal, e a sanção apenas será aplicada se houver cominação legal.

A infração administrativa não será punida em sua forma tentada, e seu prazo prescricional

será de cinco anos, conforme entendimento jurisprudencial.

Aula 04 | Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990

Vamos pensar

Elabore algumas linhas que falem a respeito da medida socioeducativa de semiliberdade.

Recomenda-se como bibliografia inicial: SOUZA, Tatiana Yokoy de. Um estudo dialógico sobre institucionalização e subjetivação de adolescentes em uma casa de semiliberdade.

São Paulo: IBCCRIM, 2008.

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Primazia: “prioridade, primado”. Fonte: INSTITUTO Antônio Houaiss (Org.). Dicionário Houaiss Conciso. São Paulo: Moderna, 2011, p. 757.

• Evolução histórica mundial e constitucional brasileira do direito da criança e do

adolescente

• Princípios informadores estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente

• Ato infracional e garantias processuais à criança e ao adolescente

• Direitos individuais dos adolescentes

• Medidas socioeducativas

• Remissão

• Apuração de ato infracional atribuído ao adolescente

Pontuando

Glossário

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inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1

Nas comarcas onde não houver Conselho

Tutelar instalado, segundo o Estatuto da

Criança e do Adolescente, suas atribuições

serão exercidas pelo/pela:

a) Ministério Público.

b) Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

c) Centro de Referência Especializado de As-sistência Social (CREAS).

d) Comissariado da Infância e Juventude.

e) Autoridade judiciária.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2

Se o ato infracional imputado ao adolescen-

te tiver sido praticado mediante violência ou

grave ameaça à pessoa, segundo a legisla-

ção vigente:

a) Pode a autoridade policial apreendê-lo, ain-da que fora das hipóteses de flagrante e sem ordem judicial, desde que o apresente imedia-tamente ao Ministério Público.

b) Deve a autoridade policial, em caso de fla-grante, lavrar auto de apreensão do adoles-cente.

c) Se comprovadas a autoria e a materialida-de, deve a autoridade judicial aplicar medida socioeducativa de internação.

d) Ele perde o direito de, na fase executória, ser beneficiado com indulto, ainda que parcial, ou comutação de medida.

e) Pode o Promotor de Justiça conceder re-missão, desde que cumulada com aplicação de medida socioeducativa.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3

De acordo com o ECA, considera-se adoles-

cente a pessoa:

a) Maior de 14 anos incompletos e menor de 18 anos completos de idade.

b) Maior de 14 anos completos e menor de 18 anos incompletos de idade.

c) Maior de 12 anos incompletos e menor de 18 anos completos de idade.

d) Maior de 18 anos completos e menor de 21 anos incompletos de idade.

e) Entre 12 anos completos e 17 anos comple-tos (ou seja, 18 anos incompletos de idade).

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4

Assinale a alternativa que contém apenas

medidas socioeducativas:

a) Semiliberdade, internação e colocação em família substituta.

b) Prestação de serviços à comunidade, re-paração de danos e inclusão em tratamento a alcoólatra.

Verificaçãode leitura

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c) Colocação em família substituta e advertên-cia.

d) Prestação de serviços à comunidade, liber-dade assistida e semiliberdade.

e) Advertência, reparação de danos e coloca-ção em abrigo.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5

Considere a situação em que o juiz aplica

uma medida socioeducativa. Desse modo:

a) Se o promotor discordar da medida socioe-ducativa aplicada, deverá interpor recurso de apelação, sendo possível o juízo de retratação.

b) Se o promotor discordar da medida socio-educativa aplicada, deverá interpor recurso em sentido estrito, sendo possível o juízo de retratação.

c) Se o promotor discordar da medida socio-educativa aplicada, deverá interpor recurso em sentido estrito, sendo vedado o juízo de retratação.

d) Se o promotor discordar da medida socioe-ducativa aplicada, deverá interpor recurso de apelação, sendo vedado o juízo de retratação.

e) Se o promotor discordar da medida socioe-ducativa aplicada, deverá interpor recurso de revista, não sendo possível o juízo de retrata-ção.

Verificação de Leitura

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ALBERTON, Maria Silveira. Violação da infância: crimes abomináveis: humilham, machucam, tor-turam e matam! Porto Alegre, RS: AGE, 2005. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=aumqMgVOP6QC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 03 jun. 2015.

ALMEIDA, Rita Elisa Fleming de. Considerações Acerca da Violência Sexual Intrafamiliar. 2009. 29 f. Artigo Científico Jurídico apresentado como exigência final da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso à Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2009/trabalhos_12009/ritaalmeida.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2015.

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Re-vista Virtual Textos & Contextos, n. 5, nov. 2006. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/viewFile/1022/802>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização Secundária Infanto-Juvenil e Violência Sexual Intrafamil-iar: Por uma Política Pública de Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Texto constitucional promulgado em cinco de outubro de 1988 com suas alterações. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2015.

_____. Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

Referências

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______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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______. Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outu-bro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prova, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11690.htm>. Acesso em: 05 jun. 2015.

______. Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/L6697.htm>. Acesso em: 06 de jun. 2015.

______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Aces-so em: 06 jun. 2011.

DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim; DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente. Anotado e Interpretado. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (atualizado até a Lei nº 12.796/2013, de 04 de abril de 2013). Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/eca_anotado_2013_6ed.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2015.

FREIRE NETO, João Francisco. Princípios fundamentais do Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://indianapolis.uem.br/~mossbauer/cd2/TG/tg037.htm>. Acesso em: 06 jun. 2015.

