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940 Profissionais do Serviço Funerário e a Questão da Morte Funerary Service Professionals and the Death Issue Professionales del Servicio Funerario y la Cuestión de la Muerte Maria Júlia Kovács, Nancy Vaiciunas & Elaine Gomes Reis Alves Universidade de São Paulo PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(4), 940-954 Artigo http://dx.doi.org/10.1590/1982 - 370001272013

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Profissionais do ServiçoFunerário e a

Questão da Morte

Funerary Service Professionals and the Death Issue

Professionales del Servicio Funerario y la Cuestión de la Muerte

Maria Júlia Kovács, Nancy Vaiciunas& Elaine Gomes Reis Alves

Universidade de São Paulo

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(4), 940-954

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http://dx.doi.org/10.1590/1982 - 370001272013

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Profissionais do Serviço Funerário e a Questão da Morte

Resumo: Este artigo aborda a questão da morte no cotidiano de trabalho de profissionaisfunerários. Profissionais de funerária têm condições de trabalho com risco físico e psíquico compossibilidade de desenvolvimento de burnout. Há sobrecarga de trabalho, contato com famíliasenlutadas, sem ter preparo para essas tarefas. Não escolheram sua profissão, não têm capacitaçãonem órgão de classe que os represente. São vistos com desconfiança quando os trabalhos sãocobrados ou há demora para realizar os trâmites necessários. São analisados fatores que podemtornar seu trabalho difícil: mortes violentas, suicídio, corpos deteriorados e crianças. Consideramosesses profissionais como cuidadores do corpo morto e de famílias enlutadas. São discutidasformas de cuidados a esses profissionais: luto, famílias, expressão de sentimentos e rituais, etambém responder às questões pessoais. Foram oferecidas informações e esclarecimentossobre modalidades de cuidado pessoal e psicológico.Palavras-chave: Morte. Educação em relação à morte. Atitudes frente à morte. Ritos de morte.

Abstract: This paper deals with the death issue in funerary workers’ everyday work. Funeraryprofessionals have work conditions of physical and psychic risks with the possibility of burnoutdevelopment. There is work overload, contact with the mourning families without training forthose tasks. They did not choose their profession; they do not receive capacity building or classrepresentation. They are regarded with mistrust when there are charges on the work or if thereis time lag to carry out needed courses. Factors that may turn their work difficult are analyzed:violent deaths, suicides, deteriorated corpses, and children. We consider those workers ascaretakers of the dead and of mourning families. Ways of caring for those professionals arediscussed: mourning, families, expression of feelings and rituals, and responding to personalquestioning as well. Information and clarifications were provided on modalities of personal careand psychological attention.Keywords: Death. Education related to death. Attitudes in face of death. Death rites.

Resumen: Este artículo aborda la cuestión de la muerte en el cotidiano de trabajo deprofesionales funerarios. Profesionales de funeraria tienen condiciones de trabajo con riesgofísico y psíquico con posibilidad de desarrollo de burnout. Hay sobrecarga de trabajo, contactocon familias de luto, sin tener preparación para estas tareas. No escogieron su profesión, notienen capacitación, ni órgano de clase que los represente. Son vistos con desconfianza cuandolos trabajos son cobrados o hay demora para realizar los trámites necesarios. Son analizadosfactores, que pueden tornar su trabajo difícil: muertes violentas, suicidio, cuerpos deterioradosy niños. Consideramos a estos profesionales como cuidadores del cuerpo muerto y de familiasde luto. Son discutidas formas de cuidados a estos profesionales: luto, familias, expresión desentimientos y rituales, y también responder a las cuestiones personales. Fueron ofrecidas infor-maciones y esclarecimientos sobre modalidades de cuidado personal y psicológico.Palabras-clave: Muerte. Educación en relación a la muerte. Actitudes frente a la muerte. Ritosde muerte.

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Há poucas referências na bibliografia espe-cializada em tanatologia envolvendo o tra-balho de profissionais de serviços funeráriosem relação à morte. Realizamos a busca deartigos sobre profissionais de serviços funeráriosnas bases de dados e em periódicos espe-cializados na área de estudos sobre a morte,como o Omega, Journal of Death and Dyinge Death Studes nos anos de 2009-2012, enão encontramos nenhum artigo sobre otema. Entrando no indexador Scielo com ostermos profissionais de funerária ou agentesfunerários, não encontramos nenhum artigo.Com os unitermos trabalhadores da morte,foram encontrados 15 artigos, todos sobreprofissionais de saúde e nenhum sobre osprofissionais de serviços funerários. Com otermo morte sem outro qualificativo, encon-tramos 2.922 artigos e nenhum sobre o temadeste estudo. A relevância do tema e apouca literatura encontrada motivou-nos aescrever este trabalho. Tomamos como basetambém o curso “Morte e os profissionaisdo Serviço Funerário do Município de SãoPaulo”, coordenado e ministrado pelas autorasdeste artigo em uma parceria entre o Labo-ratório de Estudos sobre a Morte do Institutode Psicologia da Universidade de São Paulo(USP) e o Serviço Funerário do Municípiode São Paulo.

