populismo, classe e nação: francisco weffort e a teoria da

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Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da dependência (1967-1972) 1 André Kaysel 2 e Daniela Mussi 3 Introdução Entre o final dos anos 1960 e inícios dos 1970, um ambiente cultural e político específico se constituía na América Latina, possibilitado pela intensa circulação de intelectuais afetados diretamente pelas crises e ditaduras instaladas no continente. Participante deste ambiente no período em que trabalhou no Instituto Latino- Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES) 4 no Chile, Francisco Weffort tomou contato com as contribuições de intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Aníbal Quijano, Ruy Mauro Marini, entre outros. Neste “ambiente” eram de particular importância as análises e formulações a respeito do problema do subdesenvolvimento e da dependência dos países-latino americanos. Os ecos destas formulações nos textos de Weffort apareceram a partir de 1967, como no artigo “O populismo na política brasileira”, escrito para o número especial da revista Les Temps Modernes sobre o Brasil organizado por Celso Furtado. 5 Aqui, Weffort reapresentou a ideia do populismo que vinha desenvolvendo em suas pesquisas desde 1963 como “manifestação das debilidades políticas dos grupos dominantes”, de um 1 Comunicação escrita para participação no 9 o Congresso Latino-Americano de Ciência Política (ALACIP), a ser realizado entre os dias 26 e 28 de julho em Montevidéu (Uruguai). 2 Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas. 3 Pós-doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. 4 Instituição ligada à Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), com sede no Chile para onde Francisco Weffort, Fernando Henrique Cardoso e outros se mudaram após o golpe de 1964 que deu instaurou a ditadura militar no Brasil. Tanto Weffort como Cardoso permaneceriam no Chile até fins de 1967 quando retornariam ao Brasil, o primeiro para defender sua tese de doutoramento em abril de 1968, o segundo para disputar a cadeira de Política na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. 5 Para o qual Fernando Henrique Cardoso também contribuiu com um artigo, além de Florestan Fernandes, Hélio Jaguaribe, Otto Maria Carpeaux, Jean-Claude Bernadet, Antonio Callado, J. Leite Lopes e o próprio Furtado. A revista ganhou uma edição em português no mesmo ano, publicada como livro pela editora Civilização Brasileira.

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Page 1: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

Populismo,classeenação:FranciscoWefforteateoriada

dependência(1967-1972)1

AndréKaysel2eDanielaMussi3

Introdução

Entreofinaldosanos1960einíciosdos1970,umambienteculturalepolítico

específico se constituía na América Latina, possibilitado pela intensa circulação de

intelectuais afetados diretamente pelas crises e ditaduras instaladas no continente.

Participante deste ambiente no período em que trabalhou no Instituto Latino-

Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES)4no Chile, FranciscoWeffort

tomoucontatocomascontribuiçõesdeintelectuaiscomoFernandoHenriqueCardosoe

EnzoFaletto,AníbalQuijano,RuyMauroMarini,entreoutros.Neste“ambiente”eram

de particular importância as análises e formulações a respeito do problema do

subdesenvolvimentoedadependênciadospaíses-latinoamericanos.

OsecosdestasformulaçõesnostextosdeWeffortapareceramapartirde1967,

comonoartigo“Opopulismonapolíticabrasileira”,escritoparaonúmeroespecialda

revistaLesTempsModernessobreoBrasilorganizadoporCelsoFurtado.5Aqui,Weffort

reapresentouaideiadopopulismoquevinhadesenvolvendoemsuaspesquisasdesde

1963 como “manifestação das debilidades políticas dos grupos dominantes”, de um

1Comunicaçãoescritaparaparticipaçãono9oCongressoLatino-AmericanodeCiênciaPolítica(ALACIP),aserrealizadoentreosdias26e28dejulhoemMontevidéu(Uruguai).2ProfessordoDepartamentodeCiênciaPolíticadaUniversidadeEstadualdeCampinas.3Pós-doutorandanoDepartamentodeCiênciaPolíticadaUniversidadedeSãoPaulo.BolsistaCAPES.4InstituiçãoligadaàComissãoEconômicaparaAméricaLatinaeCaribe(CEPAL),comsedenoChile para onde FranciscoWeffort, FernandoHenrique Cardoso e outros semudaram após ogolpe de 1964 que deu instaurou a ditadura militar no Brasil. TantoWeffort como Cardosopermaneceriam no Chile até fins de 1967 quando retornariam ao Brasil, o primeiro paradefender sua tese de doutoramento em abril de 1968, o segundo para disputar a cadeira dePolíticanaFaculdadedeFilosofia,CiênciaseLetrasdaUniversidadedeSãoPaulo.5ParaoqualFernandoHenriqueCardosotambémcontribuiucomumartigo,alémdeFlorestanFernandes,HélioJaguaribe,OttoMariaCarpeaux,Jean-ClaudeBernadet,AntonioCallado,J.LeiteLopeseopróprioFurtado.Arevistaganhouumaediçãoemportuguêsnomesmoano,publicadacomolivropelaeditoraCivilizaçãoBrasileira.

