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PÓS-GRADUAÇÃO
CIÊNCIAS PENAIS
Princípios Constitucionais Penais eTeoria Constitucionalista do Delito
PÓS-GRADUAÇÃO
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CursoCiências Penais
Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito
Autores Yuri Félix
Danilo TicamiMarcelo de Vargas Scherer eGuilherme Francisco Ceolin
Índice ÍNDICE
Tema 01: Evolução das Ideias Penais 07
Tema 02: Princípios Constitucionais Penais 37
Tema 03: Teoria do Tipo Penal 59
Tema 04: Teoria da Imputação Objetiva 91
Tema 05: Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal 119
Tema 06: Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo 165
Tema 07: Antijuridicidade 193
© 2015 Kroton Educacional
Proibida a reprodução final ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.
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Como citar este material:
FELIX, Yuri, TICAMI, Danilo, SCHERER, Marcelo de Vargas, CEOLIN, Guilherme Francisco. Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito. Valinhos: 2015.
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA
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A história do Direito Penal não mostra uma linha evolutiva reta e clara, mas um caminho
tortuoso, em que se mostra dificultosa a tarefa de definir se houve ou não progresso com o
decorrer dos anos.
Com efeito, constata-se que os contornos da Ciência Penal são mais bem delineados a
cada nova teoria, mas a finalidade e as aspirações por trás de cada movimento comprovam
que o Direito Penal segue a corrente ideológica de seu tempo, por vezes com incremento
da repressão da liberdade e, em outros, com aumento da proteção aos direitos individuais.
Inicialmente, podemos explorar esse histórico sob duas óticas: por meio da evolução histórica
das Escolas Penais ou por meio das principais fases epistemológicas que inspiraram as
correntes dogmáticas, com influência na criação e formação da estrutura da moderna Teoria
do Delito.
Com objetivo de demonstrar a forte ligação entre ambos os caminhos, vamos sintetizar
as principais características de cada Escola Penal e, posteriormente, indicar como essas
tendências penais marcaram a dogmática penal.
Podemos entender como Escolas Penais, segundo definição de Asúa, como “o corpo
orgânico de concepções contrapostas sobre a legitimidade do direito de punir, sobre a
natureza do delito e sobre o fim das sanções”1. Em outros termos, uma escola penal deve
conter uma ideia central que justifique a adoção do Direito Penal como mecanismo de
solução de conflitos, como também precisa dissecar o fenômeno criminoso, com estudo dos
elementos que formam a Teoria do Delito e, ainda, conferir alguma utilidade para a sanção
penal aplicada.
1 ASÚA, Luiz Jiménez, Tratado de Derecho Penal. 3. ed. Buenos Aires, Losada, 1964, v. 2, p. 31.
5
Esta disciplina foi elaborada colaborativamente pelos seguintes docentes:
Danilo Dias Ticami – Mestrando em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da
USP. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal Pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/
IBCCRIM.
Yuri Felix – Doutorando e Mestre do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em
Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-graduado em
Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – Uniderp LFG. Presidente da Comissão de
Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Ex-coordenador do
PRONASCI/MJ. Professor e palestrante com artigos publicados em revistas especializadas.
Advogado criminal em São Paulo.
Marcelo de Vargas Scherer – Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Advogado.
Guilherme Francisco Ceolin – Bolsista Capes, Mestrando do Programa de Pós-graduação
em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS) Especialista em Epistemologia e Metafísica pela Universidade Federal Fronteira Sul
(UFFS), campus Erechim. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera
– Uniderp LFG. Graduado em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões (URI).
LEGENDA DE ÍCONES seções
7
Início
Referências
Gabarito
Verificaçãode leitura
Pontuando
Glossário
Vamos pensar
Aula
8
01
Evolução das Ideias PenaisObjetivos
A aula tem por objetivo elucidar temas relacionados à evolução das ideias penais. Passando
pelos principais autores da escola clássica, da escola positiva, chegando a escola moderna
e estudos contemporâneos. Após a leitura do presente texto, você terá todo o embasamento
necessário para construir o alicerce histórico do tema.
1. Antecedentes da Escola Clássica
Como alertado por Dotti1, a imposição de um castigo àquele que ofendeu a esfera de
poder e da vontade de outrem esteve presente em todos os tempos e em todos os povos.
Entretanto, arcaicas formas de punição de culturas com origens místicas e religiosas não
podem ainda ser consideradas como Direito Penal, tendo em vista que não questionam a
legitimidade do direito de punir e estão pautadas em parâmetros destituídos da racionalidade
e do respeito à humanidade de cada pessoa. De igual forma, o sistema punitivo do Antigo
Regime das monarquias europeias, marcado pelo pensamento absolutista, também não
obedecia aos requisitos do Direito Penal, especialmente pelo agigantamento do Poder Real
frente aos indivíduos de outras classes menos nobres.
Na realidade, a confusão entre Direito e moral acarretou na vinculação entre o poder político
e o poder religioso, de forma que toda conduta criminosa era vista como um pecado a ser
combatido e exterminado.
Nessa fase, a pena era concebida como uma vingança e um mecanismo de reafirmação do
poder central por meio do medo, culminando com a sombria adoção de métodos que infligiam
profunda dor e sofrimento, em que o aterrorizante cerimonial do castigo físico ostentava
humilhação e crueldade2. Por essa razão, especialmente no período absolutista europeu, a
1 DOTTI, Rene Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral, 4ª. ed, rev. atual. e ampl. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 207.
2 Para vislumbrar o terror imposto nas execuções e conhecer o panorama da punição penal daquela época, ver a magistral obra de Michel Foucault, “Vigiar e Punir”.
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Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
perda da liberdade de locomoção não funcionava como uma solução final, mas mero rito de
transição para impor o suplício.
Como as definições dos atos proibidos eram vagas e exigiam interpretações pelos seus
aplicadores, havia ampla margem para arbitrariedades, tornando impossível qualquer forma
de segurança jurídica. Influenciado pela concentração de poder nas mãos do monarca, os
julgamentos não continham garantias e estavam entregues a casuísmos, geralmente com
privilégios aos nobres e fidalgos e tratamento sem qualquer benevolência para todos que não
gozassem destes status.
Entretanto, esse cenário começa a mudar com a lenta erosão do pensamento absolutista,
advindo pelo crescimento intelectual da classe burguesa. Como o sistema vigente era
baseado na impossibilidade de ascensão social, a burguesia emergente era uma casta
destituída de meios para atingir o poder e, ainda, estava à mercê da vontade de um soberano,
somente investido nesta categoria por conta de sua origem nobre. Gradualmente, doutrinas
baseadas na igualdade entre as pessoas começam a circular e o ideário absolutista passa a
ser questionado, em todos seus segmentos.
Incumbiu ao Iluminismo funcionar como essa corrente filosófica inovadora, contrapondo às
verdades absolutas das monarquias do Século XVIII. Com o florescimento do pensamento
iluminista, não tardou para que suas luzes atingissem o sistema punitivo, retirando-o de sua
sombria condição.
Sem objetivo de esgotar a complexidade do pensamento iluminista, podemos mencionar
algumas de suas características que foram essenciais para alteração do quadro do sistema
punitivo:
1. Adoção das teorias contratualistas: com ênfase nas lições de Jean Jacques Rousseau,
apresentadas no livro “O Contrato Social”, o contratualismo refutava a tese de que o
poder político derivava de intervenção divina, mas aparecia como uma necessidade para
a convivência harmônica da coletividade humana. Para assegurar a paz e a segurança
de todos, cada membro teve de ceder parcela de sua liberdade para o poder central,
delegando a este a tarefa de defender a sociedade pelo poder punitivo.
10
2. Secularização: conforme exposto por Luigi Ferrajoli, em sua densa obra “Direito e Razão:
Teoria do Garantismo Penal”, a confusão entre Direito e moral representou retrocesso para
as ciências penais, uma vez que ao não distinguir o crime do pecado, restou ao sistema
punitivo tutelar a fé e coibir qualquer ato contrário a religião. Por não separar o Estado
do religioso, o castigo passa a ser aplicado com base nas características indesejadas de
algumas pessoas. Em outros termos, a pessoa poderia ser condenada pelo que ela era
(bruxo, herege, homossexual etc) e não necessariamente pelo que poderia ter praticado.
A secularização busca romper os laços entre a moral e o Estado e evitar que qualquer
ação pecaminosa seja considerada como prejudicial para o convívio social.
3. Racionalismo: para o Iluminismo, era imprescindível extirpar as enraizadas doutrinas
seculares baseadas em códigos éticos e morais, pois a razão humana deveria permear
todas as áreas do conhecimento e do poder político.
4. Legalismo/Legalidade: com objetivo de cessar com as arbitrariedades da imputação
do delito devido a vagueza da redação das leis, geralmente com conteúdo gerado a
partir de interpretações religiosas pouco claras, fato que prejudicava o efetivo gozo da
liberdade e da segurança jurídica, uma das principais preocupações dos adeptos da
corrente iluminista era dispor de um código ou uma sistematização das condutas que
realmente demandavam uma reação estatal para proteção da sociedade e que devem
estar previamente estipuladas.
Nesse efervescente cenário, a publicação da obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare
Beccaria, para grande parte da doutrina, marcou o surgimento da Escola Clássica das
Ciências Penais, uma vez que fora o primeiro trabalho a tratar especificamente do fenômeno
punitivo, sob a ótica iluminista.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
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2. Escola Clássica
Na realidade, não podemos falar que a Escola Clássica teve um posicionamento único ou
que apresenta características uniformes, pois sua denominação e sistematização surgiu por
Enrico Ferri, um dos principais expoentes da Escola Positiva, em uma tentativa de abranger
todas as ideias penais desde Beccaria até o advento das primeiras concepções de sua
corrente de pensamento. Dessa forma, alguns posicionamentos antagônicos gerados em
período anterior à Escola Positiva foram incluídos como do mesmo sistema, embora possam
ser constatadas diferenças quanto a finalidade do Direito Penal e as funções da pena.
Entretanto, a sistematização não se baseou somente no critério temporal, como também levou
em consideração alguns aspectos que foram profundamente explorados pelos estudiosos da
ciência penal de parte do século XVIII e XIX. Podemos dividir em duas categorias:
1. Orientação político-social: como a Escola Clássica intentava criar um sistema divergente
da justiça penal medieval e arbitrária, seus adeptos estabeleceram os fundamentos e os
limites do poder punitivo estatal, assim como se opuseram às penas cruéis e infamantes
e criaram um sistema de garantias para o acusado, com objetivo de evitar julgamentos
injustos.
2. Orientação filosófico-jurídica: percebe-se que os partidários da Escola Clássica
adotaram o método racionalista, estudando o Direito Penal com o método lógico-abstrato3;
o fundamento da responsabilidade penal está baseado no livre arbítrio (vontade livre e
consciente de que se optou pela prática de determinada conduta, sem influência de fatores
biológicos, sociais, étnicos etc.) e na imputabilidade moral do homem; o delito como ente
jurídico e não de fato, isto é, o crime não é uma ação, mas uma infração e; por fim, a pena
é vista como retribuição, como um ato de reprovação ao injusto cometido.
Os principais expoentes da Escola Clássica foram Cesare Beccaria, Francesco Carrara,
Giandomenico Romagnosi e Anselm V. Feuerbach. Nos próximos tópicos, vamos explorar
suas principais ideias.
3 DOTTI, 2012, p. 237.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
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2.1 Etapa Inicial de Cesare Beccaria
Conforme apontado anteriormente, a obra “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria,
publicado durante o século XVIII foi o primeiro trabalho a explorar o sistema punitivo vigente
sob a perspectiva das ideias iluministas. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes expõe:
Beccaria, que foi o máximo catalisador de todas essas ideias filosóficas e políticas do Iluminismo, bastante progressistas para a época (...), estruturou seus pensamentos em várias construções filosóficas, destacando-se: (a) a racionalista de Descartes, depois aprofundada por Montesquieu (que estudou Filosofia, a política e o direito sob o império da razão e da moderação); (b) a iusnaturalista de Pufendorf e John Locke (sobrevalorização do direito natural, que fixa limites ao Estado); (c) a utilitarista (defendida por Francis Hutchenson – 1694 -1746 – e seguida por Bentham, da máxima felicidade repartida entre o maior número possível de pessoas); e (d) a contratualista de Rousseau, Hobbes e John Locke (as leis e o próprio poder do Estado são frutos de pactos da sociedade)4.
Sem dúvida, as ideias propostas representaram a maior crítica ao sistema criminal da época,
em notória reprovação a irracionalidade selvagem existente e marcaram o início de um Direito
Penal de cunho liberal, com ênfase na proteção do indivíduo frente ao aparato sancionador
do Estado. Com efeito, o horror dos castigos infligidos pelo Antigo Regime, com base em
superstições e aplicados com propósito de gerar sofrimento e humilhação exigiam urgente
humanização, sob risco de completa perda de legitimidade.
Nesse aspecto, indiscutível a importância do livro de Beccaria, como um divisor de águas do
Direito Penal, representando o início da limitação do direito de punir do Estado e exigindo
racionalidade para manuseio desse perigoso e danoso aparato sancionador.
Publicada (inicialmente de forma anônima) em 1764, “Dos Delitos e das Penas” é, sobretudo,
uma obra política, pois não contém caracteres propriamente jurídicos ou científicos. De índole
contratualista, a concepção de Beccaria considera a outorga do direito de punir decorria do
pacto social e era uma exigência para controlar o espírito despótico de cada indivíduo, em
4 GOMES, Luiz Flávio. Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal: civilização ou barbárie? Coleção Saberes Críticos. Coordenação Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 52.
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nome da coletividade. Igualmente, a sanção imposta não poderia ser mais rigorosa do que
o necessário para restabelecimento da ordem social, figurando como abusiva e ilegítima
qualquer manifestação de poder punitivo além do imprescindível5.
Embora boa parte da doutrina considere Beccaria como precursor da Escola Clássica,
a maior parte dos autores deste segmento são jusnaturalistas, isto é, acreditam em uma
ordem imposta desde o começo da humanidade, sendo o pacto social apenas ratificador
dos direitos naturais do homem, mas não uma exigência para a segurança de todos. Como
Beccaria seguia teorias contratualistas, esse diferente ponto de partida poderia significar sua
exclusão dessa Escola. Vale ressaltar que Beccaria condenava a tortura (por não enxergar
sua utilidade), mas era a favor de penas corporais, assim como da pena de escravidão (com
nítida importância para o sistema capitalista burguês emergente).
Todavia, o ponto característico essencial da Escola Clássica (a existência do livre arbítrio,
com a capacidade do homem ser racional e optar pela prática do bem e do mal) também
permanece obscura e questionável no livro “Dos Delitos e das Penas”, pois Beccaria
apresenta características deterministas (homem guiado naturalmente para a prática de
crimes como método de satisfação de suas paixões), quando sugere a existência de uma
5 “Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis como depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo”.
“Não era suficiente, contudo, a formação desse depósito; era necessário protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois a tendência do homem é tão forte para o despotismo, que ele procura, incessantemente, não só retirar da massa comum a sua parte de liberdade, como também usurpar a dos outros”.
“Eram necessários meios sensíveis e muito poderosos para sufocar esse espírito despótico, que logo voltou a mergulhar a sociedade em seu antigo caos. Tais meios foram as penas estabelecidas contra os que infringiam as leis”.
(...)
“Desse modo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante”.
“A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo”.
(BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 19-20).
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classe perigosa, formada por homens escravos, mais cruéis que os homens livres6. Assim,
o método racionalista e a de humanização, fundamental para a Escola Clássica, não ficam
claros em Beccaria, permanecendo, todavia, o espírito liberal e individualista, percebido em
todos os adeptos da Escola Clássica, independente de sua inclinação para o contratualismo
ou jusnaturalismo.
2.2 A Escola Clássica Italiana de Carrara e Romagnosi
A corrente clássica italiana teve muitos penalistas de renome, como Romagnosi,
Carmignani, Rossi e Pessina, mas Francesco Carrara fora seu maior representante.
Discípulo direto de Carmignani, o mérito de Carrara pode ser percebido em sua obra
“Programma di Diritto Criminale”, cuja sistematização fora direcionada para seus alunos e
tinha como objetivo apenas tratar dos principais aspectos da ciência penal, mas terminou por
explorá-la completamente.
Assim como seu mestre, Carrara refutava a teoria contratualista, sendo partidário do
jusnaturalismo, pois compreendia que Rousseau estaria equivocado ao pensar em um
primeiro estágio selvagem e posterior organização por meio de um contrato social, pois a
associação civil é natural ao ser humano desde sua criação7.
Segundo sua concepção, para fundamentar a criação de uma autoridade central para
regulamentar, fiscalizar e punir determinadas condutas consideradas lesivas, Carrara sugere
que a lei natural
[...] teria sido, pois, impotente para manter a ordem no mundo moral, porque mais fraca do que a lei eterna reguladora do mundo físico. Essa é sempre obedecida; aquela, com demasiada frequência, conculcada e negligenciada8.
6 BECCARIA, 2006, p. 102.
7 “A lei eterna da ordem impele o homem à sociedade”. (CARRARA, Francesco. Programa do curso de Direito Criminal (parte geral). Tradução de José Luis V. de A. Franceschini e J.R. Prestes Barra. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 19).
8 CARRARA, 1956, p. 19.
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Por essa razão, para organização da sociedade civil e para a defesa da humanidade, surge o
Direito Penal, incumbido da imposição das sanções necessárias para harmonia social.
No tocante a conduta criminosa, Carrara considera o crime como um ente jurídico, isto é, se
trata de uma violação de um direito. Em outros termos, a infração penal surge no âmbito da
sociedade e somente é proibida e castigada por representar perturbação da ordem social,
sendo que a pena figura como um meio para restabelecimento do status quo. Logo, a pena
assume função de meio de tutela jurídica e retribuição da culpa moral9.
Por sua vez, o livre arbítrio desenvolve importante papel em sua teoria, pois Carrara entende
que
[...] o direito não pode ser atingido, a não ser por atos exteriores precedentes de uma vontade livre e inteligente, esse primeiro conceito vinha determinar a constante necessidade, em cada delito, das suas duas forças essenciais: vontade inteligente e livre; fato exterior lesivo do direito, ou a ele ameaçador10.
Assim, apenas uma conduta (portanto, ato exteriorizado e não interno ao sujeito), cuja
vontade esteja liberta de qualquer imposição física ou moral pode infligir algum dano ao
direito. Portanto, pode ser constatado que Carrara dividia o delito em elementos subjetivo
(imputabilidade penal – vontade livre e consciente) e elemento objetivo (ato exteriorizado que
viola o direito). Essa delimitação de elementos é considerada por Bitencourt, como um início
da construção dogmática da Teoria Geral do Delito, “com grande destaque para a vontade
culpável. A pena era, para os clássicos, uma medida repressiva, aflitiva e pessoal, que se
aplicava ao autor de um fato delituoso que tivesse agido com capacidade de querer e de
entender”11.
9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal .parte geral. v. 1. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 84.
10 CARRARA, 1956, p. 11.
11 BITENCOURT, 2011, p. 85.
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Igualmente jusnaturalista e utilitarista, a concepção de Romagnosi compartilhava de diversos
pontos da teoria de seu discípulo. Para Romagnosi, o Direito Penal constitui um direito de
defesa da sociedade12, sendo que a pena desempenhava a função de contraestímulo ao
impulso criminoso que colocou em risco a ordem social. Apesar do crime ser um requisito
essencial para a aplicação da pena, de forma que sua razão de existir reside no passado, sua
imposição visa o futuro, pois intenta dissuadir outros indivíduos de cometerem as mesmas
infrações, uma vez que a impunidade poderia levar a uma epidemia de crimes13.
2.3 A Escola clássica alemã de Feuerbach
Anselm V. Feuerbach é considerado como o precursor do Direito Penal alemão e, assim como seus colegas italianos da Escola clássica, concebe sua teoria baseada nos ideais iluministas, pautadas pelo racionalismo, pela limitação do direito de punir e pelo utilitarismo da sanção penal.
Sua maior contribuição para as ciências penais foi conferir a função preventiva negativa a pena, ou seja, a sanção previamente fixada servia como um mecanismo intimidador, isto é, como uma forma de coação psicológica que afastava todos os indivíduos da prática de delitos14.
Se algum indivíduo optasse por praticar a conduta proibida por lei, a aplicação da sanção seria obrigatória, como meio demonstrativo da eficácia da ameaça.
12 “Por lo tanto, conelfin de defenderse, lasociedad estará enlanecesidad y por lomismoenelderecho de eliminar laimpunidad, por más que se considere como cosa posterior al delito. O, hablando más exactamente, lasociedadtienederecho de hacer que la pena siga al delito, como médio necesario para laconservación de sus miembros y del estado de agregaciónen que se encuentra, ya que ellatiene pleno e inviolablederecho a estas cosas”. (ROMAGNOSI, Giandomenico, Gènesis del Derecho Penal, Bogotá, Temis, 1956, p. 105).
13 Ao falar do fim da pena, Romagnosi expõe: “No es atormentar o afligir a un ser sensible; no es satisfacerunsentimiento de venganza; no es revocar delorden de las cosas un delito ya cometido, y expiarlo, sino antes bien infundir temor a todo delincuente, para que en, el futuro no ofenda a lasociedad”. (ROMAGNOSI, 1956, p. 150)
14 “Se entenderá que la pena tiene como objetivo elefectocuyacreaciónpuedaconcebirse como causa de laexistencia de uma pena, si es que existe el concepto de pena. 1)El objetivo de laconminación de la pena enlaley es laintimidación de todos, como posibles protagonistas de lesiones jurídicas. II) El objetivo de suaplicación es el de dar fundamento efectivo a laconminación legal, dado que sinlaaplicaciónlaconminaciónquedaríahueca (sería ineficaz). Puesto que laley intimida a todos losciudadanos y laejecucióndebe dar efectividad a laley, resulta que el objetivo mediato (o final) de laaplicación es, encualquier caso, laintimidación de losciudadanos mediante laley”. (FEUERBACH, Paul Johann Anselm Von, Tratado de Derecho Penal, 14. ed. Tradução de Eugenio Raul Zaffaroni e Irma Hagemier. Buenos Aires, Editorial Hamurabi, 1989, p. 61).
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Tendo como ponto de partida essa função da pena, Feuerbach estabelece como imprescindível
o Princípio da Legalidade (uma vez que as condutas consideradas como proibidas deveriam
constar em lei anterior a sua prática) e, ainda, dispõe a exigência do livre-arbítrio, pois
incumbiria ao cidadão, de forma livre e inteligente, desconsiderar a ameaça do castigo penal
e cometer determinado crime.
3. Escola Positiva
Apesar de a Escola Clássica ter apresentado muitos avanços, se comparada com o
sistema punitivo do Antigo Regime, o descrédito sofrido pelas doutrinas espiritualistas e
metafísicas (essenciais para a fundamentação de seus paradigmas), sua demasiada atenção
ao individualismo abstrato e a ineficácia para diminuição da criminalidade tornaram dificultosa
sua sustentação no ambiente intelectual da segunda metade do século XIX, cujo período fora
marcado pelo crescimento dos estudos científicos do pensamento positivista.
O surgimento da Escola Positiva ocorre em contexto de intenso desenvolvimento das ciências
sociais (Antropologia, Psicologia, Sociologia etc.), de modo que a metodologia empregada
nestas áreas do conhecimento fora aplicada também no Direito e, especialmente, no Direito
Penal. Entretanto, se as ciências sociais e naturais permitiam a utilização do método indutivo-
experimental, a instabilidade do cenário da atividade jurídica tornava inaplicável qualquer
espécie de estudo com base na observação e investigação. Por esse motivo, os positivistas
não concebiam a atividade jurídica como ciência (algo inaceitável e que reduzia a relevância
do Direito), de modo que a consideração jurídica do delito deveria ser substituída por uma
sociologia ou antropologia do delinquente, chegando ao nascimento da Criminologia15.
Desde esse momento, constata-se que o foco de proteção do Direito Penal incide somente
ao corpo social, enquanto o delinquente se torna objeto de estudo e sujeito a ser combatido
por sua inerente inclinação a prática de delitos.
15 BITENCOURT, 2011, p. 86-87.
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Basicamente, para a Escola Positiva, a sanção penal é uma reação natural do corpo social
contra as atividades anormais de seus membros. Ao contrário dos classicistas, o delito não
é um ente jurídico, mas um fato natural e que surge devido a fatores antropológicos, físicos
e sociais. Em outros termos, o livre-arbítrio da Escola Clássica era irrelevante, pois alguns
indivíduos sempre estariam predispostos a cometer crimes (independentemente de sua
vontade livre e consciente) e, igualmente, era desnecessário fundamentar o direito de punir
e a responsabilidade penal em conceitos morais, pois o crime e o criminoso são patologias
sociais e que devem ser enfrentados, uma vez que a sociedade está legitimada a se defender
contra aqueles indivíduos que estão fatalmente determinados a colocar a segurança em risco.
Por fim, com a ampla difusão do pensamento positivista, a possibilidade de aplicação dos
métodos de observação ao estudo do homem, os novos estudos estatísticos realizados pelas
ciências sociais, que possibilitavam a comprovação de certa regularidade e uniformidade
nos fenômenos sociais (inclusive da criminalidade) e o crescimento de novas ideologias
políticas que exigiam uma postura mais ativa do Estado na prestação de direitos sociais, mas
que também consideravam a proteção penal aos direitos individuais muito complacentes,
terminando por afetar o gozo dos direitos coletivos, os posicionamentos da Escola Clássica
foram gradualmente rechaçados e substituídos pela Escola Positiva.
Geralmente, a doutrina considera que a Escola Positiva apresentou três fases distintas, tendo
cada uma seu expoente: Fase antropológica de Cesare Lombroso; Fase sociológica de Enrico
Ferri e Fase jurídica de Rafael Garofalo.
3.1 A Corrente Lombrosiana do “Homem Delinquente”
Cesare Lombroso era médico e, por conta de forte influência dos estudos de Auguste Comte
e Charles Darwin, buscou elencar as categorias de criminosos com base em determinadas
características, cujas anomalias constituiriam um tipo antropológico específico, pois entendia
que haviam delinquentes natos.
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Seu conceito de criminoso nato, com base no estudo antropológico do criminoso e publicado na
obra “O homem delinquente”, em tentativa de desvendar a origem causal do comportamento
antissocial, representou a mais distinta característica da Escola Positiva, pois ela indica que
existe uma predisposição natural de alguns indivíduos para a prática de delitos, sendo que
o homem delinquente possui esses “sintomas” que tornam dificultoso seu ajustamento ao
código de ética e à conduta social, podendo favorecer a manifestação do fenômeno criminoso,
de acordo com seu contexto social.
Seu método de estudo, compartilhado pelos positivistas de sua geração, era baseado em
um minucioso levantamento de todos os dados biológicos e psicológicos dos criminosos, de
forma que poderia avaliar quais circunstâncias aparecem na maioria e, assim, determinar a
influência dessa condição para inclinação delituosa.
Lombroso apresentou uma classificação de criminosos: (I) natos; (II) loucos; (III) por paixão;
(IV) de ocasião e; (V) epilético.
Conforme enfatizado por Bitencourt,
[...] o criminoso nato de Lombroso seria reconhecido por uma série de estigmas físicos: assimetria do rosto, dentição anormal, orelhas grandes, olhos defeituosos, características sexuais invertidas, tatuagens, irregularidades nos dedos e nos mamilos etc.16
A título de exemplo, Lombroso tecia as seguintes considerações sobre estupradores:
Muitos estupradores tem lábios grossos, cabelos abundantes e negros, olhos brilhantes, voz rouca, alento vivaz, frequentemente semi-impotentes e semi-alienados, de genitália atrofiada ou hipertrofiada, crânio anômalo, dotados de muitas vezes de cretinice e raquitismo17.
Por sua vez, os loucos eram irresponsáveis, diante de sua inimputabilidade. Os criminosos
por paixão são dementes emocionais, frios e dissimulados, mas desprovidos de senso moral.
Os de ocasião possuem as condições para manifestação do fenômeno criminoso, entretanto
não estarão sempre em estado de degenerescência. Os epiléticos não possuem controle
sobre suas emoções e poderiam manifestar descontrole de ânimos.
16 BITENCOURT, 2011, p. 88.
17 LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução Sebastião José Roque. São Paulo: ícone, 2007, p. 141.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
20
Apesar das teses de Lombroso conterem muitas falhas e nunca terem sido efetivamente
comprovadas, elas tiveram o mérito de criar a Antropologia Criminal e trouxe para as ciências
penais a observação do delinquente por meio do estudo indutivo-experimental.
3.2 Sociologia Criminal de Ferri
Enrico Ferri foi um dos maiores expoentes da Escola Positiva e fundador da Sociologia
Criminal, de forma que seu ponto de partida continha caracteres da tese de Lombroso, mas
expandia a explicação do fenômeno criminoso para três causas: fatores antropológicos,
físicos e sociais.
Além de criticar profundamente os paradigmas da Escola Clássica, rechaça absolutamente a
existência de livre-arbítrio, pois a pena não era aplicada pela capacidade de autodeterminação
de cada indivíduo, mas pelo fato de ser membro da sociedade. Em outros termos, por acolher
a teoria determinista, o criminoso é restrito a obedecer aos comandos de seus prazeres,
sendo que é influenciado pelas circunstâncias do ambiente a sua volta a cometer delitos a fim
de satisfazê-los. Se acolhido o livre arbítrio, o delinquente poderia ser uma pessoa normal,
pois qualquer conduta criminosa seria fruto de uma vontade incondicionada. Dessa forma,
os delinquentes são pessoas anormais e sem livre-arbítrio, pois o homem normal é aquele
adaptado a vida social, que não reage com ações criminosas ao receber estímulos externos.
Ferri reconhecia que a ideia criminosa poderia surgir para qualquer homem, entretanto no
indivíduo atávico, com condições degeneradas e patológicas, essa ideia se enraíza e se
intensifica até exteriorizar-se, enquanto no homem normal essa ideia se dissiparia.
Logo, a própria função da pena fica prejudicada, pois a finalidade preventiva por meio da
ameaça da sanção não surte efeitos para um indivíduo predisposto a cometer um delito. Essa
perspectiva de coação através do poder punitivo somente teria efetividade para o homem
normal. Por esse motivo, aquele que não pode avaliar a ameaça da sanção penal não pode
ser sujeito a ela, em caso de transgressão, afinal não poderia ter agido de forma diversa.
Assim, essa pessoa anormal será submetida à medida de segurança, caso seja perigosa.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
21
Constata-se que o foco de Ferri e dos adeptos da Escola Positiva não recai sobre o crime, mas
sobre o delinquente. Curiosamente, ao contrário da maioria dos adeptos da Escola Positiva,
cuja vertente opinava pela supremacia da defesa social, Ferri entendia que a maioria dos
delinquentes era readaptável, sendo que apenas os habituais eram irrecuperáveis e, ainda
sim, uma minoria.
Um dos maiores méritos de Ferri fora a criação da Sociologia Criminal como ciência geral
sobre a criminalidade. A sociologia criminal era dividida em ramo biossociológico e um ramo
jurídico. Enquanto o primeiro estudava antropologia criminal, as causas individuais do crime
e com a estatística criminal, as causas do ambiente físico e social e, com os resultados
desses estudos, categorizaria os delinquentes e indicaria os melhores remédios preventivos
e repressivos para o legislador adotar para a defesa social contra a criminalidade. Por sua
vez, o ramo jurídico estudava a organização jurídica de prevenção direta (polícia e órgãos
investidos da persecução criminal) e a organização jurídica repressiva (crime, pena, juízo
e execução). Ferri se empenhou pela independência da Sociologia criminal no contexto de
apreciação dogmática do delito, embora estivessem interligadas18.
3.3 O Estudo da Criminologia Surgida em Garofalo
Rafael Garofalo foi um jurista da primeira fase da Escola Positiva e sua obra fundamental
foi Criminologia (1885), na qual sistematiza as teorias da Antropologia e Sociologia criminal.
Garofalo acreditava que o delito é um fenômeno natural, de forma que o conceito de crime era
obtido por forma sociológica e não jurídica, isto é, a palavra delito é uma construção popular
e não dada inicialmente pelo plano jurídico. Entretanto, pelo seu ponto de vista, o delito
natural era uma ofensa ao senso moral formado pelos sentimentos altruístas de piedade
e de probidade, sobretudo nas partes que mais sofreriam com a violação deste patrimônio
indispensável de todos os indivíduos da sociedade.
18 Mas como o estudo biossociológico do crime não se pode separar e ficar estranho à organização jurídica da defesa preventiva e repressiva contra a criminalidade, também o estudo jurídico se não pode separar e ficar estranho aos dados biossociológicos sobre o homem delinquente, que é o protagonista da justiça penal. (FERRI, Henrique. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Tradução de Luiz de Lemos d’Oliveira. São Paulo, Saraiva, 1931, p. 92).
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
22
Lombroso e Ferri consideram o delinquente como um anormal social, um indivíduo cujo
desajuste o torna incompatível com a vida social19. Entretanto, as repercussões para Garofalo
eram diferentes, pois, em sua concepção, influenciada por Charles Darwin, a reação do corpo
social ao desajustado era sua expulsão. Por não se adaptar ao ambiente, a seleção natural
biológica seria operada na sociedade com a eliminação do indivíduo desajustado por meio da
pena de morte.
4. A “Terza Scuola” Italiana
Com a “terza scuola” italiana se inicia uma nova etapa nas escolas penais. Enquanto as Escolas Clássica e Positiva continham características antagônicas e incompatíveis entre si, algumas escolas penais posteriores adotaram parte das teses de ambas e buscaram atingir um meio termo, conciliando os postulados das escolas pioneiras.
Inicialmente, a corrente eclética da “terza scuola” italiana (também conhecida como escola crítica, naturalismo crítico ou positivismo crítico), teve como seus principais expoentes Manuel Carnevale, João Impallomeni e Bernardino Alimena.
Por sua índole intermediária, adotavam algumas posições da Escola clássica, mas reconheciam os avanços da positiva. Como acolhiam o princípio da responsabilidade moral, consequentemente, separavam os imputáveis dos inimputáveis, mas rechaçavam o livre-arbítrio, substituindo-o pelo determinismo psicológico20. Em outros termos, os adeptos dessa escola não aceitavam a teoria do delinquente nato e sua anormalidade social, mas afastavam do livre-arbítrio clássico, pois a imputabilidade surge da capacidade de dirigibilidade do sujeito para a prática da conduta criminosa e também da sua capacidade de sentir a intimidação proveniente da proibição da lei.
19 “Se o crime é uma acção que perturba a consciência publica pela ofensa que implica aos sentimentos altruístas fundamentales, o criminoso será necessariamente um homem em quem se dá ausência ou defeito d’um ou d’outro d’estes sentimentos; se os possuísse no momento do crime, é evidente que não teria podido negal-os pela própria acção criminosa – a menos que a violação dos sentimentos indicados não seja senão aparente, o que importaria, então, a não existencia do delito”. (GAROFALO, Rafael. Criminologia. Tradução de Julio de Mattos. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A.M Teixeira & C. (Filhos), 1925, páginas 92/93).
20 BITENCOURT, 2011, p. 91.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
23
Em suma, enquanto se aproximam da Escola clássica ao separar os imputáveis dos inimputáveis, fica mais próxima da Escola Positiva por não aceitar o livre-arbítrio.
5. A Escola Moderna Alemã de Liszt
Franz Von Liszt, um dos maiores penalistas de todos os tempos, fora discípulo de grandes
mestres, como Adolph Merkel e Rudolph Von Ihering, sendo que os ensinamentos deste último
podem ser percebidos na construção teórica de Liszt, especialmente quanto à finalidade do
Direito.
A Escola moderna alemã (também conhecida como Terceira Escola Alemã ou Escola
Sociológica Alemã) teve como seus principais expoentes Liszt, o belga Adolph Prins e o
holandês Von Hammel e os três formaram a União Internacional de Direito Penal (hoje
conhecida como Associação Internacional de Direito Penal).
Os adeptos da Escola moderna alemã enxergavam o Direito Penal como uma estrutura
complexa e que continha múltiplas áreas, especialmente criminológicas, como a Política
Criminal. Apesar de explicitar a importância da Política Criminal, esta era independente e
separada do Direito Penal, embora estivesse destinada a analisar o delinquente e verificar se
a sanção cominada tinha potencial para cumprir sua função.
Devido sua capacidade de sistematização, o “Programa de Marburgo” de Liszt ofereceu novo
suporte dogmático para o Direito Penal, pois retira de seu âmbito a análise do delinquente
(maior enfoque da Escola Positiva), deixando essa tarefa para a Política Criminal apenas.
Para Liszt, a função do Direito Penal é a tutela de determinados interesses humanos, que são
denominados como bens jurídicos, após sua consideração jurídica. Por sua vez, a sanção
penal opera dupla finalidade, direcionada para grupos de indivíduos diferentes: para os que
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
24
respeitam as leis, a proibição de violação de algum interesse humano demonstra que o Estado
possui os mesmos parâmetros e para os criminosos, a pena imposta é um desestímulo para
a prática de delitos21.
Segundo sua concepção, a função da pena para a coletividade teria uma função preventiva
geral, freando as tendências criminosas e, ao mesmo tempo, demonstra para os ofendidos
que os atentados contra seus interesses não passará despercebido e sem punição. Para os
delinquentes, visa converte-lo em um membro útil para a sociedade (adaptação artificial),
intimidando o aparecimento de manifestações criminosas e modificando seu caráter22.
Assim, a utilização consciente da pena como principal arma da ordem jurídica na luta contra
a criminalidade demanda um estudo científico sobre como surge a manifestação exterior
material do delito e as causas internas do delinquente. Essa área incumbe unicamente à
Criminologia, mas não ao Direito Penal.
Como intimidação decorrente da sanção e a imposição da pena demanda capacidade de
discernimento, pois busca recuperar o delinquente, Liszt não se afasta completamente do
livre-arbítrio clássico, de modo que faz a separação entre imputáveis e inimputáveis. Mas,
Liszt compreendia que não se poderia falar em livre-arbítrio, mas sim em uma normalidade
de determinação que deveria conduzir o indivíduo. Em outras palavras, a imputabilidade
penal existiria em qualquer ser humano mentalmente desenvolvido e são, podendo ser
responsabilizado pela prática de seus atos. Necessariamente, o indivíduo deve conseguir
sentir os efeitos da pena23, de modo que aqueles que não conseguem, são inimputáveis e, se
perigosos, demandam medida de segurança.
21 “Se a missão do direito é a tutela de interesses humanos, a missão especial do direito penal é a reforçada protecção de interesses, que principalmente a merecem e dela precisam, por meio da comminação e da execução da pena como mal infligido ao criminoso. Advertindo e intimidando, a comminação penal acrescenta-se aos preceitos imperativos e prohibitivos da ordem jurídica. Ao cidadão de intenções rectas, ella mostra, sob a fórma mais expressiva, valor que o Estado liga aos seus preceitos; aos homens dotados de sentimentos menos apurados ella põe em perspectiva, como consequência do acto injurídico, um mal, cuja representação deve servir de contrapeso ás tendências criminosas”. (LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal Allemão. Tomo 1. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, 1899, p. 98-99).
22 LISZT, 1899, p. 100.
23 LISZT, 1899, p. 122-123.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
25
Segundo Bitencourt, as principais características da Escola Moderna alemã foram:
1. Adoção do método lógico-abstrato (da Escola Clássica) e indutivo-experimental (da
Escola Positiva e destinado para as demais ciências penais, como a Criminologia e a
Política Criminal).
2. Distinção entre imputáveis e inimputáveis.
3. O crime é concebido como fenômeno humano-social e fato jurídico; d) função finalística
da pena, advinda da presença do caráter retributivo, mas priorizando a finalidade preventiva
(especialmente a prevenção especial, com objetivo de “consertar” o delinquente e evitar a
reincidência).
4. Eliminação ou substituição das penas privativas de liberdade de curta duração24. No
tocante a este último ponto, Liszt considerava que a pena somente é justa quando for
necessária para manutenção da ordem jurídica25, de forma que não existe motivo razoável
para que a punição seja abusiva, sob risco de perder sua legitimidade.
6. Escola Técnico-Jurídica de Rocco
A Escola Positiva utiliza o método indutivo-experimental, com base nas ciências naturais,
que decorria da observação e constatação da realidade dos fenômenos. Para tanto, não
poderiam permitir que o ramo do Direito fosse uma construção humana abstrata, pois isto
tornaria impossível seu estudo, de modo que importaram outras searas do conhecimento
humano e abrigaram no Direito. Igualmente, com objetivo de atingir seu fim, os positivistas
focaram a ótica do Direito Penal na figura do delinquente. Todavia, em dado momento, o
Direito Penal se confundia com a Criminologia e a Política Criminal, havendo excessiva
mistura entre aspectos antropológicos e sociológicos, sem preocupação com o essencial: o
jurídico.
24 BITENCOURT, 2011, p. 92-93.
25 LISZT, 1899, p. 125.
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26
Contra esse afastamento do plano jurídico, a Escola técnico-jurídica de Arturo Rocco busca
resgatar o verdadeiro objeto do Direito Penal, isto é, o crime como fenômeno jurídico26. Por essa
objeção a intromissão de outras ciências no ramo da ciência criminal, a maior característica
dessa Escola é a negação da investigação filosófica no campo do Direito Penal. Como o
Direito é uma ciência normativa, Rocco defende que seu método de estudo adequado será o
lógico-abstrato, diverso das ciências causais-explicativas ou políticas.
Para os adeptos da Escola técnico-jurídica, o objeto da ciência penal é apenas o ordenamento
jurídico positivo, isto é, a mera legislação criminal vigente, sendo que o método de criação será
composto por três partes: exegese, dogmática e crítica. A ciência penal estuda a disciplina
jurídica do fato humano e social chamado delito e do fato social e político chamado pena,
ou seja, trata do “estudo das normas jurídicas que proíbem as ações humanas imputáveis,
injustas e nocivas, indiretamente geradoras e reveladoras de um perigo para a existência
da sociedade juridicamente organizada”27. Por negar o caráter empírico (vista na Escola
Positiva), a função deste método é a elaboração técnico-jurídica do Direito Penal positivo e
vigente no seu conhecimento científico.
De tal maneira, a elaboração do sistema penal tem caráter jurídico, regido pela lógica
deôntica (dever ser), distinto de outras ciências causal-explicativas, pertencentes ao mundo
ôntico (ser)28. Em outras palavras, a criação do ordenamento jurídico penal formula como
será a persecução criminal desejada para manutenção da ordem social e não pela realidade
sensível.
26 Podemos perceber a indignação de Rocco na seguinte passagem, quando trata da confusão de matérias existentes no Direito Penal: “Contienen antropologia, sicologia, estadística, sociologia, filosofia, política, es decir, de todo menos de derecho. A veces se navega por pleno derecho natural o racional o ideal, enla complacência de trabajos académicos saturados, sin embargo, de metafísica y escolástica; otrasveces, por elcontrario, enmedio de una multidad de conceptos políticos fluctuantes que, dispuestos a serviles a lastesis más discordantes, hacen perder por una parte lo que por otra se gana; enotras ocasiones se vatras de conceptos biológicos, sicológicos o sociales difusos, loscualesaunsiendoverdaderos y fundados – y estánmuylejos de serloen todo momento – no sirven para nada, porno estar acompañados por lainvestigación jurídica”. (ROCCO, Arturo. El problema y el método de la ciencia del derecho penal. Bogotá: Editorial Têmis S. A., 1999, p. 3).
27 ROCO, 1999, p. 11.
28 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro. Vol. 1. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 86.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
27
Os principais caracteres dessa Escola são: a) o delito é pura relação jurídica, de conteúdo
individual e social; b) a pena é uma reação e consequência do delito praticado, com função
preventiva geral (intimidativa) e especial (centradas no delinquente e voltadas a coibir a
reincidência) para os imputáveis; c) medida de segurança aplicada aos inimputáveis; d)
responsabilidade moral (vontade livre); e) método técnico-jurídico e; e) negação da intromissão
da Filosofia no campo penal29.
Os principais defensores da Escola técnico-jurídica, além de Rocco, foram Manzini, Massari,
Bettiol, Maggiore, Conti, Delitala, Vannini, Petrocelli e Battaglini30.
7. A Escola Correcionalista
Influenciado pelas ideias de Karl Krause (adepto do idealismo romântico alemão da primeira
metade do século XIX e que estava baseada na piedade e no altruísmo) que em monografia
de 1839, intitulada “Comentatio na poena malum esse debeat”, lançou as primeiras linhas da
Escola Correcionalista, em que defende a aplicação da sanção penal como método de correção
moral do delinquente. Entretanto, sua teoria correcional voltada para modelar a vontade do
criminoso não recebeu grande repercussão em solo alemão, tendo recebido acolhida entre
doutrinadores espanhóis, em destaque Giner de los Rios, Rafael Salillas, Concepción Arenal
e Pedro Dorado Montero, sendo este último seu principal expoente.
Para a Escola Correcionalista, a finalidade única da pena é o tratamento do delinquente, visto
como um indivíduo doente, portador de uma patologia que o inclina a prática de condutas
contrárias à ordem social vigente.
Pode ser percebido que essa escola tivera influência dos positivistas, enquanto considera o
criminoso como um indivíduo predisposto para cometer delitos, mas se distancia das teorias
de Lombroso e Garofalo por não acreditar na ideia de um criminoso nato e irrecuperável.
Como a distinção desta teoria correcionalista reside na cura do criminoso, subvertendo sua
29 BITENCOURT, 2011, p. 94.
30 Porém, Bitencourt ressalva que Karl Binding, na Alemanha, fora o precursor das teorias técnico-jurídicas. (BITENCOURT, 2011, p. 94).
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
28
vontade aos comandos aceitáveis do ordenamento jurídico e da ética moral e social, a pena
não era encarada como uma obrigação decorrente da prática de um crime, mas um direito a
ser exigido pelo delinquente. Em outros termos, a sanção penal era um bem para o criminoso,
pois sua anomalia que o torna incapaz de viver em sociedade seria expurgada. Por esse
motivo, como o delinquente era portador de uma doença e a pena era o único remédio cabível
para sua cura e reinserção na coletividade, o juiz funcionava como médico social, encarregado
da higienização do sistema31.