Retratos da morte

O desenvolvimento da tanatologia ocorreu emmeados do século XX (Kovács, 2008). HermannFeifel, em 1959, escreveu o clássico The mea-ning of death, estimulando um movimento deconscientização da morte em meio à mentali-dade de interdição sobre o tema. Esse livro in-clui capítulos de autores que foram pioneirosna área da tanatologia, entre os quais Glaser eStrauss, cujo capítulo: Awareness of dying, noqual discutem a consciência da morte em pa-cientes terminais e Schneidman e Farberow,nessa mesma obra escreveram o capítulo sobreprevenção do suicídio.

Kastenbaum e Aisenberg apresentam, em1983, o livro Psicologia da Morte, referênciana área da tanatologia. Esses autores organi-zaram bibliografia sobre o tema e, na décadade 1970, criaram um periódico especiali-zado na área da tanatologia, o Omega -Journal of Death and Dying, clássico para osestudiosos da área.

Na década de 1960, houve grandes mudançasna área de estudos sobre a morte, comoatestam os trabalhos de Elisabeth Kübler-Ross e Cicely Saunders, que revolucionaramo trabalho com pacientes em estágio terminalda doença, ao trazer o tema da morte a pú-blico, desafiando a mentalidade que propunhaa morte como tema interdito (Ariès, 1977).

No Brasil, o impulso para o desenvolvimentodessa área se deu com Wilma Tôrres, quecriou o programa pioneiro “Estudos e Pes-quisas em Tanatologia”, no Isop/FundaçãoGetúlio Vargas, no Rio de Janeiro, em 1980,com o intuito de realizar pesquisas sobre otema da morte e publicar os relatórios destas.Também, em conjunto com três psicólogas,ministrou o primeiro curso sobre o tema damorte para profissionais de saúde. Organizouo setor de documentação e consultoria, quechegou a reunir 2.000 fichas em 44 entradas,na década de 1970, em que ainda não haviaInternet. Essas fichas com referências biblio-gráficas completas encontravam-se em arquivode aço aberto para consulta dos interessadosna área. Entre os temas presentes: medo damorte, morte e religião, atitudes frente àmorte, suicídio, luto, pacientes terminais,morte e desenvolvimento humano, entreoutros (Kovács, 2003, 2008).

Ariès (1977), em sua obra História da morteno Ocidente, refere-se a vários retratos damorte. A morte domada, como denominadapelo autor, é evento público e social, fazparte da vida e a possibilidade de comuni-cação e expressão da dor e sentimentos são

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valorizados. A pessoa doente e próxima damorte não é isolada e os espaços de cuidadose rituais são coletivos.

Atualmente, observa-se interdição da ex-pressão da morte, em que os sentimentosde pesar e tristeza precisam ser contidos. Aexpressão do luto agride as pessoas e é ca-muflado. Percebe-se a solidão dos moribun-dos, nos quartos de hospitais, com horáriosde visita reduzidos, como aponta Elias (2001).Por essa razão, os rituais de despedida eaproximação da morte ficam impedidos.Como o empenho é principalmente no pro-longamento da vida, a morte é vista comointrusa, a presença dos familiares, as despe-didas e a comunicação sobre esse tema sãocondenadas. Diante de uma morte anunciada,muito se preza determinados procedimentos,como exames e cirurgias, travando-se umaluta sem sentido que exaure o paciente, le-vando-o ao sofrimento com todas essas in-tervenções. A família assiste, muitas vezes,impotente, a todo esse esforço da equipesem conseguir conversar e prestar cuidadosa seus doentes. Mesmo sendo informadosde que está sendo feito o que é possível, osfamiliares têm a impressão de não estar ofe-recendo os melhores cuidados ao seu parentedoente. O empenho principal é orientadopara técnicas de manutenção de índices fi-siológicos e não nos cuidados no final davida e qualidade de morte. Essa interdição éestendida também aos ritos funerários, comoveremos a seguir. A morte interdita na socie-dade contemporânea ocorre principalmenteno âmbito pessoal. Segundo nosso ponto devista, o motivo desse interdito está relacionadoao temor de causar dor e sofrimento.

Morte escancarada é a morte que invade ocotidiano das pessoas, principalmente nasgrandes metrópoles, nas cenas de violênciana rua, casas e escolas, ocupando espaço.Por ser invasiva, dificulta proteção e con-trole, deixando suas vitimas expostas e sem

defesas, a comunicação fica truncada e nãose conhecem antídotos (Kovács, 2003). Sãomortes violentas e têm tido aumento signifi-cativo nas cidades. Homicídios, acidentes esuicídios atingem principalmente os jovens.Por serem eventos imprevisíveis, sem con-trole, provocam vulnerabilidade. Atingempobres e ricos, homens e mulheres, podemvitimar indivíduos ou toda uma comuni-dade. Muitas mortes violentas ocorrem nasescolas ou próximo a elas.

Os rituais são fundamentais para dar sentidoe significado a situações de crise, e a mortese enquadra aí. O ritual de velório teve suaorigem na necessidade de confirmar a morte,quando, no passado, pela condição científicada época, era difícil reconhecer a morte epodia acontecer de pessoas despertarem es-tando já enterradas, confirmando um dosmaiores medos da humanidade, que o é deser enterrado vivo. O velório é tambémritual de despedida com o corpo presente,tão importante para aqueles que não estiverampor ocasião da morte da pessoa. Atualmente,não há necessidade de aguardar a mortecomo definitiva porque o atestado de óbitoé sua confirmação. O espaço de despedidae reunião de familiares e amigos, a preparaçãodo corpo no caixão, as velas, coroas são res-ponsabilidade dos velórios, e na sua versãoluxuosa estão os “funeral homes”, que já co-meçam a se estabelecer no Brasil. Essas ins-tituições foram caracterizadas na obra deMitford (1963), The american way of death,citada por Ariès (1977), tiveram sua origeme se tornaram populares nos Estados Unidos.Sua principal função é tirar da família atarefa de cuidar de seus mortos. Nos “funeralhomes”, busca-se fazer com que mortos pa-reçam vivos e a impressão de que a mortenão ocorreu.