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desenvolvimento burguês que passara “a depender cada vez mais de capitais

estrangeiros”edeumaburguesiacondenada“tambémpelafragilidadedopopulismo”.

No mesmo ano, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto publicaram, pelo ILPES,

DependenciaydesarrolloenAméricaLatina:ensayodeinterpretacíonsociológica,ensaio

que se tornaria referenciapara Weffort pensar adependência.6 Tambémna tesede

doutorado,defendidaemabrilde1968naUniversidadedeSãoPaulo,Weffortretomou

otrabalhodeCardosoeFalettocomofonteparauma“noçãodedependência”(Weffort,

1968b,p.21n).

Emsua tese,Weffort semoviano interiordoqueconsideravaumaabordagem

“não abstrata” do processo histórico que lançava as bases para pensar as condições

peculiaresda“emergênciapolíticadasclassespopulares”nosdiferentespaíses latino-

americanos.A formaçãopolíticaesocialdependentedaAméricaLatinaassumiamum

papel decisivo para explicar as massas na política (Ibidem, p. 22-23). Esta

compatibilidadecomaabordagemdadependência,entretanto,mudariadrasticamente

noperíodoseguinte.

Anovaatitude frenteao conceitoénotávelna trocadetextosproduzidapara

umeventoacadêmiconoChileemfinsde1970,noqualWefforteFernandoHenrique

Cardoso debateram publicamente este tema. Aqui, Weffort mostrou intenção de

distanciar-sedos termosdobinômiodependência-populismo.Apesardereconhecero

papel“crítico”e“renovador”danoçãode“paísesdependentes”diantede“umatradição

de idealização teórica das sociedades avançadas como padrão universal do

desenvolvimentocapitalista”(Idem,1971[1970],p.4),passouaindagararespeitodos

limites de seu uso. Neste texto, Weffort afirmou que a noção de dependência teria

substituídoaideiadesubdesenvolvimentoeofereciaumaformaderetomaraideologia

nacional-desenvolvimentista em outros termos. A crítica se voltava, ainda, contra o

6Na redação do artigo para a LesTempsModernesWeffort não cita o trabalho de Cardoso eFaletto (1970 [1967]), possivelmente ainda em fase de publicação. Cita, entretanto, a tese delivre-docência de Cardoso (1964),Empresário industrial edesenvolvimento econômico, onde otemada“debilidade”dasclassesdominantesbrasileirasédesenvolvidopelaprimeiravez,bemcomo o livro de Furtado (1964), Dialética do desenvolvimento onde é discutido o papel dosefeitosexternosnaindustrializaçãodaeconomiabrasileira.

Page 3: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

“nacionalismoideológico”quepermeariaanoçãodesubdesenvolvimentoe,também,a

dedependência(Ibidem,p.9e9n).

Nopresente texto serão exploradas as vicissitudesdesteprocessode adesão e

crítica da “teoria da dependência” por Weffort. Na próxima seção será discutido o

processode formaçãodeum léxicopolítico latino-americanonoqual os conceitos de

“dependência”e“populismo”ocuparamumlugarcentral,apontandocomoostextosde

Weffortseinseriramnessecontexto.Naseçãoseguinteapresentaostermosdodebate

entreWeffort e Cardoso, procurando demonstrar como ambos definiram emudaram

suas posições na controvérsia. Por fim, a conclusão discute como confluíram no

pensamentodeWeffortapreocupaçãocomaautonomiadaclasse trabalhadorae sua

crítica da dependência, em particular em sua tese de livre-docência sobre o

“sindicalismopopulista”(Weffort,1972b).

Populismoedependêncianoléxicopolítico-culturallatino-americano

Os anos 1960-1970 foram um período de grande efervescência intelectual no

subcontinente, alimentado pela espiral de radicalização política que se seguiu à

RevoluçãoCubanade1959,àcrisedodesenvolvimentismoquecaracterizaraadécada

precedente e a onda de golpes cívico-militares que se abateu, em especial sobre os

paísesdoConeSul.Contextoemque,aindaquejátivesseumatrajetóriarelativamente

antiganaregião,otermo“dependência”ganhouumnovostatusteóricocomoconceito-

chavepara reinterpretara formaçãohistórico-socialdospaíses latino-americanos.7.O

termo dependência já aparecia no clássico de Vladmir Ilich Lênin Imperialismo: fase

superior do capitalismo (1916). Sua estreia no vocabulário político latino-americano

provavelmente se deu por ocasião do VI Congresso da Internacional Comunista (IC),

quando o delegado equatoriano Ricardo Paresdes se opôs a que os países latino-

americanos ficassem subsumidos na categoria de “países coloniais e semicoloniais”.

7 Como lembra o historiador inglês Quentin Skinner (1974), as inovações ideológicas -entendendoaquiaideologiacomocertovocabuláriooulinguagempolíticadeumdadoperíodo–nãoprocedemtantopelacriaçãodenovostermos,maspelaressignificaçãodosjáexistentes.

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Apósumlongodebate,seaprovouatesecomaainclusãodotermo“dependentes”(cf.