Dessa maneira, devido ao perigo social representado pelo delinquente, não se questionava
a imputabilidade ou inimputabilidade do indivíduo, uma vez que era indiferente.
Consequentemente, o livre-arbítrio tinha pouca relevância.
Por decorrência da concepção de que a pena era um direito do delinquente, eram
desnecessárias garantias penais e processuais penais. Igualmente, pela investidura de
médico social, o juiz detinha amplos poderes para individualizar a pena cabível para os
propósitos correcionalistas.
Vale ressaltar, devido a “patologia de desvio social” sofrida pelo delinquente e como a
pena buscava sua cura, a sanção tinha tempo indeterminado, com duração até que fosse
completada a conversão do criminoso.
8. A Nova Defesa Social de Marc Ancel e Fillipo Gramatica
Embora seus primeiros caracteres apareçam na filosofia grega, no direito medieval e,
posteriormente, na revolução da Escola Positiva, a defesa social ressurge no século XX em
Adolphe Prins, que faz sua primeira sistematização. Entretanto, a nova Defesa Social nasce
com Fillipo Gramatica em 1945, quando este funda o Centro Internacional de Estudos de
31 “En tal sentido, laadministración de justicia penal debe ser una función de saneamento social, una función de higienización y profilaxia social, comprendiendoenla higiene la terapêutica, como a mi juiciodebecomprenderse. El papel que enloporvenirhabrán de desempeñar, enarmoníaconlas modernas concepciones, los funcionários equivalentes a nuestrosactuales magistrados de lo criminal, no tendrámucho parecido conel que hoy corresponde a éstos: se asemejará más bien al de los médicos higienistas. El juez severo, adusto y temibledebe desaparecer, para dejarelpuesto al médico cariñoso y entendido (...), al médico, a la vez, delcuerpo y del alma, cuya única preocupación consistirá en levantar al caído y ayudar al menesteroso, en apartar de sualrededorlas causas y las ocasiones que lespodríanhacer dar nuevostropiezos y fortalecerles para que puedan y sepan resistir los embates de corrientesmalsanas”. (MONTERO, Dorado. Bases para un nuevo derecho penal. 9. Ed. Buenos Aires: Ediciones Depalmia, 1973, p. 65-66).
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
29
Defesa Social, com objetivo de renovar os meios disponíveis para combate da criminalidade.
Gramatica advogava pela abolição do Direito Penal e sua substituição por um Direito de
Defesa Social, voltado para adaptar o indivíduo à ordem social e não à sanção de seus
atos32. Para tanto, a extinção do Direito Penal demanda mudanças nas concepções de crime,
responsabilidade e pena.
Basicamente, a responsabilidade penal pela antissociabilidade, baseada nas características
subjetivas do criminoso; o crime seria considerado como fato, pelo índice de antissociabilidade
e; por fim, a pena seria alterada por medidas sociais.
O extremismo de Gramatica angariou seguidores, mas também culminou com a objeção
parcial de Marc Ancel, o qual distinguia a Defesa social em dois períodos: a) Antigo: voltado
para a proteção da sociedade por meio do combate à criminalidade e; b) Moderno: a defesa
social funciona como uma reação contra as antigas Escolas que entendiam a pena como
singela retribuição do delito e passa a entender que o crime com base nas ciências sociais e
na criminologia.
Ancel ainda defende uma política criminal humanista quanto ao delinquente, definida como
uma “proteção social contra o crime”, isto é, as alternativas para prevenção e repressão do
delito também seriam incumbência de outras searas além do Direito Penal, especialmente
com adoção de métodos extrapenais para a ressocialização do criminoso. Há, portanto,
interesse na luta contra a criminalidade, com adoção de instrumentos preventivos (pré-delito)
e de ressocialização (pós-delito) de diferentes áreas do conhecimento humano. A utilização
destes meios tem escopo de proteger toda sociedade e evitar que outros indivíduos da
coletividade cometam crimes.
Sobretudo, as marcas maiores desta Escola foram sua constante crítica ao sistema vigente;
o uso de todas as ciências humanas para estudo pluridisciplinar do fenômeno criminoso e;
a proteção da dignidade da pessoa humana e afastamento do sistema puramente punitivo-
repressivo clássico.
32 PRADO, 2006, p. 88.
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
30
Em suma, conforme expõe Prado, seus caracteres nucleares são o antidogmatismo, a
mobilidade, o dinamismo e a universalidade33.
33 PRADO, 2006, p. 90.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
Qual o movimento político e filosófico, essen-
cial às ideias penais, que visava a superação
do pensamento absolutista da época?
a) Existencialismo
b) Jurisprudencialismo
c) Humanismo
d) Iluminismo
e) Utilitarismo
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
Com qual teoria identifica o filósofo e pensa-
dor político Jean Jacques Rousseau?
a) Contratualista
b) Hobbesiana
c) Humanista
d) Antropológica
e) Social
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
Qual o nome do autor da consagrada obra
“Dos Delitos e das Penas”?
a) Rosseau
b) Ferrajoli
c) Beccaria
d) Roxin
e) Bentham
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
Conforme a doutrina, quais são as fases da
Escola Positiva.
a) Positivista – Naturalista – Contratual.
b) Antropológica – Sociológica – Jurídica.
Verificaçãode leitura
Aula 01 | Evolução das Ideias Penais
31
c) Jurídica – Social – Psicológica.
d) Psicológica – Idealista – Jurídica.
e) Antropológica – Idealista - Jurídica.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
Como se denomina a Escola em que se de-
fende a aplicação da sanção penal como
método de correção moral do delinquente?
a) Reparadora
b) Moralista
c) Correcionalista
d) Espiritualista
e) Contratualista
Referências
ASÚA, Luiz Jiménez. Tratado de Derecho Penal. 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1964.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin
Claret, 2006.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. v. 1, 16. ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
CARRARA, Francesco. Programa do curso de Direito Criminal (parte geral). Tradução de José Luis
V. de A. Franceschini e J.R. Prestes Barra. São Paulo: Saraiva, 1956.
Verificação de Leitura
32
DOTTI, Rene Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012.
FERRI, Henrique. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Tradução de Luiz de Lemos
d’Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931.
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Von. Tratado de Derecho Penal. 14. ed. Tradução de Eugenio
Raul Zaffaroni e Irma Hagemier. Buenos Aires: Editorial Hamurabi, 1989.
GAROFALO, Rafael. Criminologia. Tradução de Julio de Mattos. Lisboa: Livraria Clássica Editora de
A.M Teixeira & C. (Filhos), 1925.
GOMES, Luiz Flávio. Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal: civilização ou barbárie? Coleção
Saberes Críticos. Coordenação de Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Saraiva, 2014.
LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo 1. Tradução de José Hygino Duarte
Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, 1899.
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone,
2007.
MONTERO, Dorado. Bases para un nuevo derecho penal. 9. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalmia,
1973.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro. vol. 1, 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006.
ROCCO, Arturo. El problema y el método de la ciencia del derecho penal. Bogotá: Editorial Têmis
S.A., 1999.
ROMAGNOSI, Giandomenico. Gènesis del Derecho Penal. Bogotá: Temis, 1956.
Referências
33
Gabarito
Questão 1
Resposta: Alternativa D.
Resolução: Incumbiu ao Iluminismo funcionar como corrente filosófica inovadora, contrapondo
às verdades absolutas das monarquias do século XVIII. Com o florescimento do pensamento
iluminista, não tardou para que suas luzes atingissem o sistema punitivo, retirando-o de sua
sombria condição.
Questão 2
Resposta: Alternativa A.
Resolução: Com ênfase nas lições de Jean Jacques Rousseau, apresentadas no livro
“O Contrato Social”, o contratualismo refutava a tese de que o poder político derivava de
intervenção divina, mas aparecia como uma necessidade para a convivência harmônica da
coletividade humana.
Questão 3
Resposta: Alternativa C.
Resolução: A obra “Dos Delitos e das Penas” de Cesare Beccaria, publicada durante o
século XVIII foi o primeiro trabalho a explorar o sistema punitivo vigente sob a perspectiva das
ideias iluministas. Sem dúvida, as ideias propostas representaram a maior crítica ao sistema
criminal da época, em notória reprovação a irracionalidade selvagem existente e marcaram
o início de um Direito Penal de cunho liberal, com ênfase na proteção do indivíduo frente ao
aparato sancionador do Estado.
34
Gabarito
Questão 4
Resposta: Alternativa B.
Resolução: Via de regra, a doutrina considera que a Escola Positiva apresentou três fases
distintas, tendo cada uma seu expoente: (a) Fase antropológica de Cesare Lombroso; (b)
Fase sociológica de Enrico Ferri e; (c) Fase jurídica de Rafael Garofalo.
Questão 5
Resposta: Alternativa C.
Resolução: Influenciado pelas ideias de Karl Krause (adepto do idealismo romântico alemão
da primeira metade do século XIX e que estava baseada na piedade e no altruísmo). Karl
Roder, em sua monografia de 1839, intitulada “Comentatioan poena malum esse debeat”, lançou as primeiras linhas da Escola Correcionalista, em que defende a aplicação da sanção
penal como método de correção moral do delinquente. Para a Escola Correcionalista, a
finalidade única da pena é o tratamento do delinquente, visto como um indivíduo doente,
portador de uma patologia que o inclina a prática de condutas contrárias à ordem social
vigente.
LEGENDA DE ÍCONES seções
37
Início
Referências
Gabarito
Verificaçãode leitura
Pontuando
Glossário
Vamos pensar
Aula
38
02
Princípios Constitucionais PenaisObjetivos
Nesta aula, você terá acesso aos detalhes relacionados ao princípio da legalidade, o princípio
da humanidade, o princípio da culpabilidade, da lesividade/ofensividade, da intervenção
mínima/fragmentariedade e por fim do tão debatido princípio da proporcionalidade. Com a
leitura deste, você saberá os pontos relacionados aos princípios informadores do Direito
Penal em harmonia com a Constituição Federal de 1988.
1. Princípio da Legalidade
A proteção dos direitos, liberdades e garantias no Estado de Direito se dá, em alguma
medida, não apenas por meio do direito penal, mas também perante o direito penal. O direito
penal, ao longo da história, deu inúmeras amostras da necessidade de estabelecimento
de limites estritos à intervenção estatal. Fundamentalmente em razão do perigo, sempre
à espreita, de a intervenção penal tornar-se, na ausência de limites claros, arbitrária ou
excessiva. A fórmula encontrada para evitar o arbítrio e os excessos consistiu em submeter
a intervenção penal a um rigoroso princípio da legalidade, traduzido pelo axioma latino
“nullum crimen nulla poena sine lege”, segundo o qual “não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”1.
O princípio da legalidade exprime o avanço de um importante estágio civilizacional. Se de
um lado é uma forma de insurgência contra os abusos perpetrados durante o absolutismo,
de outro, corresponde a uma afirmação de nova ordem, na qual o poder estatal via limitado
o seu poder de intervenção penal e, ao mesmo tempo, obrigava o ente estatal a garantir a
segurança do indivíduo contra o seu próprio poderio. O princípio da legalidade “constitui a
chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo.”2
1 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 177.
2 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 65.
39
Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais
Encontrando já alguma expressão na Magna Charta Libertatum de João Sem Terra (1215) e
também no Bill of Rights (1689), o princípio da legalidade teve a sua verdadeira consagração,
em tempos modernos, na Constituição dos Estados da Virgínia e de Maryland em 1776,
encontrando a sua expressão definitiva na Déclaration des droits de l’homme et du citoyen
francesa de 1787, sendo então replicado para inúmeros instrumentos internacionais de proteção
dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção Europeia
de Direitos Humanos, Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos, inúmeras Constituições de países democráticos etc).3
O princípio da legalidade, para além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento
dos crimes e das penas, “garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta
daquela predisposta na lei”.4 Na Constituição da República, o princípio da legalidade está
explicitamente previsto entre os direitos e garantias fundamentais - “art. 5º, inciso XXXIX
- Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. No
Código Penal, vem encampado já no art. 1º.
Ao princípio da legalidade são atribuídas quatro funções, conforme serão explicitadas.
1.1 Proibição da Retroatividade da Lei Penal “in malem partem”(“nullum crimen nulla poena sine lege praevia”)
A proibição da retroatividade penal afirma que tudo o que se refira ao crime e à pena não retroagirá in malem partem, isto é, em desfavor do agente. Pode suceder que ao tempo do fato a conduta não era prevista como crime, tendo ocorrido a sua tipificação em seguida. Pode suceder que após a prática do fato lei nova torne a pena mais gravosa, seja na modalidade da pena (prisão versus multa) ou quantitativamente (tempo de pena maior). Nesses casos não será possível a retroatividade legal. De outro lado, a lei penal retroagirá sempre que beneficiar o agente (lex mellior), podendo ocorrer seja pela revogação da norma incriminadora (abolitio
3 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 177-178.
4 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 68.
40
criminis), seja por qualquer outro modo, ainda que na existência de sentença condenatória transitada em julgado (art. 2º, CP).5
Constituem exceção à retroatividade da lei mais favorável (lex mellior) as chamadas leis excepcionais e leis temporárias (art. 3º, CP). A razão que justifica a não aplicação da lei mais favorável a esses casos é a de que a modificação legal operou-se em função não de uma alteração de concepção legislativa, mas unicamente em decorrência de circunstâncias fáticas que serviram de base à lei. Não existiriam, nesse sentido, expectativas merecedoras de tutela, ao passo que razões de prevenção geral positiva sustentariam essas exceções6.
Afirma-se que o Tribunal de Nuremberg teria violado o princípio da legalidade, a rigor no que tange à irretroatividade da lei penal. No Brasil, Nilo Batista refere que o caso mais escandaloso teria sido a imposição, por decreto, da pena de banimento aos presos cuja liberdade era reclamada como resgate de diplomatas sequestrados por organizações políticas clandestinas, fato ocorrido no período dos governos militares.7 Cristalino, nesse rumoroso caso, a imposição de penas sem lei prévia. Esfumaçara-se, nesse episódio, o princípio da legalidade.
1.2 Proibição de Criação de Crimes e Penas pelo Costume (“nullum crimen nulla poena sine lege scripta”)
Somente a lei formal-escrita, isto é, editada em conformidade com o processo legislativo-constitucional do Estado, pode ter por objeto a tipificação de crimes e penas, o que por si exclui o costume8. Entretanto, o costume não está de todo abolido do direito penal. Continua tendo grande importância para a elucidação do conteúdo do ilícito-típico. Ademais, o direito consuetudinário, sempre que beneficie o cidadão, constitui verdadeira fonte do direito penal, operando como causa de exclusão da ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou
da culpa9.
5 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 68-69.
6 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 177.
7 BATISTA, 2001, p. 68-69.
8 BATISTA, 2001, p. 70.
9 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 25.
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Entende-se que para o nascimento do direito consuetudinário são requisitos essenciais o
reconhecimento geral e a vontade geral de que a norma costumeira atue como direito vigente,
o que significa que a mera tolerância ou omissão das autoridades não são suficientes para o
afastamento da ilicitude da conduta.10
1.3 Proibição da Analogia (“nullum crimen nulla poena sine lege stricta”)
O conceito de analogia, no contexto jurídico-penal, pode ser apreendido como “a aplicação
de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento
de semelhança substancial com os casos regulados”11. Explicado de outro modo, a analogia
está presente sempre que é atribuído a um caso que não dispõe de regulamentação legal a
regra prevista para um caso semelhante12.
Por força do princípio da legalidade, no direito penal, é totalmente inaplicável a analogia a
toda e qualquer norma que defina crimes ou agrave penas. Os regimes políticos totalitários
normalmente utilizam a analogia para a perseguição de seus opositores políticos e dos
indesejados. No nacional-socialismo, por exemplo, uma lei de 1935 alterou o § 2º do Código
Penal de 1871, consignando que: “Será punido quem cometer um crime declarado punível pela
lei, ou que mereça uma sanção segundo a ideia fundamental da lei penal e o são sentimento
do povo”13.
Do mesmo modo, a analogia foi largamente admitida no Código Penal soviético de 1922
(mantida no diploma de 1926), o qual dispunha no art. 6º que:
Como delito deve ser considerada toda ação ou omissão socialmente perigosa, que ameaça os princípios básicos da Constituição soviética e a ordem jurídica criada pelo governo dos operários e camponeses, para o período de transição ao Estado comunista.
10 TOLEDO, 1994, p. 26.
11 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 187.
12 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 74.
13 DOTTI, René Ariel. Princípios fundamentais do direito penal brasileiro. 2005, p. 5. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11966-11966-1-PB.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2015.
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Tal formulação foi substancialmente garantida no CP de 1926, sendo a periculosidade da
conduta a fonte essencial para a incriminação. Os bens jurídicos protegidos continham
conformação extremamente fluida, tais como o sistema jurídico, a ordem jurídica, o regime
dos operários e camponeses etc14.
Vale referir ainda o Código Penal dinamarquês de 1930, o qual estipulava, em seu art. 1º, que
“ninguém pode ser punido com pena senão por atos cujo caráter criminoso esteja consignado
em lei, ou que sejam inteiramente assimiláveis a tais atos”. O Estado chinês, mesmo após o
código de 1979, manteve em seu diploma penal um conceito material de crime definido como
[...] um ato que ofenda a soberania do estado, integridade do território, o regime da ditadura do proletariado, a revolução e a edificação socialistas, a ordem pública, os bens públicos, os bens coletivos das massas trabalhadoras e os bens pessoais dos cidadãos, os direitos individuais e democráticos dos cidadãos e ainda todo ato socialmente nocivo.
Tal delineamento do conceito de crime deixa um campo fértil ao indiscriminado emprego da
analogia15.
Em termos de Brasil, é possível citar o Decreto-Lei nº 4.166, de 1942, o qual autorizou
expressamente em seu art. 5º, § 3º, o uso da analogia:
Art. 5° A ação ou omissão, dolosa ou culposa, de que resultar diminuição do patrimônio de súdito alemão, japonês ou italiano ou tendente a fraudar os objetivos desta lei, é punida com a pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa de 1 a 10 contos de réis, se outra mais grave não couber.
§ 1º A redução, em contrário aos usos e costumes locais, do valor das prestações devidas a tais súditos, é considerada ação dolosa, para os fins deste artigo.
§ 2° Pelas pessoas jurídicas responderão solidariamente os seus administradores e gerentes.
§ 3° Para a caracterização do crime o juiz poderá recorrer à analogia.
14 DOTTI, René Ariel. Princípios fundamentais do direito penal brasileiro. 2005, p. 5. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11966-11966-1-PB.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2015.
15 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 74-76.
Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais
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Outro exemplo que ilustra o recurso à analogia foi a punição do apoderamento ilícito de
aeronaves (então fato atípico) a título de sequestro, pelos tribunais, durante a ditadura militar.
Tema ainda controvertido, mas que vem obtendo reconhecimento nos tribunais é a questão
da admissão de pessoas jurídicas na posição de sujeito passivo dos crimes de calúnia e
difamação. Para Nilo Batista, a extensão do elemento do tipo “alguém” (caracterizador de
pessoa humana) para as pessoas jurídicas representa o emprego de analogia16.
1.4 Proibição de Incriminações Vagas e Indeterminadas (“nullum crimen nulla poena sine lege certa”)
O princípio da legalidade exige um determinado nível de clareza dos tipos penais, os quais
não devem deixar margem para dúvidas e tampouco abusar no emprego de “normas muito
gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios”.17 A norma penal deve ser inteligível por
todos os cidadãos. O uso de conceitos vagos e indeterminados pode resultar em situações
nefastas e perigosas. Não por acaso este foi um expediente largamente utilizado por estados
totalitários e autoritários, conforme alguns exemplos supramencionados.
No Brasil, as leis de segurança nacional constituem o exemplo mais expressivo do perigo
representado pelas incriminações vagas e indeterminadas. Cita-se a lei nº 7.170/83, a qual
previa no art. 15 o crime de “Praticar sabotagem contra instalações militares, meios de
comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas,
barragem, depósitos e outras instalações congêneres”.18 O que é sabotagem e o que são
instalações congêneres de depósitos, meios e vias de transporte são questionamentos que
ficarão sem resposta e, por isso, configuram afronta ao princípio da legalidade. O § 2º do art.
15 citado foi ainda mais longe ao prever a punição dos atos preparatórios de sabotagem. O que
seriam, afinal, os atos preparatórios do crime de sabotagem talvez somente os persecutores
soubessem, o que é típico de tempos sombrios.
16 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 76.
17 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 29.
18 BATISTA, 2011, p. 77-78.
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As modalidades mais frequentes na violação do princípio da legalidade pela criação de
tipos incriminadores vagos e indeterminados, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni,19 são: (a)
a ocultação do núcleo do tipo, por exemplo, no revogado crime de “praticar adultério”; (b)
emprego de elementos do tipo sem precisão semântica, exemplos dos incisos do art. 247 do
CP; (c) tipificações abertas ou amplas.
2. Princípio da Humanidade
A República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, inciso III, Constituição Federal) e é deste postulado que é deduzido o
princípio da humanidade. É com fundamento no princípio da humanidade que o Constituinte
proibiu, de modo taxativo (art. 5º, inciso XLVII, CF), a cominação, aplicação e execução de
penas aviltantes à dignidade da pessoa, tais como as penas: (a) de morte, (b) perpétuas, (c) de
trabalhos forçados, (d) de banimento, (e) cruéis, como castrações, mutilações, esterilizações,
ou qualquer outra pena infamante ou degradante do ser humano.20
Em sua clássica obra “Dei Delitti e delle Pene”, Cesare Beccaria já havia consignado que
“Non vi è libertà ogni qual volta le leggi permettono che in alcuni eventi l’uomo cessi di esser persona e diventi cosa”21. O princípio da humanidade confere ao homem a qualidade de
pessoa, condição inata a todos os seres humanos, independentemente de qualquer vinculação
política ou jurídica. O reconhecimento do valor do homem enquanto o homem faz surgir um
núcleo duro de direitos e prerrogativas fundamentais, aos quais o Estado fica subordinado,
servindo de barreira ao exercício do poder oficial.
A dignidade da pessoa humana – atente-se à natureza humana da pessoa, conforme Luiz
Regis Prado – antecede, em muito, “o juízo axiológico do legislador e vincula de forma
absoluta sua atividade normativa, mormente no campo penal”. Daí o entendimento de que
19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en America Latina (informe final). Buenos Aires: Depalma, 1986, p. 17 e ss.
20 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 30
21 Em livre tradução: “Não há liberdade sempre que a lei permitir que, em determinadas circunstâncias, o homem cesse de ser pessoa para tornar-se coisa”. BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Milano/Mursia: Cura di Renato Fabietti, 1973, p. 53. Disponível em: <http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2015.
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toda a lei violadora da dignidade da pessoa humana não resistiria ao mínimo exame de
constitucionalidade22.
Estritamente vinculada ao princípio da humanidade está a garantia da integridade física e
moral do preso, cujo comando está assentado no art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal
e ratificado por disposições do Código Penal (art. 38) e da Lei de Execução Penal (art. 40).
De fundada importância a disposição do art. 3º da Lei de Execução Penal, segundo o qual “ao
condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença
ou pela lei”.
Igualmente importante à referência no sentido de que “o princípio da humanidade não se
limita a proibir a abstrata cominação e aplicação de penas cruéis ao cidadão livre”, mais do
que isso, o princípio da humanidade proíbe o aviltamento concreto da dignidade da pessoa
humana. Sob esse prisma, o cumprimento de pena nas penitenciárias brasileiras, facilmente
verificável pelas condições desumanas e indignas (fruto da omissão estatal), configuram
cristalina violação ao princípio da humanidade, cabendo a responsabilização estatal. Também
o Regime Disciplinar Diferenciado comporta latente violação ao princípio da humanidade,
dado o tratamento desumano e degradante ínsito ao isolamento forçado do preso.23
3. Princípio da Culpabilidade
O princípio da culpabilidade pode ser lido, em primeiro lugar, como uma resposta à
responsabilidade objetiva (fundada em uma mera associação causal entre a conduta e o
resultado de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico), na medida em que impõe a subjetividade
à responsabilidade penal.
Além disso, o princípio da culpabilidade inclui a questão da personalidade na responsabilidade
penal, da qual derivam, para Nilo Batista,24 duas consequências: a intranscendência e a
individualização da pena.
22 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 145.
23 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 30-31
24 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 104-105.
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Por intranscendência da pena entendemos a impossibilidade de a pena ultrapassar a pessoa
do autor do crime, o que implica afirmar que a responsabilidade penal é sempre pessoal (isto
é, a pena é intransmissível aos sucessores e à família do condenado).
Já a individualização da pena reflete “a exigência de que a pena aplicada considere
aquela pessoa concreta à qual se destina”. Exsurge, assim, a teoria da coculpabilidade (ou
corresponsabilidade), a qual trata de considerar, no juízo de reprovabilidade do ilícito-típico
(essência da categoria dogmática da culpabilidade),
[...] a concreta experiência social dos acusados, as oportunidades que se depararam e a assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do estado que vai impor-lhe uma pena.25
O instituto da coculpabilidade pode operar, no direito penal brasileiro, tanto como causa
supralegal de atenuação de pena quanto como causa supralegal de exculpação (inexigibilidade
de conduta diversa)26.
Voltando ao princípio da culpabilidade, expresso na fórmula “nulla poena sine culpa”, fica claro
que este expressa a proibição de punir pessoas sem os requisitos do juízo de reprovação.
Assim, de acordo com o estágio atual da teoria da culpabilidade, as seguintes circunstâncias
excluiriam o juízo de reprovação:
1. Pessoas incapazes de saber o que fazem (inimputáveis).
2. Pessoas imputáveis que, realmente, não sabem o que fazem porque estão em situação
de erro de proibição inevitável.
3. Pessoas imputáveis, com conhecimento da proibição do fato, mas sem o poder de
não fazer o que fazem porque realizam o tipo de injusto em contextos de anormalidade
definíveis como situação de exculpação27.
25 BATISTA, 2011, p. 105.
26 Para aprofundamento do tema, ver CARVALHO, Salo de. A corresponsabilidade do Estado nos crimes econômicos: fundamentos doutrinários e aplicabilidade judicial. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.). Política criminal contemporânea: criminologia, direito penal e direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
27 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 24.
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Sobre as circunstâncias suprarreferidas que excluem o juízo de reprovação (a culpabilidade), vale dizer que o princípio da culpabilidade não permite a punição de pessoas inimputáveis porque elas “são incapazes de compreender a norma ou de determinar-se conforme a compreensão da norma”. Entretanto, de acordo com Juarez Cirino dos Santos, “não proíbe a aplicação de medidas de segurança fundadas na periculosidade criminal de autores inimputáveis de fatos puníveis”, já que enquanto a relação culpabilidade pena tem natureza subjetiva, a relação periculosidade/medida de segurança teria natureza objetiva de proteção do autor (terapia) e da sociedade (neutralização) – segundo o discurso oficial da teoria jurídica das medidas de segurança28.
Em relação à proibição de punir pessoas imputáveis em situação de desconhecimento inevitável da proibição do fato, isso se daria porque “o erro de proibição inevitável exclui a possibilidade de motivação conforme a norma jurídica, que fundamenta o juízo de reprovação”. Por outro lado, nas situações em que o erro sobre a proibição da norma é evitável (por insuficiente reflexão ou informação do autor), é possível a punição, pois presente a culpabilidade29.
Já as situações em que o agente imputável realiza o injusto penal com conhecimento da proibição do fato, mas o realiza em situações de anormalidade sem o poder de não fazer o que fazem, não tem a sua culpabilidade perfectibilizada justamente pela exclusão ou redução
da exigibilidade de comportamento diverso30.
4. Princípio da Ofensividade ou Lesividade
O emprego do poder punitivo requer a completa satisfação do princípio da ofensividade
(nullum crimen sine iniuria), reconhecidamente um dos mais preciosos legados do pensamento
jurídico-penal liberal. Sob uma perspectiva dogmática, o princípio da ofensividade explicita
um modelo de crime traduzido na ofensa a interesses objetivos, correspondendo na lesão ou
exposição a perigo de bens jurídicos protegidos. É um princípio penal que se opõe, portanto,
“à simples violação objetiva do dever”31.
28 SANTOS, 2010, p. 25.
29 SANTOS, 2010, p. 25.
30 SANTOS, 2010, p. 25.
31 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 39-40.
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Condutas puramente internas (seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente), per si, são incapazes de legitimar a intervenção penal se ausente a efetiva ofensividade/lesividade a determinado bem jurídico.
Nilo Batista advoga quatro funções principais ao princípio da lesividade, quais sejam: (a) proibir a incriminação de atitudes interna: consistentes em desejos, aspirações, sentimentos etc.; (b) proibir a incriminação de conduta que não exceda o âmbito do próprio autor: verificáveis nos atos preparatórios ou simples conluio entre pessoas para cometer crime, quando não iniciada a execução, e ainda nas situações em que há autolesão. A conduta do usuário de drogas ilícitas seria um exemplo de autolesão, sob esse prisma, que não deveria ser objeto de incriminação; (c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais: implica dizer que o homem responde pelo que faz, não pelo o que ele é; (d) proibir a incriminação de condutas desviadas (desaprovadas socialmente) que não afetem qualquer bem jurídico: eis a função primordial do princípio da ofensividade/lesividade, relacionada à efetiva ofensa (dano ou perigo) a determinado bem jurídico32.
É possível inferir que o princípio da ofensividade (ou lesividade), tendo por objeto o bem jurídico determinante da criminalização, opera em uma dupla dimensão. Isto é, sob um viés qualitativo, em que tem por objeto a natureza do bem jurídico lesionado; e sob um viés quantitativo, no qual é apurada a extensão da ofensa ao bem jurídico33.
A partir do ponto de vista qualitativo, afirma-se que o princípio da lesividade impede a criminalização primária ou secundária que exclui ou reduz as liberdades constitucionais garantidas pela Constituição Federal sem qualquer restrição. No que trata do viés qualitativo, o princípio da lesividade atuaria no sentido de excluir a criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes a bens jurídicos34.
É de se destacar que o princípio da ofensividade dirige-se não apenas ao legislador, mas fundamentalmente ao intérprete, o qual, com a detida análise do caso concreto, poderá verificar a presença/ausência de efetiva lesividade ao bem jurídico protegido pela norma.
32 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 91 e ss.
33 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 26.
34 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 26.
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5. Princípio da Intervenção Mínima e da Fragmentaridade
Em que pese não esteja o princípio da intervenção mínima expressamente insculpido na
Constituição da República e no Código Penal, dito princípio é integrante da política criminal.
A rigor, a despeito de figurar como princípio da política criminal (dirigido ao legislador), o
princípio da intervenção mínima impõe-se também ao intérprete, enquanto princípio imanente
ao arcabouço jurídico dos estados de direito democráticos, interrelacionando-se com outros
princípios jurídico-penais35.
Do princípio da intervenção mínima é possível extrair o comando dirigido ao legislador e
ao intérprete segundo o qual “o direito penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos
imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente
protegidos de forma menos gravosa”. Nunca é demais lembrar que a sanção de natureza
penal é a que impõe as restrições mais gravosas aos direitos fundamentais. Por essa razão,
deve a intervenção penal ficar restrita a situações-limite, em que a sua aplicação se mostra
“absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade”36.
A ideia norteadora do princípio da intervenção mínima é a de que o direito penal é a ultima ratio do sistema normativo, o que implica dizer que “deve atuar somente quando os demais
ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do
indivíduo e da própria sociedade”37. O postulado da fragmentaridade advém da noção de que
nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo direito penal, assim como
nem todos os bens jurídicos são tutelados pelo direito penal. O qualitativo fragmentário traz
consigo a compreensão de que o direito penal “se ocupa somente de uma parte dos bens
jurídicos protegidos pela ordem jurídica”38.
35 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 85.
36 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 148.
37 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 54.
38 BITENCOURT, 2014, p. 55.
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6. Princípio da Proporcionalidade
Parte da doutrina sustenta a existência do princípio da proporcionalidade com um dos
postulados implícitos no art. 5º da Constituição da República. Dito princípio tem plena operação
na proibição de penas excessivas ou desproporcionais em face do desvalor da ação ou do
desvalor do resultado do crime. É um princípio que se desdobra em duas dimensões: abstrata
e concreta.
A dimensão abstrata é dirigida ao legislador, limitando a criminalização primária às hipóteses
de graves violações aos direitos humanos e delimitando a cominação de penas de um modo
a não extrapolar a natureza e extensão da ofensa ao bem jurídico. Juarez Cirino dos Santos
refere que
[...] a hierarquização das lesões de bens jurídicos é essencial para adequar as escalas penais ao princípio da proporcionalidade abstrata: por exemplo, penas por lesões contra a propriedade não podem ser superiores às penas por lesões contra a vida.
A dimensão concreta do princípio da proporcionalidade é dirigida ao juiz, a quem cabe o
equacionamento dos custos individuais e sociais da ação punitiva concreta, situada na
aplicação e execução da pena criminal39.
O princípio da proporcionalidade é constituído por três subprincípios, cujo emprego é sucessivo
e complementar: (a) o princípio da adequação (Geeignetheit); (b) o princípio da necessidade
(Erforderlichkeit), e; (c) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, denominado
também de princípio da avaliação (Abwägungsgebote)40.
Desse modo, o exercício de aplicação do princípio da proporcionalidade no direito penal pode
ser realizado com o emprego de três questionamentos, quais sejam: “a) a pena criminal é
um meio adequado (entre outros) para realizar o fim de proteger um bem jurídico?” Caso a
resposta à primeira indagação seja positiva: “b) a pena criminal é, também, meio necessário
(outros meios podem ser adequados, mas não seriam necessários) para realizar o fim de
39 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 28-29.
40 SANTOS, 2010, p. 27.
Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais
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proteger um bem jurídico?” Caso vencida a segunda pergunta, caberia ainda a derradeira
pergunta: “c) a pena criminal e/ou aplicada (considerada meio adequado e necessário, ao
nível da realidade) é proporcional em relação à natureza e extensão da lesão abstrata e/ou
concreta do bem jurídico?”41
Dito de outro modo, o princípio da proporcionalidade visa a garantir “um equilíbrio abstrato
(legislador) e concreto (judicial) entre a gravidade do injusto penal e a aplicação da pena”.
Não se deve confundir o princípio da proporcionalidade com a razoabilidade, embora ambos
tenham similitudes e estejam ligados a um outro em inúmeras oportunidades. Enquanto
reputa-se a origem germânica à proporcionalidade, a razoabilidade seria fruto de construção
jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana. De acordo com a concepção norte-
americana, “razoável é aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem,
contudo, representar excesso algum”42.
Para melhor explicitar a diferença, vejamos um exemplo da antiguidade. Enquanto a Lei de
Talião expressava, a sua maneira, um exemplo concreto de princípio da proporcionalidade
(com o famigerado olho por olho, dente por dente), o princípio da razoabilidade, na conformação
disposta acima, teria o condão de afastar a invocação do princípio da proporcionalidade,
justamente por representar um desmedido excesso (ou não razoável) na intervenção estatal43.
7. Breves Considerações Finais
O estudo que ora se encerra demonstra, em certa medida, o desatendimento constante
do direito penal brasileiro aos princípios básicos do direito penal. Das mazelas do sistema
carcerário, da produção legiferante à aplicação diária do direito penal, os princípios se fazem
presentes. Em inúmeros momentos são flagrantemente violados.
41 SANTOS, 2010, p. 27.
42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 68-69.
43 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 68-69.
Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais
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Cabe aos estudiosos do direito penal, com base na silenciosa e por vezes solitária ponderação,
persistir na busca por respostas aos problemas penais, tendo o vivaz conhecimento de que
seu papel social “não é o de querer transformar o mundo, mas, antes, o de o querer tornar
humanamente vivível”.44
44 COSTA, José de Faria. O fim da vida e o direito penal. In: Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 153.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
Qual princípio é representado pelo brocardo
latino “nullum crimen nulla poena sine lege”?
a) Proporcionalidade
b) Razoabilidade
c) Fragmentariedade
d) Culpabilidade
e) Legalidade
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
A aplicação de uma regra jurídica a um caso
concreto não regulado pela lei por meio de
um argumento de semelhança substancial
com os casos estabelecidos caracteriza a:
a) Equiparação
b) Analogia
c) Exegese
d) Hermenêutica
e) Costumes
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
A superlotação dos presídios brasileiros, o
descaso e o tratamento degradante e cruel
ferem o princípio da:
a) Legalidade
b) Lealdade
c) Razoabilidade
d) Humanidade
e) Realidade.
Verificaçãode leitura
Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais
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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
Qual o princípio que explicita um modelo de
crime traduzido na ofensa a interesses ob-
jetivos, correspondendo na lesão ou expo-
sição a perigo de bens jurídicos protegidos,
essenciais à convivência em sociedade?
a) Ofensividade
b) Razoabilidade
c) Boa-fé
d) Contraditório
e) Poder de Polícia
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
Qual princípio aponta que o direito penal
só deve atuar na defesa dos bens jurídicos
imprescindíveis à coexistência pacífica dos
homens e que não podem ser eficazmente
protegidos de forma menos gravosa?
a) Lesividade
b) Laicidade
c) Intervenção mínima
d) Aplicabilidade
e) Proporcionalidade
Verificação de Leitura
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Milano/Mursia: Cura di Renato Fabietti, 1973. Disponível em: <http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2015.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
CARVALHO, Salo de. A corresponsabilidade do Estado nos crimes econômicos: fundamentos doutrinários e aplicabilidade judicial. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.). Política criminal contemporânea: criminologia, direito penal e direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
COSTA, José de Faria. O fim da vida e o direito penal. In: Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
DOTTI, René Ariel. Princípios fundamentais do direito penal brasileiro. 2005. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11966-11966-1-PB.pdf>. Acesso em 20 jan. 2015.
KAUFMANN, Arthur. Analogia y naturaleza de la cosa. Hacia una teoria de la comprension juridica. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en America Latina (informe final). Buenos Aires: Depalma, 1986.
Referências
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Gabarito
Questão 1
Resposta: Alternativa E.
Resolução: A fórmula encontrada para evitar o arbítrio e os excessos consistiu em submeter
a intervenção penal a um rigoroso princípio da legalidade, traduzido pelo axioma latino “nullum crimen nulla poena sine lege”, segundo o qual “não pode haver crime nem pena que não
resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”.
Questão 2
Resposta: Alternativa B.
Resolução: A analogia está presente sempre que é atribuído a um caso que não dispõe de
regulamentação legal a regra prevista para um caso semelhante.
Questão 3
Resposta: Alternativa D.
Resolução: O cumprimento de pena nas penitenciárias brasileiras, facilmente verificável pelas
condições desumanas e indignas (fruto da omissão estatal), configura cristalina violação ao
princípio da humanidade, cabendo a responsabilização estatal.
Questão 4
Resposta: Alternativa A.
Resolução: O emprego do poder punitivo requer a completa satisfação do princípio da
ofensividade (nullum crimen sine iniuria), reconhecidamente um dos mais preciosos legados
do pensamento jurídico-penal liberal. É um princípio penal que se opõe, portanto, “à simples
violação objetiva do dever”. Condutas puramente internas (seja pecaminosa, imoral,
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escandalosa ou diferente), per si, são incapazes de legitimar a intervenção penal se ausente
a efetiva ofensividade/lesividade a determinado bem jurídico.
Questão 5
Resposta: Alternativa C.
Resolução: Nunca é demais lembrar que a sanção de natureza penal é a que impõe as
restrições mais gravosas aos direitos fundamentais. Por essa razão, deve a intervenção penal
ficar restrita a situações-limite, em que a sua aplicação se mostra totalmente necessária
para a manutenção da sociedade, neste sentido, se circunscreve o princípio da intervenção
mínima, essencial no Estado democrático de direito onde a liberdade é a regra.
Gabarito
LEGENDA DE ÍCONES seções
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Referências
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Glossário
Vamos pensar
Aula
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03
Teoria do Tipo PenalObjetivos
Caro aluno, neste texto você terá acesso as vicissitudes da teoria do fato punível, passando
pela evolução histórica da doutrina geral do fato punível, a concepção clássica, a concepção
neoclássica, a concepção finalista e por último o funcionalismo penal. Com relação a teoria
do tipo, você estudará o tipo, a tipicidade e as funções do tipo penal e detalhes a respeito do
tipo incriminador no fato punível. Seja bem vindo a esta excursão pela dogmática penal.
1. A Teoria do Fato Punível
A teoria do fato punível, também chamada teoria do delito ou teoria do crime, é o segmento
da dogmática penal que se ocupa dos pressupostos jurídicos gerais da punibilidade de uma
ação1. Justamente por ocupar-se dos pressupostos gerais, dir-se-á que a teoria do delito
estuda os elementos comuns a todos os fatos puníveis2.
O primeiro passo para obtermos êxito em nossa perquirição é a definição do nosso objeto
de estudo: a conceituação de fato punível (o crime). A rigor, o fato punível pode ser definido
por conceitos de natureza material, formal ou operacional. Nesse sentido, em sua vertente
material, é o fato punível compreendido como a lesão do bem jurídico protegido no tipo legal.
Uma definição formal o comportaria como a violação a uma norma penal. E, em sua definição
operacional, enquanto conceito analítico, o fato punível é decomposto de acordo com
categorias dogmáticas do tipo: crime é um fato típico, ilícito/antijurídico e culpável (exemplo
do modelo tripartite)3.
1 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4. ed. Tradução de José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 175.
2 A expressão fato punível, sob o prisma de uma concepção liberal, somente pode ser apreendida enquanto sinônimo de ofensa a bens jurídicos. Conferir DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 4, n. 2. p. 152, abr./jun. 1994.
3 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 71-72.
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Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
As definições operacionais do fato punível atendem, com efeito, a uma necessidade de
conferir maior segurança jurídica aos casos concretos, mediante a fixação de elementos
gerais, permitindo com isso um lastro de objetividade e racionalidade na análise do delito4.
A exigência de analisar os elementos estruturantes de cada crime e de colocá-los sob uma
ordem lógico-sistemática é parte essencial do estudo científico da dogmática penal.
Tomando como correta a expressão de que cada elemento do crime é pressuposto
indispensável para a aplicabilidade da pena no caso concreto,5 o crime poderia, então, ser
expresso por uma fórmula matemática do tipo: se estão presentes a + b + c, etc., há crime e,
portanto, é possível a aplicação de uma pena6.
Sob um ponto de vista meramente formal, todas as categorias estruturais do crime (tipicidade,
ilicitude/antijuridicidade e culpabilidade) se colocam no mesmo plano, em pé de igualdade.
Entretanto, se o questionamento se dirige à função exercida por cada uma dessas categorias
estruturantes do crime, as respostas passam a ser necessariamente diferentes7.
A dogmática penal contemporânea não trabalha com um modelo analítico estanque. Pelo
contrário, desde o século XIX, a doutrina penalística vem desenvolvendo distintos modelos
analíticos de crime, de modo que é possível falar, nos dias atuais, nos modelos bipartite,
tripartite e, até mesmo, no modelo quadripartite. Para bem situar o leitor, discorreremos
sobre a evolução histórica da doutrina geral do fato punível, de acordo com as concepções
que permearam a história recente do direito penal, a saber: concepção clássica, neoclássica
e finalista.
4 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4. ed. Tradução de José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 175.
5 BELING, ErnstLudwig von. Die Lehre vom Verbrechen. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebck), 1906, p. 74 apud MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. Le norme penali: Fonti e limiti di aplicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica. 3. ed. Milano: Giuffrè Editore, 2001. p. 617.
6 SCHWINGE, Erich; ZIMMERL, Leopols. Wesensschau und konkretes Ordnungsdenken im Strafrecht, Bonn: Ludwig Rohrscheid, 1937. p. 33.Apud MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. Le norme penali: Fonti e limiti di aplicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica. 3. ed. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 617.
7 MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. Le norme penali: Fonti e limiti di aplicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica. 3. ed. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 617.
62
2. Evolução Histórica da Doutrina Geral do Fato Punível
2.1. Concepção Clássica
A base da concepção clássica de delito, defendida na Alemanha desde a segunda metade
do século XIX, era o conceito de ação – entendida esta por ErnstLudwig von Beling e Franz
von Liszt de maneira totalmente naturalística como “movimento corporal (ação em sentido
estrito) e modificação do mundo exterior (resultado)”, unidos pelo vínculo da causalidade –
(teoria da equivalência)8.
A autonomia do conceito de tipo adveio com a obra Die Lehre vom Verbrechen de Beling,
quando então foi erigida como uma categoria desprovida de conteúdo, neutra, com função de
mera descrição formal da conduta criminosa9. Havia uma clara distinção entre a tipicidade e a
antijuridicidade, de modo que a simples correspondência de conduta ao tipo legal já bastava
para tornar a conduta típica10. O tipo cumpria um papel de indiciador da antijuridicidade (ratio cognoscendi).
A concepção clássica sofreu forte influência do naturalismo imiscuído no pensamento
científico no início do século XIX. O pensamento naturalista queria submeter às ciências do
espírito o ideal de exatidão e completude típico das ciências naturais. Por corolário, o direito
penal – mais propriamente a teoria do fato punível – foi levado a absorver componentes que
pudessem ser mensuráveis e empiricamente verificáveis11. Todos os problemas do direito
seriam comportados pelo direito positivo e sua exegese era mediada por conceitos limitados,
perceptíveis aos sentidos. As valorações filosóficas, os conhecimentos psicológicos e os
dados sociológicos ficariam excluídos da dogmática jurídica12.
8 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993. p. 182.
9 Ver BELING, ErnstLudwig von. El rector de los tipos de delito (Die Lehre vom Tatbestand). Trad. L. Prieto Castro e J. Aguirre Cárdenas. Madrid: Editorial Reus, 1936. p. 14 e ss.
10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 340.
11 ROXIN. Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 200.
12 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993. p. 183.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
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Uma vez afirmada a ação13, o próximo passo consistia no exame da concorrência da tipicidade,
antijuricidade e culpabilidade. Na concepção clássica, a parte objetiva do tipo (o tipo objetivo)
refletia-se nos elementos da tipicidade e da antijuridicidade, enquanto a parte subjetiva do
tipo (tipo subjetivo) era o lugar da culpabilidade14.