Há povos que sempre veneraram seus mortos,como é o caso dos egípcios, que se aprimo-raram na técnica de conservá-los pelo em-

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balsamento e pelas construções das pirâmidestão conhecidas.

Os rituais funerários são muito importantesporque a convivência entre vivos e mortosnem sempre é pacífica, como exemplificaAriès (1977). As almas penadas, os espíritosque assombram as pessoas e mais concreta-mente há a possibilidade de contaminaçãodo solo, o que promoveu a regulamentaçãodos cemitérios, vigente nos dias atuais. Então,os rituais têm como propósito, para os reli-giosos, o descanso da alma e, para os enlu-tados, a certeza de que os mortos repousamem paz. Em nossa opinião, um dos motivospelos quais os profissionais funerários sãoestigmatizados é seu contato cotidiano comcorpos mortos.

Outro ritual importante em várias épocas éo enterro. Neste trabalho, são protagonistasos sepultadores, anteriormente conhecidoscomo coveiros. Muitos enterros são acom-panhados de grande emoção, sinalizando aconcretização da morte e o local em que ocorpo e a memória da pessoa se fazem pre-sentes. A participação em rituais significativosajuda na elaboração do luto e na construçãode significados na vida sem a pessoa amada.

Na morte interdita, os rituais perdem seulugar de significado. Diminui-se o tempo dovelório e os enterros são cada vez maisrápidos. É importante considerar que osrituais estão ligados a uma dada cultura e émuito importante que sejam respeitadostambém os costumes e valores, o que, muitasvezes, não acontece, principalmente commigrantes e imigrantes.

A busca da boa morte implica em cuidadospara alívio e controle de sintomas e a proxi-midade de pessoas significativas, e os rituaisde final de vida, despedidas, asseguram,dentro do possível, os desejos da pessoa àmorte, inclusive no que se refere à disposi-

ção do corpo, na terra, na cremação e tam-bém para o destino das cinzas. Para osfamiliares, a expectativa e realizações do queentendem por boa morte ajudam na elabo-ração do luto, incluindo também as tarefaspós-morte, os rituais de velório, cerimôniasde corpo presente e o cuidado no enterroou cremação.

Trabalhadores da morte,profissionais funerários,estresse e burnout

Os agentes funerários, conhecidos como tra-balhadores da morte, também estão na ca-tegoria de profissionais que vivem situaçõesde estresse prolongado e podem apresentara síndrome laboral do “burnout”. Não têmseu trabalho valorizado, nem pessoalmentenem financeiramente. Mais do que isso,vivem a rejeição social, estendida a seus fa-miliares, fato observado também por Souzae Boemer (1998), Farina et al. (2009) eCâmara (2011). Esses profissionais têm riscode adoecimento e esgotamento físico emental por não terem capacitação e preparo,falta de materiais adequados, baixa remu-neração e pouco reconhecimento e valori-zação do trabalho. É queixa frequente a so-brecarga de trabalho, sem descanso, pois háausências, faltas, aposentadoria e não repo-sição de profissionais. Os serviços funeráriospúblicos têm de funcionar 24 horas, todosos dias do ano. Há também um númerocrescente de enterros a serem realizados emcertas épocas, o que impede aos sepultadorese outros profissionais funerários o contatocom a família. Os profissionais funeráriosconstituem-se assim como um grupo de pro-fissionais em situação frequente de vulnera-bilidade física e psíquica.

Os trabalhadores da morte, como apontadopor Ruiz e Cavalcante (2007), citados porCâmara (2011), trazem às pessoas a mate-rialização da dor e o fato da morte. Uma

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das situações mais penosas é quando a terrada pá cai sobre o caixão, iniciando o processode sepultamento. É como se aí se encerrasseo processo de velamento. Não há mais corpo,só os sentimentos diante da ausência. Algumasfamílias enlutadas manifestam seus senti-mentos de dor, tristeza e raiva diretamenteaos profissionais funerários, que por sua veznão compreendem esta torrente de senti-mentos e podem revidar, criando assim con-dições constrangedoras. Esses profissionaisrepresentam a concretude da morte, a deque não há nada mais que possa ser feito.Lidar com pessoas enlutadas é aspecto es-sencial a ser considerado na formação dosprofissionais funerários.

Farina et al. (2009) realizaram estudo comagentes funerários (sepultadores, veloristas,agenciadores, maquiadores, motoristas) daGrande São Paulo com o objetivo de exploraro cotidiano de trabalhos desses profissionaisverificando implicações psicossociais, as di-ficuldades apresentadas no trabalho e suasexperiências marcantes. Os autores organi-zaram os depoimentos em três eixos: inícioda profissão, cotidiano de trabalho e estratégiasde enfrentamento.