Caballero,1988).Entreasegundametadedosanos1960eaprimeirados1970,uma

miríade de intelectuais retomou o conceito/noção de “dependência” na interpretação

dasformasespecíficasdeinserçãosubordinadadospaísesdaperiferialatino-americana

nocapitalismomundial.

Havia a preocupação, neste novo contexto, de oferecer respostas à crise da

abordagem estruturalista até então predominante na Comissão Econômica Para a

América Latina e o Caribe (CEPAL), o qual parecia ter fracassado em sua equação

otimista da Industrialização Substitutiva de Importações (ISI) superação do

subdesenvolvimento.Foinesteambienteque intelectuais comoRodolfoStavenhagen,

FernandoHenriqueCardosoeEnzoFaletto,TeotôniodosSantos,VâniaBanbirra,André

Gunder Frank, RuyMauroMarini, Florestan Fernandes, Anibal Quijano, entre outros,

passaram a falar de relações de “dependência” como chave alternativa à do

subdesenvolvimentoedaISI.8

A produção ao redor deste tema não era uniforme em suas bases teóricas,

diagnósticoseconclusões,demodoque,maisdoqueemuma“teoriadadependência”,

comosecostumafalar,talvezomaisadequadosejafalaremnoçõesanalíticaseteóricas

arespeitodadependência.Estesforamalgunsdostermosgeraisnosquaissemoveram

os intelectuais identificados com o campo democrático – em muitos casos com o

socialismoecomcorrentesmarxistas–dediferentespaíseslatino-americanos,muitos

exiladosnasegundametadedosanos1960ediantedodesafiodepensara realidade

histórica, social e política em termos internacionais e regionais. Uma condição

intelectual,portanto,queultrapassavaobjetivospuramentecientíficos.9

Neste ambiente, ao lado da emergência da problemática da “dependência”

8 Excertos de algumas das principais obras produzidas em torno da controvérsia dadependência estão compilados em Marini e Milán (1995). Para um amplo levantamentobibliográfico,inclusivecomtrabalhosproduzidosemoutroscontinentesverDosSantos(1998).9Paraummapeamentodosdebatesentrecepalinosedependentistas,verLove(1996).Jáparadiferentescritériosdeorganizaçãodacontrovérsiadadependência,verDosSantos(2000).Porfim, para uma apreciação crítica do lugar das “teorias da dependência” no marxismo latino-americano,verPortantiero(1990).

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esteve a do “populismo”, conceito por meio do qual diversos autores procuraram

caracterizar as forças políticas que, tendo dominado a cena em diversos países no

período de auge do nacional-desenvolvimentismo, vinham sendo desalojadas

violentamenteporgolpescivil-militares.

Jáoconceitode“populismo”fezsuaestreianasociologialatino-americanaentre

osanos1950e1960,soboimpactodaperspectivadamodernização,paradarcontada

singularidadedas formasde incorporaçãodas camadaspopularesàesferapública, as

quaisescapavamaospadrõesdademocraciarepresentativaedasclivagenspartidárias

usuais na Europa ocidental.10Caracterizando amodernização como a transição entre

doistiposradicalmentedistintos,a“sociedadetradicional”ea“sociedademoderna”,a

sociologiafuncionalistaidentificavaoproblemadaAméricaLatinanaincapacidadedos

mecanismos institucionais promoverem a integração e canalização da mobilização

vertiginosadascamadaspopularesnavidapolíticaemviasdemodernização.

Porumlado,estascamadasviveriamuma“revoluçãodeexpectativas”emseus

padrõesdeconsumo,culturaisepolíticospromovidapelodesenvolvimentoeconômico

naregião(Germani,1973[1965],p.175;DiTella,1969,p.82).Poroutro,dafrustração

dasperspectivasde integraçãopolíticaautônomaedesprovidasde tradiçõesdeauto-

organização, estas passariam a ficar disponíveis à manipulação por lideranças

populistas(DiTella,1969,p.87).Osmovimentospopulistas,porsuavez,resultariamdo

encontro dessas massas populares com elites civis e militares interessadas em

transformar a ordem vigente, as quais canalizariam a mobilização popular “de cima

parabaixo”(Germani,1973[1965],p.172-173).Essesmovimentoscaracterizar-se-iam

pelo forte apoio popular, a heterogeneidade de sua base social e uma vaga ideologia

anti-establishment(DiTella,1969,p.85-86).

No Brasil dos anos 1950, a perspectiva da sociologia da modernização, que

10Alémdisso,assimcomonocasodadependência,antesdeseconsagrarcomocategoriadeusoacadêmico,opopulismotambémparecetersidointroduzidonaregiãoinfluênciadoléxicodaIIIInternacionalComunista,poiseraempregadonosdebatesentrecomunistasenacionalistasemfinsdadécadade1920e teve suaorigemna culturapolítica russado finaldo séculoXIX (cf.Kaysel,2017).