Explica-se: conforme Beling, “para a comprovação de que uma ação tenha ocorrido, bastava
a certeza de que o autor agiu voluntariamente ou permaneceu sem agir. O que o agente
pretendia é, aqui, indiferente.” O conteúdo da vontade só tinha significado, só importava,
quando da análise da culpabilidade.15
De acordo com essa divisão, o tipo restou desprovido de qualquer dimensão valorativa.
Consistia apenas numa descrição puramente externa de realização da ação. A valoração
jurídica do fato somente tinha efeito no plano da antijuridicidade. Como exemplo, Jescheck16
afirma que se um soldado matasse uma pessoa em uma situação de guerra, a justificativa da
ação somente se daria na análise da antijuridicidade. O evento, na perspectiva clássica, seria
um fato tipicamente justificado e não fato atípico. A presença da tipicidade era indiciária da
ilicitude/antijuridicidade (ratio cognoscendi)17.
Em síntese, a ação (movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior)
se tornaria ação típica sempre que possível sua subsunção lógico-formal a um tipo legal de
crime. Não se cogitava, até aqui, a existência de qualquer atributo no tipo dirigido a valores
e a sentidos. A ação típica tornar-se-ia ilícita no caso de ausência de alguma causa de
justificação (legítima defesa, estado de necessidade etc.). Caso se fizesse presente alguma
13 A ação em Liszt recebe a seguinte configuração: “Ação é, pois, o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. Sem ato de vontade não há ação, não há injusto, não há crime: cogitationis poenam nemo patitur. Mas também não há ação, não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior, sem um resultado”. (LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Traduzido e comentado por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet e C., 1899. p. 193.)
14 JESCHECK, op. cit., p. 182.
15 BELING, Ernst. Grundzüge des Strafrechts, Tübingen, J. C. B. Mohr, 8.ed, 1925, p. 20 e ss. Apud AMBOS, Kai. Da “teoria do delito” de Beling ao conceito de delito no direito penal internacional. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (Coord.). Direito penal na atualidade: escritos em homenagem ao Professor Jair Leonardo Lopes. Alberto Silva FRANCO, Daniela de Freitas MARQUES. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 122.
16 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 182.
17 Ibid., p. 182.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
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causa de justificação, a ação típica seria, então, lícita e permitida pelo direito. Eis a vertente
objetiva do fato punível (crime): tipicidade e antijuridicidade18.
Por sua vez, a vertente subjetiva do fato punível vinha concentrada na categoria da
culpabilidade. A ação típica e ilícita seria também culpável sempre que possível comprovar
a relação entre os processos espirituais e psicológicos que se desenvolviam no interior do
agente imputável e o fato delituoso. Daí a razão pela qual a categoria da culpabilidade tenha
ficado marcada na concepção clássica pelo seu aspecto psicológico. Poderia recair sobre o
agente a imputação a título de dolo (quando presente o conhecimento e a vontade de realizar
o fato) ou a título de negligência19. O dolo e a imprudência eram compreendidos como formas
ou classes de culpabilidade20.
Crítica. Vários foram os problemas levantados na concepção clássica que mereceram
posterior reparo. O conceito causal da ação, elaborado a partir de seus três elementos
básicos (conduta humana, voluntariedade e modificação do mundo exterior), não era capaz
de absorver o fenômeno omissivo.
A crítica trazida à tipicidade clássica circunscreve-se na redução desta a uma mera operação
lógico-formal de subsunção, descartando “as unidades de sentido social” que estão presentes
nos tipos. De modo que teriam, conforme Jorge de Figueiredo Dias, que ser igualadas como
típicas tanto a ação do cirurgião que salva a vida do paciente quanto a do sujeito que, por
vingança, esfaqueia a sua vítima21.
No mesmo sentido, a redução do juízo de ilicitude à ausência de uma causa de justificação
configuraria também uma compreensão simplista e mesmo inexata do que se deve entender
por contrariedade à ordem jurídica22.
18 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 240.
19 Ver DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 240.
20 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 183.
21 DIAS, op. cit., p. 241.
22 Ibid., p. 241.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
65
Na concepção estritamente psicológica da culpabilidade, houve problemas de variados matizes,
como: (i) o esquecimento de que também o inimputável pode atuar com dolo ou negligência;
(ii) na negligência inconsciente – em que não há previsão do resultado – não existe qualquer
relação psicológica entre o agente e o fato; (iii) o esquecimento de que situações como a
falta de consciência da ilicitude ou de inexigibilidade de outro comportamento também são
suscetíveis de excluir a culpa23.
2.2. Concepção Neoclássica
A concepção clássica de delito de Franz von Liszt e Ernst von Beling foi logo submetida a
algumas transformações. Não se tratou, com efeito, de um giro copernicano, senão de uma
reforma que visava adequar a estruturação do delito segundo os fins perseguidos pelo direito
penal (teoria teleológica do delito)24.
Sob a influência da teoria do conhecimento do neokantismo – que buscou apartar-se do
naturalismo ao devolver um fundamento autônomo às ciências do espírito25, lançou-se mão
de um método próprio de compreensão e valoração. O direito penal voltou-se, pelo impulso
de nomes como Gustav Radbruch, Max Ernst Mayer e Edmund Mezger, a uma orientação de
valores e ideais26.
A reforma começou pelo conceito de ação, o qual, em sua acepção clássica, encontrava
dificuldades de sustentação, dada a primazia alcançada pelos valores na nova sistemática
penal. Desse modo, os exageros naturalistas foram, de certo modo, substituídos pela ideia
de relevância social, em que pese a ação tenha continuado a ser concebida como um
23 Ibid., p. 241.
24 JESCHECK, Hans-Heinrich.Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993. p. 184.
25 ROXIN. Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 200.
26 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo: estudos sobre o direito penal no nacional-socialismo. 4. ed. Trad. Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 2.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
66
“comportamento humano causalmente determinante de uma modificação do mundo exterior
ligada à vontade do agente”27.
Na seara da tipicidade é que houve mudanças de maior vulto. À preocupação meramente
naturalística presente na concepção clássica somaram-se elementos normativos, os quais
somente resultariam aplicáveis pelo conteúdo valorativo atribuído pelo juiz28. Ademais, mais
do que a descrição formal de comportamentos, a tipicidade passou a ser materialmente
informada enquanto comportamento lesivo a bens jurídicos protegidos29 ou mesmo lesivo a
qualquer situação estatal de conveniência, não havendo ainda uma referência real acerca do
objeto de tutela (prevalência dos objetivos visados pelo legislador)30.
Essa segunda fase da teoria do tipo teve forte influência do Der Allgemeiner Teil des deutschen Strafrechts, de Max Ernst Mayer, momento no qual a construção do tipo absorveu elementos
normativos (como coisa alheia nos crimes contra o patrimônio; documento, nos crimes de
falsidade etc.). Indicativo do início de uma subjetivação na construção do tipo, com elementos
que implicavam necessariamente em juízos de valor. Era a derrocada do conceito de tipo
meramente descritivo de Beling31.
O Tratado de Edmund Mezger, em 1931, inaugurou uma nova conformação da teoria do tipo.
Com a difusão de um modelo bipartido de delito, Mezger passou a sustentar que a tipicidade
era muito mais do que um indiciador da antijuridicidade (ratio cognoscendi), senão o próprio
fundamento desta (ratio essendi)32. Daí o porquê de os modelos de estruturação bipartite
27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 242.
28 JESCHECK, op. cit., p. 186. Ilustrando a nova conformação da tipicidade, Jescheck nos traz o seguinte exemplo: “Na faculdade de Direito, se um estudante toma pela tarde um livro para devolvê-lo no dia seguinte, depois de usá-lo, falta o ânimo de apropriação e com ele o tipo de furto. A admissão de um conceito de furto puramente objetivo e que prescinda do ânimo de lucro é absurda, porque somente realiza o injusto típico de furto quem persegue a lesão do patrimônio alheio, e não quem unicamente planeia uma privação temporal da possessão. Por isso, o ânimo de expropriação pertence ao tipo de furto e não tão somente à culpabilidade.”
29 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 243.
30 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 135.
31 Ibid., p. 135-136.
32 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 342.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
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preconizarem a união das categorias da tipicidade e da antijuridicidade, tratando-se, pois, de
um ilícito-típico. Entretanto, a doutrina sempre esteve (e ainda continua) dividida entre a ratio cognoscendi e a ratio essendi.
Na área da antijuridicidade, a mudança de norte se deu com a adoção da noção de danosidade social. Prescinde-se, nessa perspectiva, do entendimento anterior de Binding, segundo o
qual a antijuridicidade continha tão só um significado formal de infração à norma jurídica33.
A noção de danosidade social tornou explícita a necessidade de existir, no juízo de ilicitude,
uma contrariedade material do fato à ordem jurídica.
Em se tratando da culpabilidade, a concepção neoclássica deve a Reinhard von Frank os
novos contornos dados pelo chamado “conceito normativo da culpabilidade”, traduzido pelo
juízo de censurabilidade dirigido ao agente do crime. Houve o enriquecimento e diversificação
de seus elementos constitutivos, agora consubstanciados na imputabilidade; o dolo e a
negligência como formas ou graus de culpabilidade; e a exigibilidade de conduta conforme o
direito34.
Crítica. As principais críticas ecoadas à concepção neoclássica – a despeito da patente
evolução quando comparada à concepção clássica, principalmente por ter agregado elementos
subjetivos ao tipo e à ilicitude – cingem-se na manutenção do conceito mecânico-causalista
da ação e no equívoco de manter unidos na culpabilidade tanto a valoração do fato (o juízo
de censura) como o objeto da valoração (o dolo e a culpa), gerando um corpo heterogêneo
incompatível com um “puro juízo de (des)valor” que se intentou conferir à culpabilidade35.
Essas inconsistências abririam espaço para o surgimento da concepção finalista.
33 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993. p. 186.
34 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 243.
35 Ibid., p. 244.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
68
2.3. Concepção Finalista
A concepção finalista do fato punível, elaborada por Hans Welzel, visava superar o
pensamento abstrato e o relativismo valorativo que advinha do pensamento neokantista e
que não foi capaz de evitar o uso arbitrário e político do direito penal no regime nacional-
socialista e no fascismo36. Welzel esforçou-se na elaboração de estruturas lógico-objetivas
anteriores a toda configuração jurídica, em uma tentativa de ancorar o direito penal em uma
base ontológica, voltada à natureza das coisas37.
Houve no finalismo a manutenção do conceito de ação como eixo central da teoria do fato
punível, de modo que uma das principais inovações trazidas pelo finalismo foi o acréscimo do
conceito de finalidade à ação. O indivíduo, com a ajuda de seu saber causal prévio, poderia
dominar os acontecimentos e dirigir o seu atuar conforme um plano para alcançar a sua
meta38. Assim, a ação humana nada mais é do que uma supradeterminação final de um
processo causal39.
Uma primeira consequência dessa nova conformação da ação foi a de que o dolo deixou
de figurar como elemento da culpabilidade e passou a conformar um elemento essencial da
tipicidade. O tipo, a partir do finalismo, passou a ser constituído por uma vertente objetiva e
por uma vertente subjetiva40.
A vertente objetiva do tipo (tipo objetivo) compreende a manifestação exterior da vontade
(a própria ação delituosa) e todas as características que o legislador reputou fundamentais
à identificação do delito (o objeto de tutela – a vida, por exemplo; circunstâncias relativas à
autoria; à vítima; ao tempo, lugar, meio e modo de execução da ação; ao resultado, se houver
36 Ibid., p. 244. A esse respeito, importante referir que parte da doutrina refuta a ligação entre o neokantismo e o direito penal nazista. Na verdade, o direito penal do nacional-socialismo teria sido chancelado por construções procedidas pela Escola de Kiel, que tinha em Georg Dahm e Friedrich Schaffstein seus fundadores.
37 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 190.
38 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina finalista da ação. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 27.
39 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 245.
40 Ibid., p. 245.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
69
etc.). A vertente subjetiva do tipo (tipo subjetivo) é composta pelo dolo, enquanto elemento
subjetivo geral, e de outros elementos subjetivos especiais existentes em determinados
crimes (intenções, tendências, percepções)41.
Nos delitos negligentes, como não há vontade de realização, o tipo é composto pela ação
contrária às normas de cuidado, estabelecidas no âmbito da verificação concreta do resultado
advindo da conduta proibida42. A estruturação dos delitos negligentes corresponde à: (i)
violação de um dever objetivo de cuidado; (ii) resultado; (iii) nexo causal, e; (iiii) previsibilidade
e evitabilidade.
Já os delitos omissivos derivam de uma norma de comando ou determinação. Desse modo,
o elemento essencial para a realização típica “é a infração ao dever de agir ou de impedir o
resultado proibido”43. Desse modo, o tipo omissivo finalista é composto da infração ao dever
de agir. Verificar-se-á um crime omissivo próprio quando praticada a omissão diretamente
prevista no tipo penal (omissão de socorro do art. 135, do CP, por exemplo) e um crime
omissivo impróprio quando o garante (sujeito que detém uma relação especial de proteção ao
bem jurídico, indicadas no art. 13, § 2º, do CP) omitir-se na tentativa de impedir o resultado.
Na seara da ilicitude, Welzel afirma que “a antijuridicidade é sempre a reprovabilidade de um
fato referido a um autor determinado. O injusto é injusto da ação referido ao autor, é injusto
pessoal”44.
A concepção de culpabilidade sustentada no finalismo atende finalmente a critérios estritamente
normativos, constituindo-se da imputabilidade, exigibilidade de conduta conforme a norma e
a potencial consciência da ilicitude45. É na culpabilidade o lugar em que será feita a análise
se o autor podia satisfazer as exigências do direito, bem como será lançada sobre o autor a
41 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 137-138.
42 Ibid., p. 137-138.
43 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 140-141.
44 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina finalista da ação. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 74.
45 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 246.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
70
reprovabilidade pessoal por ter obrado em desconformidade com o direito nas situações em
que tinha plenas condições de um atuar conforme46.
Crítica. Dentre as principais críticas que se dirigem ao finalismo está no “pretenso ontologismo
que estaria na base do sistema” e que, por isso, tornaria esse sistema imutável e válido para
todos os tempos e lugares. Disso resultou uma intransigência que de pronto desembocou
num “inflexível conceitualismo”. Tudo se reduziria na determinação das estruturas lógico-
materiais imanentes aos conceitos utilizados pelo legislador para, então, deduzir as soluções
adequadas ao caso concreto47.
Ademais, mesmo a determinação finalista do conceito de ação sofreu irrefreáveis
questionamentos na medida em que estudos advindos da Biologia vinham assentando que
também os animais, ou ao menos alguns animais, “antecipam fins e escolhem os meios para
os alcançar com a sua ação!”48. A supradeterminação final de um processo causal, afirma
Jorge de Figueiredo Dias, é tão estranha a sentidos e valores quanto o conceito causal de
ação que a concepção finalista intentou superar49.
Destaca-se, de todo modo, o acerto da concepção finalista quando adianta que todo o ilícito é
ilícito pessoal, dele fazendo parte o dolo (representação e vontade de realização de um fato)
e a negligência (violação do cuidado objetivamente imposto)50.
46 WELZEL, op. cit., p. 87.
47 DIAS, op. cit., p. 246.
48 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 247. Ver PORTMANN, Adolf. Zoologie und das neue Bild des Menschen, 1956.
49 DIAS, op. cit., p. 247.
50 Ibid., p. 247.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
71
2.4. Funcionalismo PenalO desenvolvimento do sistema racional-final teleológico ou funcional do direito penal
remonta à década de 197051. Esse sistema foi gestado com a clara finalidade de contrapor a
teoria finalista, então hegemônica, de Hans Welzel – que partia de vinculações ontológicas
prévias (ação, causalidade, estruturas lógico-reais etc)52. Para a doutrina funcionalista, a
formação do sistema jurídico-penal deve nortear-se única e exclusivamente pelas finalidades
do Direito Penal53.
Os autores funcionalistas, dentre os quais Claus Roxin, são ferrenhos defensores da inserção
da política criminal como mola mestra do direito penal, como fica claro em suas palavras:
De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema penal (...). Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (Kriminalpolitische Zweckmäßigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que o Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis (...).54
No que tange à estruturação analítica do crime, as categorias do fato punível passam a
ser: ação, tipo (Tatbestand), injusto (Unrecht) e responsabilidade (Verantwortlichkeit). Há
importantes modificações no conteúdo de cada categoria, de modo que cada uma terá na
sua função político-criminal a sua pedra de toque, é dizer, será “observada, desenvolvida e
sistematizada sob o ângulo de sua função político-criminal”55.
51 Um primeiro esboço do desenvolvimento da teoria funcionalista foi oferecido por Roxin na obra Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, em 1970. Esses escritos precederam o posterior desenvolvimento que seria desencadeado por Schünemann em 1984, com a obra “El sistema moderno del DP”. (ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997. p. 203. Nota nº 30.)
52 Houve no finalismo penal, enquanto sistematização que visava a superar a concepção neoclássica de delito, o resgate do conceito de ação como eixo central da teoria do delito. Mas a principal inovação trazida pelo finalismo foi o acréscimo do conceito de finalidade à ação. O indivíduo, com a ajuda de seu saber causal prévio, pode dominar os acontecimentos e dirigir o seu atuar conforme um plano para alcançar a sua meta. (WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina finalista da ação. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 27.) No finalismo, o dolo deixou de ser normativo e integrante da culpabilidade para juntar-se ao tipo. Houve então o incremento do elemento subjetivo dolo à tipicidade, o que, sob certo aspecto, contribuiu para que o dolo se confundisse com a “ação finalisticamente orientada a determinado fim”.
53 ROXIN. Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 203.
54 Id. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2000. p. 20.
55 Ibid., p. 29.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
72
Surge, na doutrina de Claus Roxin, o denominado conceito pessoal da ação:
[...] um homem terá atuado se determinados efeitos procedentes ou não do mesmo podem lhe ser atribuídos como pessoa, ou seja, como centro espiritual de ação, podendo-se falar em um fazer ou deixar de fazer e com isto de uma manifestação da personalidade.56
O autor complementa sua definição sustentando que todas as manifestações que não são
dominadas ou domináveis pela vontade e consciência não podem ser consideradas pelo
rótulo de ação57. Ainda assim, consigna que as ações dolosas e negligentes58, assim como
as omissivas (incluídas as omissivas por imprudência inconsciente) são manifestações da
personalidade imputáveis ao sujeito como infração à norma59.
Com relação ao tipo (Tatbestand), Roxin pondera que o tipo encontra-se no campo de tensão
entre o fim e a precisão da lei60. Reforça o autor que a elaboração dos tipos penais é o espaço,
por excelência, de decisões político-criminais61. Todo o tipo deve ser interpretado de acordo
com o fim da lei, de modo que abarquem completamente as condutas legalmente proibidas62.
O tipo penal segue dividido em tipo objetivo (considerações afetas ao sujeito ativo, a descrição
típica, resultado – se houver etc.) e tipo subjetivo (dolo e outros elementos subjetivos
56 Id. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 218.
57 Ibid., p. 252.
58 Ao longo do trabalho, adotamos o qualificativo negligente e crimes negligentes quando estivermos a falar sobre ações e crimes usualmente determinados pela doutrina pátria como culposos. Seguimos a terminologia adotada por TAVARES, Juarez. Direito penal da negligência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 128.
59 ROXIN. Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 255.
60 Ibid., p. 218. No tipo teleológico-funcional de Roxin, a ação passa a ser valorada a partir da necessidade abstrata de pena, ou seja, deixa de ser objeto de análise a pessoa do sujeito e a concreta situação da atuação. O fim político-criminal da cominação legal abstrata é preventivo-geral, o que significa dizer quando se acolhe determinada conduta a um tipo isso ocorre porque se pretende motivar o indivíduo a se abster de realizar a conduta descrita (ou, nos casos dos delitos omissivos, se quer que o indivíduo realize a conduta ordenada).
61 Aliás, Winfried Hassemer (in: Die deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausende. Rückbesinnung und Ausblick, org. por Eser/Hassemer/Burkhardt, 2000, p. 41.) denuncia a impenetrabilidade do discurso jurídico-científico germânico na elaboração das leis penais, apudD’AVILA, Fabio Roberto. Os limites normativos da política criminal no âmbito da “ciência conjunta do direito penal”. Algumas considerações críticas ao pensamento funcional de Claus Roxin. Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, Gießen, v. 10, p. 486, 2008.
62 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006. p. 218-219.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
73
adicionais ao dolo)63. Entretanto, soma-se ao tipo penal a teoria da imputação ao tipo objetivo.
Para adentrarmos a teoria da imputação ao tipo objetivo, diferenciemos, antes, as questões
relativas à causação do resultado e à imputação do resultado.
Para o preenchimento integral do tipo é necessário verificar não apenas se foi produzido um
resultado (causação), mas se esse resultado pode ser atribuído pessoalmente a alguém64.
Por isso, a reconstrução analítica do tipo objetivo tem por objeto primeiro a determinação
da relação de causalidade entre a ação e o resultado (processos naturais de determinação
causal). No direito penal, a doutrina aplica o método da teoria da equivalência das condições
e, também, a teoria da adequação65. O segundo objeto da reconstrução analítica do tipo
objetivo consiste em definir o resultado como realização do risco criado pelo autor (portanto,
imputável a um autor como obra sua). A imputação do resultado é um “processo valorativo
de atribuição típica”, implicando a aplicação dos postulados da teoria da elevação do risco de
Claus Roxin66.
Dito de outro modo, após a verificação de que determinada conduta é idônea para a produção do
resultado (utiliza-se para isso a teoria da equivalência das condições e a teoria da causalidade
adequada), passa-se à análise da imputação objetiva do resultado, ou seja, o resultado só
63 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997, p. 302 e ss.
64 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 322.
65 A teoria da equivalência da condições é, no direito penal, o principal método de determinação das relações causais. Dita teoria pode ser reduzida, conforme Juarez Cirino dos Santos, a dois conceitos centrais: “(a) todas as condições determinantes de um resultado são necessárias – por isso, são equivalentes no processo causal; (b) causa é a condição que não pode ser excluída hipoteticamente sem excluir o resultado.” Por essa teoria, a causa pode ser traduzida como a conditio sine qua non do resultado, ou seja, condição sem a qual não existiria o resultado. (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 115 e ss.) A teoria da adequação (ou teoria da causalidade adequada), enquanto critério complementar da teoria das condições equivalentes, afirma que “a imputação penal não pode nunca ir além da capacidade geral do homem de dirigir e dominar os processos causais”, isto é, somente as condições idôneas para produzir o resultado, segundo as máximas de experiência, são passíveis de valoração jurídica da ilicitude. (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 328.) Ilustra-se com o seguinte exemplo: o sujeito A persuade o sujeito B a viajar de avião e o avião cai matando o persuadido. Não constitui causa adequada para a morte da vítima a conduta do sujeito A, a menos que tivesse conhecimento da existência de problema que levaria à queda do avião (sequestrador suicida, bomba, etc).
66 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 6. ed., rev., ampl. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014, p. 116.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
74
pode ser imputável à conduta do autor quando sua conduta “tenha criado (ou aumentado, ou
incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo e esse risco tenha se materializado no resultado típico”67. Caso não se verifique qualquer dessas condições, a
imputação deve ser excluída. A teoria da imputação ao tipo objetivo pertence, como o próprio
nome antecipa, ao tipo objetivo e foi a principal inovação do funcionalismo penal à teoria do
tipo68.
Não há modificações no que corresponde à vertente subjetiva do tipo. Segue o tipo subjetivo, sendo constituído pelo dolo – nas suas diversas classificações (dolo direto de primeiro grau,
dolo direto de segundo grau e dolo eventual) – e demais elementos subjetivos especiais
(intenções, tendências, percepções).
No plano do injusto (Unrecht), há a reunião das categorias ação, da tipicidade e da
antijuridicidade. Assim como o tipo acolhe dentro de si a ação (somente ações podem ser
típicas), o injusto acolhe a ação e o tipo (somente ações típicas podem ser um injusto penal)69.
É na categoria do injusto que a ação típica concretamente produzida será avaliada conforme
os critérios da autorização e da proibição70.
Na categoria da responsabilidade (Verantwortlichkeit), encontram-se os critérios da
culpabilidade do sujeito mais a noção de necessidade preventiva – geral ou especial –
da sanção penal. O conjunto culpabilidade (+) necessidade compõe, neste desiderato, a
responsabilidade penal pessoal que desencadeia a pena criminal71. Na responsabilidade, o
67 DIAS, op. cit., p. 331-332.
68 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997. p. 305.
69 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997, p. 219.
70 Id. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal.Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2002, p. 235.
71 Id. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997, p. 204.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
75
interesse político-criminal deixa de ter por objeto o fato, dirigindo-se diretamente ao autor,
uma vez que o questionamento passa a ser a respeito da “necessidade individual de pena”72.
Eis um esboço da estrutura do fato punível na teoria funcionalista moderada de Claus
Roxin. Existem outras vertentes do funcionalismo, como a desenvolvida por Günther Jakobs
– denominada funcionalismo radical –, mas que não será objeto de considerações nesse
estudo.
3. Modelos de Estruturação Analítica do Crime
A doutrina penal trabalha com inúmeros modelos de estruturação do fato punível. Seguem
os principais:
Modelo bipartite. O crime é formado por duas categorias: o tipo de injusto (ou tipo de ilícito)
e a culpabilidade (ou tipo de culpa). É na categoria do tipo de injusto que a ação típica
concretamente produzida será avaliada conforme os critérios da autorização e da proibição,73
o que implica dizer que as excludentes da ilicitude integram essa categoria. Daí falar-se não
de uma divisão categorial entre tipo penal e ilicitude, mas já de um ilícito-típico, construção
albergada no fato de que “o tipo é só uma emanação concretizada de uma ilicitude que
o precede e o fundamenta”, em que se assenta a paradigmática expressão de Hardwig,
segundo a qual “sem ilicitude não há tipo”74. Já o conceito de culpabilidade, tendo adquirido
já relativo consenso, está ligado à capacidade penal, a potencial consciência da ilicitude e à
exigibilidade de comportamento diverso75.
De acordo com o modelo tripartite, os conceitos de tipo e ilicitute/antijuridicidade são
autônomos, exercendo cada qual função inconfundível entre si. Vejamos, o tipo legal é a
72 Id. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal.Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2002, p. 241-242.
73 ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal.Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2002, p. 235.
74 DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 95.
75 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 73.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
76
descrição das condutas penalmente proibidas, enquanto a ilicitude/antijuridicidade é a valoração
negativa concreta, excluída nas justificações (legítima defesa, estado de necessidade etc).
Assim, quando o sujeito realiza um tipo penal sob o pálio da legítima defesa, por exemplo,
está realizando uma ação típica justificada e não uma ação atípica76. O sistema tripartido
define o crime, portanto, como ação típica, antijurídica e culpável.
Há ainda o modelo quadripartite, ao qual se acrescenta uma quarta categoria à definição
analítica do crime: a punibilidade (ligada a um juízo de oportunidade para aplicar a pena no
caso concreto). A lógica que sustenta a punibilidade na estrutura do crime seria a existência
de um espaço reservado a ulteriores escolhas político-criminais acerca da oportunidade de
uma efetiva punição, podendo o legislador cumprir diretamente ou indiretamente – atribuindo
esse relativo poder ao juiz77. No art. 181 do Código Penal, teríamos um exemplo da categoria
da punibilidade, na medida em que não se aplica qualquer pena ao sujeito que pratica o
crime de furto contra cônjuge, ascendente ou descendente. O instituto do perdão judicial (art.
121, § 5º, CP), causas supervenientes de não punibilidade (retratação nos crimes contra a
honra, anistia, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo etc.) seriam também uma
ressonância da categoria da punibilidade. A corrente que sustenta o modelo quadripartite é
minoritária.
4. Teoria do Tipo
4.1 Tipo, tipicidade e funções do tipo penal
De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, “tipo é o conjunto dos elementos do fato punível
descrito na lei penal,” compreendendo a descrição dos elementos identificadores da conduta
penalmente proibida78. Dito noutras palavras, tipo penal é a descrição legal do fato punível
ou da conduta proibida. “Matar alguém” é assim o tipo penal de homicídio (art. 121, do CP).
76 Ibid., p. 75.
77 MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. Le norme penali: Fonti e limiti di aplicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica. 3. ed. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 653.
78 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 344-345.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
77
1. Elementos do tipo. Cada tipo penal é possuidor de elementos próprios que o distingue
de outros. Os tipos penais podem ser compostos por elementos descritivos, normativos ou
subjetivos.
Os elementos descritivos são aqueles que são apreensíveis facilmente sem a exigência de
juízos de valor. São elementos que referem realidades materiais que fazem parte do mundo
exterior, podendo ser captadas de forma imediata, sem necessidade de valoração. São
ainda considerados elementos descritivos aqueles em que, embora exijam alguma atividade
valorativa, prepondera a dimensão naturalística79. São exemplos a pessoa (art. 135), casa
(art. 150), estrada de ferro (art. 260) etc.
Os elementos normativos são aqueles que, para serem conhecidos, exigem a pressuposição
de uma norma ou de um juízo de valor, não se limitando à descrição do natural. As expressões
“fútil” (art. 121, § 1º), “alheio” (art. 155 e 157), ato obsceno (art. 233), documento (art. 153),
dentre outras, são exemplos de elementos normativos.
Os elementos subjetivos do tipo “são dados ou circunstâncias que pertencem ao campo
psíquico-espiritual e ao mundo de representação do autor”80. São exemplos o dolo (presente
em todos os crimes dolosos) e algumas finalidades específicas presentes apenas em alguns
tipos penais (por exemplo: “com o fim de obter para si ou para outrem” do art. 159, do CP;
“para si ou para outrem” no art. 155, do CP, dentre outros).
2. Tipicidade. A tipicidade é o juízo de adequação do fato ao tipo penal. Não há de se confundir,
portanto, tipo com tipicidade. Enquanto este o tipo é a descrição legal da conduta proibida,
a “tipicidade é a conformação do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente
descrita na lei penal”81. Quando não é possível proceder a essa referida adequação, significa
que a conduta é atípica.
79 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 288.
80 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 350-351.
81 Ibid., p. 346.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
78
O juízo de adequação típica pode se operacionalizar de modo imediato ou mediato. A
adequação típica imediata ocorre quando o fato conforma-se imediatamente ao tipo legal, sem
a necessidade de concorrência de qualquer outra norma (por exemplo: a conduta de matar
alguém é subsumida diretamente no art. 121, CP, não necessitando de norma complementar).
Já a adequação típica mediata exige a concorrência de outra norma. É o que ocorre nas
situações de tentativa, participação e nos casos de crimes omissivos impróprios, nos quais é
necessário complementar a tipicidade com normas da parte geral do Código Penal.82
A tentativa é exemplo de adequação típica mediata por ampliação temporal, pois, por uma
ficção jurídica, imputa o agente ainda que não tenha ocorrido a consumação do delito, isto é,
não se perfectibilizou a completa subsunção da conduta ao tipo. A adequação típica somente
é possível com a complementação da norma relativa à tentativa (art, 14, inciso II, do CP), que
faz com que a tipicidade retroceda a um momento anterior à efetiva consumação, tornando o
sujeito imputável a título de tentativa.
A participação é exemplo de adequação típica mediata por ampliação espacial, pois, também
por uma ficção faz com que o sujeito que apenas concorreu com o crime – ou seja, não
realizou, ele próprio, o tipo penal – seja imputado como partícipe do crime. Com a norma
atinente à participação (art. 29, CP), há uma ampliação espacial e pessoal do tipo penal,
abarcando também aqueles que contribuíram ativamente com a sua realização.
3. Funções do tipo penal. Ao tipo penal são atribuídas inúmeras funções. Destacam-se a
função de garantia e a função indiciária.
A função de garantia decorre diretamente do princípio da legalidade penal (expressa pelo
brocardo latino nullum crimen sine lege). Dessa forma, para além de ser um dos elementos
fundantes e estruturantes do crime, o tipo cumpre com uma função limitadora da potestade
punitiva estatal, é dizer, somente estão sujeitas à pena as condutas que estejam previamente
descritas em lei.
82 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 346.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
79
A função indiciária é admitida pelos autores que convalidam a ratio cognoscendi, o que leva ao
entendimento de que “a circunstância de uma ação ser típica indica que, provavelmente, será
também antijurídica”, de modo que tal presunção somente é afastada com a concorrência de
uma causa de justificação83.
4.2. O Tipo Incriminador no Fato Punível
O tipo penal possui especificidades especiais de acordo com a espécie de crime: crimes
dolosos, negligentes ou omissivos. Para melhor organizar o estudo e situar didaticamente
o aluno, assumiremos, a partir daqui, o modelo tripartite, de modo que possamos discorrer
tão somente das questões atinentes à tipicidade (ou tipo incriminador). Assim, o estudo da
antijuridicidade (tipo justificador ou causas de justificação) e da culpabilidade não será objeto
de nossa atenção, devendo nosso aluno observar os textos posteriores.
4.2.1. O Tipo Incriminador nos Delitos Dolosos
O tipo nos delitos dolosos apresenta uma estrutura complexa, dividida numa vertente
objetiva (tipo objetivo) e subjetiva (tipo subjetivo). No tipo objetivo é possível identificar o
seguinte conjunto de elementos: relativos ao autor; relativos à conduta, e; relativos ao bem
jurídico. Dito de outro modo, todos os tipos incriminadores devem dar conta de precisar quem
pode ser o autor do respectivo tipo, qual a conduta apta a subsumir o tipo e, ainda, indicar,
explícita ou implicitamente, o bem jurídico tutelado84. Este é, com efeito, o tripé do tipo objetivo
nos delitos dolosos.
A autoria de um crime recairá, como regra, sobre uma pessoa individual. Admite-se
ainda, a despeito da discussão doutrinária, a responsabilização penal da pessoa jurídica,
no ordenamento brasileiro prevista na lei nº 9.605/98. Com relação à autoria, é possível
distinguir crimes comuns e crimes específicos. Nos crimes comuns, qualquer pessoa pode
83 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 346-347.
84 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 295.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
80
ser o autor de um crime. Nos crimes específicos, a lei determina que certos crimes só podem
ser cometidos por pessoas detentoras de uma qualidade especial – o funcionário público no
crime de prevaricação (art. 319), o médico no crime de falsidade de atestado médico (art.
302) etc.
No que se refere à conduta, temos patente a exigência de que se trate de comportamentos
humanos, excluindo-se, desde já, a capacidade de ação de coisas inanimadas e dos animais.
O comportamento deve ser voluntário, isto é, presidido por uma vontade, o que nos faz
excluir os atos reflexos, os cometidos em estado de inconsciência ou sob o impulso de forças
irresistíveis85.
Na seara da conduta, mostra-se importante distinguir acerca dos crimes de resultado e crimes
de mera conduta. Nos crimes de resultado pressupõe-se a produção de um evento como
consequência da conduta do agente, por exemplo, no crime de homicídio, em que somente
estará consumado após o evento morte. Os crimes de mera conduta, por outro lado, são
consumados por meio da mera execução de determinado comportamento, sendo indiferente
a produção de um resultado86.
Cabe destacar que nos crimes de resultado se suscitará o problema da imputação do resultado
à conduta do agente, importando a verificação não apenas da produção do resultado, como
também se ele pode ser imputado (atribuído) à ação. É nesse ponto que a teoria da imputação
objetiva, já explicitada nas páginas antecedentes, se somará à categoria da causalidade. Dita
teoria é hoje uma das mais discutidas questões da dogmática penal nos dias atuais87.
No que se refere ao bem jurídico, cabe distingui-lo do objeto da ação. Seguindo os exemplos
de Jorge de Figueiredo Dias, se A furta um anel de B, objeto da ação é o anel, bem jurídico
é o patrimônio de B. Se C mata D, objeto da ação é o corpo de D, enquanto a vida é o bem
jurídico lesado. Distingue-se entre crime de dano e crime de perigo. Nos crimes de dano,
a realização do tipo tem como consequência uma efetiva lesão ao bem jurídico (homicídio,
85 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 305.
86 Ibid., p. 306.
87 Ibid., p. 322-323.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
81
dano, injúria). Nos crimes de perigo a lesão não vem pressuposta, bastando a mera colocação
do bem jurídico em perigo. Os crimes de perigo são divididos em crimes de perigo concreto,
quando o perigo vem descrito no tipo (exemplo do crime de maus tratos – art. 136. “expor a
perigo...”); e crimes de perigo abstrato, quando o perigo não vem descrito no tipo, contendo
uma presunção iuris et de iure pela lei (exemplo da embriaguez ao volantes, posse de arma
proibida etc).88
A vertente subjetiva do tipo (tipo subjetivo) é constituída pelo dolo – presente em todos os
crimes dolosos – e pelos elementos subjetivos especiais presentes em alguns tipos penais.
O dolo é conceituado, em uma formulação mais geral, em “conhecer e querer os elementos
do tipo”89. Possui um elemento cognitivo ou intelectual (que consiste no conhecimento das
circunstâncias do fato) e o elemento volitivo (que resume a vontade dirigida à realização do
fato). A partir daqui é possível dividir o dolo em dolo direto de primeiro e segundo grau e dolo
eventual.
Dolo direto de primeiro grau, nas palavras de Gimbernat Ordeig, é aquele no qual “o resultado
é o fim a que o agente se propôs”. O dolo direto de segundo grau é conceituado como aquele
em que “o resultado não é o fim da ação do sujeito: inclusive podendo dizer que não queria
o resultado; porém sabe que o resultado está necessariamente vinculado ao que perseguia
de maneira direta”90. Já ao dolo eventual concorrem inúmeras construções teóricas (teoria da
assunção do risco, teoria da probabilidade, teoria da aceitação/consentimento etc.).
A teoria mais aceita, correntemente, é a teoria do consentimento, segundo a qual o autor
“pensa que é possível que ocorra o elemento objetivo do tipo e, não obstante, se diz: ‘Ainda que
fosse certo o resultado, atuaria”91. Essa definição é conhecida como a fórmula de Frank. Não
basta a mera representação da possibilidade ou probabilidade do resultado, é fundamental,
além disso, a aprovação do agente.
88 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 309.
89 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Acerca del dolo eventual. Nuevo Pensamiento Penal, Revista Cuatrimestral de Derecho e Ciencias Penales, Buenos Aires, a. 1. n. 3, p. 356, set/dez. 1972.
90 Ibid., p. 358-359.
91 Ibid., p. 360.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
82
Os elementos subjetivos especiais do tipo são as intenções, motivos, pulsões afetivas e
outros elementos de atitude interna. Pode-se citar como exemplos a intenção de apropriação
no crime de furto (que não se confunde com o dolo de subtração) e a intenção de colocar em
circulação a moeda no crime de moeda falsa (art. 289)92.
4.2.2. O Tipo Incriminador nos Delitos Negligentes
De início, é preciso reafirmar que o delito negligente não é uma forma atenuada ou menos
grave de aparecimento do crime, tomado como referencial o delito doloso. O delito negligente
é “outra coisa”, é “outro fato”, e como tal, tem um tipo de ilícito (ilícito-típico) e um tipo de culpa
(culpabilidade) próprio e distinto93.
O tipo de ilícito nos delitos negligentes considera-se preenchido quando o comportamento
do agente discrepa daquele que era devido em determinada situação de perigo para os bens
jurídicos penalmente relevantes. Assim sendo, é indispensável a ocorrência de uma violação
de um dever de cuidado com a produção do resultado típico, bem como que o resultado
fosse previsível e evitável para o homem prudente. Ressalte-se que os crimes negligentes
assumem a forma tanto de crime de resultado (relação entre ação e resultado) quanto de
crime de mera atividade (relação entre ação e realização típica)94.
A violação do dever objetivo de cuidado traduz o desvalor da ação (o conteúdo pessoal do
delito), ao qual se acrescentará o desvalor do resultado – traduzido, em regra, pela produção,
causação e previsibilidade do evento típico. De modo excepcional, nos crimes de mera
atividade, o desvalor do resultado cede a própria realização típica integral95.
As normas da teoria da imputação objetiva têm validade aos crimes negligentes (exceto os
crimes negligentes de mera atividade), de modo que a violação de um dever de cuidado só
pode ser imputada a quem criou um risco não permitido que se concretizou no resultado
92 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 379-381.
93 Ibid., p. 860-861.
94 Ibid., p. 864.
95 Ibid., p. 868.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
83
típico96. A teoria da imputação objetiva é verificada de acordo com os seguintes critérios:
(i) criação ou aumento do risco não permitido; (ii) a concretização do risco não permitido
no resultado típico; (iii) a produção de resultados não cobertos pelo fim e pelo âmbito de
proteção da norma97.
A questão acerca da existência de um tipo subjetivo nos delitos negligentes é controvertida.
Enquanto alguns autores como Stratenwerth e Figueiredo Dias rechaçam essa possibilidade,
Roxin afirma que o tipo subjetivo seria admissível apenas nos crimes de negligência consciente,
negando-a nos crimes de negligência inconsciente98.
Na negligência consciente, o tipo subjetivo seria constituído pela representação das
circunstâncias do fato, pela previsão do resultado (nível intelectual) e pela confiança na
ausência do resultado (nível emocional)99. Enquanto na negligência inconsciente não
existiria o tipo subjetivo, justamente pela ausência de representação do autor com relação à
previsibilidade do resultado. Eis o panorama geral do tipo de ilícito nos delitos negligentes.
4.2.3. O Tipo Incriminador nos Delitos Omissivos
No que tange aos delitos omissivos, constituem elementos típicos comuns do tipo objetivo
da omissão de ação própria e omissão de ação imprópria os seguintes: (a) situação de perigo
para o bem jurídico; (b) capacidade e possibilidade de agir; (c) omissão da ação mandada. Ao
tipo objetivo do delito de omissão por ação imprópria, são acrescentados, ainda: (d) resultado
típico e (e) posição de garantidor do bem jurídico100.
96 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 876.
97 Ibid., p. 322 e ss.
98 Ibid., p. 886-887.
99 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 183-184.
100 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 197-198.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
84
A questão da imputação objetiva do resultado (possível apenas no delito de omissão por ação
imprópria) é reduzida à chamada “conexão do risco”. É dizer, a “ação esperada ou devida
deve ser uma tal que teria diminuído o risco da verificação do resultado típico”101.
O tipo subjetivo das duas espécies de omissão também é distinto. No delito de omissão de
ação própria haveria somente o dolo, enquanto no delito de omissão de ação imprópria seria
possível tanto o dolo quanto a negligência. Afirma-se que o dolo não precisa ser constituído
de conhecimento e vontade, mas tão somente de conhecimento do perigo para o bem jurídico
– deixar as coisas correrem – e da capacidade de agir (omissão de ação própria); e nos casos
de omissão de ação imprópria, do conhecimento do resultado e da posição de garante102.
4.3. Tipo Penal e Bem Jurídico
O bem jurídico é parte constitutiva da base estruturante dos tipos penais e também se faz presente na interpretação destes, como ressonância inapelável da dimensão material do tipo objetivo103. Para além de função sistemática, o bem jurídico serve de parâmetro e como elemento de delimitação do preceito penal104.
Uma leitura do ilícito criminal em termos tão somente formais se mostra totalmente insuficiente em sede de um direito criminal conforme ao Estado de Direito. Daí exsurgir o modelo de crime como ofensa a bens jurídicos. A compreensão do ilícito como ofensa a bens jurídicos penais tem no seu bojo a necessidade de verificação, in concreto, de dano ou perigo a bens jurídicos dotados de dignidade penal. Ausente a lesão ou o perigo de lesão, não há de se falar em crime.
Quando em exame o ilícito penal, afirmam-se dois fatores sem os quais não há de se reconhecer a existência de um ilícito-típico, quais sejam: (a) a existência de um bem jurídico
101 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 930.
102 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 206.
103 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 348.
104 Ibid., p. 348.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
85
dotado de dignidade penal como objeto de proteção da norma, e (b) a efetiva ofensa, no caso concreto, ao bem jurídico tutelado105.
O ilícito-típico deve ser entendido como uma “categoria dogmática materialmente informada por um juízo de ilicitude centrado na ofensa a bens jurídicos”. O que é o mesmo que afirmar a total insuficiência do mero preenchimento formal da tipicidade. É na necessidade do atendimento dos requisitos substanciais da tipicidade que se desnuda a ofensividade como condição de legitimidade do direito penal106.
Nesse sentido, a título ilustrativo, e também já como desfecho deste estudo, segue o seguinte exemplo: para que realização de uma subtração de coisa alheia móvel atenda à dimensão material do tipo penal de furto, por exemplo, não basta a mera verificação, em concreto, da subtração de coisa alheia móvel por sujeito com capacidade de culpa. Há de se verificar a existência de efetivo impacto no patrimônio da vítima. Não atenderia a esse requisito, como regra, o furto de uma caneta ou uma borracha, por redundar em ofensa não significativa ao patrimônio da vítima (princípio da insignificância). Numa situação hipotética como essa explicitada – e outras em que não se vislumbra a ofensa (seja na forma de dano, seja na forma de perigo) a bem jurídico penal – há necessariamente o afastamento da própria tipicidade da conduta.
5. Breves Considerações Finais
Ultimado este estudo, cumpre referir que este tratou tão somente de um excurso introdutório dos contornos gerais da teoria do tipo penal, cuja complexidade supera em muito os limites estritos destas páginas. Não obstante isso, é impositiva a consideração de que o estudo do tipo de ilícito, do modo como procedido neste ensaio, tornou apreensíveis os principais aspectos deste que é um dos pontos centrais da dogmática penal contemporânea e abre caminho para o estudo mais detido das causas de justificação e da culpabilidade penal.
Completando, por fim, a tríade do fato punível: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
105 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 106.
106 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 41.