Os profissionais não escolheram de inícioessa profissão. Buscavam estabilidade finan-ceira e prestaram o concurso para seremfuncionários públicos. O cotidiano deles en-volve trabalho que lida com a morte, comseus percalços, sendo o principal cuidar dosmortos, com os preconceitos que essa funçãoprovoca. Buscam estratégias de enfrentamentoem uma profissão com tantas dificuldades,principalmente quando o morto é uma crian-ça. Os autores verificaram que o tempo deprofissão ajuda na adaptação, com maiorespossibilidades de aperfeiçoamento, buscade novas técnicas e um novo sentido àprópria experiência. Profissionais relataramque seu trabalho leva à humildade e cons-ciência e que o medo da morte diminui. En-

tretanto, essa função deixa marcas psicosso-ciais fortes que necessitam de ser cuidadas.

Os trabalhadores funerários lidam com amorte cotidianamente e têm as representaçõessobre morte relacionadas com sua históriade vida, características pessoais, experiênciasvividas, crenças religiosas e fase do desen-volvimento. São também influenciados pelasua relação e valorização do trabalho. Épreciso lembrar que as características damorte e dos familiares enlutados influenciamno trabalho. A questão que se apresenta é:esses profissionais lidam com corpos ou compessoas mortas? A maneira de ver a situaçãopode se refletir na forma como eles lidamcom seu trabalho.

O trabalho de agentes funerários não é re-conhecido. Quando os enterros não podemser realizados, a sua falta é percebida nasraras situações em que é impedido comoem greves ou paralisações. São, às vezes,chamados de papa-defuntos, como se esti-vessem lá apenas para receber por seu tra-balho, aliciando os mortos e não como sefosse esta exatamente sua função. Esses tra-balhadores têm direito à remuneração digna,mas não a recebem. Os servidores públicosde funerária bem como os particulares nãodevem cobrar por seu trabalho? É uma con-tradição, o serviço é exigido, com qualidadee doação de seus funcionários, mas na horade cobrar a percepção é que está havendoabuso. O cuidado ao corpo morto e os insu-mos necessários precisam ser negociados e,como em tantos outros negócios, há hones-tidade e abusos.

O filme Abutres (Diretor Pablo Trapero, Ar-gentina/Chile, 2010) aponta a situação emque o lado sombrio dos trabalhadores damorte é ressaltado. Sosa (Ricardo Darin) éum “urubu”, advogado especializado emacidentes rodoviários. Todos os dias, vai atéo local de acidentes rodoviários, setores de

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emergência de hospitais e delegacias procu-rando clientes. Esse é o lado negro para asvítimas desses urubus e abutres, daí o nomedo filme (http://www.adorocinema.com/fil-mes/filme-180376).

É uma profissão que não tem sindicato queos representa, nem órgão de classe. Não hádefinição clara de sua profissão. Em funçõescomo no caso dos sepultadores, não há ne-cessidade de formação específica ou cursosde preparo para suas tarefas. Muitos aprendemna prática e podem se colocar em situaçãode risco justamente por não ter preparoadequado. Podem se deparar com situaçõesrealmente degradantes, como corpos dete-riorados, nas emergências e desastres emlocais de difícil acesso. Correm, portanto,grande risco de saúde física, pela contami-nação, e de saúde psicológica, pelas situaçõesinsalubres do ponto de vista emocional. Ditt-mar (1991) realizou estudo com profissionaisde funerária, observando uma incidênciasignificativa de transtornos psiquiátricos nessesprofissionais, problemas que continuam atuais.

Assim como outros profissionais que lidamcom a morte sofrem de estranhamento, osprofissionais funerários são submetidos apreconceitos, extensivos aos seus familiares.Alguns profissionais relatam que esse pre-conceito se estende aos filhos, em uma claraindicação de que há temor de contágio damorte, como se a manipulação do corpomorto ficasse impregnado na pessoa e pudessecontaminar quem dele se aproxima.

A morte traz as diferenças nas classes sociais,que se manifestam também nos rituais, comovelórios, nos insumos, como tipos de caixõescom vários adereços, nas coroas, no local deenterro, que, se agora não é mais nas igrejase nos seus pátios, é em cemitérios, parquescom paisagens especiais ou em cemitériosverticais com vários requintes, cada um comseu preço. Incluem-se aí também as casas

funerárias especializadas em cuidados como corpo, com o cerimonial para receber osfamiliares enlutados e amigos. Como apontaGurgel (2008), há mercantilização da morte,presente na sociedade ocidental. Todos osseres humanos vão morrer, portanto, nuncafaltará emprego para os profissionais querealizam os cuidados com o corpo, os maisvariados tipos de trabalho e alguns auferemgrandes lucros.

Como é constrangedor quando se cobra porserviços funerários. Mas, por que não remu-nerar de maneira digna os profissionais querealizam trabalho tão essencial? Como dife-renciar o que é justa remuneração e o quese torna abuso, aproveitar-se de pessoas emvulnerabilidade por estar sofrendo a dor daperda e extorqui-las.

Ariès (1977) aponta a desigualdade das for-mas de morte e rituais de acordo comclasses sociais. Há a crença que quanto maissofisticados os insumos e rituais mais pare-cem demonstrar respeito e amor pela pessoaperdida, configurando uma forma de garan-tia para o além, a salvação das almas. Essacrença pode ser utilizada de maneira mer-cantilizada por profissionais gananciosos,como se pode ver retratada na ficção, comojá apontamos. Pode se observar também emprodutos, como caixões feitos com materiaisnobres, revestidos, com altura para acomo-dar a cabeça e uma campainha para aviso,caso a pessoa seja enterrada viva. No casodeste último item, sabemos que, com osatestados de óbito a probabilidade de enter-rar vivos é nula.