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Questão 1

Resposta: Alternativa E.

Resolução: Diz o artigo 262 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

“Art. 262. Enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária”.

Referências

PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: Uma proposta interdisciplinar. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

TAVARES, José de Farias. Direito da infância e da Juventude. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

TRINDADE, Jorge; SILVA, Milena Leite. Crianças e adolescentes vítimas de violência: envolvimento legal e fatores psicológicos estressores. In: TRINDADE, Jorge. Direito da Criança e do Adolescente: uma abordagem multidisciplinar. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 54, out. 2004 - abr. 2005. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 243-264.

TOMÁS, Catarina Almeida. Dia Mundial da Criança: um percurso difícil. Disponível em: <http://www.portaldacrianca.com.pt/artigosa.php?id=84>. Acesso em: 04 jun. 2015.

VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra. Estatuto da Criança e do Adolescente Comen-tado. Doutrina e Jurisprudência. Atualizado de acordo com a Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009 - Lei nacional de Adoção. São Paulo: Conceito Editorial, 2011.

Gabarito

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Questão 2

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Diz o artigo 173, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 173. Em

caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa,

a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos artigos 106, parágrafo único e 107, deverá:

I - lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o adolescente [...]”.

Questão 3

Resposta: Alternativa E.

Resolução: De acordo com o art. 2° do ECA: “Considera-se criança, para os efeitos desta

Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito

anos de idade”. Em outras palavras, inicia-se a adolescência a partir do aniversário de 12

anos, e extingue-se no aniversário de 18 anos (momento em que é cessada a menoridade,

como exposto anteriormente).

Questão 4

Resposta: Alternativa D.

Resolução: De acordo com o art. 112 do ECA, são medidas socioeducativas: “I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade

assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI - internação em estabelecimento

educacional”.

Gabarito

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Gabarito

Questão 5

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Se o promotor discordar da medida socioeducativa aplicada, deverá interpor

recurso de apelação. Essa apelação do ECA possui juízo de retratação, ou seja, o juiz pode

se retratar da decisão.

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TeMA 05Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

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LEGENDA DE ÍCONES seções

107

início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

108

05

Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às DrogasBruno Silveira Rigon

Assessor no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Graduado em Direito,

Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.

Objetivos

Prezado aluno da Pós-Graduação em Ciências Penais LFG, nas próximas linhas você terá

acesso a uma discussão altamente qualificada a respeito da política de drogas implantada

no país. Com isso, poderá aprimorar seus conhecimentos a respeito do proibicionismo, da

guerra às drogas, da dogmática e da política criminal de drogas.

Resumo da Aula

O presente artigo tem o intuito de introduzir criticamente a temática da política criminal de

drogas na sociedade brasileira, analisando como se governa atualmente através da guerra

às drogas.

Introdução: governando através da guerra às drogas

When we govern through crime, we make crime and the forms of knowledge historically associated with it – criminal law, popular crime narratives, and criminology – available outside their limited original subject domais as powerful tools with which to interpret and frame all forms of social action as a problem for governance. (SIMON, 2007)

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Aula 05 | Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

Nas sociedades contemporâneas governa-se através do crime, como diria Jonathan Simon1.

Nesse cenário, a guerra às drogas constitui o grande núcleo dessa forma de governo da

população. Esse governo, no entanto, ocorre de formas distintas de acordo com cada camada

da sociedade. Enquanto para os estratos sociais mais favorecidos economicamente governa-se através do medo do tráfico de drogas, do consumo de drogas, enfim, da própria existência

da guerra às drogas; o governo da miséria ocorre através do sistema penal, como sustenta

Alessandro De Giorgi2.

1. O medo soberano: o governo através da insegurança social

De acordo com Slavoj Zizek, a variedade predominante da política atual pode ser definida

como “biopolítica pós-política”, isto é, uma nova forma de governar que deixa de lado os

velhos combates ideológicos para centrar na administração e na gestão especializada de

determinados âmbitos da vida. Diante da ausência dos combates de ideologias, o fator que

acabou introduzindo paixão e criando um elo entre os indivíduos e o Estado foi o medo, um

elemento constituinte fundamental da subjetividade de nossa época.

O autor define a “biopolítica pós-política” como uma política do medo baseada na insegurança

diante dos mais variados fatores, como a criminalidade, o terrorismo, os imigrantes, a elevação

da carga tributária, as catástrofes ecológicas, entre outros, incluindo a questão do assédio, que

de acordo Zizek, é um dos fatores mais interessantes, pois traz à tona uma espécie de novo

direito humano central na sociedade capitalista, que consiste no fato de que os indivíduos

devem permanecer a uma “distância segura” uns dos outros (respeitando a individualidade

alheia), o que demonstra o elevado grau de individualismo na sociedade atual3.

A violência nas notícias diárias desinseridas de explicação ou contexto induz, segundo

Fernando Nogueira Dias, sentimentos de insegurança nos indivíduos. Os agendamentos

midiáticos que alguns jornalistas conferem a determinado caso “[...] são de imediato e

1 SIMON, Jonathan. Governing Through Crime: How the War on Crime Transformed American Democracy and Created a Culture of Fear. New York: Oxford, 2007.2 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.3 ZIZEK, Slavoj. Violência. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D'Água, 2009, p. 43-44.

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facilmente promovidos à categoria de escândalo nacional, introduzindo-se desta forma o

medo no quotidiano das pessoas”4. Contudo, David Garland adverte:

[...] é errado inferir disto que o universo de eleitores seja facilmente convencível e infinitamente maleável, que o apoio maciço às políticas de “lei e ordem” possa ser erigido a partir do nada ou que os jornais e televisões possam criar e sustentar uma ampla audiência para as histórias de crimes sem certas condições sociais e psicológicas preexistentes5.