Aula 03 | Teoria do Tipo Penal
86
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
Quais os principais nomes da concepção
clássica de delito?
a) Roxin e Ferrajoli
b) Welzel e Mezger
c) Figueiredo Dias e Costa Andrade
d) Lopes Jr. e Felix
e) Beling e Liszt
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
A teoria finalista da ação, que modificou radi-
calmente a estrutura do fato punível no mo-
mento em que transportou o dolo para o tipo,
foi desenvolvida por:
a) Mezger
b) Welzel
c) Beccaria
d) Lopes Jr.
e) Silva Franco
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
De acordo com o modelo tripartite do delito,
crime é:
a) Fato Típico
b) Fato Punível
c) Antijurídico – Punível – Culpável
d) Ação Típica – Antijurídica – Culpável
e) Fato Típico – Antijurídico – Punível.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
Qual foi a principal inovação do funcionalis-
mo penal à teoria do tipo?
a) A Teoria da Equivalência dos Antecedentes
b) A Teoria da Imputação Objetiva
c) A Teoria da Conduta
d) A Teoria da Valoração
e) A Política Criminal
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
Qual o principal nome da teoria funcionalista
moderada na atualidade?
a) Mezger
b) Welzel
c) Roxin
d) Jakobs
e) Figueiredo Dias
Verificaçãode leitura
87
AMBOS, Kai. Da “teoria do delito” de Beling ao conceito de delito no direito penal internacional. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (Coord.). Direito penal na atualidade: escritos em homenagem ao Professor Jair Leonardo Lopes. Alberto Silva FRANCO, Daniela de Freitas MARQUES. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
BELING, ErnstLudwig von. El rector de los tipos de delito (Die Lehre vom Tatbestand). Tradução de L. Prieto Castro e J. Aguirre Cárdenas. Madrid: Editorial Reus, 1936.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
D’AVILA, Fabio Roberto. Os limites normativos da política criminal no âmbito da “ciência conjunta do direito penal”. Algumas considerações críticas ao pensamento funcional de Claus Roxin. Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, Gießen, v. 10, p. 485-495, 2008.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais. a doutrina geral do crime. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Trad. José de Faria Costa. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Porto Alegre, fasc. 2, ano 4, p. 151-198, abr./jun. 1994.
GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Acerca del dolo eventual. Nuevo Pensamiento Penal, Revista Cuatrimestral de Derecho e Ciencias Penales, Buenos Aires, a. 1. n. 3, p. 355-386, set/dez. 1972.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4. ed. Tradução de José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993.
LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Traduzido e comentado por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet e C., 1899.
MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale. Le norme penali: Fonti e limiti di aplicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica. 3. ed. Milano: Giuffrè Editore, 2001.
MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo: estudos sobre o direito penal no nacional-socialismo. 4. ed. Trad. Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Referências
88
Questão 1
Resposta: Alternativa E.
Resolução: A base da concepção clássica de delito, defendida na Alemanha desde a segunda
metade do século XIX, era o conceito de ação – entendida por Ernst Ludwig von Beling e
Franz von Liszt de maneira totalmente naturalística como movimento corporal e modificação
do mundo exterior.
Referências
Gabarito
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006.
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos: la estrutura de la teoria do delito. Tomo I. Trad. e notas de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas Ediciones, 1997.
ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal.Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2002.
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro; São Paulo: Renovar, 2000.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 6. ed., rev., ampl. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte general. 4. ed., rev., ampl. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
TAVARES, Juarez. Direito penal da negligência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina finalista da ação. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
89
Gabarito
Questão 2
Resposta: Alternativa B.
Resolução: A concepção finalista do fato punível, elaborada por Hans Welzel, visava superar
o pensamento abstrato e o relativismo valorativo que advinha do pensamento neokantista
e que não foi capaz de evitar o uso arbitrário e político do direito penal no regime nacional-
socialista e no fascismo.
Questão 3
Resposta: Alternativa D.
Resolução: De acordo com o modelo tripartite, os conceitos de tipo e ilicitute/antijuridicidade
são autônomos, exercendo cada qual função inconfundível entre si. O sistema tripartido define
o crime, portanto, como ação típica, antijurídica e culpável.
Questão 4
Resposta: Alternativa B.
Resolução: Segundo Claus Roxin, a teoria da imputação objetiva pertence, como o próprio
nome antecipa, ao tipo objetivo e foi a principal inovação do funcionalismo penal à teoria do tipo.
Questão 5
Resposta: Alternativa C.
Resolução: A partir de sua obra datada de 1970, Claus Roxin estrutura o fato punível de
acordo com sua teoria funcionalista moderada. Cabe destacar que existem outras vertentes
do funcionalismo, como a desenvolvida por Günther Jakobs – direito penal do inimigo –
denominada funcionalismo radical.
LEGENDA DE ÍCONES seções
91
Início
Referências
Gabarito
Verificaçãode leitura
Pontuando
Glossário
Vamos pensar
Aula
92
04
Teoria da Imputação ObjetivaObjetivos
Caro aluno, o presente estudo tem por objetivo expor a teoria da imputação objetiva.
Para isso percorre as teorias do nexo de causalidade elaboradas ao longo da história do
pensamento jurídico-penal e os principais problemas com os quais se depararam as mesmas
no intento de criar uma teoria capaz de compreender a forma adequada de se imputar a alguém
um resultado ilícito, desde a teoria da equivalência das condições, a teoria da causalidade
adequada, a teoria das condições conforme leis naturais até teoria da imputação objetiva.
Vamos em frente.
1. O Nexo de Causalidade
1.1 O Problema da Relação de Causalidade na Atualidade e Sua Relevância no Direito Penal
O estudo da causalidade é fundamental na teoria geral do delito, visto que a relação de causalidade demonstra a ligação entre a conduta humana e o resultado (naturalístico ou jurídico), e que somente por meio dessa demonstração causal se pode imputar a alguém o cometimento de um delito como obra sua, visto que, em um Estado Democrático de Direito, somente se pode imputar um delito ao agente se este deu causa e contribuiu ao mesmo.
Ainda sobre a importância do nexo de causalidade no direito penal Faria Costa disserta que a causalidade ocupa “[...] um lugar fundamental na dogmática penal, é o quid que assinala a passagem da responsabilidade por fato alheio para a responsabilidade por fato próprio”1-2. E por ocupar tal posição de relevo, naturalmente suscita diversas questões. Nesse sentido, a teoria da imputação objetiva é um dos institutos jurídico-penais mais debatidos e que tem
1 COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis). 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 223.
2 No mesmo sentido, MANTOVANI, Ferrando. Principididirittopenale. Padova: CEDAM, 2002, p. 61.
93
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
recebido o tratamento mais intenso das últimas quatro décadas3. Isso por vários fatores. Dentre eles, a mudança paulatina da sociedade e, consequentemente, do direito penal pela própria complexidade da “sociedade de risco” e das novas formas de delitos, como os dogmaticamente situados no chamado “direito penal secundário”, como os delitos informáticos, econômicos ou mesmo os delitos que atingem bens jurídicos supraindividuais, em que o nexo de causalidade é de difícil demonstração e não se restringe ao âmbito causal-natural, requerendo sempre uma análise normativa. No que tange às constantes e inelutáveis mudanças do direito penal e seus institutos, Faria Costa disserta:
Todos sabemos que nada nem ninguém para o caudal do reio da história e que o direito penal não é nem nunca foi margem desse rio, antes força vivificadora da torrente da vida, colectiva e individual, que os homens e as mulheres, ao longo de milênios, foram construindo e que, ao fim e ao cabo, coincide com a própria história. Todos sabemos, para o dizermos com as palavras insuperáveis de beleza, e profundas de Camões, que ‘mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / muda-se o ser, muda-se a confiança / todo o mundo é composto de mudança / tomando sempre novas qualidades’. Desse turbilhão de mudança não se pode escapar. Dele não escapa o direito penal4.
Desse turbilhão de mudanças, certamente que a teoria do nexo de causalidade não pode
escapar. Ainda, a problemática se insere nos problemas do direito penal frente às insuperáveis
críticas, no que tange às tentativas de averiguação da causalidade entre a conduta e o
resultado, calcadas nos paradigmas inspirados nas bases das ciências empírico-naturalistas
e na filosofia natural. O direito penal, historicamente, afastou-se do enfoque naturalista que
renuncia a conceitos axiológicos e ancora-se no terreno do empírico. Nesse ponto, a tendente
reorientação ao significado valorativo dos conceitos jurídico-penais que o neokantismo
apregoou entre as duas guerras mundiais permitiu o ressurgir da ideia da imputação na
literatura jurídico-penal e contribuiu na discussão sobre as limitações da causalidade baseada
em um terreno vinculado e elementos ontológicos prévios à valoração jurídica5.
3 JAKOBS, Günter. La imputación objetiva en el Derecho penal. Trad. Manuel CancioMeliá. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996, p. 9.
4 COSTA, José de Faria. Apontamentos para umas reflexões mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 81, pp. 36-47, nov./dez., 2019, p. 39.
5 Neste sentido, MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05, p. 2.
94
Igualmente, o próprio paradigma científico abandonou o entendimento da causalidade de
modelo newtoniano em favor das descobertas da física quântica. Nesse último ponto, no que
tange ao afastamento do entendimento da causalidade-natural-mecanicista decorrentes dos
avanços no campo da física e seus influxos no direito penal que, não obstante, ainda pode
abraçar certo entendimento restrito da causalidade, Roxin disserta que:
La física cuántica, que se ocupa de la comprensión de los fenómenos de las ondas y partículas en el campo atómico, ha llegado (apoyándose en las investigaciones de Heisenberg) a la hipótesis, admitida hoy de modo dominante, de que los procesos que se dan en el átomo no están determinados causalmente, sino que obedecen a leyes estadísticas, que sólo permiten predicciones de probabilidad. Y además la teoría de la relatividad ha puesto de manifiesto que la representación de una sucesión causal de los acontecimientos en el tiempo sólo tiene sentido en dimensiones muy limitadas. Sin embargo, todo ello no cambia el hecho de que el jurista puede seguir trabajando con el concepto tradicional de causalidad, pues la vigencia únicamente de leyes estadísticas en el campo subatómico no obsta para que en el mundo de la vida cotidiana, que es el que tiene que tratar el jurista, podamos confiar en las leyes causales con certeza prácticamente absoluta; y por otra parte, la teoría de la relatividad sólo hace inaplicables las tradicionales concepciones causales en un pensamiento en dimensiones cósmicas, mientras que en los limitados terrenos del Derecho no puede modificar mensurablemente las conclusiones a las que conduce la ley causal6.
Portanto, frente aos motivos que impulsionam a necessidade de um novo entendimento sobre
uma nova concepção da causalidade no direito penal que seja capaz de compreender todas
as formas de manifestações delituosas que já não são mais passíveis de serem entendidas
pelo pensamento puramente causal-natural, seja por motivo da natureza do delito, seja pela
incapacidade de alcance da própria causalidade, a literatura jurídico-penal tem buscado
elaborar teorias capazes de servir de instrumento à aferição dos delitos e possibilitar critérios
de imputação. Dentre estas, a mais proeminente e que tem logrado a resolução de inúmeros
problemas da teoria geral do delito é a teoria da imputação objetiva.
6 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 346-347.
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1.2 A Teoria da Equivalência das Condições – “Conditio Sine Qua Non”
Historicamente, considera-se que foi Julius Glasser aquele que elaborou a teoria da
equivalência das condições, e que posteriormente Maximilian v. Buri foi quem a redigiu em
seus traços definitivos7, por volta do século XIX. De forma geral, a teoria da equivalência das
condições tem base na concepção causal-natural e tem significação pré-jurídica, própria da
filosofia e das ciências naturais8. Nesse sentido, tal teoria utiliza-se de uma fórmula hipotética
para a análise da causalidade, para a qual
[...] debe considerarse causa toda condición de un resultado que no puede ser suprimida mentalmente sin que desaparezca el Resultado concreto9; es decir, que es válida como causa toda condicio sine qua non, o sea, toda condición sin la cual no se habría producido el resultado.
Quanto à nomenclatura, a teoria utiliza-se do termo “condição” porque não busca uma causa
particularmente importante, senão as condições do resultado, e “equivalência” porque se
considera que todas as condições têm o mesmo valor,10 assim a teoria se contrapõe às
teorias individualizadoras que buscavam valorações diversas para as condições ou mesmo
diversos critérios normativos na análise do nexo causal11.
A partir da fórmula apresentada, tal teoria implica num juízo hipotético de eliminação,
segundo o qual se procede eliminando mentalmente a ação e indaga-se sobre a produção
do resultado da forma como ocorreu. Nessa perspectiva, a conduta será considerada causa
do resultado quando se puder afirmar que, sem ela, o resultado não teria ocorrido. Tal teoria
7 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 348-349.
8 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 348.
9 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 348. No mesmo sentido, BAUMANN, Jurgen. Derecho penal. Conceptos fundamentales y sistema. Introducción a la sistematica sobre la base de casos. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973, p. 119: “Según ella, es causal para un resultado toda condición que no puede suprimirse sin que desaparezca el resultado.”
10 BAUMANN, Jurgen. Derecho penal. Conceptos fundamentales y sistema. Introducción a la sistemática sobre la base de casos. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973, p. 119.
11 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 348.
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é aparentemente adotada pelo Código Penal Brasileiro, como disposto em seu “Art. 13 – O
resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa.
Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. É dito
aparentemente adotada, pois a expressão “resultado de que depende a existência do crime”
não se limita ao resultado naturalístico, senão também abrange o resultado jurídico, visto
que, em caso contrário, não poderiam ser considerados crimes aqueles nos quais inexiste
resultado naturalístico, como os crimes de mera conduta, de perigo abstrato ou concreto.
1.2.1 Críticas à Teoria da Equivalência das Condições
A fórmula do juízo hipotético de eliminação das causas – conditio sine qua non – apresenta
um equívoco metodológico, pois já pressupõe aquilo que deveria descobrir12. No mesmo
sentido Roxin, que afirma que tal fórmula é não somente inútil como pode induzir a erro13.
Tal teoria enfrenta problemas no que tange às hipóteses de causalidade hipotética, como o
caso de um soldado em guerra que fuzila ilicitamente alguém e, em sua defesa alega que se
caso não o tivesse feito, outro soldado teria efetuado o fuzilamento do mesmo modo, então,
é possível suprimir mentalmente a sua conduta sem que desapareça o resultado. Contudo, é
certo, não faltou à causalidade de sua conduta, mas se negada a causalidade, então, dado
que a conduta do segundo soldado igualmente poderia não ser causa do resultado através da
mesma alegação, se chegaria ao absurdo lógico de afirmar que a morte da vítima se produziu
sem causa alguma14.
12 Neste sentido, Figueiredo Dias: “formulada nos termos da conditio sine qua non, a teoria das condições equivalentes é inútil, precisamente porque já traz pressuposto aquilo que com ela deveria determinar-se.” DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Tomo I: questões fundamentais; a doutrina geral do crime. Coimbra: Editora Coimbra, 2004, p. 307.
13 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoríadel delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 350.
14 Exemplo citado por ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 350.
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Do mesmo modo, a teoria enfrenta problemas no que tange às hipóteses de causalidade
alternativa, como no exemplo em que dois agentes, A e B, agindo de forma independente
sem conhecimento um do outro, põem veneno no café de C; C ingere o café envenenado
e vem a falecer, contudo, a dosagens postas por ambos são, individualmente, plenamente
capazes de matar. Portanto, é possível suprimir a conduta de A ou de B sem que desapareça
o resultado. Assim, faltando a demonstração de causalidade pela morte, A e B responderiam
somente por tentativa de homicídio15, em prol do princípio do in dubio pro reo.
Outro problema que enfrenta a teoria da equivalência das condições é sua incapacidade
de abarcar os casos de interrupção de cursos causais salvadores. Por exemplo, o caso de
alguém que destrói o único medicamento capaz de salvar a vida de outro que está prestes
a falecer, ou mesmo, aquele que rasga a mangueira do caminhão de bombeiros e assim o
impossibilita de apagar o incêndio16. É certo que tais ações são delituosas, mas a teoria causal
em tela não é capaz de demonstrar o nexo de causalidade entre a ação e o resultado por
meio da causalidade natural, pois a ausência do curso causal salvador só pode ser entendida
normativamente, visto que ela não cria o resultado, mas sim impede que outro curso causal
o impeça.
Esses exemplos e problemas demonstram a incapacidade da teoria da equivalência dos
antecedentes de compreender todos os aspectos da imputação penal, pois ela não é capaz
de limitar o conceito jurídico de causa, não só por levar em conta aspectos meramente causais
irrelevantes à ordem jurídico-penal, como também por desconsiderar fatores de fundamental
relevância como a realização típica, uma vez que concebe o nexo de causalidade somente
em seu aspecto ôntico-naturalistico17e que, em última análise, apresenta uma necessidade
normativa de limitação da cadeia causal, pois sem tal delimitação proveniente do interesse
15 Exemplo citado por ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 351.
16 Exemplos de Shmidhäuser citados por ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 358 e, na doutrina nacional, por D’ÁVILA, Fábio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 31.
17 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 24-25.
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normativo a eliminação hipotética chega ao regressum ad infinitum, pois se causa é tudo
aquilo sem o qual o resultado não teria ocorrido – conditio sine qua non – poderia se dizer que
os pais de um assassino ou mesmo o fabricante da arma usada nesse crime igualmente são
causas, pois sem elas o resultado homicídio tal como se deu não teria ocorrido18.
1.2.2 Tentativas de Correção da Teoria da Equivalência das Condições
Considerando as falhas e lacunas apresentadas, a literatura jurídico-penal buscou superar
as lacunas da teoria da equivalência das condições por meio da delimitação da cadeia causal
por várias teorias. A primeira a ser apresentada é aquela que almejou tal superação através
da integração do dolo ou culpa na análise do nexo de causalidade, com o objetivo de
limitar o regresso hipotético. Assim, o juízo hipotético de eliminação é avaliado compassado
à intenção do agente, o que eliminaria o regressum ad infinitum, bem como seria capaz
de um acertamento no que tange aos problemas anteriormente apresentados. Todavia, o
dolo ou a culpa não são critérios empíricos e verificáveis na causalidade19, o que de pronto
impede tal equiparação e impõe o fracasso de tal tentativa de acertamento. Ora, não se pode
caracterizar o ilícito penal imputável por meio de categorias como a mera causalidade, ou
mesmo a finalidade, pois, onde tais estruturas se apresentam, falta-lhes referência ao direito
penal, de modo que elas não bastam para caracterizar aquilo que há de jurídico-penalmente
relevante em uma ação típica20.
Ainda, como tentativa de suplementar as lacunas da teoria da equivalência das condições
surgiu a teoria da causalidade adequada desenvolvida por von Kries, que se trata de um
acerto da teoria da equivalência também no sentido de prevenir os excessos da conditio sine qua non, com o objetivo de excluir e limitar o juízo do nexo de causalidade para que não
se permita que a imputação penal vá além da direção e domínio dos processos causas do
18 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 25.
19 Em sentido contrário, Welzel, com fulcro no entendimento da ação humana como estrutura lógico-objetiva existente no mundo do ser afirma que “Toda acción es un poner en servicio la causalidad; por conseguiente, ella es un momento integrante de toda acción y en la mayoria de los tipos penales no representa problemas en absoluto. […] El concepto causal no es un concepto jurídico, sino una categoría del ser.” WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sérgio Yánez Perez. Santiago: Editorial Juridica del Chile, 1997, p. 51.
20 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 82, p. 25-45, abr./jun., 2010. p. 38.
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agente21 e caia num regressum ad infinitum. Para isso, busca delimitar o juízo de eliminação
hipotética por meio de um prisma calcado nas máximas da experiência e de previsibilidade
ex ante. Nas palavras de Figueiredo Dias, tal proposta afirma que se deve levar em conta
para a aferição das causas “somente aquelas que segundo as máximas da experiência e a
normalidade do acontecer e, portanto, segundo o que é, em geral, previsível, são idôneas
para produzir o resultado”22. Contudo, tal método é pouco científico, pois não elabora nenhum
método ou critério que possa ser testado e contraposto a provas, deixando em aberto ao
julgador os critérios a serem utilizados, ou seja, não é passível de contribuir de forma pontual
à teoria geral do delito. Ainda, ao se basear nos conhecimentos da experiência comum como
base para a averiguação do que seria uma causa previsível, acaba por confundir causalidade
e culpabilidade23, e, portanto a acusam de ser uma teoria pseudo-causal, que na realidade
opera com critérios de culpabilidade24.
Pode-se criticar ainda, consoante Faria Costa, a inaplicabilidade de tal teoria ao resultado
de perigo, afirmando que a causalidade adequada ainda não consegue compreender e
estabelecer um juízo de causação entre a ação e o resultado de perigo, pois “o perigo não
é um estádio que pertença ao mundo do ser causal, o perigo é intencional e estruturalmente
uma categoria normativa, sem que isso perca a qualidade de se poder apreender de maneira
objectificável”25.
Com efeito, no intuito de abandonar o procedimento de eliminação hipotética, se impôs ainda
outra fórmula, que se remonta a Engisch, a teoria da “condição conforme leis naturais”,
que em sua versão mais lapidar, escrita por Jescheck, enuncia a concorrência da causalidade
atendendo a “si a una acción se han vinculado modificaciones en el mundo exterior
subsiguientes en el tiempo, que estaban unidas con la acción según las leyes [naturales] y
21 COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis). 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 225.
22 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Tomo I. São Paulo: RT, 2007, p. 328.
23 Neste sentido MANTOVANI, Ferrando. Principi di diritto penale. Padova: CEDAM, 2002, p.63.
24 MAURACH, Reinhart. Derecho Penal. Parte General. Teoria general del derecho penal y estrutura del hecho punible. Trad. Jorge BofillGenzsch y Enrique Aimone Gibson. Actualizada por Heinz Zipf. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994, p. 317.
25 COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis). 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 225.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
100
que se presentan como resultado típico”26. Contudo, ainda assim, uma vez que o centro de
gravidade de tal análise está na causalidade empírico-natural, resta infrutífera no que tange a
compreender todas as formas de aparição dos delitos, mas, como se verá mais adiante, pode
ser complementada por critérios normativos.
Logo se percebeu que uma análise da causalidade puramente mecânica e desvinculada
de qualquer normatividade não é capaz de trazer respostas concretas ao direito penal,
pois não se pode extrair dela aquilo que realmente importa, o juízo de desvalor passível
de responsabilização. Portanto, também o conceito de causalidade, no âmbito da ciência
normativa que é o direito penal, é um conceito jurídico27. Ou seja, a teoria penal da causalidade
não está somente ligada a noções correspondentes às ciências naturais, mas indubitavelmente
pertence também ao plano das noções normativas e sociais. Neste sentido, frente às
dificuldades enfrentadas pela teoria da equivalência das condições, a literatura jurídico-penal
buscou incluir o critério normativo à causalidade, um critério de praticabilidade28, que analisa
a responsabilização e o nexo causal por meio das causas que interferem diretamente no tipo
penal, ou seja, excluiram-se as causas que não interferem diretamente na prática do delito,
como os pais do agente ou mesmo o fabricante da arma.
Em suma, uma mera análise da causalidade física é pueril para os fins do direito penal, por
não ser capaz de delimitar a imputação penal nem dizer efetivamente o que foi a causa (que
importe ao direito penal) do resultado. Assim, se reconhece que o nexo causal-natural é
necessário, contudo, não suficiente para a imputação jurídico-penal, frente à necessidade
imperiosa de se analisar por meio do prisma da realização típica.
Nesse sentido, com clareza ímpar disserta Wessels:
A teoria do nexo causal era, no início, estritamente associada a conceitos naturalísticos de ação do passado século 19; da aceitação, isenta de críticas, de representações das ciências naturais dentro do Direito Penal resultaram inúmeras e infrutíferas controvérsias. Neste interim assentou-se, contudo, a
26 JESCHECK apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 351.
27 Ver nota 20.
28 Nesse sentido, Derecho penal. Conceptos fundamentales y sistema. Introducción a la sistemática sobre la base de casos. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973, p. 118.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
101
opinião de que a teoria do Direito penal, como ciência normativa, tem de formar e manifestar conteudisticamente seus próprios conceitos, de forma que possam preencher sua função no panorama jurídico-social. Isso vale especialmente para a teoria da causação. Causalidade em sentido jurídico é outra coisa que causalidade em sentido das ciências naturais. A causalidade das ciências naturais é uma relação entre dois estados, dos quais um segue o outro pela lei natural. Esta lei da causalidade seria inadequada e insuficiente no Direito Penal como princípio (isolado) da imputação do resultado. O conceito jurídico penal de causalidade é um conceito de relação jurídico-social, que conduz a conteúdos ontológicos e normativos, não sendo, portanto, idêntico nem aos conceitos causais das ciências naturais nem aos filosóficos29.
Por fim, resta evidente que o nexo de causalidade-natural tem de ser complementado pelo nexo normativo, ou seja, ligado ao tipo penal. É nesta direção que se produz a teoria da
imputação objetiva.
1.3 A Teoria da Imputação Objetiva
A teoria da imputação objetiva do resultado tem seus primeiros conceitos remontados
à matriz hegeliana, com posterior elaboração por Karl Larenz em 1927 e Richard Honig
em 1930, sendo atualmente desenvolvida por Claus Roxin, com relevante contribuição de
Günter Jakobs. A teoria da imputação objetiva busca superar as dificuldades encontradas
pelas teorias do nexo de causalidade anteriormente expostas, criando critérios de análise
para a resolução dos casos que não encontraram respostas satisfatórias pelas teorias da
causalidade. Portanto, frente ao complexo fenômeno da investigação jurídico-penal da
causalidade, somente se pode avançar se efetuado uma clara diferenciação entre os pontos
de vista empíricos e normativos, em que a causalidade natural é somente a condução mínima
para se analisar a relevância jurídica da causação do resultado30.
Nesse sentido, a imputação objetiva não vem postergar ou remeter a causalidade ao sótão
das noções jurídicas inúteis31, mas busca complementá-la por meio da adoção de critérios
normativos voltados à relevância jurídica para além dos elementos empíricos. É isso o que
29 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 40.
30 MAURACH, Reinhart. Derecho Penal. Parte General. Teoria general del derecho penal y estrutura del hecho punible. Trad. Jorge Bofill Genzsch y Enrique Aimone Gibson. Actualizada por Heinz Zipf. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994, p. 317.
31 COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis). 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 227.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
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almeja a teoria da imputação objetiva do resultado, para a qual a causalidade empírica deve ser
avaliada por meio de sua relevância jurídica. Portanto, a estrutura dogmática que se constrói
é uma sobreposição dos critérios normativos sobre os critérios empíricos, necessitando da
existência de ambos para a configuração do liame causal.
Assim, a imputação objetiva não vem substituir o nexo causal, e sim complementá-lo32,
incluindo o nexo normativo, traduzidos aqui a partir da ideia do risco e da realização típica. Isso
não é novo, mas decorrente das necessidades jurídico-penais e do caminho que a dogmática
vem traçando no decorrer de sua história, como se pode perceber eis que Mezger já havia
ressaltado, ainda na escola neokantista, que a conexão causal entre um ato de vontade e o
resultado não é suficiente para atribuir responsabilização, sendo ainda indispensável que tal
conexão seja juridicamente relevante. Assim, a relevância jurídica que autorize a imputação
deve ser apurada no sentido protetivo de cada tipo incriminador, ou seja, quando a conduta
orienta-se para afrontar a finalidade protetiva da norma33.
A partir de tal intento, no momento em que se percebeu que o direito penal não consegue
embasar seu conceito de causalidade em critérios unicamente provenientes da causalidade-
natural ou mesmo a partir da finalidade, Roxin buscou inserir no contexto da delimitação do
nexo causal a figura do risco proibido, uma vez que a ideia do risco vai além da esfera natural
e demonstra o aspecto normativo da dogmática jurídico-penal. O tratamento dogmático dessa
ideia possibilita e favorece a introdução de questionamentos da relevância jurídica e faz com
que a dogmática, que estava encerrada em seu edifício conceitual nas anteriores concepções
de sistema, se abra para a realidade34 e restrinja o alcance da causalidade por meio de
critérios normativos adicionais.
A partir do exposto, para a teoria em tela, o resultado é passível de ser imputado objetivamente
ao agente unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido, que esse
risco se realize no resultado concreto e que este resultado se encontre dentro do alcance do
32 GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137.
33 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da.Imputação Objetiva nos Delitos Omissivos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.33, pp. 101-119, jan./mar., 2001, p. 111.
34 ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.38, p. 11-31, abr./jun., 2002, p. 16.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
103
tipo. Numa exposição mais didática, são três as etapas de análise, que caso não preenchidas
leva à exclusão da causalidade e, assim, à atipicidade da conduta:
1) A criação ou aumento do risco não permitido.
2) A realização deste risco no resultado típico.
3) Que este resultado esteja no âmbito de proteção da norma (tipo)35.
Passa-se, agora, a exposição dos critérios de imputação objetiva do resultado conforme
elaborados pela literatura jurídico-penal e suas hipóteses de exclusão.
1.3.1 A Criação do Risco Não Permitido
Uma vez que a teoria da imputação objetiva exige, no primeiro momento de sua análise,
a criação ou o aumento de um risco juridicamente não permitido, resta claro que, caso a
conduta do agente produza um risco permitido, ou seja, que não seja contrário às normas
regulamentares, é excluído o nexo de causalidade, e assim a conduta não pode ser considerada
típica. Igualmente, caso a conduta do agente diminua o risco, igualmente não pode ser
considerada para fins de preenchimento do tipo objetivo. Para o melhor entendimento sobre
isso, é salutar expor o que se entende por risco permitido e as hipóteses de exclusão da
imputação objetiva.
1.3.1.2 O Risco Permitido
O complexo de atividades da vida moderna impõe ao cidadão enfrentar certa dose de risco,
desde dirigir veículos, submeter-se intervenções cirúrgicas, ou mesmo, a prática de esportes
de risco. Todas essas ações fazem parte da dinâmica social de modo corriqueiro, contudo,
35 Outrossim, a teoria da imputação objetiva no que tange ao âmbito de proteção do tipo, num desenrolar dogmático, apresenta critérios suplementares de exclusão da imputação tais como: a atribuição à esfera de responsabilidade alheia; a cooperação na autocolocação dolosa em perigo; bem como a colocação de terceiro em perigo com o seu consentimento. Para maisaprofundamento ver ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
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de forma geral, essas atividades de natureza arriscada são juridicamente permitidas36, pois
a utilidade social dessas condutas, mesmo que perigosas a bens jurídicos, proporcionam o
grau de tolerância do Direito, desde que observados os critérios de segurança e os deveres
objetivos de cuidado. A partir dessa leitura, somente se poderá reconhecer legítima a
responsabilidade penal e a respectiva imputação quando o resultado típico decorra de uma
especial contribuição do agente, ou seja, depende da conduta do agente em concreto criar,
ou não, um risco juridicamente relevante. Assim, se o agente mantém o seu atuar nos limites
de risco socialmente tolerado, não se legitima a imputação objetiva do resultado37. Como no
exemplo clássico elaborado por Roxin, em que A incita B a realizar uma viagem de avião,
torcendo para que o avião caia, o que de fato ocorre e B vem a falecer. Ora, é certo que A é
causa da morte de B, contudo A agiu dentro do risco permitido, portanto, tal resultado não lhe
pode ser imputado.
Em suma, o resultado somente é imputável quando causado por uma conduta humana que
tenha criado ou incrementado um risco não permitido. Portanto, se a conduta se considera
enquanto risco permitido, resta excluída a possibilidade de imputação penal, pois a conduta
do agente não estabelece situação que ultrapasse o âmbito do risco permitido e tolerado.
Contudo, conforme leciona Fabio Roberto D’Ávila, é de fundamental relevância diferenciar
o risco permitido, que exclui a tipicidade, do perigo especial gerado por uma condição
desafortunada38. O perigo especial será causa de exclusão da ilicitude, e não da tipicidade. O
que resta claro no exemplo na diferenciação trazida pelo doutrinador:
É muito diferente a conduta de um motorista de ambulância que trafega normalmente, sem atender nenhum chamado de urgência, daquela praticada por um motorista de ambulância que, para salvar uma vida, infringe normas regulamentares. Apesar de ambas as condutas, indubitavelmente perigosas, estarem permitidas pelo direito, geram consequências diversas na estrutura do delito: no primeiro exemplo, o motorista age dentro do risco socialmente aceito para aquela atividade (condução de veículos automotores em via pública), não ultrapassando os limites do risco permitido e, por sua vez, agindo de forma atípica. No segundo exemplo, o agente ultrapassa os limites do risco permitido,
36 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da.Imputação Objetiva nos Delitos Omissivos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.33, pp. 101-119, jan./mar., 2001, p. 111.
37 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da.Imputação Objetiva nos Delitos Omissivos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.33, pp. 101-119, jan./mar., 2001, p. 112.
38 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 49.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
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não observando inúmeras normas regulamentares; porém, sua ação atende a um interesse específico, socialmente valioso, o que acarretará a sua permissão, mediante exclusão da ilicitude39.
A partir da diferenciação demonstrada, é possível perceber que o risco permitido se refere
àquelas normas regulamentares da vida em sociedade, padrões técnicos, critérios de
segurança e deveres objetivos de cuidado da vida em sociedade pensada em situações
ideais e práticas, mas que devem ser analisadas no caso concreto40.
1.3.1.3 A Diminuição do Risco
Na mesma linha de raciocínio, se somente a criação ou aumento de risco não permitido podem ser levados em consideração para que se possa imputar objetivamente ao agente o resultado como obra sua, nos casos em que a conduta deste agente diminua o risco previamente existente (e não criado por ele), igualmente não se poderá imputar a este o resultado lesivo. Primeiramente, pois não houve a criação ou aumento de um risco, e também porque o autor modificou o curso causal de tal maneira que reduziu um perigo já existente para a vítima. Portanto, melhorou sua situação41. A título de exemplo, o caso em que o agente percebe que uma pedra caindo atingirá a cabeça de outra pessoa e não tem como impedir esse curso causal, assim, resolve desviar o corpo do outro do curso da pedra para que se resulte uma lesão menos grave42. Esse resultado menos gravoso não poderá ser imputado ao agente.
Cabe novamente expor a diferenciação entre o que será causa justificante, e a diminuição de risco que leva ao reconhecimento da atipicidade da conduta. A diminuição de risco é uma conduta que não lesiona um bem jurídico, portanto, não chega a ser ilícita, o que implica que não pode ser entendida como uma causa de exclusão da ilicitude como o estado de necessidade. Efetivamente, a exclusão da imputação nos casos de diminuição de risco se
39 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 49.
40 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva.São Paulo: RT, 2001, p. 50-52.
41 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 365.
42 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 365.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
106
coloca no âmbito da tipicidade. Nos casos de diminuição de risco, o risco não é substituído
por outro, mas somente minorado, situação diversa dos casos em que se substitui um risco
por outro, assim, por exemplo, alguém que atira uma criança pela janela de um prédio em
chamas no intento de salvá-la e que de tal queda a criança sofra lesões43. Nesse caso, não
houve diminuição de risco, mas a criação de outro risco, de menor ou igual potencial lesivo,
no intuito específico de salvação. Nesse sentido, foi criado um resultado típico – a lesão
corporal – mas que não será ilícito, pois está compreendido nas causas de exclusão de
ilicitude enquanto estado de necessidade.
1.3.1.4 O Incremento do Risco
Conforme Roxin, o problema mais discutido desde o pós-guerra em conexão com a ideia de
risco é a questão de se imputar um resultado quando, no caso hipotético, a conduta alternativa
tivesse sido realizada conforme o direito, mesmo assim o resultado danoso não poderia ser
evitado44. Como no caso de um caminhoneiro que, ao ultrapassar um ciclista, não mantém
a distância lateral mínima requerida pelas normas de trânsito, e passa a cerca de 75 cm do
mesmo. Durante a ultrapassagem o ciclista, fortemente embriagado, por uma reação acaba
por cair à esquerda e é atropelado pelas rodas traseiras do caminhão. Resta comprovado
que, provavelmente, o acidente teria ocorrido do mesmo modo caso o caminhoneiro tivesse
observado a distância mínima de separação lateral prevista nas normas de transito45. A
questão que se levanta é, mesmo que o autor criou ou incrementou risco e que esse risco se
realizou no resultado, caso tivesse agido conforme o direito e esse resultado tivesse ocorrido
da mesma forma, deve-se imputar o agente?
Para Roxin, frente a estes casos há duas resoluções: 1) Caso a conduta alternativa conforme
o direito, com certeza, não teria sido capaz de evitar o resultado danoso, exclui-se a imputação
pela não realização do risco não permitido. 2) Caso a conduta alternativa conforme o direito,
43 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 366.
44 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 379.
45 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 379.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
107
possível ou provavelmente, não teria sido capaz de evitar o resultado, imputa-se o resultado
ao autor, pois incrementou um risco não permitido que se realizou no resultado46. Em suma,
somente se deve deixar de imputar quando houver a certeza, e não a mera demonstração
da possibilidade, de que o resultado teria ocorrido mesmo no caso da observância de todas
as normas de cuidado, assim, todo o incremento faz recair as consequências sobre o autor47.
1.3.2 A Realização deste Risco no Resultado Típico
Este critério é de fácil averiguação, mesmo que um risco proibido seja criado ou aumentado,
o resultado daí proveniente tem de ser previsto como típico, caso contrário, não é interessante
para fins de avaliação de imputação penal, pois, por óbvio, é atípico. Ora, restam excluídas
da apreciação do direito penal as condutas que geram resultados que, mesmo que perigosos,
não são proibidos, ou ainda que os desdobramentos dos resultados da conduta não sejam
típicos.
Outrossim, o resultado tem de estar vinculado ao risco, no sentido de que somente se admite
a imputação do resultado se este tiver sido causado pelo risco não permitido criado pelo autor,
o que exclui a responsabilidade por desdobramentos causais que não estejam previstos como
provenientes do risco criado, por exemplo, um condutor que ultrapassa o limite de velocidade
e, posteriormente no decorrer do caminho, reduz até a velocidade regular, mais a frente e já
em velocidade regular acaba por atropelar uma criança que corre em direção a via, de forma
que é impossível ao condutor evitar a colisão. Nesse caso, não há a realização de um risco
proibido quando do excesso de velocidade, contudo, este risco se desdobra no resultado,
eis que o autor já estava em velocidade compatível com a via no momento da colisão48. Ou
seja, o risco produzido pelo agente só pode ser a ele imputado se desencadeia um resultado
que está vinculado normativamente ao resultado típico de sua conduta, o que, como no caso
desse exemplo, não está.
46 D’ÁVILA, Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001, p. 49, p. 60.
47 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 380.
48 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 375-376.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
108
1.3.3 O Resultado Esteja Dentro do Alcance do Tipo – O Âmbito de Proteção da Norma
A norma jurídico-penal é voltada a determinada forma de proteção, o que implica que,
para o preenchimento do tipo objetivo, a conduta e o resultado proveniente da mesma têm de
estar nesse âmbito de proteção material. Nesse sentido, todo tipo penal tem um determinado
alcance (Reichweite des Tatbestands), esse âmbito de atuação é delimitado pelo bem
jurídico por ele protegido e pela descrição da conduta, proteção essa que é feita de inúmeras
maneiras em cada tipo penal49. Logo, o alcance máximo da imputação é o âmbito de proteção
da norma. Nesse prisma, não basta que haja um nexo causal entre o resultado e o risco não
permitido criado pelo agente.
A fim de esclarecimento, Roxin trabalha a partir do seguinte exemplo:
Dois ciclistas passeiam um atrás do outro, no escuro, sem estarem com as bicicletas iluminadas. Em virtude da inexistência de iluminação, o ciclista que vai à frente colide com um terceiro ciclista, vindo da direção oposta. O resultado teria sido evitado, se o ciclista que vinha atrás tivesse ligado a iluminação de sua bicicleta. Aqui está claro que o ciclista que vem à frente deve ser punido por lesões corporais culposas, ao dirigir sem iluminação, criou o perigo não permitido de uma colisão, e este perigo também se realizou. Mas deve-se imputar o resultado também ao ciclista de trás, de maneira que ele tenha evitado o acidente com o primeiro ciclista; e este perigo se realizou da mesma forma que o criado pelo outro ciclista. Mas, e é neste ponto que se encontra a diferença decisiva: a finalidade do dever de iluminação é evitar colisões próprias, não alheias! O resultado deveria ser imputado ao segundo ciclista somente se fosse ele a colidir com um terceiro. O seu dever de iluminar não tinha de impedir que o outro ciclista colidisse com um terceiro. O segundo ciclista não realizou o risco não permitido que a lei queria evitar através do seu comando, podendo ele, portanto, ser acusado pela falta de iluminação, mas não punido por lesões corporais culposas.50
Portanto, é preciso, além da criação ou incremento de um risco proibido e da realização deste
risco no resultado típico, que este mesmo resultado esteja abrangido pelo fim de proteção da
norma de cuidado51. Em resumo, a conduta e o resultado devem estar previstos na finalidade
de proteção da norma de cuidado para que possa se falar em imputação.
49 GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 134.
50 ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.38, p. 11-31, abr./jun., 2002, p. 18.
51 ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.38, p. 11-31, abr./jun., 2002, p. 18.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
109
1.4 Críticas à Teoria da Imputação Objetiva e Suas Possíveis Reformulações
Günther Jakobs e Wolfgang Frisch tem buscado desenvolver críticas e teses alternativas
à teoria da imputação objetiva tal como compreendida e demonstrada ao longo deste estudo.
Ambos têm entendido a objetivização e normatização do tipo além da imputação do resultado,
mas também da própria conduta52.
No que tange às contribuições de Jakobs, é de fundamental relevância expor que sua teoria da
imputação tem ligação estrita com seu entendimento do sistema penal funcional e teleológico
baseado na função da pena, qual seja, a prevenção geral positiva. Assim, sua teoria da
imputação tem na função da pena a sua coluna vertebral53. Nesse sentido, Jakobs busca uma
total objetificação da análise da imputação por meio da figura do papel social do agente. A
título de exemplo, ilustra o caso de um estudante de biologia que trabalha como garçom e,
graças a seus estudos, percebe que na salada exótica que vai servir se encontra uma fruta
venenosa, contudo, serve da mesma maneira54. Para Jakobs, o papel social da profissão de
garçom foi cumprido, portanto, no plano objetivo, que deixa a averiguação do injusto pessoal
da conduta e os conhecimentos específicos do autor a serem relevados pela norma jurídica,
o autor não é passível de imputação, e somente o seria caso, em vez de servir o prato
envenenado à pessoa destinada, escolhe-se outra pessoa para servir55.
Resta claro que Jakobs busca uma teoria da imputação que se baseia nas expectativas
sociais e no papel social exercido pelo cidadão, contudo, acaba por deixar de fora da análise
da imputação o desvalor da conduta, o injusto pessoal, assim, é possível afirmar que tal
52 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 119.
53 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 120.
54 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 122.
55 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 126.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
110
padronização das condutas a partir de suas expectativas e papéis sociais retira do injusto e
da imputação algo que lhe é fundamental, o aspecto humano da liberdade de ação. Portanto,
o papel social não é critério definitivo para a limitação da imputação.
Todavia, a despeito da incapacidade de rendimento do conceito de papel social como delimitador
da imputação objetiva, Jakobs contribui à teoria no que tange à elaboração do conceito de
risco permitido, elaborando-o juntamente com o princípio da confiança e a adequação social
de Welzel, assim, construiu as bases de uma análise do risco permitido remetido à esfera
de responsabilidade do cidadão, o que acaba por ampliar a imputação objetiva não somente
na averiguação do tipo objetivo, mas a imputação objetiva é “o pressuposto necessário do
tipo subjetivo e da culpabilidade”56, eis que, uma vez que o risco permitido está no âmbito
da esfera de responsabilidade de cada cidadão no que tange às suas atividades delimitadas
na vida social e seus conhecimentos específicos dele exigidos pelo tipo penal, a imputação
objetiva passa a ter uma análise da criação do risco proibido relacionada primeiramente à
ordem normativa, para depois realizar-se uma análise pessoal.
A partir de tal base teórica, Jakobs elabora o critério da proibição de regresso, que, grosso
modo, afirma que não pode imputar, ou seja, haver regresso de responsabilidade, na direção
daquele que se comportou de forma socialmente aceita de acordo com sua atividade. A
proibição de regresso provém da sua doutrina do funcionalismo sistêmico que vê no sujeito,
para fins do direito penal, um cumpridor de papéis sociais, neste sentido, se a conduta
do agente, mesmo que tenha desencadeado um resultado típico, estiver dentro de sua
incumbência social, tal conduta não é passível de imputação, como no caso do vendedor de
armas que, mesmo sabendo que o comprador pretendia matar alguém lhe vende a arma de
acordo com a lei. Ora, o vendedor cumpriu com seu papel e, desse modo, não criou nenhum
risco proibido.
No que tange às críticas de Wolfgang Frisch, ele afirma que a teoria da imputação objetiva de
Roxin erra em considerar a criação ou incremento do risco não permitido enquanto critério de
imputação, para ele, isto se trata de um pressuposto material à responsabilização penal, e não
56 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 136.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
111
de matéria de imputação. Portanto, deveria ter um desvalor autônomo, assim, Frisch defende
a diferenciação entre o desvalor da conduta (criação ou incremento de riscos) do desvalor do
resultado a ser imputado57. Nesse sentido, a criação ou o incremento de riscos integraria o
conceito de conduta típica, no âmbito da liberdade de ação, e deveria ser avaliado de forma
autônoma do desvalor jurídico do resultado. Portanto, existem dois graus de valoração: a
conduta típica e a imputação do resultado58, neste ponto, Roxin estaria antecipando critérios
de imputação para a zona de desvalor da conduta, criando uma super categoria que tenta
solucionar problemas da relação entre a ação e o resultado, no que a teoria de Frisch busca
integrar a teoria da imputação objetiva à teoria do injusto pessoal59.
2. Breves Considerações Finais
A teoria da imputação objetiva é fruto da tentativa de superação dos problemas das teorias
da causalidade lastreadas unicamente nas concepções causal-naturalistas em prol de uma
concepção causal-normativa, e sem dúvida, um dos maiores avanços da teoria geral do delito
dos últimos anos. Essa evolução é decorrente de um longo processo cumulativo que tem
início na filosofia Hegeliana e nos apontamentos feitos já no princípio do século XX que
demonstravam o enfoque da literatura jurídico penal no sentido de compreender de forma
valorativa as categorias do delito, por exemplo, Sauer, Radbruch e Engisch60, que em suas
advertências contra a teoria da equivalência das condições já afirmavam impossibilidade
de desvalorar jurídico-penalmente meros processos causais61. No mesmo sentido, a escola
neokantista já pretendia afastar-se de uma análise meramente calcada nas leis empírico-
naturais.