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associava o populismo a uma etapa do desenvolvimento político da sociedade,

encontrou alguma afinidade na perspectiva de intelectuais brasileiros de inclinações

nacionalistas.Umexemploéoartigo,nãoassinado,emgeralatribuídoaHélioJaguaribe

(1954),narevistaCadernosdoNossoTempo,sobreo“adhemarismo”–emreferenciaao

políticopaulistaAdhemardeBarros–comoformaderelaçãopersonalistaentrelídere

massas.OutrocasoéodeAlbertoGuerreiroRamos (1961),oqualno iníciodosanos

1960 abordou o populismo como uma forma personalista de relação entre um líder

políticoeumamassatrabalhadoraaindanãoorganizada,asersuperadapela“política

ideológica”.11Épossíveldizerque, emmeadosde1963,quandoWeffort escreveu seu

artigosobreo temada“políticademassas”12ecriticouaperspectivada“políticapré-

ideológica”paraotratamentodopopulismo,estecompunhaaantessaladonascimento

domovimentointelectuallatino-americanorivalaestaperspectiva“modernizante”,que

podemoschamarpor“dependentista”.13

Assim, quando a crítica à teoria damodernização começou a ganhar fôlego na

segundametadedos1960eoconceitodedependênciaganhoucentralidade,entreos

intelectuais brasileiros este foi amparado pelos argumentos críticos a respeito do

populismo. Já em sua tese de livre-docência, publicada em 1964, FernandoHenrique

Cardoso(1964,p.86-91)desenvolveulongaeexplicitamenteosargumentosdeWeffort

a respeito do fenômeno do populismo no Brasil. Aqui, a reflexão sobre o populismo

apareceudiretamentevinculadaaumatentativadeanálisedogolpemilitarrecenteno

Brasil. Cardoso se orientava pela análise de Weffort para explicar por que os

11Para os primeiros usos do conceito de “populismo” nas ciências sociais e no pensamentopolíticobrasileirosverGomes(2001)eFerreira(2001).12Trata-se do capítulo “A política demassas”, elaboradopara a coletâneaPolíticaerevoluçãosocial no Brasil organizada em conjunto com Gabriel Cohn, Paul Singer e Otávio Ianni (cf.Weffort, 1965a [1963]; 1965b). Este artigo, modificado, foi incluído posteriormente nacoletâneaOpopulismonapolíticabrasileirapublicadanofimdosanos1970(Idem,1978).Parauma discussão sobre as mudanças realizadas na segunda versão, ver Kaysel e Mussi (2017,aindainédito).13Antes,em1963,FlorestanFernandespublicouAsociologianumaeraderevoluçãosocial,emqueo temadopopulismoapareceudiscutidodemaneira crítica e realista, como “eclosãodasmassas populares na arena da política”, processo precário que Fernandes via realizado demaneira “independente e acima dos partidos”, como exercício de tradução permanente porpolíticos demagogos de suas posições conservadoras em uma linguagem popular eficaz (cf.Fernandes,1963,p.262-263;apudCardoso,1964,p.91).

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movimentos populares e partidos de esquerdas haviam sido marginalizados neste

processo,ouseja,nãohaviamsidocapazesdereagiraogolpe.Emsuaopinião, issose

deveraaofatodequeasliderançasnacionalistasedeesquerdanãohaviamsidocapazes

de compreender a “classe” no interior da “massa”, haviam simplesmente rejeitado a

políticapopulistacomo“retrógrada”parainsistirnaabstratapolítica“ideológica”.

Um pouco mais tarde, no trabalho conjunto com Enzo Faletto com quem

desenvolveudemaneirasistemáticaoargumentoda“dependência”naAméricaLatina,

Cardosopassouapensaropopulismopeloângulodastransformaçõesnospadrõesde

acumulação capitalista no continente e dos consequentes rearranjos na estrutura de

classes.Noensaiode interpretaçãosociológica,escritoentre1966e1967,apareceua

ideiadequeascondiçõesparaaemergênciado“populismodesenvolvimentista”seriam

dadas pela crise do “padrão de desenvolvimento para fora” – caracterizado pelas

economiasprimário-exportadoras–eapassagemao“padrãodedesenvolvimentopara

dentro”, centrado na industrialização substitutiva de importações (ISI) (cf. Cardoso e

Faletto,1970[1967],p.94).

Este novo padrão de acumulação teria conduzido a uma “aliança

desenvolvimentista”, setores industriais e operários-populares, ou seja, estruturada

pela combinação entre política alfandegária e esmagamento do conjunto do setor

agrário e médio, capaz de sustentar os investimentos industriais e os salários dos

setorespopularesqueseincorporamaosistemaindustrial(Ibidem,p.95).Opopulismo,

discutidoaquicomo“modelo”especificamentebrasileirodedesenvolvimentoseria

“o elo através do qual se vinculam asmassas urbanasmobilizadas pelaindustrialização–ouexpulsasdosetoragráriocomoconsequênciadesuatransformaçãooudeterioração–aonovoesquemadepoder;econverter-se-ánapolíticademassas,que trataráde impulsionaramanutençãodeum esquema de participação política relativamente limitado e baseadoprincipalmenteemumadébilestruturasindicalquenãoafetouasmassasruraisnemoconjuntodosetorpopularurbano”(Ibidem,p.103).