Essa é a visão de Gilles Lipovetsky, que embora tenha analisado a realidade francesa, pode

ser citado com relação ao nosso contexto, visto que o seu objeto de análise se assemelha

muito com as nossas peculiaridades sociais.

[...] a sensação de insegurança cresce, alimenta-se das menores ocorrências criminais, e isso independentemente das campanhas de intoxicação. A insegurança atual não é uma ideologia, é o correlato inevitável de um indivíduo desestabilizado e desarmado amplificando todos os riscos, obcecado por seus problemas pessoais, exasperado por um sistema repressivo julgado inativo ou clemente “demais”, habituado a ser protegido e traumatizado por uma violência da qual ignora tudo: a insegurança cotidiana resume sob uma forma angustiada a dessubstancialização pós-moderna. O narcisismo, inseparável de um medo endêmico, não se constitui a não ser estabelecendo um “lá fora” exageradamente ameaçador, o que, por sua vez, aumenta a gama dos reflexos individualistas: atos de autodefesa, indiferença para com o outro, aprisionamento na própria casa; enquanto um número considerável de habitantes das grandes metrópoles já se abriga por trás de uma porta blindada e desiste de sair à noite, apenas 6% dos parisienses interfeririam se ouvissem pedidos de socorro à noite6.

O individualismo contemporâneo e o sentimento de insegurança social possuem uma relação

muito mais próxima do que podemos imaginar. O medo, nesse cenário, desempenha um

papel fundamental na produção da sensação de insegurança em relação à criminalidade7. Já

diria Zygmunt Bauman que “[...] a insegurança moderna, em suas variáveis manifestações,

é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos”8. É esse medo social que faz com

4 DIAS, Fernando Nogueira. O Medo Social e os Vigilantes da Ordem Emocional. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, p. 41.5 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e Ordem Social na Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 321.6 LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo. Barueri: Manole, 2005, p. 174.7 MÍGUEZ, Daniel; ISLA, Alejandro. Entre la Inseguridad y el Temor: Instantáneas de la Sociedad Actual. Buenos Aires: Paidós, 2010. 8 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 16.

Aula 05 | Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

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que vejamos no desconhecido um potencial inimigo a ser evitado ou abatido9. Os criminosos, sobretudo os traficantes, são vistos como inimigos da sociedade. Em nossa realidade, “[...] o medo tem sido utilizado como uma estratégia eficiente de controle, criminalização e brutalização dos pobres, capaz de ampliar e legitimar demandas cada vez maiores por segurança”10. São essas emoções que conferem legitimidade ao processo de governo através da criminalização

da pobreza presente em nosso meio social.

2. As bases ideológicas da política criminal de intolerância: a tática völkisch

A representação do outro e de todos os outros a quem se atribui o mal de todas as coisas, a crueldade, a violência e o fracasso, não pode deixar de induzir uma visão distorcida do homem e da sociedade. A perspectiva torna-se dicotómica e maniqueísta: bons e maus em lado opostos. Como consequência desta parcialidade perceptiva, exerce-se o medo e a violência sobre os outros, para que se possa assegurar a ordem social. Para tal, delega-se no Estado o monopólio da violência, para melhor a controlar e limpar o mal e os maus, que são naturalmente os outros11.

Assim como na guerra, não há neutralidade no desenho do eles, os maus, e do nós, os bons.

“Sempre há um número demasiado deles. ‘Eles’ são os sujeitos dos quais deveria haver menos – ou, melhor ainda, nenhum. E nunca há um número suficiente de nós. ‘Nós’ são as pessoas das quais devia haver mais”12, já diria Zygmunt Bauman em sua análise do que chamou de sociedade líquida. Esse vocabulário bélico utilizado pela criminologia midiática não esconde sua necrofilia, pois deixa expressa implicitamente uma instigação à aniquilação deles, seja por fuzilamento por agentes do estado ou por qualquer forma de execução extrajudicial. Isso é o que leva Zaffaroni a sustentar que a criminologia midiática é a mais elaborada e clara tática völkisch presente na atualidade, uma vez que ela utiliza os estereótipos e preconceitos de cada sociedade para aprofundar a designação de um “eles de inimigos que são a imundice e a escória dos homicidas que ainda não mataram”13.

9 DIAS, Fernando Nogueira. O Medo Social e os Vigilantes da Ordem Emocional. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, p. 10.10 BOLDT, Raphael. A Criminologia Midiática: Do Discursos Punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013, p. 98.11 DIAS, Fernando Nogueira. O Medo Social e os Vigilantes da Ordem Emocional. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, p. 62.12 BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 47. 13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 309-330.

Aula 05 | Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

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Essa crença se constrói sobre bases bem simplistas, mas profundamente internalizadas, à força de reiteração e bombardeio de mensagens emocionais através de imagens: indignação frente a alguns fatos aberrantes, mas não a todos, apenas os dos estereotipados; impulso vingativo por identificação com a vítima desses fatos, mas não com todas as vítimas, apenas com as dos estereotipados e, se possível, que não pertençam elas próprias a esse grupo, pois nesse caso, considera-se uma violência intragrupal própria de sua condição inferior; medo da própria vitimização e reivindicação de maior repressão com base em uma causalidade mágica, segundo a qual maiores penas e maior arbítrio policial produzem maior prevenção dos delitos14.