57 GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 140.
58 Ver em: FRISCH, Wolfgang. Comportamiento Típico e Imputación del Resultado. Trad. Joaquiín Cuello Contreras y José L. González de Murillo. Barcelona: Marcial Pons, 2004.
59 FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 144.
60 MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05, p. 2.
61 MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05, p. 2-3.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
112
Não obstante Welzel ter efetuado um retorno do direito penal ao jusnaturalismo quando buscou
sua ancoragem às estruturas lógico-objetivas, ou seja, trouxe novamente os influxos do
apego à natureza no desenvolvimento do tipo e da imputação incluindo ali a estrutura da ação
humana como condutora dos processos causais62, é de se afirmar que tal teoria não representa
de fato um regresso, pelo contrário, o finalismo teve o mérito de ampliar a compreensão
do direito penal frente às manifestações delituosas e deixou uma herança irrenunciável, o
transporte do dolo e da culpa da culpabilidade para o tipo. Porém, logo se percebeu que a
dogmática jurídico-penal não pode se atrelar a conceitos e critérios ontológicos sob pena de
tornar-se um sistema fechado e estéril, representante máximo de uma determinada “natureza
das coisas”. Portanto, a literatura especializada vem evoluindo no sentido do afastamento de
bases meramente ontológicas e causais em favor de uma concepção de fundo que se furta
de conceitos irretocáveis, de dogmatismos e fundamentalismos estéreis do mundo do ser,
senão que procure a construção do direito penal em concordância com os valores sociais
historicamente construídos por meio das relações humanas.
Na realidade, tal direcionamento da dogmática, em suas mais variadas feições, tem algo de
comum tanto ao neokantismo, como o regresso a Hegel, e como a filosofia fenomenológica
de Husserl. São manifestações em repúdio ao naturalismo positivista63 e, apesar das suas
diversas vertentes e seus modelos até opostos de fundamentação, coincidem em pretender ir
além da descrição científica dos fatos físicos para ascender à compreensão do sentido social
de tais fatos64. É daí a principal preocupação da teoria da imputação objetiva.
Assim, a teoria da imputação objetiva tem por objetivo delimitar o alcance do tipo objetivo
ao aportar o material com o qual se pode interpretar a relevância social da conduta típica.
Ora, sem esse material normativo, qualquer causação de um resultado não é mais que um
conglomerado naturalista, não é mais que uma amalgama heterogenia de dados que não tem
62 MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05, p. 3.
63 MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05,p. 5.
64 MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05. P 5.
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
113
significado social.65 Cabe à imputação objetiva converter esta amalgama em algo valorativo e
de significado66 passível de ser utilizado pelo direito penal, complementando os dados ôntico-
naturais por meio de uma (des)valoração com critérios normativos para, somente assim
poder-se imputar ou não a alguém um resultado como obra sua.
Por fim, apesar das críticas e falhas atribuídas à teoria da imputação objetiva, ela representa,
sem dúvida, um pedaço do futuro, um avanço na direção de uma dogmática jurídico-penal
capaz de resoluções mais justas e corretas.
65 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en el Derecho penal. Trad. Manuel Cancio Meliá. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996, p. 24.
66 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en el Derecho penal. Trad. Manuel CancioMeliá. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996, p. 24.
Verificaçãode leitura
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
A teoria da equivalência das condições é co-
nhecida por qual expressão?
a) Nemo Tenetur Se Detegere
b) Par Conditio
c) Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege
d) Conditio Sine Qua Non
e) Conditio
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
Qual a matriz filosófica da teoria da imputa-
ção objetiva do resultado?
a) Matriz Hegeliana
b) Matriz Kantiana
c) Matriz Hobbesiana
d) Matriz Liberal
e) Matriz Heideggeriana
Aula 04 | Teoria da Imputação Objetiva
114
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
Qual o objetivo do desenvolvimento do estu-
do da imputação objetiva:
a) Abandonar a causalidade.
b) Complementar a causalidade.
c) Superar a causalidade.
d) Criar uma nova tipicidade.
e) Estabelecer a valoração paralela na esfera do profano.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
Uma das etapas de análise da imputação
objetiva é:
a) A criação ou o aumento do risco não permi-tido.
b) A criação ou incremento do resultado.
c) A criação ou aumento da ação.
d) O aumento da tipicidade.
e) O aumento da imputação.
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
Caso o agente diminua o risco preexistente,
risco este não criado por ele, terá como con-
sequência:
a) A diminuição de pena.
b) A majoração da pena.
c) A dupla imputação.
d) A culpabilidade exasperada.
e) A não imputação do resultado lesivo.
Verificação de Leitura
115
BAUMANN, Jurgen. Derecho penal. Conceptos fundamentales y sistema. Introducción a la sistemática sobre la base de casos. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973.
COSTA, José de Faria. Apontamentos para umas reflexões mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 81, pp. 36-47, nov./dez., 2009.
COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta Iuris Poenalis). 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012.
D’ÁVILA, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, 2001.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Tomo I: questões fundamentais; a doutrina geral do crime. Coimbra: Editora Coimbra, 2004.
FEIJÓO SANCHEZ, Bernardo. Teoria da Imputação Objetiva. Estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticas e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri, SP: Manole, 2003.
FRISCH, Wolfgang. Comportamiento Típico e Imputación del Resultado. Trad. Joaquiín Cuello Contreras y José L. González de Murillo. Barcelona: Marcial Pons, 2004.
GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en el Derecho penal. Trad. Manuel Cancio Meliá. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996.
MANTOVANI, Ferrando. Principididirittopenale. Padova: CEDAM, 2002.
MAURACH, Reinhart. Derecho Penal. Parte General. Teoria general del derecho penal y estrutura del hecho punible. Trad. Jorge Bofill Genzsch y Enrique Aimone Gibson. Actualizada por Heinz Zipf. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994.
MIR PUIG, Santiago. Significado y alcance de la teoría de la imputación objetiva en derecho penal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2003, núm. 05-05.
ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Imputação Objetiva nos Delitos Omissivos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.33, pp. 101-119, jan./mar., 2001.
Referências
116
ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.38, p. 11-31, abr./jun., 2002.
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 82, p. 25-45, abr./jun., 2010.
WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. Trad. Juan Nustos Ramírez y Sérgio Yánez Perez. Santiago: Editorial Juridica del Chile, 1997.
WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976.
Gabarito
Questão 1
Resposta: Alternativa D.
Resolução: A fórmula do juízo hipotético de eliminação das causas – conditio sine qua non –
utiliza-se do termo “condição” porque não busca uma causa particularmente importante, senão
as condições do resultado, e “equivalência” porque se considera que todas as condições têm
o mesmo valor.
Questão 2
Resposta: Alternativa A.
Resolução: A teoria da imputação objetiva do resultado tem seus primeiros conceitos
Referências
117
remontados à matriz hegeliana, com posterior elaboração por Karl Larenz em 1927 e Richard
Honig em 1930, sendo atualmente desenvolvida por Claus Roxin, com relevante contribuição
de Günter Jakobs.
Questão 3
Resposta: Alternativa B.
Resolução: A imputação objetiva não vem postergar ou remeter a causalidade ao sótão
das noções jurídicas inúteis, mas busca complementá-la por meio da adoção de critérios
normativos voltados à relevância jurídica para além dos elementos empíricos.
Questão 4
Resposta: Alternativa A.
Resolução: Para a teoria da imputação objetiva, o resultado é passível de ser imputado
objetivamente ao agente unicamente quando o comportamento do autor cria ou aumenta um
risco não permitido, que este risco se realize no resultado concreto e que este resultado se
encontre dentro do alcance do tipo.
Questão 5
Resposta: Alternativa E.
Resolução: Se somente a criação ou aumento de risco não permitido podem ser levados
em consideração para que se possa imputar objetivamente ao agente o resultado como obra
sua, nos casos em que a conduta deste agente diminua o risco previamente existente (e não
criado por ele), igualmente não se poderá imputar a este o resultado lesivo. Primeiramente,
pois, não houve a criação ou aumento de um risco, e também porque o autor modificou o
curso causal de tal maneira que reduziu um perigo já existente para a vítima.
Gabarito
LEGENDA DE ÍCONES seções
119
Início
Referências
Gabarito
Verificaçãode leitura
Pontuando
Glossário
Vamos pensar
Aula
120
05
Os Paradigmas Filosóficos do Direito PenalObjetivos
Caro aluno, neste estudo, você terá condições de realizar uma análise da evolução do
conceito de conduta em direito penal e sua vinculação aos paradigmas filosóficos vigentes
em seu momento de formulação. Para isso, o texto percorre as principais escolas da teoria
da conduta desenvolvidas ao longo da história do pensamento jurídico-penal, desde o
Naturalismo, o Neokantismo e o Finalismo, bem como as propostas hodiernas Funcionalistas,
Significativa da Ação e as formulações de renúncia a um conceito pré-jurídico de ação como
a pedra angular da teoria do delito. A leitura, em um primeiro momento, poderá parecer
um tanto densa, no entanto, após ter acesso a este material, você terá todas as condições
de refletir e debater, com fundamento na melhor doutrina, o intricado tema das teorias da
conduta.
1. O Naturalismo
1.1 Raízes Filosóficas
Após os estudos dos hegelianos, o conceito de ação alcançou sua concretização como
elemento dogmático dentro da teoria do delito com a escola naturalista, também denominada
causalista, ou mesmo escola clássica, proeminente na época moderna. O conceito clássico
de ação humana relevante ao direito penal tem origem principalmente a partir dos escritos de
Franz von Liszt e Ernst Beling e é decorrente da influência do modelo positivista de ciência
que se estendeu ao longo da segunda metade do século XIX1, que se baseava na observação
e descrição empírico-naturalista dos fenômenos naturais, fixando-se no mundo do ser e
afastando-se de qualquer enunciado ou fundamento metafísico, abstrato ou valorativo. Ou
seja, partia do pressuposto de que todo conhecimento válido e seguro deveria guiar-se pela
possibilidade de demonstração empírica no mundo dos sentidos, na realidade sensível do
mundo.
1 MIR PUIG, Santiago. Limites delnormativismo em Derecho penal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, n.64, p. 197-221, jan./fev., 2007, p. 201.
121
Aula 05 | Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
Na lição de Arthur Kaufmann: “O poderoso florescimento das ciências naturais e a chegada
do capitalismo inicial, no princípio da modernidade, significaram uma ruptura no panorama
intelectual”2. O método científico demonstrava a pura possibilidade de encontrar as leis
eternas e imutáveis do mundo e, assim, a possibilidade de controla-lo e cumprir as promessas
da modernidade. A título de exemplo, Isaac Newton com elaboração da Lei da Gravitação
Universal realizou uma verdadeira revolução no campo científico. As leis de Newton podem
explicar todo e qualquer fato físico com equações precisas, desde o lançamento de um projétil,
o jogo de bilhar, a posição dos corpos celestes no universo, a subida das marés. Essa foi
uma descoberta tão poderosa e envolvente para a história do pensamento humano que logo
a teoria de Newton e o método das ciências naturais ganharam status como a única forma
válida de concepção da realidade, tomando conta do movimento artístico, literário e, claro,
também do direito.
Ademais, no campo da filosofia todos os grandes filósofos do período inicial da modernidade,
como Descartes, Hobbes, Grotius, Pufendorf, Espinoza, Locke e Leibniz3, a despeito da
formação escolástica em comum, buscaram cada um a seu modo romper com as explicações
de mundo puramente metafísicas ou teológicas, e passaram a dar ênfase à racionalidade do
homem, colocando-o como figura central do universo. Inaugurou-se o império da razão.
Mais notadamente foi Descartes que cristalizou para a ciência “seu mais elevado princípio:
clara et distincta perceptivo, conhecimentos claros e distintos”4, e reclamou a substituição da
velha filosofia de cunho especulativo e metafísico por uma filosofia prática, comprometida com
resultados verificáveis. Igualmente, Francis Bacon ressaltou a possibilidade de domínio da
natureza e a relação de poder que envolve o conhecimento, bem como o ideal de progresso5.
2 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2002, p. 83.
3 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. CalousteGulbenkian, 2002, p. 83.
4 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. CalousteGulbenkian, 2002, p. 84.
5 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito.
122
O entendimento seguro e passível de repetição almejado pela modernidade tinha de ser
claro e analítico, portanto, coube a qualquer ciência somente trabalhar com o empiricamente
demonstrável. Desse modo, a vivência do homem, suas vontades, crenças e paixões, são
banidas do âmbito das ciências e da filosofia por serem consideradas especulativas6. Não
de outra maneira, o Direito Penal, no anseio de afirmar-se como ciência e validar seu campo
de conhecimento logo tratou de ceder a tais ideais e metodologia, como aquele que cede
ao inelutável canto das sereias. É desse momento histórico em que o mundo assistia aos
grandes avanços científicos das ciências naturais e do fortalecimento de um paradigma
filosófico positivista é que emerge o Naturalismo e sua teoria da conduta, na configuração
exposta a seguir.
1.2 O Conceito de Conduta para o Naturalismo
O conceito clássico de delito, profundamente influenciado pelo pensamento naturalista
dominante no começo do século XIX, almejou submeter até mesmo as ciências do espírito
e o ideal de exatidão das ciências naturais e reconduzir todo o sistema do Direito Penal
a componentes sensíveis, mensuráveis e empiricamente demonstráveis da realidade7. A
partir de tal método, o que se poderia levar em conta na teoria do delito, ou bem seriam
fatores objetivos do mundo externo ou processos subjetivos-psíquicos internos, e nada mais.
Portanto, subdividiu-se o delito em âmbito objetivo e subjetivo8.
No âmbito objetivo, estão os elementos observáveis e verificáveis do mundo exterior, tais
como: a conduta, o resultado naturalístico, o nexo de causalidade, a tipicidade, o fato típico
e a antijuridicidade. Enquanto no âmbito subjetivo estão os elementos psíquicos e anímicos
do autor do delito: a culpabilidade, como a ligação psíquica entre o autor e o delito, de forma
a englobar o dolo e a culpa.
Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. CalousteGulbenkian, 2002, p. 84.
6 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. CalousteGulbenkian, 2002, p. 84.
7 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.200.
8 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 200.
Aula 05| Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
123
No campo do direito penal, tradicionalmente se atribui a Liszt, Beling e Radbruch9 a concepção
naturalista do delito e a consolidação do novo pensamento norteador à ciência jurídica; pois
estes esforçaram-se em trazer os influxos do método empírico das ciências naturais, calcadas
em experiências demonstrativas e estudos de causa e efeito, ao seio da dogmática jurídico
penal afirmando-a enquanto ciência.
No tocante à conduta como elemento do delito, Liszt a classificou como a modificação no mundo exterior, perceptível pelos sentidos, produzida por uma manifestação de vontade que se expressava na realização de um movimento corporal voluntário. Quanto
à referida voluntariedade, não se considerava o seu conteúdo, era definida simplesmente
como inervação muscular. Nas palavras de Liszt: “A voluntariedade na comissão ou na
omissão, não quer dizer livre arbítrio no sentido metaphysico [...], mas isenção de coacção
mechanica ou psychophysica”10.
Desse modo, a concepção causalista da conduta humana é vinculada somente aos
elementos de causa e efeito naturais, ontológicos, desconsiderando em seu bojo o elemento
da vontade enquanto dolo ou culpa, que resta para ser analisada posteriormente no âmbito
da culpabilidade, ou seja, na dimensão subjetiva do delito.
1.3 Críticas ao Conceito de Conduta Naturalista
O naturalismo trouxe o formalismo e a exclusão dos juízos de valor como máxima do
método positivista, e assim adicionou uma forma facilmente objetiva de analisar, reconstruir e
aplicar o direito, que parecia blindar-se frente ao perigo de manipulação subjetiva por parte do
intérprete11 e possibilitava a tão almejada certeza científica garantidora da segurança jurídica.
9 Contudo, há de se fazer uma pequena observação quanto a um erro comum da doutrina. Resulta inadequado falar do sistema causal enquanto o sistema “Liszt – Beling - Radbruch”, pois para cada um dos autores os conceitos de conduta e tipo penal desempenham papeis radicalmente diferentes, o que implica na impossibilidade de percebê-los em consonância na formação de um sistema único. Cf. VIVES ANTÓN, Tomás S. COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho Penal: Parte General. 4ª Ed. TirantloBalch: Valencia, 1996, p 340, nota 4.
10 LISZT, Franz von. Tratado deDireito Penal Allemão. Tomo I. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1899, p. 197.
11 MIR PUIG, Santiago. Limites del normativismo en Derecho penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, p. 197-221, jan./fev., 2007, p.202.
Aula 05 | Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
124
Porém, o conceito de conduta tem inúmeros problemas. Como elencado por Radbruch, tal
conceito de conduta naturalista como movimento corporal que provoca alteração no mundo
exterior não é capaz de abarcar os crimes comissivos e omissivos, pois na omissão não
existe um movimento corporal. Beling intenta uma defesa contra tal crítica, afirmando que:
Debe entenderse por “acción” un comportamiento corporal (fase externa, “objetiva” de la acción) producido por el dominio sobre el cuerpo (libertad de inervación muscular, “voluntariedad”), (fase interna, “subjetiva” de la acción); ello es, un “comportamiento corporal voluntario”, consistente ya en un “hacer” (acción positiva), ello es, un movimiento corporal, p. ej. levantar la mano, movimientos para hablar, etc., ya en un “no hacer” (omisión), ello es, distensión de los músculos12.
Ou seja, que na omissão haveria uma contenção muscular para a não realização do
mandamento legal. Tal defesa como se houvesse algo intrínseco no corpo humano que
tendesse ao fiel cumprimento do dever e o autor, voluntariamente contraindo seus músculos,
impedisse seu corpo de realizado. Ora, a punibilidade do crime omissivo não decorre de
um fenômeno natural, mas de um mandamento legal13 não existente no mundo do ser e da
causalidade física. Mais recentemente, no mesmo sentido D’Ávila, para quem:
[...] a submissão do direito penal aos estritos domínios do mundo do ser mostrou-se, além de arbitrária e pouco útil, verdadeiramente irrealizável. A omissão, p. ex., não existe em um mundo estritamente psicofísico. Ela até pode ter uma feição psicofísica, mas jamais existência psicofísica, na medida em que a sua existência está necessariamente condicionada a um elemento estranho ao mundo do ser: o dever de agir14.
Ademais nos casos de tentativa igualmente tal conceito não atinge sucesso, como aduz Roxin
com perspicácia, “tampouco a tentativa é explicável a partir de um conceito de injusto referido
à causalidade. Afinal, o tipo da tentativa não pressupõe causalidade fática”15. Outrossim, se
o elemento volitivo for deixado para o campo da culpabilidade, não é possível realizar uma
12 Von BELING, Ernst. Esquema de Derecho Penal. La Doctrina del Delito-Tipo. Trad. Sebastián Soler. Libreria el Foro: Buenos Aires, 2002, p. 42.
13 GOMES, LuizFlávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.48.
14 D’ÁVILA, Fábio Roberto. A realização do tipo de ilícito como pedra angular da teoria do crime. Elementos para o abandono do conceito pré-típico de ação e de suas funções. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n.54, pp. 135-164, jul./set., 2014, p. 149.
15 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 82, pp. 25-45, abr./jun., 2010, p. 38.
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125
diferenciação prática necessária para a tipificação da conduta, pois não está o elemento
que realiza a diferenciação entre uma tentativa de homicídio, uma lesão corporal dolosa ou
culposa, por exemplo.
Não obstante os méritos da escola naturalista, a acentuada preocupação científico-naturalista
acabou por construir um positivismo jurídico exacerbado, que em prol da clareza conceitual
e de um sistema neutro e esvaziado de conteúdo axiológico, implicou em não agregar em si
a dimensão mais essencial do injusto, o social, e assim restou enredado em um artificialismo
jurídico.
A proposta da escola clássica restou abandonada, uma vez que se pode compreender que os
fundamentos ideológicos e filosóficos nos quais se assentava não eram mais defensáveis16. É
verdade que a ela coube o mérito de ter construído um sistema dogmático do crime de método
claro e rigoroso. Mas as suas insuficiências são muitas17. Nas palavras de Figueiredo Dias:
O direito em geral – e o direito penal de forma particular – não participa do monismo metodológico (e ideológico) das ciências naturais, trata com realidades que excedem a experiência psicofísica e se não inscrevem de modo exclusivo no mundo do ser; como, por outro lado, o pensamento jurídico não se deixa comandar por uma metodologia de cariz positivista nem se esgota em operações de pura lógica formal. Logo que tudo isto se compreendeu, o sistema clássico do conceito de facto punível estava maduro para ser superado por uma nova concepção18.
2. O Neokantismo
2.1 Raízes FilosóficasHistoricamente, a transição do século XIX ao século XX foi o período conturbado, a
aproximação da primeira Guerra Mundial, a derrocada das promessas da modernidade, o
niilismo crescente. No campo das artes, tem-se no expressionismo e no cubismo a expressões
16 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 227.
17 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 227.
18 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 227.
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126
destes anseios expostos como a renúncia à lógica cartesiana e à representação fidedigna da
realidade. Já no movimento literário é o romantismo que carrega intento, e tem seu ápice na
Alemanha pelas mãos dos escritores Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller.
Ao mesmo passo, no campo das ciências a teoria de Newton e sua explicação mecanicista
de mundo mostraram-se insuficientes para abarcar toda a complexa dinâmica da realidade.
Logo, insurgiram-se tenazes vozes que pregavam a renúncia ao positivismo naturalista e à
fé no método científico. Um grande marco de ruptura do modelo newtoniano se deu com o
advento da Teoria Geral da Relatividade, publicada em 1915 por Albert Einstein, que afirma
que o tempo e espaço, matéria e a energia, estão intrinsecamente ligados, assim, esses
elementos sofrem influência mútua, ou seja, relativizam-se conforme a velocidade e a massa.
O peso dessa demonstração contraria diretamente os axiomas mecanicistas newtonianos,
que recebem duro golpe com a comprovação científica de que não eram tão verdadeiras
assim suas concepções tidas como irrefutáveis até então.
Ora, no campo do direito penal, não poderia ser diferente, também houve fortes influxos que
se deram em resposta ao naturalismo pretensamente neutro e vazio de conteúdo axiológico
que já havia se demonstrado insuficiente ao direito penal. Neste cenário surge o Neokantismo,
também chamado de sistema neoclássico, e que tem seu fundamento na filosofia dos valores
de origem kantiana, tal como ela foi desenvolvida nas primeiras décadas do século XX,
principalmente por Windelband, Rickert, Lask, integrantes da Escola de Baden, localizada no
sudoeste alemão.
Após intensa disputa de teses entre os neokantistas e causalistas, paulatinamente houve
a mudança para o sistema neoclássico que com base predominantemente na filosofia dos
valores procurou apartar-se do naturalismo e devolver um fundamento autónomo às ciências
do espírito19. Nesse sentido, a grande preocupação dos neokantistas foi dotar cada requisito do
delito com conteúdo material20, pois na concepção desta escola o direito é fruto de valorações
culturais, valores estes que deveriam ser reconhecidos pelos conceitos jurídicos.
19 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 200.
20 GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 49.
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127
De forma básica, a virada metodológica neokantiana parte do pressuposto filosófico que tem
importância acentuada na obra “Crítica a Razão Pura” de Kant, em que esse estabelece,
de maneira clara e com todo o peso de sua argumentação, a distinção entre ser dever ser,
entresein e sollen.
Kant preocupa-se com a questão de como é possível o conhecimento. O foco central de sua
obra filosófica está na argumentação de que a razão não é subordinada à ordem sensível da
experiência do sujeito cognoscente, ao contrário, por meio dos juízos sintéticos a priori da
razão, são os fenômenos que se subordinam à razão e ao entendimento. Disso decorre que
o conhecimento obtido pelo homem não é só proveniente de suas experiências sensíveis a
partir de juízos sintéticos a posteriori, como defendido pelo empirismo de David Hume, nem
mesmo que o conteúdo razão guia-se a partir de juízos analíticos a priori, como defendido
por Descartes, e sim que a razão humana detém juízos sintéticos a priori, a capacidade
de processar os dados dos sentidos e construir conhecimento, o que implica que somente
nos é dada a formalidade da razão, a partir do conhecimento do mundo sensível, e não
seu conteúdo. Portando, a consciência humana é uma valoração dos fatos percebidos pelos
sentidos e guiados pelo formalismo da razão, contudo, seu conteúdo é sempre contingente e
transcende o empírico. Neste ponto, resta claro o total afastamento entre o ser e o dever-ser.
Na lição de Kaufmann:
Só a forma é fornecida a priori, não o conteúdo. Também o “direito em si”, o direito natural, não é cognoscível na sua totalidade, devido à incapacidade do entendimento de apreender “matéria em sí”. O “direito correto” só pode subsistir enquanto categoria do nosso entendimento, enquanto forma de pensamentovazia, que nós aplicamos à matéria jurídica dada empiricamente, através da qual pensamos a norma positiva como direito, como direito correto21.
21 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2002, p. 117.
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128
2.2 O Conceito de Conduta Neokantista
Do ponto de vista da dogmática jurídico-penal, a argumentação anteriormente exposta se desdobra na questão de que a causalidade pertence ao ser, mas o fundamental no sistema penal é o injusto e sua imputação derivada das normas, o dever-ser22. Assim, para que o direito penal possa ser eficaz deve ter fulcro nas concepções ideológicas e culturais dos grupos de sujeitos organizados em forma de sociedade, e não em conceitos ontológicos de validade geral, como no naturalismo. Com base nessa concepção, a proposta neoclássica foi a de oferecer uma fundamentação metodológica a conceber todos os conceitos jurídico-penais de forma axiológica, sem, no entanto, negar-lhe caráter de cientificidade. Ressalta-se que não foi proposta nenhuma alteração na estrutura sistemática do delito, mas somente uma transformação do conteúdo dos elementos que a compunham23. Na doutrina alemã, os
nomes cimeiros dessa orientação jurídico-penal foram Mayer e Mezger.
No que tange ao conceito mesmo de conduta, ou ação, Mezger leciona que:
El concepto de acción, que hemos presentado como base de la pena, señala en la conducta humana que convierte en objeto de consideración jurídico-penal — un acontecimiento natural-real en el mundo de la experiencia. Como elemento del sistema normativo jurídico-penal […], indica lo que debe ser castigado con pena, y está hecho para servir, en su ulterior estructuración, para la apreciación de determinadas finalidades humanas. Por consiguiente, no está en lo cierto V .LlSZT cuando ve en ese concepto tan sólo una “abstracción delos hechos”[…]. Pero es siempre, necesariamente, un concepto realista y, por consiguiente, ontológico (esencial)24.
Como é possível perceber, o neokantismo, a despeito de toda sua reelaboração do conteúdo dos elementos sistemáticos do delito e de sua guinada metodológica, no que tange ao conceito de conduta, não difere do conceito naturalista elaborado por Liszt, somente se distancia ao afirmar o erro de Liszt, ao entender a ação abstraída dos fatos e não como um juízo de desvalor social. Outrossim, no neokantismo permanece a divisão do delito em âmbito objetivo e subjetivo já criticada anteriormente quando ao causalismo, como se pode observar
no seguinte trecho do manual de Mezger:
22 GOMES, Luis Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 49.
23 BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 13.
24 MEZGER, Edmund. Derecho Penal: Libro de estudio. Parte General. Trad. Ricardo C. Núñez. Editorial Bibliográfica Argentina: Buenos Aires, 1958, p. 87. Destaque nosso.
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Todo hecho punible presenta un aspecto OBJETIVO y otro SUBJETIVO. El hombre tiene una doble naturaleza, material y psíquica. También su conducta, en la convivencia humana, presenta siempre, por consiguiente, un aspecto externo, perceptible físicamente, y otro interno y psíquico. No con toda exactitud, pero en forma comprensible y corriente, se denominan, respectivamente, aspecto “objetivo” y “subjetivo” del hecho punible25.
Neste sentido, resta claro que o neokantismo não elaborou um novo conceito de ação. O
que ocorre é uma mudança o reconhecimento de um desvalor na ação, e não uma mera
descrição pura, eis que são abandonados os aportes naturalistas pretensamente neutros,
substituídos pela ideia da “relevância social” e “normas de cultura”. Portanto, o conceito de
ação continuou, essencialmente, como comportamento humano causalmente determinante
de uma modificação do mundo exterior ligada à vontade do agente26.
Para uma exposição mais geral da estrutura do delito e suas modificações, Mir Puig:
Pronto se vio que la acciónno era solo movimento físico, sino una conducta que importa al Derecho penal en función de su significado social, que puede depender de su intención. Más evidente era aún que la antijuridicidadno es una mera descripción de una causación, sino, inevitablemente, un juicio de desvalor, que también depende de aspectos significativos delhechonopuramente causales. Del mismo modo, el significado negativo del concepto de culpabilidad no podía sustituirse por la sola constatación de una conexión psicológica cuasi-causal entre el hecho producido y la mente del autor, como lo demostró la inexistencia de tal vínculo psicológico en la culpa inconsciente y, en definitiva, la esencia normativa de todo imprudencia, así como la insuficiencia del proprio dolo para la imputabilidad y para la negación de otras causas de exculpación27.
Ainda, conforme Figueiredo Dias, tal proposta teórica pretendeu resgatar o direito penal
[...] do mundo naturalista do ‘ser’, para, como ‘ciência do espírito’, o situar numa zona intermediária entre aquele mundo e o do puro ‘dever-ser’, [...] no mundo das referências da realidade aos valores, do ser ao dever-ser e, logo por aí, no mundo da axiologia e dos sentidos28.
25 MEZGER, Edmund. Derecho Penal: Libro de estudio. Parte General. Trad. Ricardo C. Núñez. Editorial Bibliográfica Argentina: Buenos Aires, 1958, p. 78. Destaque nosso.
26 DIAS, Jorge de Figueiredo. DIreito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 228.
27 MIR PUIG, Santiago. Limites delnormativismo em Derecho penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, p. 197-221, jan./fev., 2007, p.203.
28 DIAS, Jorge de Figueiredo. DIreito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p 227.
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130
O que implica, no que tange ao sistema do crime, em preencher cada conceito do sistema do
delito com essas referências axiológicas. Nesse sentido, o ilícito passa a ser entendido como
“danosidade social”, já a culpa, além do elemento de ligação entre o autor e seu delito, como
a “censurabilidade” do agente por ter agido da forma como ter agido de outra forma29.
2.3 Críticas ao Conceito de Conduta NeokantistaO neokantismo adotou o conceito causal de ação proveniente do naturalismo sem
significativas alterações, senão a percepção de que era necessário compreender e valorar
a conduta humana, e não meramente observá-la e descrevê-la dentro de uma realidade
parcial, apegada à lei da causalidade30, o que implicou na reestruturação do conceito de
delito ao ponto de reconhecer que o injusto não é explicável em todos os casos somente
por elementos puramente objetivos e empíricos e que a culpabilidade tampouco se exaure
exclusivamente em elementos subjetivos31.
Contudo, essas alterações não foram capazes de sanar as deficiências do conceito naturalista,
de forma que as críticas elaboradas a este igualmente são cabíveis e coerentes quando
direcionadas ao neokantismo; desde sua insuficiência em compreender os delitos omissivos,
a dificuldade de tipificação, eis que o elemento subjetivo previsto no tipo só poderia ser
analisado posteriormente na culpabilidade, a impossibilidade de compreensão das tentativas
brancas e o forte apego ao positivismo.
A escola neoclássica, na busca de contornar as deficiências do naturalismo, acabou por
fundar o direito penal em uma abstração valorativa. O intuído de torná-lo rico de conteúdo
axiológico naufragou nas barreiras do positivismo jurídico, eis que se compreendeu a lei como
a expressão das valorações culturais. Contudo, o neokantismo teve o mérito de rascunhar
29 DIAS, Jorge de Figueiredo. DIreito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.228.
30 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 106.
31 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoríadel delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 198.
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131
uma ideia mais concreta de bem jurídico e de tipicidade material dentro da teoria geral do
delito, porém, tal concretização não foi levada a cabo mesma32.
3. O Finalismo
3.1 Raízes FilosóficasO afastamento da teoria causal do delito, tanto na sua concepção naturalista quanto
neokantiana, ocorre após o término da segunda guerra mundial com a ascensão da teoria
finalista, elaborada por Hans Welzel. Basicamente, o giro metodológico se dá, pois para o
finalismo, nas palavras de Roxin: “o Direito Penal é fundado não sobre a causalidade, mas
sim sobre a vontade humana que dirige o acontecimento no sentido da finalidade delitiva”33.
É nesse momento histórico em que o mundo se defrontava com a derrocada dos governos
totalitários Nacionais Socialistas e com as atrocidades cometidas pelos mesmos, é que ganha
impulso a teoria finalista da ação. O finalismo nasce em um contexto de máxima busca à
limitação do legislador, almejando a superação das teorias jurídico-filosóficas positivistas,
visto que, após o terrível período de soberania e arbitrariedade que se estendeu no nacional-
socialismo, “durante o qual o direito foi pervertido até se tornar irreconhecível, muitos creram,
obviamente, que, na hora zero a seguir da segunda guerra mundial, se devia regressar ao
direito natural”34.
Nesse sentido, a grande preocupação de Welzelfoi demonstrar que a realidade empírica
oferece limites ontológicos ao legislador. No campo do Direito Penal, a estrutura da ação
humana e da culpabilidade seriam estes referidos limites, que caso fossem ignorados levariam
necessariamente a incoerências e contradições insolúveis35. A tais limites Welzel intitulou
32 No mesmo sentido, BREIER, Ricardo. Ciência penal pós-finalismo: uma visão funcional do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.46, p. 95-119, jan./mar., 2004, p. 96.
33 ROXIN, Claus. Reflexões sobre a construção sistemática do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.82, pp. 25-45, abr./jun., 2010, p. 29.
34 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito Contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel de Oliveira, revisão e coordenação de António Manuel Hespanha, Lisboa: Fund. CalousteGulbenkian, 2002, p. 125.
35 LOPES, Othon de Azevedo. Os Fundamentos Filosóficos e Metodológicos da Teoria Finalista da Ação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.45, pp. 129-157, out./dez., 2003, p. 129.
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132
estruturas lógico-objetivas ou ônticas, que tinham por objetivo propiciar uma ancoragem
ontológica e imutável ao direito e suas formas, de maneira a garantir minimamente, a partir
do mundo do ser, os elementos essenciais que impediriam a arbitrariedade por parte do
legislador.
Apesar de grande parte da doutrina aduzir que Welzel, para elaborar o conceito final de ação,
tenha se baseado no ontologismo filosófico de Nicolai Hartmann, no prólogo da 4ª edição da
obra “O Novo Sistema Jurídico-penal”, em que o autor tece um esclarecimento no qual alega
ser inverídica tal atribuição: “No tendría, sin duda, ningún motivo para avergonzarme de que
el origen de mi doctrina estuviera en la filosofía de Nicolai HARTMANN - si fuera cierto. Este
no es el caso, sin embargo”36. Segundo o autor, sua produção tem influências diretas da
escola da psicologia do pensamento, e de autores como Richard Honigsvald, Karl Búhler,
Theodor Erismann, Reich Jaensch e Wilhelm Peters, bem como a filosofia fenomenológica
de P. F. Linke e Alexander Pfander.
A teoria finalista do delito foi resultado da aplicação do método filosófico fenomenológico
e das considerações existencialistas sobre o homem e o direito37. É possível cristalizar o
entendimento sobre o projeto de Welzel através da leitura de principal obra filosófica, o livro
“Introdução à filosofia do direito”, neste livro, o sexto e derradeiro capítulo é intitulado: “O que
fica?”, Welzel inicia o referido capítulo com o seguinte fragmento dos escritos póstumos de
Kant38:
Todo pasa ante nosotros como el decurso de un rio, y el gusto cambiante Y las distintas figuras de los hombres hacen de todo el espectáculo algo incierto y engañoso. ¿Dónde encuentro puntos firmes de la naturaliza que el hombre no puede nunca desplazar, y dónde puedo hallar referencias de la orilla a la que debe atenerse?39
36 WELZEL, Hans. El Nuevo Sistema del Derecho Penal. Uma introducción a la doctrina de la acción finalista. Trad. José Cerezo Mir. Buenos Aires: Euros Editores, 2004, p. 28.
37 LOPES, Othon de Azevedo. Os Fundamentos Filosóficos e Metodológicos da Teoria Finalista da Ação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.45, pp. 129-157, out./dez., 2003, p. 129.
38 Nesse sentido, com perspicácia e precisão LOPES, Othon de Azevedo. op. cit., p. 137.
39 KANT apud WELZEL, Hans. Introducción a la filosofía del derecho. Derecho natural y justicia material. Trad. Felipe González Vicén, Aguilar: Madrid, 1971, p. 248.
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133
É a esta questão formulada por Kant que Welzel propõe-se a responder com a sua teoria da
ação finalista, é este o lema da sua busca pelo retorno ao direito natural40: encontrar os pontos
firmes na natureza aos quais o homem nunca possa deslocar, os elementos fundamentais
do direito natural, evidentes e perenes, por ele denominados estruturas lógico-objetivas,
destinadas à vinculação do legislador e a servir de guia à aplicação e à interpretação de todo
o sistema jurídico.
Em suma, a teoria finalista da conduta baseia-se filosoficamente em teorias ontológico-
fenomenológicas, que tinham por objetivo encontrar determinadas leis estruturais do ser
humano e convertê-las em fundamentos das ciências do espírito. Nesse contexto, nada mais
lógico que colocar um conceito básico antropológico e pré-jurídico como o da ação humana
no centro da teoria geral do delito como que previamente dado ao legislador enquanto
ancoragens permanentes41.
Como ressalta Othon de Azevedo Lopes:
A marca do pensamento fenomenológico em Welzel é evidente. A teoria finalista da ação e seu pensamento sobre culpabilidade foram resultado da busca por elementos permanentes no direito penal. Como resultado tipológico, foram a ação e a culpabilidade os dois modos de ser que foram escolhidos para constituir estruturas lógico-objetivas ou ônticas, ou seja, constantes da realidade. Outro ponto marcante da aproximação de Welzel com o pensamento fenomenológico constitui-se na superação das dicotomias neokantianas de sujeito e objeto, direito e moral, ser e dever ser. Dentro do pensamento de Welzel, tais categorias não existem de forma estanque. São, em verdade, confluentes [...]42.
Coadunada à concepção das estruturas lógico-objetiva proveniente da fenomenologia, Welzel
insere no seio de sua teoria a filosofia existencialista, pois é a partir da visão existencialista
do homem que o autor constrói um dos conceitos-chave de sua filosofia do direito: o homem
como ser responsável, singular e finito. Nesse sentido, o finalismo se entrelaça com a ideia
de os atos humanos serem manifestação de autonomia, decisões existenciais, sem as quais
40 WELZEL, Hans. Introducción a la filosofía del derecho. Derecho natural y justicia material. Trad. Felipe González Vicén, Aguilar: Madrid, 1971, p. 248.
41 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 201.
42 LOPES, Othon de Azevedo. Os Fundamentos Filosóficos e Metodológicos da Teoria Finalista da Ação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.45, pp. 129-157, out./dez., 2003, p. 133.
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134
não poderia ser compreendido. De outro lado, aponta ser a culpabilidade um juízo sobre o
fracasso do homem como ser responsável, isto é, uma avaliação sobre um ser responsável,
consciente de seus deveres e domínios43.
Nas palavras de Othon de Azevedo Lopes, a crença basilar do finalismo e sua teoria da ação
é que:
A natureza e a essência do homem (Dasein ou ser-aí) é a existência. E por sua vez, a essência da existência é a possibilidade de atuar e, por consequência, se escolher ou se perder. A existência é por isso essencialmente transcendência, isto é, superação. O Homem é um projeto e as coisas do mundo são seus utensílios postos à sua disposição. O homem compreende algo quando sabe utilizá-lo. Da mesma forma, o homem compreende a si mesmo quando sabe o que fazer consigo44.
Welzel elabora toda sua teoria da ação tendo fulcro nos fundamentos filosóficos expostos
anteriormente, afirma ainda que tal empreendimento não é em nada novo ou original, por se
tratar de uma verdade antiga, já reconhecida no âmbito da história da filosofia:
Con esta caracterización de la esencia de la acción humana nos incorporamos a una gran tradición Filosófica. Desde que ARISTÓTELES (ética de Nicomach, 1.112 b) mostrara la estructura de la acción, por primera vez a través de la finalidad, esta comprensión se impuso en la Edad media (ante todo por obra de SANTO TOMÁS) y quedó reconocida generalmente hasta HEGEL. Sólo a fines del siglo XIX, cuando las ciencias mecánicas naturales invaden el campo del derecho, se trató de hacer también de la acción un proceso causal exterior45.
3.2 O Conceito de Conduta FinalistaO conceito de conduta para o finalismo foi ampliado, não resumindo-se mais a um mero
processo causal, para o finalismo: “Acción es el ejercicio de la actividad finalista. La acción
es, por lo tanto,un acontecimiento “finalista” y no solamente causal”46.
43 LOPES, Othon de Azevedo. Os Fundamentos Filosóficos e Metodológicos da Teoria Finalista da Ação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.45, pp. 129-157, out./dez., 2003, p. 134-136.
44 LOPES, Othon de Azevedo. Os Fundamentos Filosóficos e Metodológicos da Teoria Finalista da Ação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.45, pp. 129-157, out./dez., 2003, p. 135.
45 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 18.
46 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 20.
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135
A ação, como exercício de atividade finalista, apresenta-se como uma estrutura, baseada no
modo essencial de ser do homem, a qual o legislador não pode modificar ou ignorar, nem
negar o papel que nela desempenha a vontade. A ação, desta forma, não se resume a um
mero processo causal ou a mera soma de elementos objetivos e subjetivos, é em verdade a
direção do curso causal pela vontade do homem47.
A finalidade da ação baseia-se no modo de ser do homem, que com base em seu conhecimento
causal prévio pode prever até certo ponto as consequências possíveis de uma atividade,
propor-se distintos objetivos e dirigir sua atividade segundo um plano que tenda a obtenção
de seus objetivos de forma a intervir e dirigir os acontecimentos causais a determinado
resultado48.
Nesse sentido, ressalta Welzel que:
La finalidad es un actuar dirigido concientemente desde el objetivo, mientras que la pura causalidad no está dirigida desde el objetivo, sino que es la resultante de os componentes causales circunstancialmente concurrentes. Por eso, gráficamente hablando, la finalidad es ‘vidente”, la causalidad es “ciega”49.
No que tange a capacidade do homem de guiar os processos causais conforme seus e
objetivos, para que se possa direcionar o curso causal às consequências desejadas, o autor
tem de conhecer determinados elementos: 1) o objetivo a ser alcançado; 2) os meios para
isto e; 3) as consequências secundárias que estão vinculadas a isso50. Portanto, a atividade
finalista não somente compreende a finalidade da conduta, senão engloba os meios e as
consequências51.
47 CEREZO MIR, José. O Finalismo Hoje. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.12, p. 39-49, out./dez., 1995, p. 39.
48 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 20.
49 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 20.
50 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 21.
51 WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Fricker. Depalma: Buenos Aires, 1951, p. 21-22.
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136
3.3 Críticas ao Conceito de Conduta FinalistaA pedra de toque da teoria finalista é sua teoria da conduta. Nesse sentido, quando
adotado o conceito pré-típico de ação proposto pelo finalismo, só são imputáveis ações
finalisticamente dirigidas, consoante uma vontade de realização que abarca o propósito, os
meios selecionados e as consequências secundárias previsíveis decorrentes deste agir.
O finalismo teve o mérito de corrigir grande parte dos problemas enfrentados pelos conceitos
causais, tanto em sua vertente naturalista quando valorativa. Uma vez que a finalidade faz
parte do conceito mesmo de ação, os “elementos subjetivos” do autor, por dizer, o dolo e
a culpa, foram transportados da culpabilidade para o tipo, o que resolveu o problema da
definição típica de condutas que se diferenciam somente pelo elemento subjetivo. Ainda, em
matéria de erro na ação, passou-se a operar entre erro de tipo, que se baseia na inexistência
de dolo, e erro de proibição, que implica a impossibilidade do autor compreender a ilicitude
da conduta52.
As excludentes de ilicitude, ou tipos permissivos, igualmente passaram a exigir também
elemento subjetivo correspondente, por exemplo, na legítima defesa, o animus defendendi53.
Reflexos se projetaram também no campo da participação, passando a conduta do partícipe
a necessitar do aspecto subjetivo do injusto, de maneira que, não havendo dolo ou culpa por
sua parte, não haveria nem a ação a ser relevada pela custódia penal54.
Resta claro que são irrenunciáveis os méritos do finalismo, ainda, irretocável a consideração
do elemento volitivo já na ação típica. Contudo, há ainda questões em aberto quanto à
capacidade de rendimento, bem como dos fundamentos dessa teoria. Portanto, as críticas
feitas ao finalismo não se combatem ao fato de que o Direito Penal só pode proibir ações
humanas e não a mera causação de um resultado; contudo, essa máxima finalista não é
capaz de explicar o porquê de a conduta humana ser relevante ao juízo de antijuridicidade,
de forma que recai em uma garantia formal, sem conteúdo.
52 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 163.
53 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 163.
54 GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 165.
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137
Outrossim, são levantadas severas críticas ao que tange à capacidade de rendimento da
teoria da conduta finalista nos crimes culposos e omissos.
No que diz respeito aos delitos culposos, Roxin questiona que a finalidade no crime nesses
delitos é irrelevante a fins jurídicos penais55. Portanto, o delito culposo não poderia ser explicado
pela teoria finalista da ação, de conteúdo ontológico e formal, pois a sua reprovabilidade
decorre somente de um dever de cuidado objetivo, que é meramente de cunho valorativo
axiológico, decorrendo da política criminal e da ordem social, e não das atitudes internas do
sujeito ou de determinada natureza das coisas.