A crise deste “elo”, por sua vez, se daria com o advento da “dependência

associada”,processonoqualaassociaçãodocapitalmultinacionalcomoscapitaislocais

se aprofunda, gerando uma ruptura destes com o arranjo desenvolvimentista, ao

mesmo tempo em que as pressões populares aumentam nos marcos da política

populista. Em sua conclusão, Cardoso e Faletto argumentaram que a crise das

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experiências populistas não seria a crise da oposição entre dependência e

desenvolvimento, polos entreosquais sedividiriamburguesia eproletariado,mas se

realizara como processo de redefinição destes dois termos. Esta consistiria na forte

presençados“interessesexternos”nosetordeproduçãoparaomercadointerno,enas

novasaliançaspolíticasdaíresultantes,concentradasnoapoiodaspopulaçõesurbanas

egrupossociaisligadosàproduçãoindustrial(Ibidem,p.141-142).

PoucodepoisdapublicaçãodoensaiosociológicodeCardosoeFalettonoChile,a

revistafrancesaLesTempsModernespublicouonúmeroespecialdedicadoaoBrasil,no

qual Cardoso e Weffort participaram com textos individuais. Cardoso (1968 [1967])

contribuiucom“Hegemoniaburguesaeindependênciaeconômica:raízesestruturaisda

crise política brasileira”, artigo em que aplicou ao caso brasileiro os argumentos

centraisdesuapesquisacomFalettoeexpôsacríticaàideiadeumaburguesianacional

interessadanaindependênciaeconômicadopaís.

O artigo de Weffort para Les Temps Modernes, “O populismo na política

brasileira”, foi escrito no contexto emque este também se encontrava no Chile e era

membro do quadro técnico do ILPES e estava, portanto, em contato direto com as

discussões ao redor da problemática da dependência (Weffort, 1968a [1967]).14Não

poracaso,otermodependênciaapareceunasfrasesiniciaisdesteartigo,comopartede

umaprimeiradefiniçãodofenômenopopulista:

“[O populismo] foi também uma das manifestações das debilidadespolíticasdosgruposdominantesurbanosquandotentaramsubstituir-seàoligarquianas funçõesdedomíniopolíticodeumpaís tradicionalmenteagrário e dependente, numa etapa em que pareciam existir aspossibilidades de um desenvolvimento capitalista nacional” (Ibidem, p.50.Grifoadicionado).15

14Como funcionário do ILPES,Weffort escreveu em coautoria neste período sobre o tema daplanificação do setor público em perspectiva das economias latino-americanas onde aperspectiva da dependência aparece. Estas economias eram identificadas como “mistas”, nasquais“elproceso[deformaçãoestatal]esdiferente.Setratamásbiendeunprocesogradual(aveces cruento) de adaptación del aparato institucional a un complejo de actividadeseconómicas,cuyafinalidadestabamuchomásvinculadaalmercadoexternoquealinterno”(cf.WefforteCibotti,1967,p.8).15Na versão deste artigo da coletânea Populismonapolítica brasileira, publicada em 1978, otermo“dependente”desaparece,oquefortaleceashipótesesdequeWeffort,porumlado,teriafeito um uso consciente do termo para vinculação com a abordagem discutida na primeira

Page 9: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

Aqui,Weffortcaracterizouopopulismocomoformadependentedeincorporação

dasmassas populares ao Estado no contexto de crise da ordem liberal-oligárquica.O

processo de ampliação – ou democratização – “pelo alto” da ordem estatal seria

possibilitado pela relativa fragilidade dos grupos dominantes urbanos de uma

sociedade, historicamente “agrária” e ”dependente", mas que vislumbrava a

possibilidadedeconstruçãodeum“capitalismonacional”.Tem-se,pois,umaarticulação

análogaadeCardosoeFaletto,istoé:ainterpretaçãodopopulismocomoumfenômeno

político alicerçado na crise da economia primário-exportadora, estruturado e

estruturantedapolíticaedoEstadonacional-desenvolvimentista.

Aodiscutirasrazõesdafragilidadedaburguesia industrialbrasileiraenquanto

classeàépocadaRevoluçãode1930,WeffortcitaexplicitamenteCelsoFurtadoeafirma

queacrisedaeconomiaprimário-exportadora:

Aparece como simples reflexodadiminuiçãodos estímulosdomercadoexternoeapolíticagovernamental consistiu,noessencial, em transferirpara o conjunto do país as perdas que a crise externa provocara naagricultura do café, nosso principal produto de exportação (Ibidem, p.53).

A apropriação do argumento de Furtado (1962 [1959]) acerca do papel do

Estado na proteção dos preços do café durante a década de 1930 era parte do

argumento sobre o qual se estruturava o diagnóstico “dependentista” e cepalino da

passagemdeum“desarollohaciafuera”paraoutro,“haciadentro”,assimcomoopapel

determinanteatribuídoaomercadoexternonodesencadeamentodacriseagrária.