Os profissionais funerários, a exemplo dosprofissionais de saúde, também precisam,muitas vezes, esconder seus sentimentos,pois não se espera que se envolvam com osfamiliares ou com o falecido. Há expectativade certo “profissionalismo”, que o trabalhoseja realizado com respeito, mas com dis-

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tanciamento, sem envolvimento com os sen-timentos dos enlutados. A rotina de profis-sionais funerários é cuidar dos rituais após amorte, mas, precisam cuidar de pessoas en-lutadas e ao mesmo tempo manter certadistância. A sociedade não espera que ma-nifestem sentimentos e emoções no seu tra-balho, mesmo quando se sentem tocadosporque o morto lembra pessoas de suafamília, ou situações vividas. Há delicadafronteira entre envolvimento, cuidado e dis-tanciamento para que os agentes funeráriospossam dar conta de suas tarefas sem tantosofrimento pessoal.

Entretanto, alguns casos mexem profunda-mente com os profissionais funerários, pelascircunstâncias da morte, por identificaçãocom o falecido, com familiares, por sercriança ou jovem. Referem que quando omorto é criança precisam fazer o cerimonialcom mais cuidado em consideração à famíliaenlutada. Da mesma forma como ocorrecom seus colegas da saúde, não há na insti-tuição funerária lugar para cuidar daquelasperdas, que envolvem os sentimentos deseus profissionais. Acabam vivendo em si asolidão de uma dor e emoção não cuidadas.Na época de morte interdita, os rituais sãominimizados, como já dissemos. No caso deprofissionais funerários, há uma dupla inter-dição, a da morte e a deles, que têm seussentimentos interditados para que se mante-nha o chamado “profissionalismo”. Eles nãotêm preparo para a realização das tarefas físi-cas, como cuidar dos corpos, cavar econstruir os túmulos, só para citar algumasdas atividades, e também para lidar com asquestões emocionais envolvidas nos velórios,enterros e na aquisição dos serviços.Ouvindo as demandas dos profissionaisdurante os cursos, consideramos que elesprecisam ter estratégias para realizar o aco-lhimento do luto de pessoas em estado dechoque com fortes sentimentos. Cabe discu-tir como seria esse preparo.

Com tantas questões e problemas com aprofissão, perguntamo-nos o que faria pessoasescolher serem agentes funerários? Seria es-colha, circunstância de vida ou não ter outroemprego? Seriam as vantagens de ser fun-cionário público? Eles têm conhecimento detodos os aspectos que estão relacionadoscom esse trabalho? Câmara (2011), em seutrabalho com agentes funerários em Natalno Rio Grande do Norte, traz no título apossível resposta: agente funerário, profissãoque não se escolhe.

Em uma parceria estabelecida entre o Labo-ratório de Estudos sobre a Morte do Institutode Psicologia da USP e o Serviço Funeráriodo Município de São Paulo (SFMSP), minis-tramos o curso “Morte e os Profissionais doSFMSP”. Os profissionais desse serviço afir-maram que a escolha da profissão estava emser funcionário público e não as especifici-dades do trabalho. Perguntamos aosprofissionais, alguns com muitos anos de tra-balho, próximos à aposentadoria, senovamente escolheriam essa profissão.Alguns deles afirmaram que aprenderamcom a experiência e vêm sentindo impor-tante significação na sua vida. Percebem queseu trabalho é essencial na vida das pessoas.Outros esperam se aposentar em breve. Essareflexão nos permite pensar que, mesmo emuma profissão com tão poucos atrativos, pes-soas podem encontrar um sentido maior,como o que se observa nos seus depoimen-tos e em filmes.

O filme A Partida (Takita, Japão, 2008) apre-senta a história de Daigo Kobayashi, violon-celista que se vê desempregado e retorna àcidade natal assumindo um trabalho que fa-cilita e embeleza partidas de pessoas, pormeio do ritual de vestir, maquiar e acondi-cionar os corpos, a pedido de seus familiares,para que possam ter uma despedida digna.Torna-se assistente de um agente funerário,sem saber que terá de manipular corpos

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mortos (Site: www.adorocinema.com.br/fil-mes/filme-142464)

Vemos no filme como ele vai se acostumandocom o trabalho que, a princípio, causa nojoe dificuldades. Gradativamente, vai se aper-feiçoando e encontrando a arte e o sublimeno seu trabalho. Ao mesmo tempo em quedava alento e propiciava o último encontroda família com o falecido, provocava rejeiçãodas pessoas de sua família, como a esposa,que ameaçou se separar dele, mas que gra-dativamente foi aceitando a nova profissão.O filme mostra também o quanto o trabalhode Daigo o aproximou do pai, com quem ti-vera uma relação muito difícil na infância.Observa-se o quanto se desenvolve comopessoa, à medida que vai se aperfeiçoandona arte do seu trabalho. O grande méritodesse filme, embora realizado na culturaoriental, é trazer ao grande público a impor-tância do trabalho funerário e seu alcancepara que os que dele usufruem.