Esse discurso criminológico que fomenta uma visão de guerra contra o crime acaba por

naturalizar as mortes decorrentes dessa guerra, pois se considera um produto natural e

inevitável da própria violência deles. Execuções extrajudiciais são maquiadas como mortes

em decorrência de enfrentamento, “em que se mostra o cadáver do fuzilado como sinal de

eficácia preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra”15. Os mortos, para a criminologia

midiática, são produtos de uma necessidade de higienização social. Aqui a metáfora biológica

impera: eles são os leucócitos, os germes patogênicos, a escória ou as fezes do corpo social.

Para que a sociedade seja limpa mostra-se necessário eliminar o lixo social para purificá-la.

Segundo Zaffaroni, para essa criminologia a função dos operadores do sistema penal seria

de limpadores das fezes sociais, e os códigos penais não passariam da regulamentação para

escorrer os esgotos das cloacas. Nesse contexto, a metáfora da jardinagem de Zygmunt

Bauman mostra-se adequada para destacar a lógica desse projeto de higienização social

(neo)darwinista:

[...] munidos de uma imagem de perfeita harmonia, os jardineiros arrancam certas plantas, chamando-as de ervas daninhas. Elas são como hóspedes não convidados e nada bem-vindos, destruidores da harmonia, manchas na paisagem. A implementação de um projeto, a construção da ordem concebida, exige que as ervas daninhas sejam arrancadas e exterminadas com agrotóxicos, para que as plantinhas úteis e/ou esteticamente prazerosas prosperem e floresçam, cada qual em seu próprio vaso ou canteiro. Ao se fazer um jardim, a destruição das ervas daninhas é um ato de criação. É arrancar pela raiz, envenenar ou queimar essas ervas que transforma o caos selvagem em ordem e harmonia16.

14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 308. 15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 311.16 BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 134.

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Durante a ditadura militar no Brasil, o inimigo estatal era o subversivo, o comunista, que,

pela doutrina da segurança nacional, deveria ser contido e eliminado. Já atualmente, após

o processo de redemocratização, a figura do inimigo continua, mas mudou de foco: do

subversivo passou a ser a do bandido. O estereótipo desse bandido no imaginário social

brasileiro, segundo Orlando Zaccone:

[...] vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador da favela, próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda17.

A política criminal de drogas insere-se na perspectiva da política criminal de intolerância e

encontra-se calcada no tripé ideológico, segundo Salo de Carvalho18, entre a defesa social19,

a segurança nacional20 e o direito penal do inimigo21. Tal fato pode ser demonstrado pela

seletividade do sistema penal, em especial no que tange à criminalização secundária. A

repressão policial às favelas e periferias dos grandes centros urbanos em nosso país acaba

por tornar estes espaços uma extensa zona de anomia e abandono diante do direito.

3. A seletividade da guerra às drogas: do discurso médico-jurídico da ideologia da diferenciação ao modelo jurídico-político do inimigo e da exceção

A Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 iniciou a chamada ideologia da diferenciação, que confere um tratamento diferenciado ao traficante e ao consumidor de drogas. Ao primeiro, aplica-se o rótulo de criminoso. Ao segundo, atribui-se o tratamento a

uma pessoa doente. Portanto:

17 ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada: Quem São os Traficantes de Drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 21. 18 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático da Lei nº 11.343/06). 5. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 29-43.19 Sobre a ideologia da defesa social, ver: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.20 Sobre a ideologia da segurança nacional, ver: COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: O Poder Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.21 Sobre o direito penal do inimigo, ver: JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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[...] sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinquenta, que difunde o estereótipo da dependência22.

O problema da droga se apresentava como uma “luta entre o bem e o mal”, continuando o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfis de “demônio”; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o fato do discurso jurídico enfatizar na época o estereótipo criminoso, para determinar as responsabilidades; sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria visto como o incitador ao consumo, o chamado pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-los como “delinquentes”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria qualificado de “doente” graças à difusão do estereótipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo médico-sanitário23.

Pode-se perceber a ideologia da diferenciação e, portanto, a própria seletividade do sistema de justiça criminal em relação às drogas na pesquisa de Vera Malaguti Batista sobre

a criminalização dos jovens quanto ao tráfico e

consumo de drogas na cidade do Rio de Janeiro, que

constatou o seguinte: “Aos jovens de classe média

que a consumiam aplicou-se sempre o estereótipo

médico, e aos jovens pobres que a comercializavam,

o estereótipo criminal”24. Ou seja, se a juventude era

oriunda da classe média considerava-se consumo

de drogas (discurso médico), ao passo que quando

se tratavam de jovens pobres atribuía-se o rótulo

de traficantes de droga (discurso jurídico-penal). Não obstante a existência da ideologia da

diferenciação, é importante analisar o discurso jurídico-político que designa inimigos que

devem ser combatidos na guerra às drogas. Como constatado, esse peso recai sobre os

jovens pobres de nossa sociedade, que são considerados traficantes.

22 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático da Lei nº 11.343/06). 5. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 15.23 DEL OLMO, Rosa. A Face Oculta da Droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 34.24 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 133-135.

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Saiba MaisPara mais detalhes do ponto de vista dogmático, legislativo e político-cri-minal, consultar a obra: FRANCO, Al-berto Silva; LIRA, Rafael; FELIX, Yuri. Crimes Hediondos. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2011.