Para Weffort, o aspecto-chave da elaboração sobre o populismo a partir da

noção de dependência residia na ideia de que a burguesia industrial – e, de resto, o

conjuntodosgrupossociaisdominantes,classesmédiasurbanas,oligarquiasregionaise

primário-exportadoras – seriam incapazes de exercer um papel dirigente à frente do

Estado em contextos de crise e transição. Justamente nestes contextos se abririam

situaçõesfavoráveisparaemergênciadasituaçãoouEstado“decompromisso”,istoé,

paraaformaçãodenovo–aindaqueprecário–equilíbrioentreinteressesdivergentes versão;e,poroutro,umesforçoconscienteemsedesvinculardamesmaemmomentoposterior(cf.Weffort,1978a,p.61).

Page 10: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

que possibilitaria a autonomização relativa do Estado frente às classes sociais e sua

personalizaçãonafiguradochefedoexecutivo,oqualpassariaadesempenharopapel

deárbitro(Weffort,1968a[1967],p.63).

Este compromisso, contudo, não poderia ser considerado como equivalência

diretadoconceitomarxianodebonapartismoparaocasobrasileiropordoismotivos.

Primeiro, pelo fato do populismo emergir de um compromisso com grupos sociais

fundamentalmenteurbanosdascamadaspopulares,nãorurais(Ibidem,p.62)Segundo

dado o caráter dependente que esta situação particular de compromisso assume em

relação ao “externo”, ou seja, em virtude da especificidade da formação dos países

latino-americanos.16O caráter periférico e dependente do “compromisso” nos países

latino-americanos contribuiria, ainda, para a emergência de formas de participação

política diversificadas. Para Weffort, o “compromisso” nos países periféricos e

dependentesadquiriaformasespecíficasque, investigadaspropriamente,contestavam

ateseda“passividade”ou“faltadeideologia”dasclassespopularesbrasileiras(Ibidem,

p.65)

Nestesentido,comointuitodeexplicaracriseagudadoEstadodecompromisso

noBrasildoiníciodosanos1960,Weffortapontouparadoisprocessosconcomitantes.

Oprimeiro se ligava à crisedopadrãopopulistadedominaçãopolítica.Opopulismo,

afirmou,secaracterizariapordoismomentos,umdeascensãoondeatônicaédadapela

“manipulaçãodasmassas”,seguidoporumperíodode“mobilizaçãopopular”ecrisedo

“compromisso”, “quando a economia urbano-industrial” esgota “sua capacidade de

absorçãodenovosimigrantesequandoserestringemasmargensdoredistributivismo

econômico”(Ibidem,p.70).

Estarestriçãoseexpressarianoprocessodeesgotamentodacapacidadedelidar

comaspressõesdaparticipação,períodoemqueaindustrializaçãoalcançariaseulimite

máximodevido a presença parasitária do setor exportador de produtos primários na

16Em uma nota,Weffort esclarece sua hesitação em usar o conceito de regime bonapartista,usadonaépocaporRuyMauroMariniparasereferiràAméricaLatina:“Dentrodaexperiênciahistórica europeia o ‘bonapartismo’ seria talvez a situação política mais próxima dessa queprocuramos descrever para o Brasil. De todos modos pareceu-nos conveniente evitar o usodestaexpressãoquenosteriaobrigadoacomparações,quefogemdoâmbitodesteartigo,entrepaísesdediferenteformaçãocapitalista.”(Weffort,1968a[1967],p.63).

Page 11: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

situaçãodecompromisso.Aestagnaçãododesenvolvimentointraburguês,porsuavez,

teria sido fundamental para que a indústria brasileira se tornasse progressivamente

dependentedecapitaisexternose,portanto,incapazde“formularumapolítica”própria

eabrangenteemsuacapacidadede“manipulação”dasmassas(Ibidem,p.70).

Algunsmesesdepoisdeescreveroartigoparaarevistafrancesa, jádevoltaao

Brasil,Weffort,retomoua“noçãodedependência”emsuatesededoutorado,“Classes

populares e política: contribuição ao estudo do ‘populismo’”, defendida em abril de

1968(Idem,1968b,p.21).Aqui,adependênciaapareceucomoumanoçãoquecombina

“autonomia política e dependência econômica”, ou seja, um conceito que define a

constituição dos países da América Latina como essencialmente ambígua, sendo esta

sua“especificidadebásica”(Ibidem,p.21).AatençãodeWeffortnatesesedirecionou

para a fase “mobilizadora” do populismo, ou seja, para “as condições da emergência

política das classes populares”, e discutiu as “peculiaridades da formação política e

socialdependentedaAméricaLatina”e seupapeldecisivonesteprocesso (Ibidem,p.

22-23).