Nesse ponto Hirschdefende, a teoria finalista afirmando que: “En primer lugar, hay que se
señalar que también en el delito imprudente se da una verdadera acción final. Su finalidad
no se refiere al resultado (delictivo); sino a un proceso, previo a dicho resultado”56. Ora, é
difícil discordar que há uma finalidade prévia a ser considerada nos delitos imprudentes, e
que embora não interesse a finalidade para definição típica, o fim implica a possibilidade de
definir quais os cuidados eram devidos. Contudo, tal defesa demonstra justamente que a
finalidade nos delitos imprudentes não é relevante à tipificação, senão como critério de nexo
causal ou normativo – no âmbito da teoria da imputação objetiva. Portanto, pode-se afirmar
que o finalismo não compreende inteiramente os delitos imprudentes, afinal, se a proposta
é exatamente partir de um conceito de conduta pré-jurídico em relação ao tipo penal, o fato
de que a finalidade nascondutas culposas não ter relevo para o direito penal em absoluto
desconstituirá o conceito de conduta do qual se tem por base toda a teoria analítica do crime57.
No que tange aos delitos omissivos, nesses não há uma ação dirigida a um fim, há um
não fazer, derivado de um dever objetivo, uma expectativa de cumprimento de um mandato
normativo de ação. Nesses crimes, a punição não tem fulcro em uma ação final, mas no fato
do agente ter descumprido um dever de agir esperado pelo âmbito normativo, o que não se
enquadra na proposta finalista, por mais intenso que seja a participação intelectual do autor
55 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoríadel delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 241.
56 HIRSCH, Hans Joachim. La polémica en torno de la acción y de la teoría del injusto en la ciencia penal alemana. Trad. Carlos J. Suárez Gonzalez. Bogotá: Universidade Externado de Colombia, 1993, p. 35.
57 BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem.2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 181.
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138
no processo que se desenvolve ante ele58, ele não domina o processo causal, senão somente
tem potencial de fazê-lo.
Nesse diapasão, a omissão não dirige o curso causal pela vontade, senão deixa o curso
causal livre sem intervir conforme manda o direito, ou seja, para sua configuração, o agente
tem que ter tido, no momento do fato, potencial para modificar o curso causal conforme o
direito e não tê-lo feito. Daí, ter Roxin objetado a diferenciação entre a mera potencialidade de
ação conforme mandamento normativo e a realização de um ilícito comissivo doloso por meio
do guiar voluntariamente um curso causal59, devendo haver o distanciamento efetivo entre as
duas formas de conduta, pois de naturezas diversas.
Por outro lado, a finalismo são atribuídos os méritos de haver percebido no desvalor da ação
um elemento constitutivo do injusto penal, superando o conceito causal de ação e tendo
logrado melhor delimitação da culpabilidade.
Porém, ao mesmo passo, nem mesmo o conceito ontológico finalista de ação foi capaz de
conduzir a resultados mais eficazes para a limitação do legislador, por implicar uma subjetivação
do injusto. Sobre isso, Armin Kaufmann, seguidor ortodoxo de Welzel, chegou a propor que,
como o centro da imputação penal é a ação final do autor, o injusto pessoal já estaria completo
quando o autor tenha feito tudo que, segundo a sua representação, seja necessário para
que ocorra o resultado por ele almejado. Se caso não sobrevier o resultado, tal encontra-se
fora da influência anímica do autor60. Dessa forma, a figura da tentativa receberia a mesma
sanção do crime consumado. Tal posicionamento caracteriza um radicalismo doutrinário
e uma subjetivação extrema do injusto penal. Disserta Hans Joachin Hirsch, outro grande
defensor do finalismo, que a perspectiva de Armin Kaufmann representa uma sobrevaloraçao
do aspecto subjetivo, devendo ser desconsiderada61. Destarte, com fulcro nesses influxos,
58 GUARAGNI. Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 167.
59 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoríadel delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 241.
60 HIRSCH, Hans Joachin. Sobre o estado atual da dogmática jurídico-penal na Alemanha. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.58, p. 65-84, jan./fev., 2006, p. 70.
61 HIRSCH, Hans Joachin. Sobre o estado atual da dogmática jurídico-penal na Alemanha. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.58, p. 65-84, jan./fev., 2006, p. 70.
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139
alicerçar a pena em atitudes internas do sujeito é contrário aos preceitos básicos do Estado
Democrático de Direito, uma vez que não cabe ao direito penal retribuir os propósitos íntimos
do cidadão, mas sim, proteger bens jurídicos.
Portanto, é válida a alegação de Mir Puig no sentido de que as estruturas ontológicas sobre
as quais Welzel assentou a teoria do delito, a ação final e a culpabilidade têm a capacidade
de limitar o legislador bastante reduzida, eis que não servem para decidir o mais importante:
quais ações finais culpáveis castigar-se e quais não, nem a que critério orientar a classe e
quantidade de pena que deve impor-se a cada caso. Seu poder de limitação é inferior ao que
tem o conjunto de princípios político-criminais geralmente admitidas na atualidade62.
Compreender o tipo penal como a concretização ético-moral que leve em conta elementos
evidentes e imanentes, inegáveis e eternos, provenientes da própria natureza das coisas
capazes de dar a forma e ancoragem ao direito foi método escolhido para tornar o sistema
jurídico-penal seguro quanto às manipulações que se poderia sofrer, a exemplo, o direito no
estado Nacional Socialista. Porém, ao fazer isso, o finalismo deu caráter irretocável à norma,
Welzel acabou a forma da lei, e não seu conteúdo, tornando a dogmática hermética aos
clamores sociais.
Para Welzel, o conteúdo material do direito já está expresso na norma por si mesma, que
traz em seu âmago o dolo ou a culpa desvinculado de seu contexto social. O fruto dessa
concepção não logra êxito em combater a possibilidade de barbárie e torção do direito, pois
é sistema fechado.
Não obstante às censuras, o finalismo acabou por proporcionar um giro metodológico ao
apontar novas bases ao sistema jurídico penal, no momento em que reformula sua dogmática
central. Destarte, é plenamente válido seu reconhecimento como um importante e fundamental
estágio de desenvolvimento do pensamento jurídico-penal.
62 MIR PUIG, Santiago. Limites delnormativismo em Derecho penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.64, p. 197-221, jan./fev., 2007, p. 206.
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4. Teorias Pós-Finalistas
Frente às dificuldades e insuficiências das teorias da conduta apresentadas até o
momento, a doutrina não se furtou em lançar propostas com a finalidade de desenvolver um
supraconceito de ação pré-típico (oberbegriff) capaz de compreender tanto a ação quanto a
omissão e satisfazer funções básicas esperadas deste.
Com efeito, em virtude do intenso debate entre os causalistas e finalistas que dominou
os escritos penais do período pós-guerra, várias propostas foram elaboradas. O ponto
nodal de todas as teorias da conduta surgidas após o finalismo, em suas mais diversas
fundamentações, é possível perceber um fundo em comum, uma orientação filosófica de
raiz histórica e cultural, a descrença nos fundamentos metafísicos ou mesmo nas promessas
científicas da modernidade. Na arguta síntese de Manuel da Costa Andrade:
O penalista deixa de orientar os passos na busca das constantes antropológicas duma imutável e dada natureza das coisas, colhida na contemplação cosmológica, recebida da revelação, alcançada na meditação ôntico-metafísica ou na experimentação empírico-naturalista. Em causa não está desvelar “verdades” escritas nas estrelas ou inscritas in cordehominis, mas perscrutar o mundo e a vida, descobrir a raiz do conflito e da angústia e verter sobre ela o bálsamo possível63.
Ainda, o conceito pré-típico de ação passou paulatinamente a ter sua importância dogmática
suprimida ou mesmo prescindida em prol do tipo penal, tal como já assinalava Beling, frente
a dificuldade, senão impossibilidade de resolução de suas dificuldades. Outrossim, é inegável
que tal conceito se tratará sempre de uma ação-típica, vista pelo prisma do direito penal,
ou seja, há a impossibilidade de utilização de um conceito puramente ontológico ou mesmo
puramente normativo prévio ao direito penal e ao tipo, o que importa concluir que a adoção
de uma teoria da conduta pré-típica se trataria de uma antecipação de conteúdos jurídicos
que influenciam tal conceito e que, posteriormente, dele se voltam a tentar deduzir critérios
de imputação.
Nesse sentido, a primeira teoria da conduta a emergir após o finalismo foi a teoria social da ação.
63 COSTA ANDRADE, Manuel de. Outros Mares e Outros Céus, A Mesma Alma. A última aula do Prof. Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 27.
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141
4.1 Teoria Social da Ação
A teoria social da ação vê na relevância social da comissão ou da omissão o critério
conceitual comum a todas as formas de conduta, dessa forma, percebe todo agir por meio
de sua relevância social64. Diante disso, a pesar das diferentes formas de fundamentação por
seus diversos autores, compreende-se “o agir como um fator sensível da realidade social,
com todos os seus aspectos pessoais, finais, causas e normativos”65. Entre os principais
autores da escola em tela encontram-se Engisch, Jescheck, Maihofer e Wessels.
O conceito de conduta passa a ser entendido como: “A causação voluntária de consequências
calculáveis e socialmente relevantes”66. Ou mesmo como: “conduta humana socialmente
relevante, que representa a resposta do homem às possibilidades de ação que lhe são
exigidas, e que lhe permite aparecer em sua função humano-social”67.
A teoria social da ação esboça uma tentativa de conciliar as considerações ontológicas e
normativas68, desde a causalidade à finalidade, acrescida ainda de seu sentido social. A
conduta no sentido do direito penal, de acordo com tal escola, detém várias conceituações,
contudo, todas têm como elemento em comum na relevância social, e se pode entender, em
sua forma mais lapidar, como: “a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana”69, de forma a associar-se aos dados ontológicos da causalidade e da
finalidade, bem como a relevância social e normativa de tais ações.
Por socialmente relevante se entende, portanto, como toda aquela conduta que afete o meio
social e seus valores. Nesse sentido, a teoria social da ação pretende superar a teoria finalista
64 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral.Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 21.
65 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral.Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 21.
66 ENGISH apud WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p 20.
67 JESCHECK apud WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p 21.
68 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 21.
69 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 22.
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142
a partir do incremento de critérios normativos e axiológicos, ou seja, “não exclui, mas inclui o
conceito final e causal de ação”70.
4.1.1 Críticas a Teoria Social da AçãoDe forma breve, as críticas aventadas à teoria social da ação concentram-se na vagueza
de definições como “relevância social”, e ao mesmo passo na insuficiência de seu conceito no
que tange às funções dele esperadas, mais notadamente a de delimitação, pois, em verdade,
dizer que a ação tem de ser relevante socialmente não diz nada sobre a estrutura mesma da
ação, senão já parte de plano de seu desvalor, ou seja, antecipa uma valoração jurídica ao
âmbito pré-típico.
É mérito dos doutrinadores desta escola o reconhecimento de que um conceito de conduta
não pode ser meramente ontológico, eis que a omissão só existe enquanto ente com valor
em si, e assim todo e qualquer conceito de ação tem de abarcar também critérios normativos
e axiológicos, contudo, conforme Busato, falha a teoria na identificação destes elementos ou
mesmo na elaboração de critérios71 passíveis de serem falseados e postos a prova.
4.2 Teorias Negativas da AçãoDentre as teorias que apontaram após o finalismo e procuraram arvorar a teoria do delito
em um supraconceito pré-típico de conduta está na teoria negativa da ação. Sob essa
denominação têm sido reunidas as elaborações que se baseiam ideia de evitabilidade como
um elemento comum entre ação e omissão72. Tais teorias têm como seus principais autores
Herzberg, Behrendt e mais recentemente Jakobs.
70 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral.Aspectos fundamentais. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 22.
71 BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 34.
72 D’ÁVILA, Fabio Roberto, A realização do tipo de ilícito como pedra angular da teoria do crime. Elementos para o abandono do conceito pré-típico de ação e de suas funções. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n.54, pp. 135-164, jul./set., 2014, p. 54.
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143
Se até o momento as teorias apresentadas procuravam o elemento comum entre a ação e a
omissão a partir da primeira, a teoria aqui apresentada inverte o ponto de partida de tal busca,
e tenta o contrário73, tendo como ponto de partida a expectativa normativa perante o sujeito e
sua capacidade de evitar a ação ou omissão.
Dessa forma, considera-se o dever normativo como a base de tal concepção o conceito de
ação passa a ser: “evitar evitable em posición de garante”74. Na comissão, uma vez que o
autor decide por atuar este assumiria a posição de garante em relação ao resultado, e quando
iniciada a ação, o autor que detém o domínio de tal fato pode agir conforme o direito e evitar
o resultado75. Já na omissão pelo dever de interferir no curso causal impedindo o resultado,
portanto, em ambos os casos a referência é a evitabilidade76.
4.2.1 Críticas às Teorias Negativas da Ação
A primeira objeção é feita por Roxin, que afirma que tal conceito apresenta um problema
lógico-linguístico. Com efeito, nos delitos comissivos e com resultado, “o não evitar evitável”,
se converte em não cumprir, por meio de um agir positivo, com o dever de não provocar o
resultado evitável. Essa dupla negação tem logicamente o sentido de afirmação, ou seja, se
converte em: provocar o resultado77, o que já, se esclarecido o conceito e sua semântica,
torna-se diverso do conceito da omissão. Portanto, se o conceito quando aplicado à ação é
diverso de quando aplicado à omissão, importa dizer que o conceito negativo de ação não
cumpre o papel de um supraconceito unitário.
Outra crítica trazida pela doutrina é que, uma vez que esse conceito parte da posição de
73 No mesmo sentido, BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 108.
74 HERZBERG apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 247.
75 BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 108.
76 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoríadel delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 247.
77 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 248.
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144
garante, ou seja, do plano normativo e típico, ele não pode ser considerado um conceito
de conduta pré-jurídico. De forma que tal conceito não se trata de um conceito de conduta,
mas de critérios de imputação, uma vez que transporta para a ação o dever de agir, e assim
acaba por antecipar ao âmbito da pré-tipicidade elementos de imputação estranhos a ele.
Outrossim, a própria posição de garante não é esclarecida pela doutrina e, sob pano de
fundo, só funciona na concepção de um direito penal que, em vez de proteger bens jurídicos,
trabalha com a lógica da exigência de deveres normativos.
4.3 Teoria da Manifestação da Personalidade
Tal proposta dogmática é fruto das elaborações de Roxin. Há de se ressaltar que inicialmente
Roxin defendia o abandono do conceito de ação em favor da teoria do tipo, contudo, acabou
que o autor direcionou-se para uma postura conciliadora, segundo a qual ainda se pode
manter um conceito de conduta na base da teoria geral do crime78. A inovação trazida por ele
consiste em negar existência de dados ônticos e permanentes como elementos pré-típicos,
alegando que deve o direito ter por base a figura do bem jurídico, e não a norma em sua
vigência ou o injusto pessoal. Contudo, a pesar de propor uma análise da conduta por meio
do tipo penal, Roxin não descarta a importância de se ter um conceito de ação e de suas
funções.
Na formulação de Roxin:
Un concepto de acción ajustado a su función se produce si se entiende la acción como “manifestación de la personalidad”, lo que significa lo siguiente: Em primer lugar es acción todo lo que se puede atribuir a un ser humano como centro anímico-espiritual de acción79.
78 Conforme GRECO, Luís. Tem futuro o conceito de ação? In: GRECO, Luís. LOBATO, Danilo. (org). Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 147-172.
79 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 252.
Aula 05| Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
145
Desse modo, a função de delimitação permaneceria mantida, pois os pensamentos e os
impulsos da vontade enquanto injustos pessoais, enquanto não manifestados com sucesso
no mundo exterior, permaneceriam inimputáveis80.
Já por personalidade, o doutrinador alemão invoca a concepção utilizada na criminologia
moderna, segundo Abbagnano, por Eysenck: “Personalidade é a organização mais ou menos
estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa:
organização que determina sua adaptação total ao ambiente”81.
Tal conceituação procura buscar um elemento pré-típico que não seja ontológico, ou seja, a
personalidade do autor e sua forma de manifestação. Dessa forma, tal proposta se situa em
uma interseção entre ação e tipo, pois leva em conta tanto a sua manifestação e seu resultado
jurídico, quanto a idoneidade da imputação em um elemento pré-típico, a personalidade.
4.3.1 Críticas à Teoria da Manifestação da Personalidade
A conduta, entendida como manifestação de personalidade acaba por ser um conceito
extremamente genérico e pouco específico, que comporta uma amplitude que em nada
serve à construção da teoria geral do delito, pois não pode arvorar-se na mera relação entre
processos internos não observáveis e voláteis (personalidade) e acontecimentos exteriores
(manifestação). Portanto, não cumpre as funções a ele atribuídas. Nas palavras de Vives
Antón:
Cabe perguntar se definir ação como exteriorização da personalidade é, realmente, oferecer uma base para identificar o que é ação do que não é, ou significa somente utilizar uma expressão sinônima e, por conseguinte, levar a cabo um mero jogo de palavras. Dado que os preceitos de “exteriorização” ou “manifestação” da personalidade não são menos problemáticos do que a “ação”, e me inclino, em princípio, pelo segundo82.
80 Nesse sentido ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 252.
81 ABBAGNANO, N. apud GUARAGNI, Fábio André. As Teorias da Conduta em Direito Penal: Um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 271.
82 VIVES ANTON, Tomás Salvador apud BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 139-140.
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146
Em suma, tal proposta traz um conceito de difícil verificação, senão porventura inverificável
e, por isso mesmo, resta infrutífero.
4.4 Teoria Significativa da Ação
4.4.1 Raízes Filosóficas A concepção significativa da ação tem origem na filosofia da linguagem, que tem como
seus principais expoentes, cada qual a seu modo, os filósofos Martin Heidegger e Ludwig
Wittgenstein, com posterior acréscimo pelas obras de Hans-Georg Gadamer e Jürgen
Habermas e demais filósofos de renome.
A partir do giro-linguístico realizado pela filosofia, o paradigma de formulação dos conceitos
das ciências do espírito atinge outro patamar, abandonando os conceitos ônticos e metafísicos.
Sendo assim, não se pode mais pensar o homem a partir de uma essência eterna e imutável,
como pretendia a ontologia que tanto influenciou os finalistas, afirma que ao se pensar o
Homem deve-se concebê-lo como um projeto em contingência, que se concretiza no lançar-
se no mundo e na prática linguística cotidiana. Portanto, do âmago da filosofia linguagem
reside o entendimento de que o homem é a pura possibilidade, que só se concretiza em um
determinado contexto histórico e social. A partir dessa perspectiva, há o rechace a ideia de
que há uma essência humana fixa.
Doravante à Heidegger, por exemplo, o homem não mais poderá ser interpretado fora de seu
contexto histórico e social, eis que este só o é quando integrado com todos os significados
constantes no mundo, sendo ator produtor e receptor inerente à realidade circundante. Para
ele, não há sujeito sem mundo, pois o ser já está, desde que é, está lançado no mundo,
sendo correlativo ao projeto de viver, que é o compreender, e que integra o conceito próprio
de existência, da mesma forma, é inseparável de sua possibilidade de controlar seu destino,
o poder-ser, e a cada momento de existência traz compreensão de si e do mundo e das
suas possibilidades perante esses. Ao viver o homem projeta, e projetar é interpretar. Esse
argumento demonstra a quão frágil e abstrata é a concepção teleológica aristotélica ou ôntico-
fenomenológica do finalismo, calcada na ideia de uma determinada natureza das coisas.
Aula 05| Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
147
Nas palavras de Heidegger, referindo-se a incapacidade das ciências e seu projeto de
encontrar as leis ontológicas imutáveis servirem de base de conhecimento para o ser mesmo
do homem e do mundo:
A prévia determinação do ser [...] da natureza em geral se fixa nos “conceitos fundamentais” da respectiva ciência. Nestes conceitos são, por exemplo, delimitados espaço, lugar, tempo, movimento, massa, força, velocidade; todavia, a essência do tempo, do movimento, não é propriamente problematizada. A compreensão ontológica do ente puramente subsistente é aqui reduzida a um conceito, mas a determinação conceitual de tempo e lugar, etc., as definições, são reguladas, em seu ponto de partida e amplitude, unicamente pelo questionamento fundamental que na respectiva ciência é dirigido ao ente. Os conceitos fundamentais da ciência atual não contêm, nem já os “autênticos” conceitos ontológicos do ser do respectivo ente, nem podem estes ser simplesmente conquistados por uma “adequada” ampliação daqueles. [...] O “fato” das ciências, isto é, o conteúdo fático da compreensão do ser que elas necessariamente encerram, como qualquer comportamento para com o ente, não é nem instância fundadora a priori nem a fonte do conhecimento do mesmo [...]83.
Portando, decanta-se que a conceito de homem não é algo dado, mas sim em eterna possibilidade de construção, relacionando-se intrinsecamente ao seu contexto histórico, assim, o homem se entende através de seu mundo, e não a partir de uma estrutura imutável do ser.
Nesse aspecto é que contribui a filosofia de Wittgenstein, que apesar de ter método e foco distintos dos de Heidegger, atina ao mesmo sentido investigativo da linguagem como a expressão de significado e formadora da identidade dos homens.
Sua maior contribuição se dá no que tange a teoria dos jogos de linguagem, para a qual a forma de vida e jogos de linguagem constituem o mundo significativo da humanidade, sendo sempre ligada a uma forma de vida determinada, contextualizada e integrada dentro das práxis comunicativas interpessoais, dessa forma, molda a identidade e as práticas dos homens, conferindo significados que estão sujeitos as regras dessa comunicação, sempre variáveis a cada contexto. Por isso Wittgenstein é relevante para a teoria em tela, pois o significado de uma palavra ou de uma ação não é jamais independente, não carrega uma essência em si, mas depende do jogo de linguagem sob o qual está sendo usado.
83 HEIDEGGER, Martin. Sobre a Essência do Fundamento. Tradução de Ernildo Stein, 1ª edição, Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 281-324.
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148
Assim, o modo de vida das pessoas se assenta em costumes e hábitos, intersubjetivamente
válidos, que constituem os jogos de linguagem, seguem aprendo o significado dos signos e
treinados para compreende-los e reagir de uma determinada maneira aos mesmos, porém,
nenhum significado é fixo, mas sim, variável e relativo conforme o contexto circundante.
No tocante à Habermas, este percebe por meio da teoria dos jogos de linguagem que, se essa
obedece a determinadas regras, portanto, traz conteúdo normativo. A partir disso, estabelece
que se pode extrair a regras éticas por meio do discurso, guiar sua ação através das mesmas
e, consequentemente, há a possibilidade de se extrair regras de ação a partir das estruturas
da linguagem.
Ainda há a contribuição hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, que buscou o “Giro-
Hermenêutico”, com base na filosofia heideggeriana. O que cabe ressaltar aqui, para os efeitos
do conceito de conduta, o objeto do presente estudo, é que o homem só pode ser compreendido
inserido em seu contexto, somente uma proposta analítica existencial será válida. Daí se
conclui que o juízo sobre as ações humanas não podem ser fruto de interpretações isoladas,
mas sim, de um complexo processo que só se é alcançável por meio da hermenêutica e da
busca dos significados expressados por essas ações, pois essas são as expressões de como
o homem está projetando suas possibilidades no mundo que o constitui.
4.4.2 O Conceito de Ação Significativa
Tendo por fulcro o paradigma filosófico apresentado, Vives Antón elaborou a concepção
significativa da ação. Na doutrina pátria, Paulo César Busato se apresenta como o mais
eminente defensor de tal corrente. A proposta significativa tem por fundamento a inserção no
conceito de conduta, do significado que se desejou transmitir por essa, ou seja, reconhece
que a ação é uma expressão que se dá pela linguagem, e não como um elemento ontológico,
portanto, é imprescindível a análise de seu contexto para a sua compreensão correta.
Com efeito, a ação tem um significado que é transmitido, assim, o conceito de conduta é
enriquecido com o significado que se desejou transmitir. A linguagem faz parte da ação,
pois “para que seja possível falar de ação é preciso que os sujeitos tenham a capacidade de
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149
formar e expressar intenções”84, assim, a ação é a expressão de um sentido que se produz
da inter-relação do sujeito com o meio por meio da linguagem.
Para essa proposta dogmática, o que há a centralidade conceitual do elemento subjetivo final
presente na ação delitiva, como preza o finalismo, tampouco da expectativa normativa, mas
sim o conjunto de fatores que produzem a percepção e compreensão dos propósitos do sujeito.
Os elementos subjetivos que reconhecemos na ação têm origem em uma multiplicidade de
atos sequenciais produzidos sob um determinado contexto. Na verdade, é da percepção e
compreensão global das circunstâncias relativas ao fato que se deduz sua qualidade final
(tal proposta trabalha com um conceito de dolo normativo), ou seja, a pretensão do agente.
Assim, para o conceito significativo de ação, não é essencial explicar o que se entende por
ação, tampouco sua estrutura, mas aprender o propósito significativo transmitido pela ação.
A doutrina esclarece que o movimento ou o não movimento puramente causal igualmente
significam uma conduta, porém, seu significado somente poderá ser interpretado quando do
seu contexto, como no caso da pessoa que cala por não ter o que dizer, e do psiquiatra que
usa o silêncio como forma consciente de terapia85, portanto, o principal não é a estrutura da
ação, ou mesmo a expectativa normativa da mesma, mas seu significado pontual.
Tal concepção abandona a busca de uma estrutura ontológica da ação, da causalidade
ou mesmo da finalidade conduzente do curso causal. Nesse sentido, o dolo passa a ser
averiguado e entendido de forma normativa, ou seja, presente no tipo e atribuído à conduta.
Entende-se que só é possível analisar as manifestações externas, mas, por meio dessas
manifestações externas pode-se deduzir e averiguar a bagagem de conhecimentos do autor,
os conhecimentos específicos como técnicas dominadas e com base neles o que podia prever
ou calcular, e entender, assim, ao menos parcialmente, o homem em concreto suas intenções
expressas na ação, portanto, são analisadas as circunstancias, e dessa análise, pode-se, em
alguns casos, excluir a existência de ação significante, ou seja, resta somente a função
negativa do conceito, a de delimitação.
84 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Apud BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p.150.
85 BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p.180.
Aula 05 | Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
150
Daí que os elementos subjetivos da conduta não devem ser compreendidos como processos
internos, mas como momentos da ação, ou seja, como componentes de um sentido
exteriorizado86. Sobre a verificação dos elementos subjetivos, Vives disserta que essa se
levará a cabo tendo em conta as competências do autor do fato e as características públicas
de sua ação, e não se dará em função de uma impossível certificação das representações,
crenças ou volições ocorridas em algum lugar opaco da mente87, mas de um sentido expresso
e analisado frente ao tipo. Deriva disso a conclusão de que o tipo cumpre funções mais
amplas que a ação. É essa a razão que conduz a escolher a classificação de “tipo de ação”88.
Portanto, o tipo de ação trata-se de “uma regulação de sentido da própria ação, que a identifica
como pertencente a uma classe de ação delimitada pelo tipo”89. Assim, propõe a análise do
dolo como atribuição normativa, no âmbito da antijuridicidade.
4.4.3 Críticas à Teoria Significativa da Ação
A presente orientação se move na direção de integrar a ação ao tipo, ainda, não há espaço
para o dolo ou a imprudência na conduta, esses se encontram no âmbito da antijuridicidade.
Portanto, o conceito de conduta passa a ser a expressão de sentido que é relevante ao direito
penal através de critérios político-criminais, sem que se verifique dolo ou culpa, a não ser que
os mesmos já sejam requisitos do enunciado de tipo penal.
O primeiro problema é que, por buscar um conceito de conduta no âmbito do mundo da vida
(lebenswelt) que não se embase em fundamentos ontológicos, mas que ainda não fazem
parte do âmbito normativo, ou seja, em uma terceira via entre os fundamentos normativos
e ontológicos, o conceito de conduta significativo acaba por não cumprir nenhuma das
funções dele esperadas, nem mesmo a função negativa de limitação, pois, se o prisma é o
86 PÉREZ, Carlos Martinez-Buján. A Concepção Significativa da Ação: T.S. Vives e sua Correspondência Sistemática com as Concepções Teleológico-Funcionais do Delito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 37.
87 PÉREZ, Carlos Martinez-Buján. A Concepção Significativa da Ação: T.S. Vives e sua Correspondência Sistemática com as Concepções Teleológico-Funcionais do Delito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 38.
88 BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 214.
89 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, apud BUSATO, Paulo César. Direito Penal & Ação Significativa: Uma Análise da Função Negativa do Conceito de Ação em Direito Penal a Partir da Filosofia da Linguagem. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 204.
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151
preenchimento do sentido do tipo penal, isto não é uma análise em âmbito pré-jurídico, senão
jurídico, e dizer somente que é o sentido que importa a análise não serve para a delimitação
do que é ação e do que não é, pois faz depender o tipo anteriormente à ação, o que importa
dizer que a ação pressupõe o tipo, de forma que ela não é capaz de delimitar quais referenciais
comportamentais podem ou não ser tipificados. Ademais, o próprio tipo passa a ter suas
funções reduzidas, funções que são transmitidas em sede da antijuridicidade.
A doutrina ora apresentada abandona a busca de um conceito pré-típico de ação e propõe
uma aproximação entre ação e tipo. Nesse ponto, a teoria significativa da ação não cria senão
uma forma de analisar critérios de imputação, ou seja, de preenchimento do nexo normativo
e do tipo de ilícito, o que poderia ser resolvido por uma boa hermenêutica do tipo penal sem
a necessidade de um conceito de ação como pedra angular.
Destarte, a teoria da ação significativa é responsável por grandes avanços dogmáticos,
porém, ainda não está concluída, por um lado em virtude de ser uma teoria extremamente
recente, por outro por ter por paradigma filosófico inovador ainda não totalmente explorados
pelos juristas.
4.5 Propostas do Abandono do Conceito Pré-Tipico de Ação
4.5.1 Os dois Caminhos da Dogmática Jurídico Penal Contem-porânea
Conforme Jescheck e Marinucci, a construção da teoria do crime, em relação ao seu
ponto de partida e pedra angular, se dão duas possibilidades. Ou se partirá de um conceito
pré-típico de conduta ou se renunciará a um específico conceito e se partirá da tipicidade90,
uma vez que nenhum dos conceitos de ação até o momento esboçados conseguiu suprir as
funções91 e superar as dificuldades a eles inerentes, não tendo assim “valor sistemático”92.
90 MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”. Critica di um dogma. Milano: Giuffrè, 1971, p. 1.
91 No sentido da insuficiência dos conceitos de ação frente a suas funções, também Cerezo Mir: “Ninguno de los conceptos de la acción formulados hasta el momento satisface plenamente, como veremos, estas exigencias, a pesar de que gran parte de ellos han sido elaborados ya con este objeto.”CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal Español. Parte General. Tomo II: Teoría jurídica del delito. Ed. Tecnos: Madrid, 1997. p 27.
92 JESCHECK apud MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”. Critica di um dogma. Milano: Giuffrè, 1971, p. 1.
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152
O caminho da construção de um conceito geral de conduta a fim de arvorar a teoria do crime foi tentado até o momento e apresentou inúmeras conquistas, por isto naturalmente ainda é visto por um grande número de penalistas como um dever indispensável da dogmática jurídico-penal93. Portanto, hoje ainda tende-se a permanecer no caminho da adoção e formulação de um conceito de conduta94.
No que tange ao conceito pré-típico de base ontológica, além das críticas já apresentadas às
escolas no momento oportuno, de modo geral, consoante Juarez Tavares:
Toda metodologia centrada nas ciências naturais ou em função de um projeto ontológico, como fundamento da elaboração da atividade humana, fracassa porque desconsidera que esta não se reduz, respectivamente, nem à causalidade física, nem aos instintos e impulsos da atividade animal, nem a uma finalidade meramente abstrata, fixada à conduta como seu substrato ôntico95.
Noutro sentido, um conceito de conduta meramente normativo com pretensão de ser pré-típico se torna uma contradição, pois, se o conceito já é normativo, por óbvio não é pré-típico, senão típico. Ou ainda, as orientações que se propõe a buscar tal elemento pré-típico entre o tipo e a ação não conseguem suprimir as funções esperadas de um conceito de ação, pois resta esvaziado, ou mesmo situam-se em uma zona cinza donde não se é possível retirar a clareza conceitual necessária a servir de pedra angular da teoria do crime.
Neste sentido, a primeira indagação acerca da proposição de um conceito de ação deve dizer respeito à sua viabilidade, ao seu valor sistemático. Se um supraconceito de conduta, ou mesmo sua estrutura por si mesma, não é capaz de arvorar a teoria do delito, pode-se questionar, desde logo, sua viabilidade ou sua própria utilidade na teoria do delito.96 Todas as tentativas levadas a cabo pelas propostas dogmáticas apresentadas revelam falhas até o momento insuperáveis. Frente a isso, a dogmática vem apontando no sentido de um abandono do conceito pré-tipico
de ação como Aleph da construção teórica do crime. Nas palavras de D’Ávila:
93 MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”. Critica di um dogma. Milano: Giuffrè, 1971, p. 7.
94 Neste sentido, JESCHECK, WELZEL, ENGISH, KAUFMANN, CEREZO MIR, HIRSCH e, mais recentemente, ROXIN.
95 TAVARES, Juarez. Apontamentos sobre o conceito de ação. In: PRADO, Luiz Regis (org.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 138-154, p. 140.
96 TAVARES, Juarez. Apontamentos sobre o conceito de ação. In: PRADO, Luiz Regis (org.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 138-154, p. 138.
Aula 05| Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
153
As contundentes críticas às tentativas de construção de um supraconceito multifuncional de ação, capaz de corresponder aos exigentes anseios da dogmática penal, têm dado vazão a uma segunda alternativa: a renúncia a um tal conceito pré-típico de ação,em prol da realização típica como categoria elementar-estrutural da teoria do crime97.
No mesmo sentido, Luís Greco afirma que: “O conceito de ação perdeu sua majestade”98. Ou
ainda Tavares:
[...] a partir das dificuldades ou deficiências dos conceitos pré-jurídicos de ação, a tarefa de se encontrar sua substância é ainda mais complexa, não propriamente pela busca infinita ou incessante de seus elementos, mas principalmente quando o conceito de ação se veja situado como instrumento idôneo a possibilitar uma necessária avaliação reflexiva da norma no sentido de verificar, negativamente, se o seu processo de construção traça com nitidez as zonas do lícito e do ilícito e é capaz de pôr à prova a regularidade do processo de imputação da conduta ao seu autor99.
Nesse sentido, parece claro que a doutrina caminha no sentido de abandono de um conceito
pré-típico de conduta a servir de zênite da teoria geral do crime. Contudo, não o abandono
de um conceito de ação não o é. O que se propõe, por meios e fundamentos diversos, é a
perda da centralidade de tal conceito. Alguns pelo esvaziamento semântico do mesmo, tal
qual Greco, que afirma que:
[...] não é preciso definir o que entendemos por ação. O sentido que este termo tem na nossa linguagem cotidiana já basta, já é o suficiente par a que ele seja capaz de cumprir a função que lhe assinalamos100.
Portanto, não abandona o conceito de conduta, eis que admite ser o mesmo necessário
enquanto sujeito das valorações da teoria do crime101, contudo, não como sua pedra angular.
97 D’ÁVILA, Fábio Roberto. A realização do tipo de ilícito como pedra angular da teoria do crime. Elementos para o abandono do conceito pré-típico de ação e de suas funções. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n.54, pp. 135-164, jul./set., 2014, p. 139.
98 GRECO, Luís. Tem futuro o conceito de ação? In: GRECO, Luís. LOBATO, Danilo. (org). Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 147-172, p. 152, itálico no original.
99 TAVARES, Juarez. Apontamentos sobre o conceito de ação. In: PRADO, Luiz Regis (org.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 138-154, p. 138-139.
100 GRECO, Luís. Tem futuro o conceito de ação? In: GRECO, Luís. LOBATO, Danilo. (org). Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 147-172, p. 163.
101 GRECO, Luís. Tem futuro o conceito de ação? In: GRECO, Luís. LOBATO, Danilo. (org). Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 147-172, p. 162.
Aula 05 | Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
154
Em sentido parecido, na direção do abandono de um supraconceito de ação em favor do
conceito de realização típica, D’Ávila, que propõe como pedra angular da teoria do crime a
realização típica:
[...] como ponto de partida da estrutura teórica do crime, propõe-se a realização do tipo de ilícito. O conceito de ação perde em relevância sistemática, mas não é – e nem deve ser – abandonado. Ele deixa de ser um elemento pré-típico para assumir-se como elemento constitutivo do tipo de ilícito. Não renuncia, porém, a indispensável posição de referencial comportamental para o juízo e imputação penal102.
Ou mesmo no posicionamento de Juarez Tavares, também no sentido do abandono de um
conceito pré-típico de ação, sem contudo abandoná-lo por completo no âmbito da teoria do
delito:
[...] a pesar de se descartar um conceito pré-jurídico de ação, que devesse subordinar ao seu enunciado toda a produção normativa, é possível, para viabilizar o enquadramento dogmático dos respectivos tipos de delito, partir de alguns pressupostos que, embora não sejam necessariamente jurídicos, estão vinculados intrinsecamente à elaboração normativa. Esses pressupostos conduzem, assim, à construção de um conceito dogmático de ação103.
Como foi possível observar, a despeito das propostas serem divergentes, todas têm como
fundo comum a renúncia ao conceito de conduta como pedra angular da teoria geral do delito
e sua capacidade de rendimento. Neste sentido, dentre os dois caminhos apresentados à
doutrina, parece que hodiernamente a tendência aponta para o abandono de um conceito
pré-tipico de conduta como pedra angular da teoria do crie, bem como de sua importância e
suas funções.
102 D’ÁVILA, Fábio Roberto. A realização do tipo de ilícito como pedra angular da teoria do crime. Elementos para o abandono do conceito pré-típico de ação e de suas funções. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n.54, pp. 135-164, jul./set., 2014, p. 139.
103 TAVARES, Juarez. Apontamentos sobre o conceito de ação. In: PRADO, Luiz Regis (org.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 138-154, p. 140.
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5. Breves Considerações Finais
A conduta é o elemento essencial da teoria do delito, contudo sua importância tende a ser relativizada pelo abandono de conceitos ontológicos pelos paradigmas filosóficos da atualidade, o que acaba por tornar o centro de gravidade da análise dos fenômenos delitivos a própria normatividade.
Os causalistas e finalistas almejaram forjar a teoria geral do crime a partir da natureza, de elementos imanentes e ontológicos do movimento ou da estrutura da ação humana, intentando assim evocar o direito natural no anseio de tornar o sistema jurídico seguro quanto às manipulações e incertezas que se pode sofrer na prática jurisdicional. Noutras palavras: tentou ancorar o sistema jurídico-penal em bases ontológicas da natureza das coisas e, assim, reconhecer o direito natural.
Atualmente, não se pode mais conceber a conduta por um viés estritamente ontológico. Chegou-se à conclusão de que o conceito de conduta, por si só, já não é capaz de suportar todo o peso e significado que lhe é atribuído e esperado. Com fulcro nessa leitura, tende a ser reduzida a capacidade de rendimento do conceito de conduta frente ao tipo penal.
Por outro lado, as teorias que tentaram dar caráter axiológico ao conceito de conduta igualmente não tiveram melhores resultados no que tange às respostas concretas e abrangentes, senão enfrentaram dificuldades conceituais e dogmáticas insuperáveis.
Não obstante, cabe ressaltar que nenhum sistema jurídico tem ou deveria ter por base uma teoria dogmática única, ora, seria totalmente imprudente, senão porventura impossível tal prática. A boa doutrina deve, com uma postura cientifica louvável, fazer boa colheita de todas as propostas apresentadas, sempre em busca de melhores e mais adequadas formas de resolver os conflitos existentes na vida dos homens em sociedade, da razão e da ética.
No que tange a esse estudo, que figura como mera testemunha da evolução doutrinária, resta claro que a resposta ao enigma da esfinge, a dogmática impecável, jamais será alcançada. No entanto, a busca não pode ter fim. O certo é que todas as novas propostas doutrinárias convergem a um ponto em comum, o declínio de rendimento do conceito de conduta em
contraponto ao tipo penal.
Aula 05 | Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
156
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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
Quais são, tradicionalmente, as principais
escolas da teoria da conduta desenvolvidas
ao longo da história do pensamento jurídico-
-penal?
a) Finalismo – Funcionalismo – Existencialis-mo
b) Naturalismo – Hegelianismo – Antropocen-trismo
c) Naturalismo – Neokantismo – Finalismo
d) Funcionalismo Sistêmico – Neokantismo – Idealismo
e) Fato Típico – Antijurídico – Culpável
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
Qual filósofo é apontado como o autor que
primeiramente trabalhou um conceito de
ação punível pelo direito?
a) Kant
Por fim, nas palavras de Manuel da Costa Andrade, referindo-se às lições de Figueiredo Dias:
[...] não faz sentido encarar as diferentes escolas – os grandes modelos de construção sistemática da infracção criminal, que correm sob as designações de positivismo-causalismo, normativismoneokanteano, finalismo ôntico-antropológico e doutrina teleológico-racional – como credos oferecidos, em alternativa e exclusividade, a adesão. Em que a entrada numa escola obrigaria a fechar a porta à influência “nefasta” das demais. A postura terá, pelo contrário, de ser aberta e antidogmática: olhando cada uma das escolas como contributos epocais, vinculados a um determinado ambiente filosófico-cultural. Na certeza de que elas vão, progressivamente, elevando a doutrina a patamares mais elevados, mais densificados de compreensão e fecundidade explicativa. Nenhuma escola podendo ter realizado o seu percurso se não tivesse podido contar com o legado das que historicamente a precederam. Não podendo, por isso, nenhuma delas aspirar valer como a ultimaThule imaginada por VIRGÍLIO. Nas ciências criminais, como na ciência em geral, a ultimaThule é sempre e tão só a penúltima ultimaThule104.
104 COSTA ANDRADE, Manuel de. Outros Mares e Outros Céus, A Mesma Alma. A última aula do Prof. Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 31-32.
Aula 05| Os Paradigmas Filosóficos do Direito Penal
157
b) Hobbes
c) Rosseau
d) Hegel
e) Foucalt
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
Qual escola penal partia do pressuposto de
que todo conhecimento válido e seguro de-
veria guiar-se pela possibilidade de demons-
tração empírica no mundo dos sentidos, ou
seja, na realidade objetiva e concreta.
a) Causalista – Empirista
b) Naturalista – Causalista – Escola Clássica
c) Escola Francesa
d) Naturalista – Mecanicista
e) Clássica – Alemã – Naturalista
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
O sistema neoclássico tem seu fundamento
em qual filosofia de valores?
a) Kantiana
b) Hegeliana
c) Antropológica
d) Sociológica
e) Filosófica
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
Qual teoria aponta que somente serão im-
putáveis as condutas consoantes com uma
vontade de realização com propósito, levan-
do-se em conta os meios selecionados e as
consequências secundárias previsíveis de-
correntes deste agir.
a) Finalista
b) Funcionalista
c) Social da Ação
d) Pré-típica
e) Fenomenológica
Verificação de Leitura
158
BELING, Ernst von. Esquema de Derecho Penal. La Doctrina del Delito-Tipo. Trad. Sebastián Soler. Libreria el Foro: Buenos Aires, 2002.
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Referências
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Referências
160
Questão 1
Resposta: Alternativa C.
Resolução: Tradicionalmente, as principais escolas da teoria da conduta desenvolvidas
ao longo da história do pensamento jurídico-penal são o Naturalismo, o Neokantismo e o
Finalismo, tendo seu desenvolvimento auge a partir da segunda metade do século XIX e no
decorrer do século XX.
Gabarito
TAVARES, Juarez. Apontamentos sobre o conceito de ação. In: PRADO, Luiz Regis (org.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 138-154.
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WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976.
Referências
161
Questão 2
Resposta: Alternativa D.
Resolução: Numa perspectiva histórica, Hegel é apontado como o autor que primeiramente
trabalhou um conceito de ação punível pelo direito, ao vincular o dolo e a culpa ao agir de um
sujeito que expressa concretamente uma vontade, de forma a diferenciar uma ação punível
de um mero ato.
Questão 3
Resposta: Alternativa B.
Resolução: A resposta correta é a alternativa “b” tendo em vista que a escola naturalista,
também denominada causalista, ou mesmo escola clássica, proeminente na modernidade,
partia de uma influência de época que deitava raízes no positivismo, em que somente era
válido aquilo que pudesse ser empiricamente demonstrável. Historicamente, trata-se da
busca de superação de argumentos metafísicos que não pudessem ser referenciados no
mundo concreto.
Questão 4
Resposta: Alternativa A.
Resolução: O Neokantismo, também chamado de sistema neoclássico, tem seu fundamento
na filosofia dos valores de origem kantiana, desenvolvida nas primeiras décadas do século
XX, principalmente por Windelband, Rickert, Lask, integrantes da Escola de Baden, localizada
no sudoeste alemão.
Gabarito
162
Questão 5
Resposta: Alternativa A.
Resolução: A pedra de toque da teoria finalista é sua teoria da conduta. Nesse sentido, quando
adotado o conceito pré-típico de ação proposto pelo finalismo, somente são imputáveis ações
finalisticamente dirigidas, consoante uma vontade de realização que abarca o propósito, os
meios selecionados e as consequências secundárias previsíveis decorrentes deste agir.
Gabarito
LEGENDA DE ÍCONES seções
165
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Aula
166
06
Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
Objetivos
Caro aluno, a pesquisa em voga procura realizar a exposição do que se entende como a
dimensão subjetiva do tipo, seus elementos constitutivos, sua importância e seus desenlaces
na teoria geral do delito. Nesse sentido, aprofunda o estudo sobre o dolo e suas formas de
manifestação, bem como os requisitos para sua configuração, o que desencadeia toda a
teoria sobre o erro em direito penal, bem como a congruência entre o tipo objetivo e subjetivo.
Tenha um ótimo estudo.