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Não é preciso se aprofundar na carga estigmatizante que o termo “traficante” revela, mas é bom lembrar que os chamados “autos de resistência”, inquéritos instaurados a partir da morte de pessoas em conflito com a polícia, são muitas vezes arquivados quando se descobre que as vítimas têm em suas fichas criminais alguma “passagem” ou condenação no tráfico de drogas. O traficante estigmatizado, ou seja, aquele que apresenta uma relação entre o atributo presente na venda de substância entorpecente e o estereótipo do criminoso (preto, pobre, favelado) é um verdadeiro passe livre para as ações policiais genocidas25.

A demanda aniquiladora e autoritária presente no imaginário social se manifesta

sintomaticamente no jargão popular “bandido bom é bandido morto”. Somente a juventude

pobre e periférica, entretanto, é relacionada com a figura do bandido pela sociedade. Até

porque a expressão “bandido” vem da relação de bando problematizada por Agamben,

segundo o qual bandito em italiano quer dizer tanto “excluído, posto de lado” quanto “aberto

a todos, livre”. Assim, não existe um “fora da lei”, mas apenas uma vida que foi abandonada

pela lei, que se encontra num liminar em que “não é literalmente possível dizer que esteja fora

ou dentro do ordenamento”26. Os bandidos são considerados, portanto, somente a vida nua e

abandonada dos jovens pobres e periféricos.

Sendo assim, a guerra desencadeada contra o crime e contra as drogas acaba por perpetuar

uma política criminal belicista nas periferias de nossa realidade marginal, que configuram

verdadeiros espaços de exceção, em que as vidas (nuas) matáveis dos jovens pobres são

abandonadas pelo ordenamento jurídico27. Nessa perspectiva, Rodrigo Azevedo sustentou

que, durante a ditadura militar, os assassinatos cometidos pelos órgãos estatais eram secretos,

pois o governo não podia admiti-los publicamente, mas agora, durante o regime democrático,

os homicídios praticados pelos agentes de segurança pública conseguiram legitimidade pelo

apoio popular, com o propósito de combate à criminalidade e ao tráfico de drogas28.

25 ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada: Quem São os Traficantes de Drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 58.26 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 36.27 RIGON, Bruno Silveira; FRANÇA, Leandro Ayres. As Periferias Brasileiras como Espaços de Exceção: Um Genocídio Cotidiano pela Violência Policial. Revista Profanações, v. 1, p. 197-218, 2014.28 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e justiça penal: teoria e prática da pesquisa sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 215.

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4. O governo biopolítico da miséria através do sistema penal

A seletividade do sistema de justiça criminal na guerra às drogas é a lógica do que alguns

autores, como Zygmunt Bauman29 e Jean Baudrillard30, designam como sociedade de consumo.

Isto é, uma sociedade que é repartida basicamente em dois ramos: entre os consumidores e

os consumidores falhos ou não consumidores, entre aqueles que estão inseridos no mercado

e aqueles que não estão ou estão muito precariamente. A racionalidade econômica desse

sistema é a seguinte: os consumidores estão inseridos no mercado, portanto são importantes

para a sociedade, pois a integram; os não consumidores ou consumidores falhos, por outro

lado, são descartáveis e indesejáveis, tendo em vista que não participam das interações do

mercado e, desse modo, da própria sociedade.

Assim, os consumidores falhos ou não consumidores, ou seja, aquelas pessoas que não são

capazes de se inserir nas relações de troca e de consumo ou o são muito precariamente,

são considerados seres humanos refugados, excessivos, redundantes e descartáveis31. O

imaginário coletivo nacional considera-os um mal que deve ser combatido e eliminado da

vida social. Sendo assim, tornam-se inimigos (internos) da sociedade (de consumo). A tarefa

estatal primordial, dessa forma, é administrar tal doença que impregna nossa sociedade,

através do controle, do combate, da repressão e do extermínio. O Estado, portanto, cada vez

mais reserva aos consumidores falhos ou não consumidores o seu punho de ferro, como diria

Löic Wacquant, enquanto aos consumidores são destinados todos os proveitos oriundos da

sociedade de consumo32.

Em abordagem semelhante, apoiada no pensamento de Antonio Negri e Michael Hardt,

Alessandro De Giorgi descreve nossa época como a transição do fordismo ao pós-fordismo,

isto é, como a passagem de um regime caracterizado pela carência a um regime definido pelo

excesso. Enquanto o período fordista desenvolveu um conjunto estratégico orientado para a

29 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.30 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2011.31 BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.32 Sobre esta política de segurança, ver: WACQUANT, Löic. Punir os Pobres: A Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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disciplina da carência, o período pós-fordista é caracterizado pela emergência do controle do excesso33. Essa transição implica a:

[...] passagem de um regime de pleno emprego para uma condição em que o desemprego representa um fato “estrutural”, a passagem de uma economia orientada para a produção para uma economia da informação, a passagem da centralidade da classe operária para a constituição de uma força de trabalho global [...]34.

Esse período pós-fordista é um regime de excesso. Excesso aqui é entendido como:

[...] a dinâmica produtiva contemporânea excede continuamente os dispositivos institucionais de atribuição, reconhecimento e garantia da cidadania social. A crise do pacto fordista-keynesiano e do Estado social que fora construído sobre aquele pacto resolve-se numa crônica inadequação por parte das instituições de governo da sociedade em garantir inclusão por meio do trabalho. A separação entre constituição material da sociedade e constituição formal das instituições é máxima. São transportadas aqui todas as margens de medição entre força de trabalho e capital. O que permanece é um contínuo excesso da produtividade social para com os dispositivos institucionais destinados a regulá-la e inseri-la num projeto abrangente de governo da sociedade35.