Saporetti (2012)1, ao debater o filme, apre-sentou quatro pontos de discussão: a) buscade sentido da vida ao realizar o trabalho,que é difícil a princípio e faz com que entreem contato com seus sentimentos: a arte dever sentido de uma vida em um corpomorto, tornando sagrado esse momento daexistência; b) importância dos ritos mortuá-rios, destacando seu valor simbólico paraalém do ato em si, resgatando imagens doinconsciente, da transcendência e valor tera-pêutico, a preservação da identidade paraalém da morte. Infelizmente, atualmenteesse elemento está sendo perdido; c) digni-ficação e transcendência da morte ao tornaro ritual de preparação do corpo ummomento especial, como se observa quandoDaigo realiza o ritual de preparação com ocorpo do pai; d) resgate da imagem do pai.É um filme que trata o tempo todo de mortee tão pleno de vida como é o resgate darelação com o pai, que foi tão difícil durante

toda a vida. É um filme que fala de encon-tros e reencontros.

Seria muito interessante trazer esse filmepara debate com profissionais de funerárias.Como um trabalho tão rejeitado pela socie-dade, familiares e também pelo próprio pro-fissional pode trazer um sentido tão profundopara a vida?

Esse filme traz a questão como a escolha daprofissão nem sempre envolve o conheci-mento de suas características, o que tambémestá presente no depoimento dos profissionais.A primeira ou outras experiências podemser marcantes por várias circunstâncias, pelohorror do corpo em decomposição, por sen-timentos ambivalentes e intensos dos fami-liares, pelas circunstâncias da morte, porquestões pessoais e experiências vividas pelosagentes funerários. O odor forte é uma si-tuação muito associada a essa profissão, nassuas várias atividades. É uma mistura decheiros: flores, velas, elementos químicospara preservação do corpo, mas, sem dúvida,o pior é o cheiro do corpo morto.

Como cuidar de pessoas que vivem umaprofissão tão insalubre? Farina et al. (2009)apontam que os profissionais têm uma pro-fissão com tantas cargas: física (trabalho pe-sado, com odor fétido e risco de contamina-ção; psíquica (dor, sofrimento, sentimentosintensos, os próprios e dos enlutados); social(baixa remuneração, profissão não reconhe-cida, com baixo prestígio). Há risco para opróprio profissional e para a família.

Uma aproximação daexperiência (ou do cotidiano)dos trabalhadores da morte

Em 2010-2011, o Laboratório de Estudossobre a Morte promoveu cursos com o tema“Morte e os profissionais do Serviço Funeráriodo Município de São Paulo (SFMSP). O

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1 Participação nasérie Debates sobre

Filmes – DilemasÉticos promovida

pelo Laboratório deEstudos sobre a

Morte do Institutode Psicologia da

USP.

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curso, com oito horas de duração, incluiu osseguintes temas: 1) Morte e fases do desen-volvimento: crianças, adolescentes, adultose idosos; 2) Morte inesperada: violência,trauma, suicídio. Morte “esperada”: doenças;3) Processos de luto. Rituais. Abordagem fa-miliar; 4) Cuidando do profissional do ServiçoFunerário. O curso foi oferecido em doisdias e cada tema foi acompanhado de tempopara questões e discussão.

A proposta do curso foi o aprofundamentode questões psicológicas para profissionaisque trabalham com a morte no seu cotidiano.A demanda do curso teve origem na neces-sidade desses profissionais para cuidadospsicológicos e foi um impulso inicial paraesse cuidado. Procuramos trazer conteúdoinformativo, um tempo para perguntas e in-centivamos as de ordem pessoal. Ressaltamosque não há perguntas erradas e tambémque respostas simplistas poderiam induzir aerro. Buscamos facilitar a emergência dequestões emocionais envolvidas no contatocom familiares que perderam recentementeseu ente querido.

Participaram do curso funcionários do ServiçoFunerário do Município de São Paulo, entreos quais sepultadores, veloristas, motoristas,funcionários do serviço administrativo, pres-tadores de serviços a esta instituição.

Serviço Funerário Municípiode São Paulo – seusprofissionais e a questão damorte

As informações que apresentamos a seguirforam fornecidas por Vanuzia Ribas e Fran-cisvaldo Gomes, funcionários do Serviço Fu-nerário do Município de São Paulo (2012).

A partir de 1958, por meio da Lei nº 5.562,o Serviço Funerário do Município de SãoPaulo (SFMSP) foi transformado em autarquia,

sendo caçadas todas as licenças para empresas“terceirizadas”.

Desde então, o SFMSP detém a competênciaexclusiva para a realização dos serviços detraslados, velórios e sepultamentos de óbitosocorridos na cidade de São Paulo, velados esepultados nos cemitérios municipais e/ouparticulares, além da remoção de corpospara o Serviço de Verificação de Óbito (SVO)do Hospital das Clínicas de São Paulo. OSFMSP atua nos seguintes segmentos:

Rabecão (RECORPS), remoção de corpos•para verificação de óbitos por morte na-tural (S.V.O);Agências de Contratação de Funeral –•14 Agências para atendimento, instaladasem pontos estratégicos da cidade parafacilitar o acesso dos munícipes;Remoção – 50 viaturas e 191 motoristas•para executar o transporte dos corpospara velórios, cemitérios e remoção parafora do município;Enterro – 22 Cemitérios distribuídos na•capital e 01 crematório municipal;Velórios – 18 dependências/unidades•com 116 salas, junto aos cemitérios mu-nicipais;

O Serviço Funerário do Município de SãoPaulo conta com 1.390 servidores, entreefetivos, comissionados e admitidos paracomportar a demanda dos serviços prestadosà população de São Paulo. Esses são os nú-meros e os fatos desse serviço.