1. A Dimensão Subjetiva do Tipo: A Estrutura do Tipo Subjetivo
1.1 Elementos Subjetivos EspeciaisE estrutura do tipo subjetivo de ilícito é formada pelos seguintes elementos: o dolo do
tipo, que determina a direção e o fim do atuar do agente e é o núcleo do injusto pessoal da
ação, bem como é o elemento geral do tipo subjetivo1 e, ao seu lado, a doutrina costuma
apontar os elementos subjetivos especiais do tipo, tais como a intenção2, os motivos, os
impulsos, e as características da atitude interna3. Na lição de Figueiredo Dias, a diferença
entre os especiais elementos subjetivos do tipo e aos do dolo do tipo é que aqueles:
1 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 49.
2 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 50.
3 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 331.
167
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
[...] não se referem a elementos do tipo objetivo de ilícito, ainda que porventura se liguem à vontade do agente de realização do tipo: o seu objeto encontra-se fora do tipo objetivo de ilícito, não havendo por isso, na parte que lhes toca, uma correspondência ou congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjectivo de ilícito.4
Assim, cumpre dizer que há os chamados tipos congruentes, aqueles aos quais somente
importa o preenchimento do dolo do tipo, como o art. 121 do Código Penal: Matar alguém;
tal tipo não exige o preenchimento de nenhum elemento subjetivo especial. Já, em sentido
oposto, existem os chamados tipos incongruentes, que requerem, para sua configuração,
para além do dolo do tipo também a existência de um elemento subjetivo especial.
É certo que a intenção é integrada pelo dolo do tipo (mais notadamente no dolo de primeiro
grau) e assim pertence à dimensão subjetiva do tipo. Contudo, no que tange aos outros
elementos geralmente elencados pela doutrina, tais quais os motivos, os impulsos, as
características da atitude interna e estados anímicos são, em realidade, utilizadas não para
a configuração do tipo subjetivo de injusto, mas para avaliar o homem em concreto no que
tange à sua culpabilidade e à censurabilidade de suas ações, portanto, pertencem ao tipo de
culpa, e não ao tipo de injusto5. Assevera Figueiredo dias que tal confusão entre os elementos
subjetivos do tipo de injusto e do tipo de culpa poderia “assumir o efeito indesejável de se
bater os limites entre as categorias da ilicitude e da culpa” 6.
Portanto, consoante a mais recente doutrina, o estudo limitar-se-á a exposição da intenção
como elemento subjetivo especial e elemento exigido para a configuração típica do tipo penal
incongruente.
4 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 329.
5 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 331.
6 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 332.
168
1.1.1 A IntençãoAté o momento, a literatura jurídico-penal não conseguiu delimitar o que seja o núcleo duro
de um conceito geral de intenção, portanto, não se pode considera-la um elemento dogmático
definido pela Parte Geral, senão como um elemento que está presente de variadas formas na
parte especial,7 contudo, a despeito disso, pode-se dizer que se entende de forma geral por
intenção a “vontade dirigida finalisticamente ao resultado”8.
As intenções são os elementos subjetivos mais próximos do dolo do tipo9 e podem com ele se
confundir, como nos casos dos tipos congruentes, contudo, nem sempre se confundem com
o mesmo, como nos casos em que a intenção concorre com o dolo do tipo, como nos tipos
incongruentes, p. ex., a intenção de apropriar-se no delito de furto; ou mesmo, de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa, no delito de extorsão. Esses elementos subjetivos não integrem o dolo do tipo
de forma essencial, mas codeterminam o desvalor da ação e definem a área da tutela10.
1.2 Dolo do Tipo
A estrutura da dimensão subjetiva do tipo de ilícito é, irrenunciavelmente, o dolo, por
mais que ela não se esgote neste. Contudo, o dolo para o direito penal não é entendido na
integralidade do fenômeno humano em todos os seus elementos, visto que inverificáveis por
sua natureza complexa, subjetiva e únicaem seus mais íntimos meandros, senão, para o
direito penalo dolo é visto somente no conjunto daqueles elementos que pertencem, segundo
sua estrutura e a sua função, ao tipo de ilícito11.
7 Nesse mesmo sentido, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 417.
8 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 51.
9 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 330.
10 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 328.
11 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 328.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congru-ência e a Teoria do Erro de Tipo
169
Neste sentido, segundo a doutrina dominante, dolo é:
MEZGER: “El dolo es la comisión del hecho con conocimiento y voluntad.”12
WELZEL: “Dolo es el saber y querer la realización del tipo.”13
WESSELS: “[...] a vontade de realização de um tipo penal, com o conhecimento de todas
as suas circunstâncias objetivas.”14
MAURACH: “[…] el querer, dominado por el saber, de la realización del tipo objetivo.”15
JESCHECK: “el dolo significa conocer y querer los elementos objetivos que pertenecen
al tipo legal”.16
ROXIN: “[…] dolo como “saber y querer (conocimiento y voluntad)” de todas las circunstancias
del tipo legal.”17
Essencial é dizer que, para a doutrina majoritária, o dolo requer um elemento intelectivo – o
conhecimento – e um elemento volitivo – o querer18. Em sentido parecido, porém inexato,
uma vez que não conceitua o dolo do tipo, mas somente apresenta suas formas de aparição,
a legislação pátria que em seu artigo 18 define o que se entende por crime doloso.
Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11/7/1984)
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
12 MEZGER, Derecho Penal: Libro de estudio. Parte General. Trad. Ricardo C. Núñez. Editorial Bibliográfica Argentina: Buenos Aires, 1958, p. 226.
13 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Parte General. 11ª edición. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñes Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p. 77.
14 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 50.
15 MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho Penal: parte general. Tradução de Sergio Politoff Lifschitz. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994, p. 376.
16 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas.Tratado de Derecho Penal. Parte General. Tradução de Miguel Olmedo Carnedete. Granada: Comares Editorial, 2002, p. 314.
17 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 415.
18 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 50. Em sentido contrário, mais recentemente, PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
170
Ainda, é fundamental ressaltar que o dolo do tipo não são resume aos dados da realidade
interna do sujeito, mas é aquele elemento normativo a ser preenchido para que a conduta
seja típica.Neste sentido, sempre que se falar em dolo do tipo não se estará falando de uma
mera estrutura psicológica interna do agente, ou mesmo de uma estrutura ontológica do agir
desvinculada de qualquer conteúdo material, mas de uma análise normativa e interessada de
alguns aspectos subjetivos pontuais da conduta do agente e que estão presentes no núcleo
duro do tipo subjetivo.
Como já visto, a partir do entendimento do dolo como conhecimento e vontade de realização do
tipo de ilícito, resta evidente que o dolo tem dois elementos, um intelectual – o conhecimento –
e outro volitivo – o querer. Portanto, passa-se agora a análise de cada um desses elementos.
1.2.1 O Elemento Intelectual do Dolo
Para que o dolo do tipo se afirme, é necessário antes de tudo que o agente conheçaas
circunstâncias do fato presentes no tipo de ilícito que se comete. Neste sentido, o elemento
intelectual do dolo tem sua função fundamental no preenchimento do tipo subjetivo, pois ele
determina se ao agir o agente tinha a real representação ou consciência da realidade e das
circunstâncias do tipo objetivo. Em suma, o conhecimento da realização do tipo objetivo de
ilícito e de todas suas circunstâncias é a pedra angular indispensável para que se possa
imputar a alguém a autoria de um delito doloso. Se assim é a exigência do conhecimento para
a configuração do dolo se desdobra no conhecimento atual das circunstâncias do fato típico,
bem como estende seus efeitos sobre toda a teoria do erro em direito penal.
1.2.1.1 O Conhecimento das Circunstâncias do FatoA configuração do dolo requer, em seu elemento intelectivo, que o agente represente ou
tenha a previsão, anterior ao cometimento do delito, da totalidade das circunstâncias do fato
respectivo ao tipo de ilícito objetivo. Nas palavras de Wessels:
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congru-ência e a Teoria do Erro de Tipo
171
No âmbito da consciência, o atuar doloso pressupõe que o autor no cometimento do fato tenha conhecido todas as circunstâncias fundamentadoras, as particularidades tipicamente relevantes da ação executiva, a ocorrência do resultado típico, o processo causal em seus contornos essenciais, assim como todos os demais elementos do tipo de injusto objetivo19.
Cumpre observar que este conhecimento não se restringe a dados empíricos. Com efeito, no
que tange aos elementos descritivos do tipo (por exemplo “coisa”, “alguém”) o conhecimento se
resume ao seu conteúdo imediato da linguagem ordinária, sem que se questione os aspectos
valorativos. Todavia, no que tange aos elementos normativosdo tipo (por exemplo, “injusta
provocação”, “funcionário público”), não basta o conhecimento dos fatos que preenchem o
conceito, para além disto, deve o autor compreender o conteúdo de significação jurídico-social
das circunstâncias do fato20. Consoante o entendimento de Roxin: “conocimiento significa
percepción sensorial de las circunstancias descriptivas del hecho y comprensión intelectual
de las normativas”21.
A partir dos estudos anteriores foi demonstrada a aproximação entre o tipo e a antijuridicidade,
que se constrói de tal maneira que a ilicitude restará, por certo, como a dimensão material
do tipo.22Portando, se o conhecimento das circunstâncias do fato ilícito é exigência para a
configuração do dolo do tipo, é evidente que um conhecimento raso dos elementos normativos
do tipo também o será. Desta forma, as circunstâncias do fato igualmente deverão ser
analisadas sobre o prisma deste conteúdo ilícito. Em suma, se o tipo de ilícito já é portador do
sentido de ilicitude, então, por óbvio, o conhecimento das circunstâncias do fato não se atrela
19 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p 55.
20 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 56.
21 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 460.
22 Neste sentido, Roxin: “En nuestro tipo total, la relación entre tipo y antijuricidad se construye de manera tal que la antijuricidad no resultará, por cierto, componente del tipo;”ROXIN, Claus. Teoría del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurídico. Trad. Enrique Bacigalupo.Buenos Aires: Depalma, 1979, p. 212.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
172
somente a dados ontológicos, ‘puros fatos’, ‘fatos nus’, senão a ‘fatos valorados’23 em função
do sentido dessa mesma ilicitude24-25.
Dessa forma, o conceito de dolo passa a ser normatizado, afastando-se de aspectos puramente
ontológicos. Com a exigência do conhecimento das circunstâncias do fato e assim de certo
entendimento do caráter antijurídico do mesmo, o dolo não pode mais ser compreendido
como a forma pura de um fenômeno psicológico existente a priori ou mesmo a meros dados
subjetivos do autor, senão como parâmetro normativo que serve de guia a interpretação do
comportamento típico.
A partir do reconhecimento que o tipo não descreve simplesmente uma amalgama de dados
naturais, o conhecimento das circunstâncias do fato se refere, portanto, ao conhecimento fático
em seu significado correspondente aos elementos normativos do tipo. Contudo, por certo que
tal conhecimento dos elementos normativos não se dá na mesma forma e sentido ao qual
o jurista os dá, sob pena de, se assim fosse, somente o jurista poder atuar dolosamente26.
Nesse sentido, avança a doutrina dominante, já com raízes no pensamento de Mezger que
à sua época já aduzia, aproveitando um pensamento de Bindig, a “subsusção na esfera do
leigo”27 e a “valoración paralela em la esfera del profano”28, ou mesmo Welzel, que por seu
23 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 335.
24 Em sentido contrário Armin Kaufmann, que sustenta, com base nas estruturas lógico-objetivas do finalismo, que a formulação da teoria do dolo vinculada a uma posição consciente frente à ilicitude não é apenas incorreta, mas que produz dificuldades práticas insuperáveis. KAUFMANN, Armin. El dolo eventual em la estrutura del delito. ADPCP, nº 13, v2, pp. 185-206, mai./ago., 1960, p. 187-188. Disponível em <http://portal.uclm.es/descargas/idp_docs/doctrinas/kauffman.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2014.
25 No mesmo sentido VIVES ANTÓN: “Actua dolosamente quien realiza el injusto típico com conocimiento y voluntad. La noción general de dolo, podría ser la siguiente: consciencia y voluntad de la realización del injusto típico. De forma que el conocimiento y la voluntad que la acción dolosa exige han de referirse necesariamente a la ejecución del injusto típico y, en consecuencia, no se proyectan sólo sobre la dimensión externa del hecho, sino también sobre su significación, es decir, sobre su entraña valorativa.” VIVES ANTÓN, Tomás S. COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho Penal: Parte General. 4ª Ed. Tirant lo Balch: Valencia, 1996, p. 355.
26 Nesse mesmo sentido, VIVES ANTÓN, Tomás S. COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho Penal: Parte General. 4ª Ed. Tirant lo Balch: Valencia, 1996, p. 560.
27 MEZGER apud DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 336.
28 MEZGER apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 460.
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turno requer uma “apreciação paralela na consciência psicológica do agente”29-30 para avaliar
se o agente tinha os conhecimentos necessários para dirigir sua conduta no sentido do ilícito.
Nas palavras de Figueiredo Dias, a configuração do dolo do tipo requer que:
[...] o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação de sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu caráter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do fato estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder a uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objetivo de ilícito constitui o supedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a este título31.
Por certo que a exigência do conhecimento da fatualidade típica que configura o elemento
intelectivo do dolo típico ora será de maior ou menor grau de exigência. Será de maior
exigência como no caso do direito penal secundário e seus elementos normativos, em que
se exige um conhecimento específico e de maior profundidade que se afasta muitas vezes
de uma percepção clara da ilicitude do fato. Ao inverso, será de menor exigibilidadequando o
sentimento do ilícito for de fácil percepção, como nos casos de homicídio, em que já há uma
valoração moral, social ou cultural de fácil compreensão.
Contudo, em todos os casos é exigido o conhecimento capaz de orientar suficientemente a
consciência ética para o desvalor do fato, eis que irrenunciável para a configuração do dolo
do tipo32. E por fim, há de se ressaltar que o conhecimento requerido para a configuração
do dolo do tipo não se trata de uma possibilidade de representação baseada em conceitos
29 WELZEL apud DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
30 No mesmo sentido, Zaffaroni: “lo que Mezger llamó ‘valoración paralela en la esfera lega del autor’ (Paralellwertung in der Laiensphre des Täter), y que Welzel prefiere denominar ‘apreciación paralela en la consciencia del autor’(Paralellbeurteilung im Täterbewusstsein)”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 312.
31 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 334-335.
32 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 337-338.
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174
normativos, “antes se requer que o agente represente a totalidade da factualidade típica”33.
Caso o agente não represente, ou represente erroneamente qualquer dos elementos do tipo
de ilícito objetivo o dolo terá, desde logo, de ser negado.
Portanto, se o conhecimento é fundamental para a configuração do dolo do tipo, toda vez
que o agente recair em erro sobre os elementos do tipo objetivo de ilícito, este conhecimento
restará prejudicado. Neste sentido, passa-se a análise da teoria do erro em direito penal e
suas modalidades.
1.3 Erro de Tipo
Erro de tipo é, com base no já exposto, todo aquele erro que causa uma falsa ou faltosa
percepção da realidade das circunstâncias do tipo objetivo de ilícito. Portanto, a teoria do
erro se dá de variadas formas frente aos diversos elementos do tipo. No fôlego aqui permitido
serão abordadas as principais modalidades de erro e suas conceituações, bem como os
problemas enfrentados pelas mesmas no seio da dogmática jurídico-penal.
1.3.1 Erro Sobre as Circunstâncias do FatoPartindo do entendimento que para a configuração do dolo do tipo é necessário que o
elemento intelectivo não apresente erro, se o autor, no cometimento do fato, desconhecer ou
recair em erro sobre uma circunstância pertencente ao tipo objetivo, não atua dolosamente34.
Portanto, caso falte ou erre sobre os elementos descritivos ou normativos do tipo, o dolo do
tipo não pode ser preenchido, assim, exclui-se o dolo. É disso que trata o artigo 20 do Código
Penal Brasileiro:
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
33 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 339.
34 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 56.
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No que tange ao erro de tipo, a título de exemplo e para fins de esclarecimento, Figueiredo
dias trás o caso de uma mulher que faz uso de um medicamento que atua também como
abortivo sem saber que está grávida, e acaba por abortar. Neste caso, é excluído o dolo do
delito de aborto. Outrossim, outra mulher grávida que conhece a sua gravidez, mas considera
o medicamento inócuo, toma-o e acaba igualmente por abortar. Novamente o dolo não pode
ser reconhecido. No primeiro caso, pela falta de conhecimento, no segundo, pelo erro do
conhecimento35. Ou ainda, Roxin elabora o exemplo de alguém que dispara contra um suposto
espantalho sem saber que se trata de uma pessoa e, assim, atua sem o dolo do tipo36.
1.3.1.1 Erro Sobre a Previsão do Decurso do Acontecimento
Dentro da categoria erro de tipo há de se falar em várias modalidades de erro. O que se
discute sobre arubricade “Erro sobre a previsão do decurso do acontecimento” é se o agente
tem conhecimento no que tange à possibilidade de sua ação criar o resultado típico. Nos
crimes de resultado, a ação e o resultado são circunstâncias do tipo objetivo. Ou seja, se o
autor não compreende que sua conduta tem nexo causal-normativo com a criação de um
resultado, igualmente incorre em erro sobre as circunstâncias do tipo, e assim, é passível da
exclusão do dolo. Ora, é exigível que o autor conheça que sua conduta possa criar o resultado,
caso contrário, falta justamente o elemento de reprovabilidade da conduta dolosa37.
Igualmente, o erro de tipo pode ser vencível ou invencível. Como no exemplo dado por Roxin,
caso a pessoa desconfiasse que o espantalho pudesse ser uma pessoa disfarçada e atira
assim mesmo, o erro, nas circunstâncias era vencível. Ainda, novamente cumpre dizer que o
autor poderá ser punido a título de delito culposo, caso haja previsão legal.
35 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 340.
36 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 458.
37 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 341.
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176
1.3.1.2 Erro Sobre o Processo Causal Ao tipo de injusto objetivo também pertence o nexo causal entre a ação e o resultado.
Em conformidade com isso, o dolo do tipo deve compreender também o processo causal
em seus traços essenciais38. Nessa epígrafe, o que se discute é se o autor está em erro
sobre o processo causal entre a ação e o resultado. Na realidade, o tema trata igualmente
de uma discussão sobre o centro de gravidade da imputação, ora pelo desvalor da ação
e configuração do injusto pessoal ora pelo desvalor do resultado. Na doutrina majoritária,
duas posições de princípio são sufragadas. Num primeiro caso, se a criação do resultado
é proveniente de um risco não previsto, logo não haverá congruência entre o tipo objetivo
e o tipo subjetivo doloso, como defende Jakobs39. No outro extremo, encontram-se aqueles
para quem o erro sobre o processo causal é irrelevante, pois o curso causal é dinâmico e
impossível de dominar de forma completa, portanto, este erro se mantém dentro dos limites
do previsível segundo a experiência geral da vida e não justificam outra valoração do fato,
como defendem Maurach e Jescheck40.
Contudo, seguindo a linha de raciocínio até aqui elaborada, o erro sobre o processo causal,
por certo, é um erro sobre a fatualidade típica, portanto, é capaz de excluir o dolo do tipo.
Igualmente, como já visto, há de se aplicar desde já a teoria da imputação objetiva, que
excluiria na maioria dos casos o próprio nexo de causalidade, uma vez que o resultado criado
não se realizaria no âmbito do tipo objetivo, ou mesmo que não seja caso de aplicação desse
critério de delimitação do liame causal, o erro sobre o processo causal não pode deixar de
ter-se por relevante no sentido da não afirmação do dolo41. Ainda, a título de esclarecimento
de como é relevante o erro sobre o processo causal, Figueiredo Dias apresenta o seguinte
exemplo:
38 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 58.
39 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 341.
40 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 59.
41 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 343.
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E se A lança B abaixo de uma ponte com a intenção de provocar a morte por afogamento, mas B alcança a margem, mas morre por, ao sair do rio, se agarrar a uma pedra que rola e o esmaga? Não falta quem, em definitivo, aceite, em casos destes, se bem que a custa de um ligeiro entorse lógico-dogmático, a imputação subjectiva do evento ao dolo do tipo de A, por uma espécie de retroacção da sua vontade sobre o mundo das suas representações; a verdade é que A queria matar B lançando-o da ponta para o rio; enquanto outros se dispõe a aceitar a imputação do resultado segundo o plano do agente42.
Ora, é perceptível que tal erro sobre o processo causal leva a punição do agente somente
por tentativa, ou seja, se trata de um erro essencial do curso causal. Contudo, existem casos
em que o erro não se dá de forma tão essencial assim, por exemplo, o caso em que A
pretendendo matar a vítima B a golpeia com uma machadada na cabeça, contudo, não ocorre
esmagamento craniano e a morte só vem a ocorrer em virtude de uma infecção na ferida43. É
evidente que o autor esteve em erro sobre o curso causal, contudo, tais casos são erros não
essenciais e que não são capazes nem de excluir o dolo, bem como não excluem a relação
causal entre a ação e o resultado.
Roxin defende que:
El conocimiento del curso causal no es portanto presupuesto del dolo y su desconocimiento (se refiera a rasgos esenciales o inesenciales de este curso) no es un error de tipo[…]. A los requisitos de conocimiento del dolo pertenece, por el contrario, sólo la conciencia de las circunstancias que fundamentan la imputación objetiva; es decir que el sujeto ha de conocer que ha creado un peligro no permitido para el bien jurídico44
Por fim, percebe-se a delicada situação do erro sobre o processo causal, ora pode excluir o
dolo do tipo, ora é irrelevante e não altera em nada a valoração jurídica. Neste sentido, salutar
é a aplicação dos critérios da imputação objetiva no intuito de resolver o problema no nexo de
causalidade da realização do risco no resultado típico.
42 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 343.
43 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 49.
44 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 489.
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178
1.3.1.3 “Dolus Generalis”Esta epígrafe trata dos casos em que o agente erra sobre qual de diversos atos produzirá
o resultado, ou seja, quando o agente erra sobre qual das ações cometidas em sequência
desencadeará o resultado. Como no exemplo o caso do agente que, atuando com dolo
correspondente, acredita ter matado a vítima com uma pancada forte na cabeça e, logo
após, tentando simular um homicídio por enforcamento, enforca a vítima, que só então vem
a falecer45. Ou mesmo o caso em que o agente a beira de um lago, após ter disparado com
arma de fogo contra a vítima, toma-a por morta e atira o suposto cadáver na água, ocasião
em que efetivamente ocorreu a sua morte por afogamento, pois a vítima estava apenas
inconsciente46.
Nessas hipóteses resta claro que o dolo empregado na primeira ação não determina
imediatamente o resultado, e que a ação subsequente, sem o dolo de matar é que o determina.
Nesse sentido, parte da doutrina vê a primeira ação como uma tentativa, e a segunda ação
como um homicídio culposo, tal como Jakobs47.
Já outra parte da literatura segue outra senda, embora sobre diferentes pressupostos,
pronunciam-se pela aceitação do crime como consumado, tal qual Jescheck48. Figueiredo
Dias busca solucionar tais controvérsias por meio dos critérios da imputação objetiva, a
saber, “se o risco criado se concretiza no resultado pode ainda reconduzir-se ao quadro dos
riscos criados pela (primeira) acção”49. Em caso de resposta afirmativa, então o crime seria
consumado, caso a resposta for negativa, somente poderá ter lugar a tentativa, eventualmente
em concurso com um crime culposo50.
45 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 343.
46 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 49.
47 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 344.
48 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. Tradução de Miguel Olmedo Carnedete. Granada: Comares Editorial, 2002.
49 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 344.
50 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 344.
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1.3.1.4 “Aberratio Ictus”Ocorre a Aberratio Ictus quando, por inabilidade que determina um erro na execução o
agente vem a atingir outro objeto daquele o qual pretendia. A título de ilustração, aquele que,
pretendendo matar seu inimigo dispara contra este, contudo, por má pontaria, vem a acertar
um transeunte que passava pelo local. O resultado pretendido não se realiza, e sim um outro,
não pretendido.
Em realidade, a discussão tradicional sobreo tratamento deste grupo de casos se move na
entre os polos da teoria de concreção e da teoria da equivalência51. Para a teoria da concreção,
que é dominante, o dolo pressupõe a sua concreção a um determinado objeto; neste sentido,
se a consequência do erro ou acidente na execução acaba por ofender outro objeto senão
aquele desejado pelo agente, então faltaria o dolo em relação a este segundo objeto52.
Assim, em consoante a teoria da concreção, posição majoritária na doutrina internacional, a
imputação caminha no sentido de entender tal caso como um concurso entre uma tentativa
de homicídio e um homicídio culposo, eis que para primeira vítima o crime se apresenta como
uma tentativa, já para a segunda, como culposo.
Já a teoria da equivalência, parte da ideia de que o dolo somente deve abarcar o resultado
típico e seus elementos, ou seja, não exige a concreção num objeto real. Portanto, no
caso trazido, como o agente queria matar uma pessoa e, mesmo com o erro ou acidente
na execução, matou uma pessoa diversa, tal erro ou acidente não tem relevância no dolo,
portanto, deveria o autor responder por homicídio consumado.
É sobre essa teoria da equivalência, minoritária na doutrina internacional, que se assenta
o entendimento do Código Penal brasileiro que em seu artigo 73 dispõe sobre o erro na
execução:
51 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 493.
52 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 493.
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180
Erro na execução
Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11/7/1984)
1.3.1.5 “Error In Persona Vel Objecto”O erro in persona vel objeto ocorre quando, por engano e má representação, o agente
confunde a identidade da vítima ou o objeto. Portanto, o que ocorre não é um erro na execução,
mas na formação da vontade53, que faz com que o agente confunda a identidade de seu alvo. O exemplo clássico é o caso daquele que, caçando ao entardecer, atira contra um vulto,
pressupondo que seria um animal, quando na verdade era seu vizinho que por ali passeava.
Aqui não há erro na execução, sobre o processo causal ou mesmo sobre a previsão do
decurso do acontecimento, o erro se encontra na má representação.
As repercussões jurídicas do reconhecimento deste erro podem variar. Se o objeto ou pessoa
atingido seja tipicamente idêntico ao protegido pela lei, tal erro é irrelevante, devendo o autor
responder pelo crime como se o erro não houvesse ocorrido, por exemplo, aquele que acredita
ter disparado contra seu inimigo, mas na realidade disparou em outro homem da mesma
idade, ou mesmo seu irmão gêmeo. Já se o objeto ou a pessoa ao qual o agente acreditou
atingir é detentora de qualidades tipicamente relevantes, tais quais ser idoso, ascendente
etc., deve o agente responder como se o crime tivesse sido cometido contra a pessoa que o
agente acreditava ser a vítima. Nesse sentido, é o artigo 20, § 3º do Código Penal Brasileiro:
Erro sobre a pessoa (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11/7/1984)
§ 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11/7/1984)
53 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 345.
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181
1.3.1.6 A Problemática Atual Entre o Erro De Tipo e Erro de Proibição
Aqui ainda deve-se mencionar a diferenciação clássica na doutrina entre a categoria de
erro de tipo e erro de proibição. Ao contrário dos casos de erro de tipo, segundo a doutrina
clássica, no erro de proibição o agente atua com o conhecimento de todas as circunstâncias
do fato, e, portanto, dolosamente, contudo, não sabe que seu atuar é antijurídico54. Sendo
assim, se o sujeito crer que seu comportamento é permitido, se trata de erro de proibição,
que deixaria intacto o dolo e unicamente serviria para a exclusão da culpabilidade55, caso seja
erro fosse invencível. Contudo, deve-se objetar a tal entendimento. Ora, se o entendimento
atual e mais coerente sobre o dolo impõe a exigência do conhecimento tanto dos elementos
descritivos quanto normativos do tipo objetivo e, assim, de certo entendimento de ilicitude,
o conhecimento da proibição faz parte já do dolo do tipo, portanto, o erro de proibição não
exclui da culpabilidade, senão, pelo contrário, o próprio dolo56.
Nas palavras de Roxin:
El error de tipo no afecta portanto al conocimiento o desconocimiento de la antijuridicidad, sino tan sólo al de las circunstancias del hecho. De ahí resultan dos problemas centrales: la delimitación entre error de tipo y error de prohibición57.
Se é bem verdade que na maioria dos casos o elemento intelectual do dolo do tipo será
configurado através da exigência de conhecimento de todas as circunstâncias do tipo
objetivo de ilícito, torna-se indispensável que o agente tenha atuado com certo conhecimento
54 Nesse sentido, Welzel, Eb. Schmidt, Bockelmann, Donha, Niese e Armin Kaufmann, que remetem os elementos da antijuridicidade e consideram o erro sobre estes como erro de proibição. Vide: ROXIN, Claus. Teoría del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurídico. Trad. Enrique Bacigalupo. Buenos Aires: Depalma, 1979, p. 192.
55 Nesse sentido, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 459.
56 Vide ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004; VIVES ANTÓN, Tomás S. COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho Penal: Parte General. 4ª Ed. Tirant lo Balch: Valencia, 1996, p. 560.
57 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 459.
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182
da proibição legal58. Nesse sentido, o erro sobre as proibições exerce a mesma função
de quaisquer outros elementos do pertencentes ao tipo objetivo de ilícito. Portanto, o
conhecimento da proibição, mesmo que na “esfera do profano” tal qual aduzia Mezger, “faz
parte do conhecimento necessário a uma correta e indispensável orientação da consciência
ética para o problema da ilicitude”59-60.
Contudo, ainda não se pode dizer, num extremo da argumentação, que o erro de proibição se
trata de uma categoria ou modalidade de erro de tipo. Consoante Roxin, deve-se diminuir a
amplitude do conceito de erro de proibição, mas este ainda tem autonomia frente ao conceito
de erro de tipo. Para ele, o erro de proibição se limita aos casos em que há um erro de
subsunção por parte do agente que, mesmo que conheça o caráter minimamente ilícito capaz
de orientar e configurar o dolo, desconhece que o legislador proíba sua conduta. Como no
caso em que o agente, agindo com dolo, esvazia os pneus do carro de outro e não é capaz
de perceber que a palavra “dano” é valorada até este ponto pelo legislador, portanto, mesmo
que o autor conheça que sua atitude é ilícita, não há entende como proibida pelo tipo penal61.
Caberia aqui, portanto, não o erro de tipo que exclui o dolo, mas sim o de proibição, com seria
capaz de excluir a culpabilidade pela falta da consciência de ilicitude.
1.4 Elemento Volitivo do DoloO elemento intelectual do dolo do tipo, a despeito de ser a pedra angular do reconhecimento
do dolo do tipo, não é elemento capaz de, independentemente de qualquer outro, distinguir
as condutas dolosas das culposas, visto que, na sua zona mais cinzenta que é a distinção
entre dolo eventual e culpa consciente, não é capaz de diferenciar e encontrar o Mittelpunkt diferenciador entre ambas, pois o elemento intelectivo está presente da mesma forma
presente em ambas as modalidades. É, pois o elemento volitivo, quando ligado ao intelectual
58 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 346.
59 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 349.
60 Como leitura complementar para a total compreensão da temática em voga indica-se os escritos entorno da dupla valoração do dolo e da culpa na teoria geral do delito.
61 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 461.
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183
requerido, que verdadeiramente serve para indicar (embora ainda não para fundamentar)62
uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento.
Em outras palavras, o conhecimento das circunstâncias do tipo objetivo, bem como a
capacidade de previsão dos mesmos por si só são capazes de demonstrar a decisão no sentido
de realização do ilícito, e assim não é apto para diferenciar a conduta dolosa da culposa. O
dolo como vontade do fato é fundamental para a configuração do ilícito, e demonstra, para
além do conhecimento, a vontade de que o resultado se realize63. Assim, e só sob essa
fundamentação é que o dolo pode ser entendido como conhecimento e querer a realização
do tipo objetivo64. Como bem aponta Figueiredo Dias:
Isso significa que o dolo do tipo não pode bastar-se com aquele conhecimento, mas exige ainda a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização. E é justamente este momento que constitui o elemento volitivo do dolo do tipo e que pode assumir matizes diversos, permitindo a formação de diferentes classes de dolo65.
Portanto, é sobre as formas de manifestação do elemento volitivo do dolo que se assentará
a diferenciação entre suas modalidades. Nesse sentido, a legislação brasileira, no art. 18
do nosso Código Penal entende por crime doloso “quando o agente quis o resultado ou
assumiu o risco de produzi-lo;” Notadamente, entende o dolo em duas categorias, por dizer,
o direto “quando quis o resultado” e o eventual, quando “assumiu o risco de produzi-lo;”.
Contudo, a doutrina internacional, desde a muito, comumente percebe o dolo em três formas
de manifestação, o dolo direto de primeiro grau, o dolo direto de segundo grau e o dolo
eventual66.
62 Em sentido contrário na atualidade, com maior relevo, Puppe que defende a eliminação do elemento volitivo para guiar-se com base somente no conhecimento das circunstancias através da perspectiva normativa de imputar como dolo todo comportamento que apresente um “método idôneo para a provocação do resultado”. PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 82.
63 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Friker. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 74.
64 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Friker. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 74.
65 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 349.
66 GRECO, Luis. Algumas observações introdutórias à “Distinção entre dolo e culpa”, de Ingeborg Puppe. In: PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. XII-XIII.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
184
1.4.1 Dolo Direto ou ImediatoEssa é a forma mais evidente da manifestação do dolo. O dolo direto se dá nos casos em
que a realização do ilícito é o verdadeiro fim da conduta do agente. Neste sentido, o dolo direto é composto de três aspectos: a) O conhecimento das circunstâncias do fato típico; b)
O querer o resultado representado, bem como os meios para isso e; c) o anuira realização
das consequências secundárias dadas como certas67. Nesse sentido, o dolo direto pode ser
subdividido em: Dolo direto de Primeiro grau e Dolo direto de segundo grau.
1.4.1.1 Dolo Direto de Primeiro GrauEntende-se como dolo de primeiro grau os casos em que a vontade do agente está
vontade para a realização do resultado típico de forma direta ou como pressuposto ou estado
intermediário necessário ou de conseguimento.68 Portanto, a vontade do agente é consciente
e dirigida à realização do fato típico, ou seja, o agente verdadeiramente “quer” o resultado de
forma inequívoca e tem clareza do resultado. Como quando A dispara contra B no intuito de
matá-lo. Ou mesmo, nos casos de estado intermediário, quando A dispara contra B, guarda
do banco, para poder realizar um assalto. Ambos os casos são dolo direto de primeiro grau.
1.4.1.2 Dolo Direto de Segundo GrauNo dolo direto de segundo grau o agente atua tendo conhecimento perfeito de uma
inevitável consequência colateral de sua ação delituosa e, mesmo que não tenha interesse
direto nesta, assume voluntariamente sua ocorrência. Nas palavras de Roxin:
El dolo directo (de segundo grado) representa un “querer” la realización del tipo, aun cuando el resultado sea desagradable para el sujeto.” Las consecuencias de la acción que se reconocen como necesarias son asumidas en su voluntad por el agente, aun cuando no tenga en absoluto interés en esas consecuencias.69
67 Nesse sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 28.
68 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 350.
69 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito.Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 424.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congru-ência e a Teoria do Erro de Tipo
185
A título de exemplo, o caso em que A, querendo matar B, coloca uma bomba em um trem
ou aeronave em que o último se encontra, a bomba explode e mata, além de B, a todos os
demais passageiros. Inegavelmente a morte dos demais passageiros foi anuída de forma
inequívoca por A, como consequência necessária do meio escolhido por ele70, pois àquele
que sabe com seguridade que a bomba matará sua vítima e também causará a morte dos
demais, por certo se pode qualificar de “querida” a morte destes últimos, mesmo que o autor
não tenha interesse nas mesmas. Desse modo, pode-se afirmar que o elemento volitivo é
presente tal qual no dolo direto de primeiro grau no que tange à vítima visada, contudo,
menos intenso que no dolo direto de primeiro grau no que tange às demais mortes colaterais.
1.4.2 Dolo EventualA segunda parte do artigo 18 do Código Penal Brasileiro afirma que o crime entende-se
por doloso não somente quando o agente quis produzir o resultado, mas também quando
“assumiu o risco de produzi-lo”. Contudo, merece mais aprofundamento a delicada distinção
entre dolo eventual e culpa consciente. Tal distinção, por mais que diversos manuais tragam-
na de forma reduzida e simplificada, é por certo uma das mais discutidas em toda a história
da dogmática jurídico-penal e apresenta, nas palavras de Figueiredo Dias,
[...] uma multiplicidade infindável de critérios que pode tornar-se enganosa e que encobre, em grande parte dos casos, variações pouco mais que puramente semânticas, às quais não correspondem diferenças materiais e de resultados práticos71.
Nesse sentido, a criação de um conceito de dolo eventual capaz de garantir uma diferenciação
segura no que tange à culpa consciente tem inúmeras vertentes propositivas e críticas até o
momento.
Grosso modo, os casos de dolo eventual se caracterizam pelo agente ter representado a
realização do tipo de ilícito objetivo como possível, e mesmo assim ter agido com a disposição
de aceitar a realização deste. Portanto, o sujeito prevê como possível a realização do
resultado típico e age com disposição e aceitando o risco de que o resultado se produza.
70 BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29.
71 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 351.
Aula 06 | Dimensão Subjetiva do Tipo: A Teoria da Congruência e a Teoria do Erro de Tipo
186
Nesse sentido, a distinção entre dolo direto de segundo grau e dolo eventual se assenta em
que, no primeiro, o resultado se representa como necessário, como certo, já no segundo,
somente como possível.
Contudo, a distinção entre dolo eventual e culpa consciente não é tão simples. O que ocorre
é que, na culpa consciente, o agente, da mesma forma que no dolo eventual, prevê seu
resultado somente como possível, todavia, neste grupo de casos, não está disposto a aceitar
a produção do resultado, mas mesmo assim age, confiando que o resultado não ocorra, p.
ex., um caçador que, confiando plenamente em sua habilidade como atirador, dispara contra
um animal que se encontra próximo de uma pessoa. Contudo, acaba por acertar a pessoa ao
invés do animal.
Já no dolo eventual, o agente aceita a possibilidade da produção ou, inversamente, não
confia que não se produza o mesmo72. Assim, o agente conta como altamente possível que
o resultado se produza e assume voluntariamente este risco. O dolo eventual requer, pois, a
consciência concreta do perigo73. Em outras palavras, o agente atua com dolo eventual quando
representa o resultado como provável e inclui essa probabilidade na vontade realizadora74-75.
72 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 352.
73 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 353.
74 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 355.
75 No fôlego aqui permitido foram apresentadas as linhas mestras da teoria da dimensão subjetiva do tipo. Contudo, como o tema se trata de um dos problemas mais debatidos em toda a história da dogmática jurídico penal tendo, inclusive na atualidade, divergentes vertentes e tentativas de explanação. Portanto, há ainda muito de relevante a ser dito, por exemplo, as teorias de distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente, tais quais: A teoria da aprovação ou do consentimento; a teoria da indiferença de Engisch; a teoria da representação ou da possibilidade; a teoria da probabilidade; a teoria do risco de Frisch; As fórmulas de Frank; a teoria da não colocação em prática da vontade de evitação de Kaufmann; a não improvável produção do resultado e a habituação ao risco em Jakobs; a teoria do perigo não coberto ou segurado deHerzberg;O doloeventualcomo decisão pela possível lesão de bens jurídicos; Para um panorama geral, por todos, vide ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 424 ss.
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187
Verificaçãode leitura
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
O dolo do tipo compõe a:
a) Estrutura do tipo subjetivo de ilícito
b) Conduta Ilícita
c) Culpabilidade
d) Culpa Inconsciente
e) Parte objetiva do tipo
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
Pode-se afirmar que a vontade dirigida fina-
listicamente ao resultado é a:
a) Vontade
b) Conduta
c) Finalidade
d) Intenção
e) Determinação
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
Pode-se afirmar que todo aquele erro que
causa uma falsa percepção da realidade das
circunstâncias do tipo objetivo de ilícito é o:
a) Erro de Proibição
b) Erro de Tipo
c) Erro sobre a Pessoa
d) Erro Jurídico
e) Erro no Procedimento Típico
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
Quando A, com a intenção de tirar a vida de
B, acerta C com um disparo de arma de fogo,
porém, não tinha a menor intenção e/ou pre-
visibilidade de acertar C, este fato concreto é
caracterizado pela(o):
a) Erro sobre a Pessoa
b) Erro Fundamental
c) Aberratio Ictus
d) Dolos Generalis
e) Maleus Maleficarum
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
O dolo direto pode ser definido em:
a) Dolo Direto Primeiro e Dolo Direto Último
b) Dolo Direto de Primeiro Grau e Dolo Direto de Segundo Grau
c) Dolo Direto Eventual e Dolo Direto Cons-ciente
d) Dolo de Erro e Dolo Culpável
e) Dolo Geral
188
BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do
crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
GRECO, Luís. Algumas observações introdutórias à “Distinção entre dolo e culpa”, de Ingeborg
Puppe. In: PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole,
2004.
JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. Tradução
de Miguel Olmedo Carnedete. Granada: Comares Editorial, 2002.
KAUFMANN, Armin. El dolo eventual en la estructura del delito. ADPCP, nº 13, v2, pp. 185-206,
mai./ago., 1960, p. 187-188. Disponível em: <http://portal.uclm.es/descargas/idp_docs/doctrinas/
kauffman.pdf>. Acesso em: 15 de jan. 2014.
MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho Penal: parte general. Tradução de Sergio Politoff
Lifschitz. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994.
MEZGER. Derecho Penal: Libro de estudio. Parte General. Trad. Ricardo C. Núñez. Editorial
Bibliográfica. Argentina: Buenos Aires, 1958.
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004.
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del
delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
ROXIN, Claus. Teoría del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurídico.Trad. Enrique
Bacigalupo. Buenos Aires: Depalma, 1979.
VIVES ANTÓN, Tomás S. COBO DEL ROSAL, Manuel. Derecho Penal: Parte General. 4. ed. Tirant
lo Balch: Valencia, 1996.
Referências
189
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar,
1998.
WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Trad. Carlos Fontán Balestra y Eduardo Friker.
Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 74.
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Parte General. 11. ed. Tradução de Juan Bustos Ramírez e
Sergio Yáñes Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997.
WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris,
1976.
Referências
Gabarito
Questão 1
Resposta: Alternativa A.
Resolução: A estrutura do tipo subjetivo de ilícito é formada pelos seguintes elementos: o
dolo do tipo, que determina a direção e o fim do atuar do agente e é o núcleo do injusto
pessoal da ação, bem como é o elemento geral do tipo subjetivo.
Questão 2
Resposta: Alternativa D.
Resolução: Até o momento, a literatura jurídico-penal não conseguiu delimitar o que seja o núcleo duro de um conceito geral de intenção, portanto, não se pode considerá-la um elemento dogmático definido pela Parte Geral, senão como um elemento que está presente de variadas formas na parte especial, contudo, a despeito disso, pode-se dizer que se entende
de forma geral por intenção a “vontade dirigida finalisticamente ao resultado”.
190
Questão 3
Resposta: Alternativa B.
Resolução: Erro de tipo é todo aquele erro que causa uma falsa ou faltosa percepção da
realidade das circunstâncias do tipo objetivo de ilícito. Portanto, a teoria do erro se dá de
variadas formas frente aos diversos elementos do tipo.
Questão 4
Resposta: Alternativa C.
Resolução: Ocorre a Aberratio Ictus quando, por inabilidade que determina um erro na
execução o agente vem a atingir outro objeto daquele o qual pretendia. A título de ilustração,
aquele que, pretendendo matar seu inimigo dispara contra este, contudo, por má pontaria,
vem a acertar um transeunte que passava pelo local. O resultado pretendido não se realiza,
e sim outro, não pretendido.
Questão 5
Resposta: Alternativa B.
Resolução: O dolo direto se dá nos casos em que a realização do ilícito é o verdadeiro
fim da conduta do agente. Nesse sentido, o dolo direto é composto de três aspectos: a) O
conhecimento das circunstâncias do fato típico; b) O querer o resultado representado, bem
como os meios para isso e; c) o anuir a realização das consequências secundárias dadas
como certas. Nesse sentido, o dolo direto pode ser subdividido em: Dolo direto de primeiro
grau e Dolo direto de segundo grau.
Gabarito
LEGENDA DE ÍCONES seções
193
Início
Referências
Gabarito
Verificaçãode leitura
Pontuando
Glossário
Vamos pensar
Aula
194
07
AntijuridicidadeObjetivos
Caro aluno, o escrito em questão buscar realizar uma breve exposição das linhas mestras
daquilo que se entende por antijuridicidade ou ilicitude em direito penal. Para isso, expõe seus
elementos, sua estrutura e sua função, bem como sua forma de manifestação específica na
teoria geral do delito e no ordenamento jurídico. Seja bem-vindo à antijuridicidade.
1. Da Antijuridicidade
1.1 A relação entre tipo e antijuridicidade
A partir do que já foi visto anteriormente,1 a dogmática jurídico penal vem avançando no sentido de uma aproximação entre tipo e ilicitude. Ora, é certo que o tipo constitui o primeiro degrau valorativo da doutrina do crime. Contudo, a literatura jurídica vem conduzindo seu entendimento de um tipo de matriz positivista e sem conteúdo axiológico – Bindig – para um entendimento de aproximação do tipo com a ilicitude. Nesse sentido, a antijuridicidade ou ilicitude passa a representar o desvalor material com que se estabelecem as relações típicas, ou seja, constitui o conteúdo material do tipo.2 Assim, o ilícito-típico ou tipo de ilícito se trata de uma “categoria dogmática materialmente informada por um juízo de ilicitude centrado na ofensa a bens jurídicos”.3
A despeito de tal aproximação e relação intrínseca, o tipo não pode confundir-se com a
ilicitude. Nas palavras de Faria Costa:
[...] o tipo é condição sine qua non para que a ilicitude se possa expressar, isto é, condição para que o ilícito entre no discurso jurídico-penal relevante. De sorte que a antijuridicidade penalmente relevante não está fora do tipo, mas sempre se expressa dentro dos contornos dogmáticos definidos pelo tipo.