No período fordista existiam instrumentos políticos capazes de amparar as situações de

desemprego, exclusão social e precariedade existencial, pois eram considerados como

carência ou déficit do sistema, garantindo inclusão e cidadania social. Com o processo de

desmoronamento do Welfare State e de seus instrumentos - que não passou de um simulacro

em nossa realidade marginal - tais garantias não conseguem mais ser asseguradas. As

massas populacionais que têm seus direitos de cidadania negados em virtude de tal situação

são denominadas pelos autores de multidão36, o excesso negativo das relações de produção

capitalista37. Assim, a transição do fordismo ao pós-fordismo implica o esgotamento da

soberania estatal exercida com “estratégias de normalização disciplinar da classe operária

33 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 66. 34 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 65.35 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 69-70.36 Segundo Alessandro De Giorgi, “[...] o conceito de multidão demonstra e supera a inadequação do conceito de classe, não tanto porque a classe operária tradicional perde hoje a própria centralidade produtiva, mas porque não é mais pos-sível definir um lugar determinado de constituição da subjetividade do trabalho, de tornar extrínseca a sua produtividade e de expressão da sua conflitualidade, como era possível para a classe operária fordista”. GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 79.37 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 70-71.

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e com a emergência de um domínio imperial construído com base no controle biopolítico da

multidão”38.

Se o regime da carência podia ser definido, em termos foucaultianos, como o universo no qual se desenvolvia um poder-saber, talvez tenhamos chegado ao momento de dizer que o regime do excesso pós-fordista se qualifica cada vez mais como terreno de exercício de um domínio caracterizado pelo não saber. As determinações concretas da multidão, as suas características constitutivas, os seus possíveis comportamentos, as interações às quais pode dar vida, as formas de cooperação que constantemente alimenta, escapam a qualquer definição rigorosa da parte dos aparelhos de controle. Esta condição de não saber qualifica os dispositivos de controle e os orienta para uma função de supervisão, de limitação do acesso, de neutralização e de contenção do excesso39.

Desse modo, o modelo disciplinar baseado no Panóptico está sendo progressivamente

desarticulado “para ceder lugar a tecnologias de controle que migram em direção a um regime

de supervisão e contenção preventiva de classes inteiras de sujeitos, renunciando, assim, a

qualquer saber sobre os indivíduos”40. Segundo Orlando Zaccone (2007):

Para além da função de reprimir a circulação destas substâncias, o sistema penal exercita um poder de vigilância disciplinar, de uso cotidiano, nas áreas carentes, seja restringindo a liberdade de ir e vir naquelas comunidades, através das prisões para averiguação, ou restringindo reuniões e o próprio lazer das pessoas, como na proibição dos “bailes funks”, que a pretexto de reprimir a “apologia ao narcotráfico”, traduz o poder de controle exercido sobre as populações pobres.

Em suma, a técnica de governo biopolítica é exercida cada vez mais e de diversas formas

através do sistema penal, substituindo aquela visão da sociedade disciplinar. A gestão

da miséria, do refugo humano, da multidão, do excesso negativo, da vida nua, através de

dispositivos de segurança, é controlada, vigiada, administrada, contida, neutralizada e, quiçá,

eliminada pela técnica governamental do biopoder. De acordo com Alessandro De Giorgi:

[...] não se trata mais de “fazer viver ou repelir a morte”, mas talvez de “fazer viver através do repelir a morte”. Este “repelir a morte”, imposto a uma parte da força de trabalho global, parece constituir-se hoje no pressuposto para “fazer viver” a produtividade social conjunta do capitalismo pós-fordista. Falamos aqui de uma morte que se concretiza na violência institucional dos dispositivos de controle que sustentam o domínio capitalista, de uma morte que incide sobre a existência afetiva, social e econômica dos indivíduos e que se apresenta como limitação

38 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 81.39 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 92.40 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 93.

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das expectativas subjetivas, como expropriação de possibilidades, como negação do direito de circular livremente. Antes e ainda mais do que da morte biológica, falamos da morte como experiência biográfica da força de trabalho contemporânea, que se materializa na biografia dos migrantes que morrem nos confins da fortaleza europeia, na tentativa de exercitar um “direito de fuga” negado, nas biografias dos dois milhões de prisioneiros encerrados no gulag americano ou nas daqueles para quem o horizonte de vida tende a coincidir com a fronteira de um gueto41.

5. As prisões como extensão do horizonte periférico: a era do encarceramento em massa

Com o aumento dos sentimentos de medo e insegurança42, a opinião pública acaba por conferir legitimidade a uma intervenção penal seletiva, autoritária e desumana. Desse modo, a política criminal contemporânea obteve novos rumos, quais sejam: a) a elevação da criminalidade clássica como protagonista; b) a prevalência do sentimento coletivo de insegurança; c) a primazia dos interesses vingativos das vítimas; d) o populismo e a politização das ciências criminais; e) a revalorização do componente aflitivo da pena; f) a reinvenção da prisão; g) a ausência de medo e prudência diante do poder punitivo estatal; h) a colaboração da sociedade com o poder punitivo para lutar contra a criminalidade; e i) as transformações no pensamento criminológico43.

Após o discurso do ideal reabilitador perder força, reinventou-se o mito de que “a prisão funciona para combater a criminalidade”44. A relação entre a redescoberta da pena privativa de liberdade e a política criminal de drogas merece um olhar acurado, pois, segundo Salo de Carvalho, o grande “efeito visível deste novo tratamento penal da questão das drogas é o

incremento das taxas de encarceramento que atingem níveis insuportáveis na atualidade”45.