No entanto, a mídia, por vezes, apresenta visãomuito negativa do SFMSP, por entender que seusprofissionais sejam mercenários, só realizando otrabalho mediante uma “caixinha”. É importanteressaltar, como apontam Ribas e Gomes (2012),que essa não é a representação da maioria dosfuncionários do serviço.

Problemas familiares enlutados se manifestam aosprofissionais funerários como brigas do casal,

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questões de herança e divergências quanto acomo realizar o trabalho. Essas são situações quecausam constrangimento e estranhamento e édifícil seguir com o trabalho.

Uma queixa muito frequente dos usuáriosse relaciona com o tempo necessário paraque se desenrolem os trâmites administrativose funerários, e a família, que está transtornadae se sente desrespeitada. Segundo Ribas eGomes (2012), são atacados principalmenteos sepultadores. Nesse momento, qualquerburocracia ou ocorrência que vier a causardesgaste pode gerar tumulto e revolta nosfamiliares.

No texto: Trabalhadores da morte – dilemaséticos (2012), Francivaldo Almeida Gomes(conhecido como Popó) relata seu trabalhocomo sepultador. Atualmente, tem comofunção apresentar a arte tumular presenteno Cemitério da Consolação, contando ahistória da cidade de São Paulo, por meiodos personagens lá enterrados. São frequentesas visitas de crianças de escolas públicas eprivadas, devendo-se ressaltar o programa“Amigos do Zippy”2, em que crianças visitamcemitérios como forma de educação paramorte, desmistificando o tabu, aprendendoa compreender um ritual tão pouco valorizadona sociedade atual.

Demandas e cuidados

Perguntamos o que os funcionários partici-pantes buscaram no curso e as respostas pu-deram ser organizadas nas seguintes categoriasprincipais: a) conhecimento e aprendizagemsobre tema da morte e luto; b) como lidarcom famílias enlutadas, principalmente quan-do ocorrem mortes violentas; c) conhecerproblemas psicológicos, principalmente adepressão e possibilidades de cuidados, entreos quais a psicoterapia; d) formas de lidarcom familiares em situação de crise, comansiedade e outros sentimentos. Questões

como melhorias de salário e condições físicasforam contextualizadas como busca pessoale sobre a qual não poderíamos interferir.

Há profissionais que veem o curso comoforma de cuidado. Permitiu também queconhecessem a experiência de colegas, da-queles que exercem a mesma função ou ou-tras. Alguns relataram que a possibilidadede saber que há uma equipe faz com que sesintam menos isolados e possam assim com-preender os colegas.

A morte faz parte do cotidiano desses pro-fissionais, mas é vista por eles de forma bemparticular. É vista como evento natural e,para outros, carregada de sentimentos. Alémda dimensão pessoal, a morte é vista comoinstrumento de trabalho. Se não houvessemortos, não haveria razão para a sua profissão.Há aqueles que acreditam que não devemse deixar envolver por questões pessoais.Mas, eles mesmos se questionam, é possível?Por um lado, defendem o sangue frio paraenfrentar situações difíceis, por outro, seficam muito distantes, podem ser consideradosdesumanos ou cruéis. Perguntam se há formasadequadas para lidar com familiares enluta-dos? Sabem que situações de morte e formasde enfrentamento são muito diversas e asnecessidades podem variar muito. Algunsdeles pensam que precisariam separar asemoções para se tornarem profissionais me-lhores. Apontam que o mais difícil do seutrabalho é cuidar de pessoas enlutadas nessemomento de sua vida.

Os profissionais ressaltam que seu trabalhonão é reconhecido e esperam que, a partirde cursos como o acima mencionado, seutrabalho possa ser valorizado. Puderam entrarem contato com a morte em outras culturas,relataram situações em que observaram ri-tuais diferentes dos que estão habituados.Esses pontos enriquecem o seu trabalho, poispermitem que pessoas possam ter lembran-

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2 Programa Amigos doZippy – Associação

para a Saúde Emocio-nal da Criança. Paramais informações,

consultar o sitewww.amigosdozippy.

org.br.

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ças especiais de seus entes queridos. Então,os profissionais funerários não trabalham so-mente com perdas e sim com questões fun-damentais da existência humana, ligadas àelaboração do luto após a morte de pessoassignificativas.

Desenvolvemos, no curso, a reflexão de queos profissionais das funerárias são vistos comocuidadores, que assim se sentiram identifi-cados e valorizados com esse significado dotrabalho. Percebem-se responsáveis comofuncionários públicos tendo de cuidar dobem-estar do munícipe.

Alguns profissionais gostariam de aperfeiçoarsua relação com as pessoas que atendem.Querem ser empáticos, colocar-se no lugardaquele que sofre a perda de seus entesqueridos. Buscaram o curso e o contato compsicólogos como estímulo para se tornaremcuidadores. Entendem que precisam se co-nhecer melhor e o que viram no curso podeser transferido para as relações familiares evida pessoal.

Muitos profissionais relataram que eles eseus colegas convivem com estresse prolon-gado, entram em colapso e consomemálcool como válvula de escape. Quando fala-mos sobre a síndrome laboral de burnout,verificamos que não tinham conhecimentodo termo, mas, ao apresentarmos os sinto-mas, imediatamente os reconheceram.Admitiram limites para o que podem supor-tar e os índices de tolerância podem serdiferentes de pessoa para pessoa. Puderamtambém compreender o que são situaçõesque podem se modificar por estratégias pes-soais e as que dependem de uma equipe detrabalho, da chefia ou da instituição. Podemse posicionar como vítimas ou agentes.Como aponta Farina et al. (2009), a relaçãoque estabelecem com o trabalho é funda-mental para a sua adaptação eenfrentamento da realidade.