1 Vide: Tema 4 – Teoria do tipo e tipicidade material.
2 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 216.
3 D’ÁVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 41.
195
Aula 07 | Antijuridicidade
Portanto, na esteira do pensamento de Mezger e Mayer, Welzel já aduzia que aquele que
atua tipicamente, já atua, em princípio, antijuridicamente. Ou seja, que a ação típica é um
indício da antijuridicidade. Com efeito, a conduta típica é meramente antinormativa, e não
de fato antijurídica, pois pode haver uma causa de justificação.4-5 Por isso, para Roxin, a
antijuridicidade é uma qualidade da ação típica.6
Por sua vez e de acordo com o exposto supra, a ilicitude atualmente é entendida como a
categoria material que carrega a ideia de desvalor e desaprovação da ordem jurídica; ou, em
outra formulação, expressa a negação de certos valores.7 Nesta senda, o conceito de injusto
reúne as categorias da ação, tipicidade e antijuridicidade.8 Assim, é a ilicitude que expressa
a qualidade ofensiva do comportamento típico,9 o precede e o ilumina.10 Portanto, a ilicitude
tem primazia sobre a tipicidade,11 uma vez que é sua razão de ser, mas não se confunde com
esta.
4 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 86.
5 Nesse sentido, Zaffaroni disserta que: “Hemos señalado al tipo como el ente que nos permite ‘ver-a-través-de-él' las desvaloraciones jurídicas que recaen sobre las acciones que pueden tener relevancia penal como delitos.” p. 561. Portanto: “Sabemos que de esta forma, la tipicidad penal (antinormativa) no pasa de ser un indicio de la antijuridicidad.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 562.
6 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 557.
7 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal.Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 253.
8 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 558.
9 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 253-254.
10 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 363.
11 Nesse sentido, uma vez que o primado está na ilicitude, poder-se-ia dizer que a fórmula se apresenta no sentido oposto ao criado por Mezger – a tipicidade deixa de ser ratio essendi da ilicitude, senão que a ilicitude é a ratio essendi da tipicidade. Ora, se a ilicitude precede a tipicidade e a ilumina, o tipo não pode ser a essência da ilicitude, uma vez que pode haver tipicidade sem ilicitude, mas o contrário não é verdadeiro. Portanto, é a ilicitude que se projeta no tipo, e não o tipo que carrega a ilicitude, assim, é a ilicitude que é a essência da tipicidade. Nesse sentido, COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
196
1.2 Antijuridicidade formal e materialA doutrina costuma, tal qual Muñoz Conde12, entender a antijuridicidade em dois aspectos,
um formal e outro material. O primeiro significaria o preenchimento dos elementos do tipo
penal, já o segundo seria a conduta típica quando não estivesse presente nenhuma causa de
justificação. Nesse sentido, Zaffaroni aponta que:
Ahora bien: todo parecía permanecer claro dentro del marco del planteamiento positivista-jurídico de la antijuridicidad, cuando irrumpió una teoría que hasta hoy sigue en discusión - aunque frecuentemente con distintos nombres - y que pretende afirmar la existencia de dos ‘antijuridicidades’: una formal y otra material. La antijuridicidad ‘formal’ sería el resultado de la contrariedad de la conducta con Ia norma positiva, en tanto que Ia antijuridicidad ‘material’ revelaría la “anti-socialidad” de la conducta.13
Todavia, na atualidade, tal diferenciação resta infrutífera e até mesmo superada, porquanto,
se analisada mais detidamente, acaba por criar uma confusão dogmática com a própria
tipicidade.14 Se é bem verdade que o tipo já carrega a ilicitude como sua dimensão material, o
próprio preenchimento do tipo já demonstra um indício de ilicitude. Portanto, a antijuridicidade
formal corresponde a uma realização do comportamento contrário à norma jurídica, o que é
o mesmo que dizer que a antijuridicidade formal seria a própria tipicidade,15 já compreendida
em sua dimensão material. Assim sendo, consoante melhor e mais atual doutrina, há de se
rejeitar tal entendimento e divisão entre ilicitude formal e material.
2. Do Tipo Justificador
2.1 Tipos justificadores e tipos incriminadoresSob a égide do entendimento da antijuridicidade, conforme exposto, constrói-se a teoria
do tipo penal e sua dimensão material. Portanto, a partir de tal essência, podemos perceber
12 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Antonio Fabris Editor, 1988, p. 87.
13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 562.
14 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 254.
15 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo, Editora Saraiva, 2010, p. 378.
Aula 07 | Antijuridicidade
197
que se arvoram duas modalidades diferentes, senão opostas, de tipos penais: a) Os tipos incriminadores – que se ligam diretamente às circunstâncias fáticas e subjetivas direcionadas
à ilicitude e, por isso, também ao bem jurídico protegido, e; B) Em outra senda, estão os tipos justificadores, também chamados de tipos permissivos ou causas de justificação
que, servindo igualmente à averiguação da concretização do conteúdo ilícito da conduta,
assumem o caráter de limitação dos tipos incriminadores no sentido de exclusão do caráter
ilícito dos atos. As causas de justificação, portanto, levam implícito um preceito permissivo,
em contraposição ao tipo, visto que interferem nas normas, sejam mandatos ou proibições,
dando lugar para que a realização de uma conduta proibida ou a não realização da conduta
ordenada seja lícita.16
Dessa forma, entre os tipos incriminadores e os tipos justificadores ou permissivos se dá uma
relação de oposição complementar e sequencial a fim de determinação da ilicitude de uma
ação. Em outras palavras, tal relação não é puramente binária e excludente, senão dialética
e complementar. Conforme a doutrina de Figueiredo Dias: “entre eles se não estabelece
tanto uma relação de regra/exceção, ou de afirmação/negação, quanto uma relação de
complementaridade funcional na valoração de uma concreta acção como lícita/ilícita.”.17 Ou
ainda, nas palavras de Faria Costa:
a relação que se estabelece é uma complementariedade funcional entre os fundamentos da incriminação (ilícitos-típicos) e os fundamentos da justificação (tipos ou causas de justificação, em que os últimos, ao contributo para a própria conformação negativa do conteúdo material do tipo (ilicitude) actuam de forma complementar para sua delimitação.18
Assim, os tipos incriminadores constituem uma via provisória de fundamentação da ilicitude e,
por sua vez, de forma complementar à averiguação final desta ilicitude, os tipos justificadores
visam uma via definitiva de exclusão da ilicitude prima facie indicada pela tipicidade.19 Ou seja,
16 CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal Español. Parte General. Tomo II: Teoría jurídica del delito. Ed. Tecnos: Madrid, 1997, p. 178.
17 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 362.
18 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 272.
19 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 362-363.
Aula 07 | Antijuridicidade
198
a justificativa de uma ação típica resulta da colisão entre a norma proibitiva ou de comando,
fundamentadora do tipo incriminador, e um tipo permissivo. Numa visão mais simples dessa
relação: frente aos tipos incriminadores situam-se tipos permissivos que excepcionalmente
autorizam a conduta ofensiva a bens jurídicos.20
Portanto, uma ação será antijurídica quando realiza um tipo incriminador e não se torna
acobertada por um tipo justificante.21
2.2 A estrutura dos tipos justificadores ou permissivosOs tipos justificadores e incriminadores apresentam em sua estrutura algumas similaridades.
Assim como o tipo de injusto é constituído de elementos objetivos e subjetivos do injusto, o
tipo permissivo compõe-se de elementos objetivos e subjetivos de justificação.22 Portanto,
da mesma forma que aos tipos de injusto, aos tipos justificantes é exigido que o autor tenha
agido com o conhecimento das circunstâncias do fato justificante,23 o que significa dizer não
só que a teoria do erro também lhe é aplicável, mas que o autor tenha de ter o elemento
subjetivo de justificação preenchido, como no caso da legítima defesa, deve haver a “vontade
de defender”.24-25 Caso contrário, não estará preenchida a causa de justificação e a conduta
será considerada antijurídica.
20 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 62.
21 No mesmo sentido, Wessels: “Uma ação é antijurídica, quando realiza um tipo de injusto e não se torne acobertada por uma causa justificante”. WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 62; CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal Español. Parte General. Tomo II: Teoría jurídica del delito. Ed. Tecnos: Madrid, 1997, p. 178; Roxin: “Una conducta típica es antijurídica si no hay una causa de justificación”; ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 557.
22 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 62.
23 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 62.
24 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 63.
25 Nesse sentido, Conde: “só pode atuar em legítima defesa quem sabe que está se defendendo” CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Antonio Fabris Editor, 1988, p. 94.
Aula 07 | Antijuridicidade
199
Porém, não somente a função dos tipos justificadores é diversa da dos tipos de injusto,
embora complementares, mas sua estrutura também o é. Os tipos incriminadores detêm uma
relação intrínseca com o bem jurídico protegido e com a conduta específica descrita, ou seja,
tem caráter concreto e individualizador. Por outro lado, os tipos justificadores são gerais e
abstratos, “no sentido de que não são em princípio referentes a um bem jurídico determinado,
antes valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação
do tipo incriminador em análise.”26 Outrossim, de forma diversa aos tipos incriminadores, não
estão sujeitos à proibição de analogia e nem mesmo, eventualmente, de que se faça valer
causas supralegais de exclusão da ilicitude.27
3. A Sistematização das Causas de Justificação
Até o momento, a literatura jurídico penal não logrou êxito na tentativa de criar uma
sistematização ou teoria geral das causas de justificação de modo definitivo.28 Tentou-se, sem
sucesso, a criação de teorias capazes de compreender todas as formas de ocorrência das
causas de justificação, contudo, como as causas de justificação aparecem no ordenamento
jurídico das diversas e mais variadas formas, tal tentativa resta dificulta, o que torna infrutífera
a criação de uma teoria monista capaz de abranger tal fenômeno de forma total.
Liszt procurou elaborar a teoria monista do fim, segundo a qual estaria justificada toda a
conduta que “possa representar-se como meio adequado (correcto) para alcançar um fim
reconhecido pelo legislador como justificado (correcto).”29 Já Sauer propagou a teoria baseada
no “princípio do maior benefício do que prejuízo”, que, grosso modo, afirma que seria lícita
“a atuação, que em sua tendência geral, represente para a comunidade estadual maiores
26 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 363.
27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 363.
28 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p.572; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 368.
29 LISZT apud DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 368.
Aula 07 | Antijuridicidade
200
benefícios (ideais, culturais) que danos.” Contudo, toda teoria monista que intente reconduzir
as causas de justificação a uma teoria reitora omnicompreensiva tem necessariamente de
permanecer em um plano absolutamente abstrato e, por isso, vazio de conteúdo,30 portanto,
imprestável para fins práticos.
Contudo, há de se dar mérito às teorias dualistas, tais como a de Mezger, que procura realizar
um apelo a um duplo ponto de vista: o do princípio do interesse preponderante, válido para
a generalidade das causas de justificação; e o princípio da falta de interesse, a que deveria
ser reconduzida a causa justificativa do consentimento.31 Que também não resta isenta de
críticas.
Se o que se quer é estabelecer um princípio omnicomprensivo a todas as causas de
justificação, o que se pretende é a regulação social dos interesses que colidem nos casos de
justificação. Portanto, tal teoria teria de ser, necessariamente, pluralista, mas, mesmo assim,
não passível de ser fixada com critérios permanentes ou sistematizados de forma fechada
e definitiva em seus conteúdos, senão só perfilando a antijuridicidade perante os princípios
ordenadores da ordem social historicamente situada e posta em relevo na situação específica
em concreto e em seu contexto particular.32 Ou seja, o leitmotiv da própria teoria é dinâmico
e de difícil apreensão.
4. As Causas de Justificação no Ordenamento Jurídico Brasileiro
As causas de justificação podem ser divididas em legais ou supralegais e, apesar do fato de
que a legislação brasileira não preveja expressamente as últimas, a doutrina e a jurisprudência
admitem a sua existência.33 As causas de justificação são tão numerosas no campo do direito
30 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 574; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 368.
31 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 368-369.
32 Nesse sentido, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 575.
33 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 358.
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201
penal e do ordenamento jurídico como um todo que sua exposição geral e exaustiva seria
totalmente impossível.34 Até pelo motivo de que uma discussão que pretenda ser completa
seria inadequada, portanto, somente serão expostas as que substancialmente pertencem ao
direito penal. Nesse sentido, a exposição se atrelará às causas de justificação de que trata
do Código Penal brasileiro, que são as mais difíceis bem como as mais importantes.35 Com
efeito, as causas de justificação presentes no artigo 23 do Código Penal:
Exclusão de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Passa-se então à exposição das causas de exclusão da ilicitude.
4.1 O estado de necessidadeO estado de necessidade caracteriza-se pela colisão de interesses juridicamente protegidos.
Tal causa de justificação é prevista pelo artigo 24 do nosso Código Penal:
Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
34 No mesmo sentido, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 604.
35 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 604.
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202
O exemplo clássico do estado de necessidade é o dos dois náufragos que disputam a mesma
tábua de salvação, a qual não suporta mais do que uma pessoa. Portanto, uma das vidas
terá de ser sacrificada em prol de outra. Nessas situações, pressupõe-se uma determinada
situação de estado de necessidade, que consiste em um perigo atual para a vida, integridade
corporal, ou outro bem jurídico, e que não pode ser afastado de outro modo a não ser através
da atuação sobre outros bens jurídicos,36 próprios ou alheios, bem como sobre bens jurídicos
supraindividuais. Portanto, a ação do estado de necessidade deve ser objetivamente a única
possível capaz de afastar o perigo, eis o caráter de necessária, e subjetivamente orientada pela vontade de salvamento.37 Ainda, é salutar expor que o estado de necessidade pode ser
reconhecido quando em prol de um terceiro, ou seja, no caso de alguém que ofende bens
jurídicos a fim de salvação de bem jurídico de terceiro.
4.1.1 O perigo atual
Como requisito para a configuração de um estado de necessidade a legislação traz o
perigo atual, não provocado pela vontade ou negligência daquele que atua. Portanto,
o bem jurídico protegido tem de estar, necessariamente, em perigo atual. Contudo, tal
“atualidade” não se trata do mesmo conceito previsto nos casos de legítima defesa38,
como será visto adiante. Nos casos de estado de necessidade, o conceito de perigo é
mais abrangente, a ponto de englobar também a produção de um dano que, ainda que não
determinado quando possa acontecer, se tenha certeza ou certo grau de certeza de que virá
a ocorrer. É o caso dos perigos duradouros ou permanentes, p. ex. quando existe um edifício
em perigo de desabamento, mesmo que não se possa determinar se e quando ocorrerá o
36 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 67.
37 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 68.
38 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 680.
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203
desabamento.39-40 Tal caso compreende-se como perigo atual para fins do reconhecimento
do estado de necessidade.
4.1.2 Não provocação voluntária do perigo
Outrossim, além do perigo atual, a causa de justificação exige que este mesmo perigo não tenha sido provocado por sua vontade. Nesses casos, o antigo posicionamento
da doutrina brasileira seguia no sentido de negar o estado de necessidade àquele que
provocasse o perigo, quer dolosamente, quer culposamente. Assim, no caso daquele que
intencionalmente, ou mesmo pela inobservância de uma norma objetiva de cuidado, ateia
fogo em seu apartamento, não está reconhecido o estado de necessidade justificante caso
ele venha a disputar a saída de incêndio e venha a lesionar outros para salvar-se.
Contudo, tal posicionamento vem sendo abandonado em prol do entendido que tal restrição
de reconhecimento da presente causa de justificação deve ser aplicada somente aos casos
dolosos, excluindo do âmbito da negação os casos meramente culposos. Nas palavras de
Fragoso:
Não pode alegar o estado de necessidade quem por sua vontade provocou o perigo; Essa fórmula refere-se exclusivamente ao dolo. Pode haver estado de necessidade se o agente causou culposamente a situação em que surge o perigo. Assim, por exemplo, se o agente provoca um incêndio por inobservância do cuidado devido, pode alegar o estado de necessidade, se para salvar-se causa um dano a outrem inevitável.41
Contudo, mais radical e profunda ainda é a objeção feita por Figueiredo Dias que, com intuito
de questionar tal dispositivo, disserta:
39 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 417.
40 Nas palavras de ROXIN: “[…] un peligro permanente es una situación peligrosa que permanece durante un largo período y que en cualquier momento puede desembocar en un daño, aunque pueda quedar abierta la posibilidad de que aún pueda tardar un tiempo en producirse el daño. Así p.ej. constituyen un peligro permanente, frente al que se puede recurrir ya a medidas de estado de necesidad, un edificio en ruina o un enfermo mental peligroso”. ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 680.
41 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro; Forense, 1993, p. 190.
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Se A se lança numa corrida louca de esqui, depois mesmo de advertido dos perigos em que incorre, deve o direito impedir que, tendo-se ferido numa queda, penetre na cabana alheia sem autorização [...] para solicitar socorro por telefone? Se B, em estado de embriaguez, corta sua própria orelha e não tem ninguém que o leve ao posto médico, deverá abster-se de conduzir um veículo até a um local onde possa ser tratado [...]? Se C provoca, mesmo culposamente, um acidente rodoviário, deve ser punido por omissão de auxilio [...] se foge para se resguardar da ira da multidão que assistiu ao desastre e se prepara para ‘fazer justiça com as suas próprias mãos’? Por todas estas perguntas é responder-lhes negativamente: em qualquer destes casos persiste o fundamento justificante do estado de necessidade.42
Assim, não basta para o não reconhecimento do estado de necessidade que o autor tenha provocado o perigo, intencional ou culposamente. A situação de exclusão
somente poderia se dar quando o autor provocasse o perigo intencionalmente voltado, premeditadamente, para livrar-se de bens jurídicos alheios. Ora, afirmar que deve ser
negado o reconhecimento do estado de necessidade toda vez que o sujeito tenha criado o
perigo intencionalmente ou culposamente chega a exageros tais quais demonstrados nos
exemplos supra.43
4.1.3 Emprego do único meio possívelNo que tange aos critérios para a configuração da causa de justificação em tela, ainda
indispensável é que o agente tenha empregado o único meio possível para salvaguardar o bem jurídico em questão. Portanto, se havia outro modo menos ofensivo de aplacar o
perigo, ou mesmo a possibilidade de fuga, não se configura estado de necessidade, pois,
logicamente, a ação não era necessária.
4.1.4 Ausência do dever legalComo último critério, há de se verificar a ausência de dever legal de enfrentar o perigo.
Na sociedade existem certas funções que por sua natureza são submetidas à exposição a
perigos, tais quais os policiais, bombeiros, salva-vidas, etc. Tais cargos impõem certo limite
42 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 417.
43 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 418.
Aula 07 | Antijuridicidade
205
de sacrifício próprio em prol da coletividade ou de outro indivíduo. Contudo, tal exigência é
razoável, não se exige atos heroicos de tais profissionais.44 Na esteira de tal colocação, fica
evidente que não é exigível que aquele com dever legal de enfrentar o perigo necessita abrir
mão de sua vida, ou mesmo pô-la em grande perigo, para proteger um bem jurídico de menor
valia, tal qual o patrimônio.
4.1.5 Estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante
Sobre o estado de necessidade ainda é fundamental ressaltar a diferenciação feita na
doutrina internacional que não foi mencionada na legislação brasileira. A doutrina, mais
notadamente a alemã, percebe o estado de necessidade em duas formas de manifestação
diversas: O estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante.
O Código Penal brasileiro reconhece o estado de necessidade como excludente da ilicitude,
assim, aderindo à teoria unitária, englobou as duas formas sobre a égide da exclusão da
antijuridicidade. Contudo, é salutar expor a doutrina preponderante que dá razão à teoria
dualista. Para tal teoria, O estado de necessidade justificante configura-se quando o bem
jurídico sacrificado é de menor valor. Nessas hipóteses, a conservação do bem mais valioso
exclui a antijuridicidade da conduta. Já os casos de estado de necessidade exculpante
ocorrem quando o bem jurídico for de maior, igual, ou superior valor ao que é conservado.
Nesse caso, a conduta não pode deixar de ser considerada antijurídica, pois é ilícita aos
olhos do direito penal, contudo, é avaliada a título de inexigibilidade de conduta diversa, ou
seja, no âmbito da culpabilidade.45
A percepção da diferenciação entre estado de necessidade justificante e exculpante é de
extrema importância em decorrência de seus efeitos na teoria geral do crime na medida em
que, nos casos justificantes, não haveria nenhuma possibilidade de participação punível,
44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 339.
45 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 332-333.
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206
já nos casos exculpantes, por ter a sua culpabilidade afastada, permitiria a punição da
participação.46
4.1.6 A ponderação entre os interesses colidentes
A despeito de tal divisão trazida pela doutrina, o certo é que deve ser realizada a ponderação entre os interesses colidentes na situação de estado de necessidade. Dentro da
ponderação devem ser observadas a espécie dos interesses, a intensidade e proximidade do
perigo, a espécie e a extensão do que está em risco, a relação dos bens jurídicos colidentes,
a existência de deveres especiais de suportar o perigo em posição de garante, a dimensão
subjetiva do tipo permissivo, entre outros elementos.47
Contudo, como demonstrado anteriormente (supra, 4. Sistematização das causas de justificação), até o momento a doutrina não detém uma teoria capaz de guiar seguramente tal
ponderação de interesses colidentes, pois ela é de difícil apreciação, como se pode observar
no exemplo de um sujeito que sacrifica duas vidas para salvar-se, caberia ou não o estado
de necessidade? Se sim, qual, estado de necessidade justificante ou exculpante? Duas vidas
valem mais do que uma? Em outras palavras, adentrando no âmago da questão: Como se
dá a ponderação de interesses? A vida humana é quantificável? E mesmo que adotado um
viés estritamente pragmático, é exigível que o autor realize o autossacrifício em prol de outros
em um estado de necessidade? Em suma, existem situações de difícil, senão impossível,
ponderação dos valores em conflito.
Assim, pode-se trabalhar com o clássico exemplo de Welzel em que um trabalhador da linha
férrea vê um trem de carga sem condutor e desgovernado vindo de encontro a outro trem,
lotado de passageiros. Para evitar a morte de muitas pessoas, o trabalhador desvia, no último
momento, o trem de carga para uma via secundária onde trabalham alguns operários, os quais
são atropelados, causando mortes e ferimentos. Ora, a lei não pode aceitar o sacrifício de uns
46 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Comares, 1993, p. 318.
47 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 68-69.
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poucos para salvar muitas pessoas inocentes, portanto, tal conduta teria de ser considerada
antijurídica,48 mas configurar-se-ia enquanto estado de necessidade exculpante.
Consoante Roxin, “cuando esté en juego el bien jurídico de la vida humana, son inadmisibles
las cuantificaciones.”49 Ou ainda “[…] es inadmisible la ponderación según el número de las
vidas humanas en conflicto.”50
Porém, a ponderação tem, ao menos nos demais casos em que a vida humana não esteja
em conflito com outras, um marco de avaliação: O próprio quadro jurídico penal e as medidas das penas. Pode-se perceber que, quanto mais alta a pena cominada, maior a
reprovação jurídico penal da conduta e de maior valor o bem jurídico protegido, portanto, a
medida das penas pode servir de ponto de apoio para a ponderação entre as condutas, mas
não seu fundamento último, visto que a própria intensidade da lesão ao bem jurídico tem
de ser avaliada. Ainda assim, mesmo que não seja o fundamento, é, sem dúvida, o quadro
jurídico penal representado nas penas cominadas um dos critérios e pontos de apoio da
ponderação entre os interesses colidentes.
4.2 A ponderação entre os interesses colidentes
Como se sabe, o jus puniendi é um poder-dever competente em regra ao Estado. Contudo,
como o estado não se pode fazer omnipresente, por certo, há situações em que o ordenamento
jurídico permite ao cidadão agir em prol do direito próprio ou alheio. Nesse sentido, a legítima
defesa é um dos institutos jurídicos mais antigos e consensuais presentes no ordenamento
jurídico. Ao contrário do estado de necessidade, em que o agente realiza uma ação frente
a uma situação de perigo, a legítima defesa é, sempre, uma reação frente uma agressão
injusta. O que significa dizer que a situação de legítima defesa fundamenta-se através de
uma resposta a uma ação antijurídica atual.
48 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p 689.
49 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 686.
50 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 687.
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208
A natureza e fundamento do instituto da legítima defesa tem uma dupla feição; de um lado, a
necessidade de defender bens jurídicos perante uma agressão injusta, e de outro, o dever de
defender o ordenamento jurídico.51 Nesse sentido, o legislador conceituou a legítima defesa
conforme disposta no artigo 25 do Código Penal:
Legítima defesa
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Os requisitos para a configuração da legítima defesa estão previstos na lei, quais sejam:
injusta agressão atual ou iminente e a utilização dos meios necessários para a repelir.
Portanto, pode-se dividir os elementos da legítima defesa em dois âmbitos: um referente a
situação de defesa (injusta agressão atual ou iminente, a direito seu ou de outrem); e quanto
à forma de defesa (usando moderadamente dos meios necessários).
4.2.1 A agressão
Numa leitura sistemática e analítica, o conceito de agressão deve compreender a ameaça
proveniente sempre de um comportamento humano (comissivo ou omissivo) a um bem jurídico
protegido, visto que a qualidade da agressão é “injusta”, e só seres humanos podem cometer
atos injustos.52 Outrossim, deve-se exigir que a agressão seja uma conduta humana voluntária,
portanto, não caberá legítima defesa contra atos reflexos, inconscientes ou sem qualquer
elemento volitivo. Ora, só pode agir ilicitamente aquele que apresenta um elemento volitivo,
mesmo que mínimo, por isso, não faz sentido considerar ilícita a agressão sem intenção
qualquer.53 O que significa dizer, juntamente a Wessels, que “a ação de legítima defesa deve
ser objetivamente necessária e subjetivamente conduzida pela vontade de defender.”54
51 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 340; DIAS, p. 382; COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 282.
52 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 385.
53 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 386.
54 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 72.
Aula 07 | Antijuridicidade
209
Nesse sentido, aquele que age em defesa própria ou de terceiro que está sendo atacado por um animal ou em situações de agressão decorrentes de “coisas”, não age em legítima defesa, senão em estado de necessidade, uma vez que tal agressão não é proveniente de conduta humana.55 Contudo, cumpre observar que configurará legítima defesa contra animais ou coisas quando estejam sendo usados como instrumento de agressão por um humano, como no caso do dono de um cachorro treinado que ordena ao cão que ataque outrem.56
Ainda, se a legítima defesa é um tipo permissivo que requer a “vontade de salvamento”, isto é, requer que o elemento subjetivo seja direcionado à causa justificante, no clássico exemplo em que A que vê seu inimigo B e, por vingança, dispara contra ele e o mata. Entretanto, posteriormente, constata-se B estaria prestes a cometer um estupro, assim, objetivamente A teria atuado em legítima defesa de terceiro. Nesse caso, não se pode reconhecer a situação como legítima defesa, pois falta o elemento subjetivo indispensável para a configuração da causa de justificação.
4.2.2 Da qualidade de injusta atribuída à agressão
No que tange ao conceito de injusto, qualidade da agressão, tal não se limita aos fatos típicos, senão carregam o sentimento de ilicitude frente aos valores de forma geral, para além do ordenamento jurídico. Nesse sentido, poder-se-á dizer que agressão injusta será o comportamento humano não autorizado pelo ordenamento jurídico como um todo,57-58 e não
somente as condutas proibidas.
55 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 611.
56 Em sentido similar, Roxin: “Sin embargo, la situación es diferente cuando un hombre se sirve de un animal para una agresión, azuzando p.ej. a un perro contra otra persona; en tal caso el perro es sólo el instrumento del hombre agresor, y matarlo si es necesario para la defensa estará justificado por legítima defensa exactamente igual que la destrucción de otros medios agresivos.” ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 611.
57 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010,, p. 342.
58 Nas palavras de Wessels: “’Antijurídica’ é toda agressão que contraria objetivamente as normas de valoração do Direito e não está acobertada por uma oração permissiva” WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 71; Ou ainda, Roxin: “[...] será agresión antijurídica toda lesión de um bien que amenace producirse por uma conducta humana y que no este amparada por um derecho de intromisión.” ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 615.
Aula 07 | Antijuridicidade
210
Assim, p. ex., contra o furto uso, apesar de não ser um ilícito penal, senão meramente civil,
cabe igualmente o reconhecimento da legítima defesa. Ou mesmo o caso de um injusto
cometido por aquele sem culpabilidade, tal qual o menor de 18 anos ou mesmo um doente
mental, cabe legítima defesa, conduto, deve-se observar que, nesses casos específicos, os
meios adequados para repelir a agressão devem ser especiais e mais criteriosos.
4.2.3 Da atualidade ou iminência da agressão
No que tange à atualidade ou iminência da agressão injusta, entende-se por aquela agressão que já se iniciou ou ainda persiste59 de modo objetivo, e não na subjetividade
daquele que defende-se. Assim, p. ex., será considerada legítima defesa quando A disparar
em B no momento em que B levou a mão ao bolso para sacar o revolver para atirar em A.60
Tal agressão era iminente61, ou seja, teve início, mesmo que ainda não se possa falar em
tentativa.
Sobre o tema da atualidade da agressão, é altamente discutível na doutrina os casos em que a
agressão ainda nem sequer é iminente, entretanto, “já se sabe antecipadamente, com certeza
ou com um elevado grau de segurança, que ela vai ter lugar.”.62 Como no exemplo trazido
por Lenckner, no qual o dono de uma estalagem ouve, ao jantar, três hóspedes combinarem
entre si o assalto ao estabelecimento durante a noite. Haverá justificação por legítima defesa
se o dono da estalagem colocar sonífero nas bebidas dos clientes? Segundo Schmidhäuser,
59 Nesse sentido, WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 70; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 388.
60 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 388.
61 Cabe a observação cautelosa de Roxin: “Cuándo es inmediatamente inminente una agresión es algo que hasta ahora no se ha aclarado inequívocamente.” ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 618.
62 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 389.
Aula 07 | Antijuridicidade
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a agressão “ya es actual siempre que el agresor la prepare de tal modo que ya no sea posible
una defensa posterior”63, ou seja, no exemplo em tela, tal ação configuraria legítima defesa.
Entretanto, deve-se objetar a tal entendimento. Para Roxin, tal solução “tampoco puede ser
correcta, puesto que una agresión sólo planeada o preparado no sólo no es una agresión
actual, sino que ni siquiera es aún una agresión.”. Outrossim, Figueiredo Dias afirma que a
legítima defesa deve ser negada em tais situações, pois não se está presente uma agressão atual e, tal alargamento do conceito de atualidade acabaria por constituir um campo de defesa
privada em situações às quais caberia a intervenção policial.64
Em outro sentido, se a agressão tem de ser atual ou iminente, também é fundamental saber
não somente quando se inicia uma agressão, mas quando ela termina. Pode-se adotar o
critério de que o término da agressão é o momento até o qual a defesa é suscetível de pôr fim à agressão65, caso a agressão já tenha cessado, não caberá então a legítima defesa,
pois será, no mais, uma nova agressão. Como, p. ex., o caso em que A desfere três socos
contra B, que cai ao chão, ocorre que A desiste de continuar a agressão e vira as costas para
ir embora, neste momento B levanta e desfere golpes contra A. No caso em tela, a conduta
de B não poderá ser considerada legítima defesa, visto que não é atual, senão posterior à
agressão, e não tem por objetivo a defesa, senão a vingança.
4.2.4 O uso moderado dos meios necessários
No que tange à forma de defesa, o Código Penal exige o uso moderado e proporcional da defesa como requisito a ser preenchido e avaliado nas situações de legítima defesa. A
necessidade dos meios é, sem dúvida, um dos requisitos essenciais da legítima defesa que
suscita maiores dificuldades de conceituação frente aos casos práticos, justamente por isso,
requer especial atenção. Necessários são os meios suficientes e indispensáveis para repelir
63 SCHMIDHÄUSER apud ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 619.
64 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 389.
65 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 390.
Aula 07 | Antijuridicidade
212
a agressão de forma eficaz. Além de que o meio seja necessário, exige-se ainda que seu
uso seja moderado, especialmente quando for o único meio disponível.66 Nas palavras de
Figueiredo Dias:
O meio será necessário se for um meio idóneo para defender a agressão e, caso sejam vários, os meios adequados de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor. Só quando assim aconteça se poderá afirmar que o meio usado foi indispensável à defesa e, portanto, necessário.67
Nas palavras de Welzel: “a defesa pode chegar até onde seja requerida para a efetiva defesa
imediata, porém, não deve ir além do estritamente necessário fim proposto”.68 Nesse sentido,
a avaliação dos meios adequados deve considerar a toda a dinâmica do acontecimento,
merecendo análise as características físicas do agressor e do ofendido (idade, compleição
física), os instrumentos que ambos dispõem, bem como a intensidade e a surpresa do ataque.69
No sentido da exemplificação dos casos em que se empregam meios adequados e moderados
à legítima defesa, Roxin trabalha com a jurisprudência alemã: se um sujeito grita a outro que
vai matá-lo e o agride com os punhos, este pode defender-se com um punhal, ainda que tenha
consequências mortais. O agredido somente terá que limitar-se a uma defesa com os punhos
se fisicamente é tão superior ao seu agressor que é garantido que com os punhos conseguirá
rechaçar a agressão.70 Como no caso de um boxeador peso pesado, que facilmente pode
deixar inconsciente ou até mesmo matar alguém com um único soco direto e é agredido por
alguém, não lutador, de compleição física normal ou diminuída.
Por outro lado, no caso desse mesmo boxeador, evidentemente que se ele for agredido por
três homens também pode ele efetuar um disparo de arma de fogo para salvar-se, frente
à duvidosa eficácia, no caso concreto, da luta corporal, ou mesmo de um disparo de aviso
66 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010,, p. 343.
67 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 396.
68 WELZEL apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 344.
69 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 396.
70 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 630.
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213
ou na perna de algum agressor. Coisas que, em realidade, com armas de cano curto e em
situações de perigo, praticamente não existem.
Contudo, é certo que tal averiguação é extremamente difícil, pois, nos casos concretos, há
o medo, o movimento impensado e desesperado de defesa que, muitas vezes, dentre todas
as opções e meios de defesa ao alcance, o agente atua escolhendo o primeiro que vê a sua
disposição, sendo que este era mais do que o necessário para repelir o perigo. Portanto,
os critérios são os postos acima, mas deve-se analisar cada caso em concreto em sua
singularidade.
14.2.5 Espécies de legítima defesa
A doutrina indica distintas modalidades de legítima defesa, quais sejam: a legítima defesa real ou própria, a legítima defesa putativa, a legítima defesa sucessiva e a legítima defesa recíproca.71
A legítima defesa real ou própria se trata da legítima defesa tal como ocorre nos exemplos
acima, ou seja, nos casos tradicionais em que o agente atua em defesa contra agressão injusta
atual ou iminente e estão presentes todos os requisitos necessários para sua configuração.
A legítima defesa putativa, pelo contrário, ocorre quando o agente atua julgando estar em
situação de legítima defesa e, em realidade, não está. O que ocorre é que o agente supõe
erroneamente estar diante de uma situação em que seria adequado agir em legítima defesa,
pois julga erroneamente estar sob uma agressão injusta atual ou iminente. No caso em tela,
tal situação não se configura mais como causa de justificação, senão como causa de exclusão
de culpabilidade, conforme o § 1º do artigo 20 do Código Penal:
Descriminantes putativas
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
71 Nesse sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 345.
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214
Já a legítima defesa sucessiva ocorre nas hipóteses de resposta legítima ao excesso de
legítima defesa. Grosso modo, um agente age em legítima defesa a uma agressão injusta atual
de outro, contudo, após repelir a agressão que sofria, passa a agredir o antigo agressor, ou
seja, excede o limite da legítima defesa e dá motivo, uma vez que agora está cometendo uma
agressão não mais justificada, para que o primeiro agressor possa defender-se legitimamente.
Assim, ocorrem duas legítimas defesas sucessivas.
A legítima defesa recíproca trata-se de um conceito que traz em si uma impossibilidade lógica.
Ora, se a legítima defesa requer que haja uma agressão injusta a ser repelida, é impossível
haver legítima defesa de uma agressão legitimada. Contudo, em alguns casos a doutrina
afirma ser legítima defesa recíproca o caso em que alguém que se defende legitimamente de
outro que está em legítima defesa putativa.72 Contudo, isso incorre no erro de crer que
a legítima defesa putativa é uma atitude lícita. Ora, como já visto, a legítima defesa putativa
não exclui a ilicitude da conduta, somente sua culpabilidade. Portanto, mesmo em caso de
legítima defesa contra legítima defesa putativa, não se estará em jogo uma legítima defesa
recíproca. Em realidade, tal erro se trata de uma confusão linguística, pois faz crer que a
legítima defesa putativa se trataria de uma causa justificante.
4.2.6 O excesso em legítima defesa
O legislador buscou delimitar o alcance das causas justificantes. Nesse sentido, produziu
o parágrafo único do artigo 23 do Código Penal:
Excesso punível
Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Primeiramente, para que haja o excesso da legítima defesa deve, antes, haver uma situação
de legítima defesa caracterizada em todos os seus requisitos. O excesso se dá quando não
são respeitados tanto a escolha quanto o uso dos meios adequados para a repulsa moderada
da agressão injusta.
72 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 345.
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215
Se o agente, mesmo depois de já ter feito cessar a agressão injusta da qual defendeu-se, não
interromper seus atos e continuar a agredir o antigo agressor, incorrerá em excesso. Nesse
caso, o agente responderá penalmente pelos danos cometidos em excesso, mas não por
aqueles acobertados pela legítima defesa, uma vez que, se o agredido ultrapassa os limites
da legítima defesa, atua ilegalmente. Nesse sentido, o excesso pode se dar de duas formas:
dolosa e culposa, ou ainda, pode aparecer da norma doutrinário do excesso exculpante.
O excesso doloso se dá quando o agente, após cessar a agressão, permanece agredindo
no intuito de vingar-se, causar leões ou mesmo a morte do primeiro agressor, e assim se trata
de um ato ilícito.
Já o excesso culposo na legítima defesa ocorre quando o agente acredita que a agressão
contra ele ainda não cessou ou que poderá continuar a qualquer momento e, baseado
nesse entendimento, precipita-se e continua a rechaçar o primeiro agressor; ou mesmo nas
situações em que o agente, por má interpretação da situação, acredita ser o perigo maior do
que realmente é e excede-se quanto à moderação de suas ações.
O excesso exculpante, por sua vez, se dá por uma situação emocional do agente que, por
grande medo ou temor a ponto de transtornar o sujeito, acaba por exceder-se na legítima
defesa, como no caso de uma senhora que, muito amedrontada com um assaltante que
adentra em sua casa, descarrega a arma contra ele, sem sequer mirar ou averiguar se acertou
seu alvo. Nesses casos, o que se entende é que, em virtude do estado emocional do agente,
não lhe é exigível conduta diversa, portanto, deve-se excluir a culpabilidade da conduta.
4.3 O estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito
Por óbvio, o cumprimento de um dever imposto por lei tem de afastar a ilicitude da ação.
Seria uma contradição lógica afirmar o contrário, ou seja, seria afirmar que o cumprimento da
lei é ilegal. Ainda, pode-se aqui invocar o já exposto princípio da unidade jurídica (supra, 2.3
O princípio da unidade da ordem jurídica). Portanto, como corolário de tal pensamento há de
Aula 07 | Antijuridicidade
216
se dizer que quem age em cumprimento de dever legal não comete crime, mesmo que cause
ofensa a um bem jurídico tutelado pela norma, desde que aja dentro dos limites da permissão
ou mandamento legal.
Em determinadas situações a lei impõe ou permite determinada conduta que, embora típica,
não será ilícita, mesmo que cause lesão a um bem jurídico tutelado. Como no caso do oficial
de justiça que, com permissão legal, adentra na residência particular de um acusado.
5. Causas Supralegais de Exclusão da Ilicitude
A doutrina considera o consentimento73 do ofendido como causa supralegal – uma vez que
não é previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro – de exclusão de ilicitude. Tal entendimento
se baseia na premissa do reconhecimento da autonomia e liberdade da pessoa.74
Deve-se diferenciar, contudo, o âmbito em que o consentimento exclui a tipicidade e o âmbito
em que exclui a ilicitude. O consentimento enquanto excludente da tipicidade ocorre
quando o próprio tipo penal já prevê que o resultado ocorra contrariamente ou sem a vontade
do titular do bem. Como nos casos da violação de domicílio, que detém a seguinte disposição:
Art. 150. Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências;
Ora, o tipo penal prevê que a ação deva ser “contra a vontade expressa ou tácita de quem de
direito”, logo, se há consentimento, não há tipicidade.
Por outro lado, há os casos de consentimento enquanto excludente de ilicitude, que
se dão quando o ofendido renuncia à proteção jurídica.75 Contudo, o campo de atuação de
tal consentimento se dá somente nos casos em que a ordem jurídica concede ao protegido
73 Deve ser realizada uma diferenciação entre consentimento e acordo. No primeiro há subjacente um conflito de interesses, já no caso do segundo trata-se de uma contribuição para a própria realização do titular do bem da causa. Nesse sentido, COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 302.
74 COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2012, p. 301.
75 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 68-69.
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217
a possibilidade de dispor da proteção.76 Portanto, passa-se a análise dos pressupostos do
consentimento enquanto causa de justificação, tal qual elencados por Wessels.77
A renúncia à proteção jurídica deve ser juridicamente admitida; Ou seja, o bem jurídico tem
de ser disponível.
a) Aquele que consente deve estar autorizado à disposição, isto é, deve ser o único titular
do interesse protegido ou estar autorizado pelos demais donos.
b) Aquele que consente deve ser capaz de consentir, segundo sua maturidade psíquica, e
ser capaz de compreender o alcance da renúncia ao bem jurídico, bem como seus efeitos.
c) O consentimento não pode padecer de defeito essencial da vontade.
d) Nos casos de intervenção à integridade corporal, o fato em si não pode ser contrário
aos bons costumes.78
e) O consentimento deve ter sido expressamente declarado antes do fato.
No aspecto subjetivo, o autor deve agir no conhecimento e por causa do consentimento. Ou
seja, se o autor atuar sem o conhecimento do consentimento e também não em virtude deste,
considerar-se-á sua conduta como ilícita.
76 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 68-69, p. 76.
77 Critérios elencados por WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1976, p. 68-69. p. 77-78.
78 Esse pressuposto encontra graves problemas. Por um lado, por ser completamente imaterial e vazio de conteúdo, visto que a contrariedade à moral não é base segura para nenhuma limitação penal. O que a doutrina compreende por essa rubrica é a limitação às intervenções corporais que venham a mutilar ou mesmo a provocar irreversibilidade grave sobre o corpo e que possa atuar sobre o bem jurídico vida, este sim indisponível. Assim, tal cláusula se esgota somente nesses casos mais graves. Nesse sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 451.
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218
Verificaçãode leitura
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1
Constitui o primeiro degrau valorativo da
doutrina do crime:
a) A Culpa
b) O Dolo
c) O Tipo
d) O Erro
e) A Proibição
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2
Segundo Welzel, aquele que atua tipicamen-
te, em princípio, já atua:
a) Ilicitamente
b) Antijuridicamente
c) Erradamente
d) Punivelmente
e) Culposamente
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3
A antijuridicidade pode ser entendida como:
a) Unicamente Material
b) Exclusivamente Formal
c) Formal e Material
d) Legal ou Supralegal
e) Estritamente Culposa
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4
As causas de justificação podem ser:
a) Formais ou Materiais
b) Legais ou Supralegais
c) Legais ou Materiais
d) Supralegais e Formais
e) Homogenias e Heterogenias
INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5
O estado de necessidade pode ser:
a) Extremo
b) Abreviado
c) Puro e Qualificado
d) Justificante e Exculpante
e) Simples e Complexo
219
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Editora Saraiva,
2010.
CEREZO MIR, José. Curso de Derecho Penal Español. Parte General. Tomo II: Teoría jurídica del
delito. Ed. Tecnos: Madrid, 1997.
CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto
Alegre: Antonio Fabris, 1988.
COSTA. José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. 3ª ed.
Coimbra: Coimbra Editora. 2012.
D’ÁVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do
crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais: a doutrina geral do
crime. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro; Forense, 1993, p.
190.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: parte general. Trad. José Luis Manzanares
Samaniego. 4. ed. Granada: Comares, 1993.
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general: tomo I: fundamentos: la estructura de la teoría del
delito. Traducción de Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Depalma,
1956.
WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Antonio Fabris,
1976.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar,
1998.
Referências
220
Gabarito
Questão 1
Resposta: Alternativa C.
Resolução: É certo que o tipo constitui o primeiro degrau valorativo da doutrina do crime.
Para saber se uma pessoa deve ser castigada por determinada conduta, esta, primeiramente,
deve passar por um juízo de tipicidade, para que somente após essa etapa cumprida seja
possível aferir a culpabilidade do agente.
Questão 2
Resposta: Alternativa B.
Resolução: Na esteira do pensamento de Mezger e Mayer, Welzel já aduzia que aquele que atua tipicamente, já atua, em princípio, antijuridicamente, ou seja, que a ação típica é um indício da antijuridicidade.
Questão 3
Resposta: Alternativa C.
Resolução: A doutrina costuma, tal qual Muñoz Conde, entender a antijuridicidade em dois
aspectos, um formal e outro material. O primeiro significaria o preenchimento dos elementos
do tipo penal, já o segundo seria a conduta típica quando não estivesse presente nenhuma
causa de justificação.
221
Questão 4
Resposta: Alternativa B.
Resolução: Segundo Bitencourt, as causas de justificação podem ser divididas em legais ou
supralegais e, apesar do fato de que a legislação brasileira não preveja expressamente estas
últimas, a doutrina e a jurisprudência admitem a sua existência.
Questão 5
Resposta: Alternativa D.
Resolução: Sobre o estado de necessidade ainda é fundamental ressaltar a diferenciação
feita na doutrina internacional que não foi mencionada na legislação brasileira. A doutrina, mais
notadamente a alemã, percebe o estado de necessidade em duas formas de manifestação
diversas: o estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante.
Gabarito