41 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 29.42 Sobre o tema, ver: WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e Direito Penal: Reflexos da Expansão Punitiva na Re-alidade Brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011; DIAS, Fernando Nogueira. O Medo Social e os Vigilantes da Ordem Emocional. Lisboa: Piaget, 2007; ISLA, Alejandro; MÍGUEZ, Daniel. Entre la Inseguridad y el Temor: Instantáneas de la Sociedad Actual. Buenos Aires: Paidós, 2010.43 CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema Penal e Política Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 73.44 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e Ordem Social na Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 57-60.45 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático da Lei nº 11.343/06). 5. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 44.

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A partir da década de 1970, começou o fenômeno do encarceramento em massa. Atualmente

os Estados Unidos da América possuem mais de 2 milhões de presos e o Brasil, segundo os

dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, mais de 700 mil presos, contando

os recolhidos em prisão domiciliar46. Substitui-se nos EUA o Estado Social (Welfare State)

pelo Estado Penal47, que sempre foi a regra do poder punitivo estatal em nossa realidade

marginal48.

O Relatório Estatístico-Analítico do Sistema Prisional no Brasil, de dezembro de 2012, do

Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) do Departamento Penitenciário

Nacional do Ministério da Justiça, informa que a população carcerária em nosso país

consiste em 548.003 detentos (sem contar os presos domiciliares), sendo que 138.198

estão reclusos por tráfico de entorpecentes. Embora os crimes contra o patrimônio superem

este índice de aprisionamento (267.975 estão reclusos por crimes contra o patrimônio),

fogem à estatística os presos que estão indiretamente relacionados com a dinâmica do

mundo do tráfico de drogas49.

A CPI do Sistema Carcerário promovida pela Câmara dos Deputados constatou “uma realidade

cruel, desumana, animalesca, ilegal, em que presos são tratados como lixo humano”50. As

condições degradantes, de miséria e de barbárie em nossos estabelecimentos prisionais são

de conhecimento social e denunciadas há longa data por organizações internacionais de

direitos humanos. Diante desse cenário, mostra-se pertinente lembrar que, de acordo com

os dados do Conselho Nacional do Ministério Público, ocorreram 769 (setecentos e sessenta

e nove) mortes em 1.598 (mil quinhentos e noventa e oito) estabelecimentos penitenciários

brasileiros no período entre fevereiro de 2012 e março de 2013, isto é, 2,1 mortes por dia

46 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf>. Acesso em: 17 maio 2015.47 WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 77-152.48 Sobre o realismo marginal, ver: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana, 1993; BORGES, Paulo César Corrêa (Org.). Leituras de um Realismo Jurídico-Penal Mar-ginal: Homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2012. 49 Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896}&BrowserType=IE&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7BC37B2AE9%2D4C68%2D4006%2D8B16%2D24D28407509C%7D%3B-&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%2DBE11%2DA26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 11 out. 2013.50 BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: Edições Câmara, 2009, p. 94.

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dentro dos presídios51. esta é a realidade prisional do encarceramento em massa que decorre da guerra às drogas.

Os presídios brasileiros são um retrato estendido da realidade periférica. Como bem salientou

Maria Lúcia Karam, “os que escapam das mortes prematuras vão aumentar a superpopulação

carcerária”52. As prisões acabam servindo, pois, como depósito do lixo social em nossa

sociedade brasileira contemporânea.

Considerações finais

[...] a política de guerra às drogas é grande fracasso, visto não obter resultado algum na erradicação ou no controle razoável do narcotráfico. Por outro lado, seu efeito visível é a constante violação de direitos e garantias fundamentais dos grupos vulneráveis da população. (CARVALHO, 2010, p. 52)

Na verdade, embora em seus objetivos declarados a guerra às drogas seja um fracasso,

não se pode dizer a mesma coisa de sua verdadeira função: a gestão da miséria para a

prevenção de riscos provenientes dos sujeitos considerados perigosos. Esta é a racionalidade

econômica que Orlando Zaccone percebeu:

O tráfico de drogas ilícitas aparece como um delito cuja repressão se opera muito mais pela ótica econômica do que pela suposta saúde pública que se pretende defender no discurso jurídico. Talvez no plano econômico se possa enfim entender a criminalização das drogas enquanto estratégia de poder, voltada para o encarceramento (controle) das classes perigosas, bem como para fomento da ilegalidade das classes dominantes53.

Pobres, desempregados, mendigos, nômades e migrantes representam certamente as novas classes perigosas, “os condenados da metrópole”, contra quem se mobilizam os dispositivos de controle, mas agora são

empregadas estratégias diferentes nesse confronto. Trata-se, antes de tudo, de individualizá-los e separá-los das “classes laboriosas”. Esta tarefa é, de fato, bastante simples numa metrópole produtiva, na qual a contínua precarização do trabalho, o emprego – que se torna cada vez mais flexível, incerto e transitório –, e a constante superposição entre economia “legal” e economias submersas, informais e também ilegais, determinam uma progressiva solda entre trabalho e

51 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. A visão do Ministério Público brasileiro sobre o sistema prisional brasileiro. Brasília: CNMP, 2013, p. 71. 52 KARAM, Maria Lúcia. Proibições, Riscos, Danos e Enganos: As Drogas Tornadas Ilícitas. v. 3. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 47.53 ZACCONE, Orlando. Acionistas do Nada: Quem São os Traficantes de Drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 70.

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LinksPara mais informações, ver: <http://www.ibccrim.org.br>; bem como: <http://pbpd.org.br>.