Houve profissionais que relataram a neces-sidade de cuidados psicológicos e queriamcompreender como funciona a psicoterapia.Queriam entender melhor o que seriam oscuidados psicológicos, nas suas várias opções.Gostariam que o Serviço Funerário de SãoPaulo providenciasse esse cuidado. Houveprofissionais que entenderam o curso comolugar de cuidado para si próprio, como umdeles mencionou um “oásis psicológico”.

A partir das respostas dadas pelosprofissionais do Serviço Funerário de SãoPaulo, estamos planejando propostas decuidados a esses funcionários a partir dasnecessidades expressas durante os cursosministrados. Entre elas: novos cursos,workshops, supervisão, plantão psicológico epsicoterapia. Os cuidados podem ser deordem pessoal ou institucional, individual ouem grupo. Em um primeiro momento,partirão da parceira com o Laboratório deEstudos sobre a Morte e, posteriormente,oferecendo subsídios para que o próprioSFMSP possa criar seu serviço de cuidadospsicológicos alojado na instituição.

Considerações finais

Podemos olhar para esses funcionários comocuidadores de pessoas, de corpos mortos ede familiares enlutados, que assim podemter a possibilidade de velar e guardar boasmemórias, como aponta Câmara (2011).São cuidadores do final da vida. O trabalhode agentes funerários está ligado também àboa morte, uma vez que são os que oferecemos insumos e também promovem a disposi-ção do corpo, abrem as covas, realizam aconstrução de túmulos. Estes são os locaisonde os mortos serão reverenciados e quepodem deixar boas lembranças. Assim,como há a reumanização do processo demorrer para pacientes gravemente enfermos(Kovács, 2003), poderemos pensar de ma-neira similar na reumanização nos rituais

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expressos na forma de lidar com o corpomorto, resgatando-se a subjetividade da-queles que se despedem das pessoas que-ridas. Assim, transforma-se o defunto napessoa amada, diminui-se o lugar de interditodos rituais em relação à partida do falecidoe às memórias do enlutado. O filme APartida aborda essa questão com muita de-licadeza. Resgatar o valor, significado eemoção do trabalho funerário é uma formade humanização e cuidado e também podeser estratégia de prevenção do burnout.Agentes funerários relataram o agradecimentode familiares que tiveram seus rituais acom-panhados de respeito, emoção e cuidado.Isso pode se refletir em uma conversa cui-dadosa no momento de contratação dosserviços funerários, transporte do corpo,sepultamento ou cremação.

Como toda profissão, a criatividade é possível,inovando-se na forma de realizar a ação nosvários rituais oferecidos. Muitos profissionaisse queixam de não estarem preparados parao seu trabalho. Mas, será que querem defato se preparar e buscar novos conhecimentose realizar o trabalho com sentido pessoal?Afirmam ter maior dificuldade para lidarcom a morte em relação a pessoas vivas.Cuidam de corpos mortos, aprendem técnicasde cavar covas, abaixar caixões, prepararpara cremação. É uma profissão que toca a

morte na sua concretude. Mas, não sabem oque fazer com a morte em vida, com familiaresenlutados, com as fortes emoções daquelesque sofrem com a perda. Muitas vezes, aten-dem pessoas em choque, transtornadas. Osprofissionais funerários que mais sofrem essetipo de situação são aqueles que atendemna contratação dos rituais e insumos. Porfim, o seu trabalho é apreciado e reconhecidopor vivos, por aqueles que recentementeperderam pessoas queridas. É consideradocuidado possível na vida ausente.

Como cuidar desses profissionais, quais sãoseus mecanismos de enfrentamento? Comorelaxam? Como cuidam de seu sofrimento?Que atividades buscam para si, o quanto ainstituição deve colaborar nesse processo,que espaços de cuidados devem ser ofereci-dos? Como seu trabalho deve ser reconhecidopor eles, pelos colegas, pelas instituições,pelos usuários e pela sociedade? Como seadaptam a uma profissão que para ganhar avida trabalha-se com a morte?

Observamos que quando se dá voz a essesprofissionais, falam com emoção de sua ex-periência. Como falar sobre a morte paraprofissionais que lidam cotidianamente comela? O tempo de serviço ajuda nas formasde enfrentamento pelas experiências vividas,mas não os protege de todas as situações.

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Maria Julia KovácsDoutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo,São Paulo – SP. Brasil. Docente da Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil.E-mail: [email protected]

Nancy VaiciunasGraduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. Brasil.E-mail: [email protected]

Elaine Gomes Reis AlvesDoutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade deSão Paulo, São Paulo – SP. Brasil.E-mail: [email protected]

Endereço para envio de correspondência:Laboratório de Estudos sobre a Morte. Departamento de Psicologia da Aprendizagem,do Desenvolvimento e da Personalidade. Instituto de Psicologia USP. Av. Mello Morais,1721 – Cidade Universitária. CEP: 05508-900. São Paulo – SP. Brasil.

Recebido 23/04/2013, 1ª Reformulação 16/01/2014, Aprovado 29/09/2014.

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Referências

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