Nestemesmomês, em 14 de abril de 1968, uma greve estilo “gato selvagem”

estourounacidadedeContagem,por“foradosmarcosdosindicato”escreveriaWeffort

algumtempodepois,comumfortemovimentodeocupaçõeseenfrentamentos(Idem,

1972a[1971],p.37).Agreveseexpandiu,comseuaugeem22deabrileamobilização

de15miloperáriosemtodooestadodeMinasGerais.Emseguida,emmaio,grandes

revoltas estudantis estouraramnoplano internacional, especialmentena França, com

grande impacto no “clima ideológico e político” e nos “movimentos estudantis da

Guanabara” (Ibidem, p. 75). “Não eram poucos os que pensavam na possibilidade

históricadeumainversãodasrelaçõestradicionaisentreestudanteseclasseoperária”,

deuma“novaépocadosmovimentossociais”,diriaWeffortmaistarde(Ibidem,p.75).

Nesteclima,emjulho,umnovomovimentogrevistaenvolvendo6miloperárioseclodiu,

agora na região de Osasco, em São Paulo, também com fortes ocupações e

enfrentamento.

Estes acontecimentos, imediatamente posteriores à defesa de sua tese de

doutorado, teriam grande impacto sobre as ideias de Weffort, especialmente sobre

algunsdoselementosjápresentesemsuaargumentaçãosobreopopulismoelaborada

Page 12: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

entre1966e1967,nocontextodeproximidadecoma“noçãodedependência”.Weffort

escreveria longamente sobre este ciclo de lutas no Brasil entre 1971 e 1972, e

introduziriaa ideiadestecomorepresentantedeum“processoderuptura internado

sindicalismo populista”, de independência operária contrastante com o movimento

sindicalvigenteequeseformaranosanos1950(Ibidem,p.87).

Estasreflexõesparecemtercontribuídoparaodesenvolvimentodeumaatitude

críticaemrelaçãoaousodoconceitodedependênciapelosintelectuaisligadosàCEPAL

parasereferiràAméricaLatinae,emparticular,aquestionarousodesteconceitopor

CardosoeFalettoemseuensaio sociológicoenoartigodeCardosoparaaLesTemps

Modernes.Ainvestigaçãodofenômenopopulistaeraagoraampliada,–vistonãomais

apenas como aliança eleitoral, mas também como conjunto de práticas sindicais – e

encontravaumlugardifícildentrodamatrizanalíticadapolíticaeeconomiadoBrasil

centradanaideiadedependência.

Asgrevesoperáriaseestudantisde1968,bemcomoanovaondadeprotestos

políticos em âmbito internacional, somadas a um novo ambiente cultural e político

emergente entre os intelectuais democráticos, revolucionários e socialistas

brasileiros,17apontavamparaanecessidadedeexpansãodoestudodo “populismo”e,

no mesmo sentido, a novas indagações sobre as relações de dependência interno-

externo. Um ambiente em contraste, portanto, com o léxico que ajudara a formar e

difundir.

Classe,naçãoeoslimitesdadependência

A distância intelectual e política entre Weffort e Cardoso aumentaria neste

período, movimento registrado nas comunicações escritas para apresentação e

discussãoemumseminário acadêmico internacional.Emnovembrode1970,Weffort

apresentou“Notassobreateoriadadependência:teoriadeclasseouideologia?”no2º

17Ambientequeseexpressou,paramuitos,emposiçõessimpáticasàlutaarmada,emoutrosnacrítica aguda do compromisso brasileiro do início dos anos 1960. Ambiente de “explosãocriativa” no qual se gestava, ainda,movimentos artísticos importantes no teatro e namúsicacomoatropicália(Ridenti,2000,p.161;Veloso,1997).

Page 13: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

Seminario Latinoamericano para el Desarrollo,18 realizado no Chile, e teve seu texto

comentado por Cardoso, que para tal escreveu “Teoria da dependência ou análise

concreta de situações de dependência?” Os textos do debate foram publicados em

versõesmodificadasnoanoseguintenoboletimEstudosCebrap,19doCentroBrasileiro

deAnáliseePlanejamento(CEBRAP),doqualambosfaziamparte.

Na comunicação, Weffort dividiu sua crítica em dois temas principais, o do

conceitodedependênciaeodaEuropacomomodeloparaahistóriadaformaçãosocial

e política na periferia. Na primeira parte, discutiu a ambiguidade do conceito de

dependência no que diz respeito às esferas de classe e nação. Em sua opinião,

conceitualmente estes termos não poderiam ser conciliados sem que dependência se

convertesse em uma defesa ideológica da perspectiva do subdesenvolvimento (1971

[1970],p.9-10).