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não trabalho e entre classes laboriosas e classes perigosas, a ponto de tornar qualquer distinção praticamente impossível. Trata-se, pois, de neutralizar a “periculosidade” das classes perigosas através de técnicas de prevenção de risco, que se articulam principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária54.

54 GIORGI, Alessandro De. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 28.

Aula 05 | Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas

Vamos pensar

Elabore um texto que aborde como temas centrais as drogas e o sistema prisional. Deve-se

dar ênfase ao aumento do encarceramento feminino em decorrência da política de combate

às drogas, colacionando dados estatísticos e uma reflexão crítica a respeito da temática.

• Governando através da guerra às drogas

• O governo através da insegurança social

• As bases ideológicas da política criminal de intolerância

• A seletividade da guerra às drogas

• Do discurso médico-jurídico da ideologia da diferenciação ao modelo jurídico-político do inimigo e da exceção

• O governo biopolítico da miséria através do sistema penal

• As prisões como extensão do horizonte periférico

• A era do encarceramento em massa

Pontuando

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Terrorismo: “emprego sistemático da violência para fins políticos”. Fonte: INSTITUTO

Antônio Houaiss (Org.). Dicionário Houaiss Conciso. São Paulo: Moderna, 2011, p. 907.

Glossário

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1

Em um sentido criminológico, o crime e so-

bretudo a guerra às drogas servem principal-

mente:

a) Para nada.

b) Para exercer o governo através do medo.

c) Para exercer o governo democrático.

d) Para exercer o governo social.

e) Para exercer o governo democrático-social.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2

Na atualidade, os debates ideológicos foram

colocados de lado?

a) Sim, pois se visa ao lucro imediato.

b) Sim, pois estamos diante de uma nova ci-dadania.

c) Sim, pois se centra na administração e na gestão especializada de determinados âmbitos da vida.

d) Não, pois para isso temos partidos políticos.

e) Não.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3

A política criminal de drogas insere-se na

perspectiva:

a) Da intolerância.

b) Da tolerância.

c) Da democracia.

d) Dos direitos humanos.

e) Dos fatos concretos.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4

A ideologia da diferenciação visa:

a) Equiparar o traficante e o usuário.

b) Diferenciar todos os indivíduos na política penitenciária.

c) Diferenciar todos os indivíduos na política criminal.

Verificaçãode leitura

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d) Criminalizar todas as condutas.

e) Distinguir, de forma estigmatizante, o trafi-cante do consumidor de drogas.

inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5

A que se deve a anuência popular a uma in-

tervenção penal seletiva, autoritária e desu-

mana, sobretudo com relação à criminalida-

de de drogas?

a) Ao declínio dos sentimentos de medo e in-segurança.

b) Ao aumento dos sentimentos de medo e in-segurança.

c) Ao aumento dos sentimentos de alegria e prazer.

d) À velocidade da sociedade complexa.

e) Ao desenvolvimento tecnológico.

Verificação de Leitura

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

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Gabarito

Questão 1

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Em nossas sociedades contemporâneas governa-se através do crime, como

diria Jonathan Simon (In: Governing Through Crime: How the War on Crime Transformed

American Democracy and Created a Culture of Fear. New York: Oxford, 2007).

Questão 2

Resposta: Alternativa C.

Resolução: De acordo com Slavoj Zizek, a variedade predominante da política atual pode ser

definida como “biopolítica pós-política”, isto é, uma nova forma de governar que deixa de lado

os velhos combates ideológicos para centrar na administração e na gestão especializada de

determinados âmbitos da vida.

Questão 3

Resposta: Alternativa A.

Resolução: A política criminal de drogas insere-se na perspectiva da política criminal de

intolerância e encontra-se calcada no tripé ideológico, segundo Salo de Carvalho (In: A Política Criminal de Drogas no Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático da Lei nº 11.343/06. 5. ed.

ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 29-43), entre a defesa social, a segurança

nacional e o direito penal do inimigo. Tal fato pode ser demonstrado pela seletividade do

sistema penal, em especial no que tange à criminalização secundária. A repressão policial

às favelas e periferias dos grandes centros urbanos em nosso país acaba por tornar estes

espaços uma extensa zona de anomia e abandono diante do direito.

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Gabarito

Questão 4

Resposta: Alternativa E.

Resolução: A Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 iniciou a chamada ideologia da diferenciação, que confere um tratamento diferenciado ao traficante e ao consumidor de

drogas. Ao primeiro, aplica-se o rótulo de criminoso. Ao segundo, atribui-se o tratamento a

uma pessoa doente. Portanto, segundo Salo de Carvalho (In: A Política Criminal de Drogas no Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático da Lei nº 11.343/06. 5. ed. ampl. e atual. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 15):

[...] sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinquenta, que difunde o estereótipo da dependência.

Questão 5

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Com o aumento dos sentimentos de medo e insegurança, a opinião pública acaba

por conferir legitimidade a uma intervenção penal seletiva, autoritária e desumana. Desse

modo, a política criminal contemporânea obteve novos rumos, quais sejam: a) a elevação

da criminalidade clássica como protagonista; b) a prevalência do sentimento coletivo de

insegurança; c) a primazia dos interesses vingativos das vítimas; d) o populismo e a politização

das ciências criminais; e) a revalorização do componente aflitivo da pena; f) a reinvenção da

prisão; g) a ausência de medo e prudência diante do poder punitivo estatal; h) a colaboração

da sociedade com o poder punitivo para lutar contra a criminalidade; e i) as transformações

no pensamento criminológico.

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