O argumento de Weffort era “político” e buscava refletir sobre a concreta

“relaçãoentreclassesenaçãonodesenvolvimentodocapitalismonaAméricaLatina”,

demaneiraalternativaàideiade“dependênciaexterna”propagadapelaCEPALepelos

teóricos da modernização (Ibidem, p. 6). “Se as burguesias nacionais falharam ou

inexistiram”,afirmou,caberiapensar“qualopapeldatemáticanacionalnoâmbitodas

relações politicas e ideológicas entre as classes” (Ibidem, p. 6. Grifo adicionado). Em

outraspalavras,colocavaoproblemasobreaexistência–nãomeramenteideológica–

danação nos contextos em que as burguesias nacionais falharam ou inexistem como

classe independente. Além disso, as diferentes abordagens sobre a “dependência”,

inclusiveemsuamelhorformulaçãopropostaporCardosoeFaletto,teriampassadoa

cumprirumafunçãoideológicaaodefenderumasupostaindependêncianacionalsema

18 Evento organizado pela Faculdad Latino-Americana de Ciencias Sociales (Flacso) compatrocíniodaUnesco.19A intervenção de Weffort foi publicada, também, na Revista Latinoamericana de CienciaPolítica, n. 1, em1971. O autor incluiria alguns anos depois uma versãomodificada deste nacoletânea O Populismo Na Política Brasileira (Weffort, 1978). Devido os contrastes entre asdiferentes partes do livro, Weffort incluiu uma nota editorial introdutória para explicar aexistência de posições contraditórias com relação ao problema da dependência no livro,minimizando a influencia geral da perspectiva da dependência em seu trabalho. Comodemonstradonopresenteestudo,porém,essanotapodetersubestimadotalinfluência.

Page 14: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

“rupturaconcomitantedasrelaçõesdedominação(internas)declasse”(Ibidem,p.9n).

Em sua réplica ao texto de Weffort, Cardoso admitiu que o debate sobre a

dependênciahavia assumidouma carga ideológica tal quedificultavaumaapreciação

equilibradaematizadadasdiferentescontribuições.Aseuver,seria“inútilentrarnuma

discussãoquandoelajáassumiuumaconotaçãoideológicatãofortequesetornadifícil

analisar os textos e as ideias emque se apoia” (Cardoso, 1971 [1970], p. 27).Apesar

disso, reiterou que o uso da categoria de dependência em seu trabalho tinha por

intenção criticar justamente o economicismo e o evolucionismo das teorias

convencionaisdodesenvolvimento.Estaintençãosejustificariaexatamentenoesforço

deexamedadependênciaemsituaçõesconcretas:

“Nos trabalhos que escrevi sobre a dependência existe uma duplaintenção crítica. Por um lado (...) critica-se as análises dodesenvolvimentoqueabstraemdoscondicionamentossociaisepolíticosdo processo econômico e critica-se as concepções evolucionistas (dasetapas) e funcionalistas (especialmente a teoria da modernização) dodesenvolvimento.(...)Poroutrolado,acríticaseorientaparamostrar(...)que a análise ‘estrutural’ dos processos de formação do sistemacapitalista só tem sentido quando referida historicamente” (Cardoso,1971[1970],p.27).

Oensaiodeinterpretaçãosociológicapublicadoem1967percorriaumconjunto

amplo de casos históricos, os quais Cardoso e Faletto buscavam aproximar mais ou

menosentresieinterpretarnachavedarelaçãocentro-periferiaeparaosquaisseria

fundamentalavaliaracapacidadepolíticados“produtores locais”. Estaargumentação

era apresentada nos dois “elementos” em função dos quais Cardoso e Faletto

procuravam“abstrairocursoconcreto”dahistóriadospaíseslatino-americanos:

“a) Do ponto de vista do conjunto do sistema capitalista mundial (...)relacionando-secomaperiferiaatravésdanecessidadedoabastecimentode matérias primas. (...) O centro hegemônico controlavafundamentalmente a comercialização da periferia, mas não substituía aclasseeconômicalocalqueherdaradacolôniasuabaseprodutiva.(...)b)Doquedissemosinfere-sequearupturadopactocolonialpermitiaofortalecimento dos grupos produtores nacionais, posto que o novopolo

Page 15: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

hegemônico não interferia e, pelo contrário, em certos casos, até podiaestimularaexpansãodosistemaprodutivonacional.Estefortalecimentodependiadacapacidadedosprodutoreslocaisparaorganizarumsistemade alianças com as ‘oligarquias locais’ que tornasse factível o Estadonacional.(...)”(CardosoeFaletto,1970[1967],p.42-43)

Era justamente a argumentação fundamentada numa relação econômica de

controledaperiferiapelo“centrohegemónico”,aliadaaoestudodo interno focalizado

nasburguesiaslocaisesuacapacidadedealiançaspolíticasqueWeffortcolocavacomo

alvodesuacrítica.Emsuaresposta,Cardosorealizouumduplomovimento.Distanciou-

sedalinguagemeconômicaesociológicacomaqualdiscutiraadependênciaem1967,

procurandoformularsuashipótesesemtermoshistóricoseprocessuais,edeslocousua

análise dos ambientes nacionais para uma dimensão relacional, menos evidente no

ensaiode1967.Apresentou,então,comopressupostos:

“a) as análises do processo de constituição da periferia da ordemcapitalistainternacionaldevemexplicaradinâmicadasrelaçõesentreasclasses sociais no nível interno das nações (no caso das situações dedependênciamantidasapartirdaexistênciadeEstadosnacionais).b) os condicionantes externos, isto é, o modo de produção capitalistainternacional, ‘o Imperialismo’,omercadoexternoetc. (ouseja, tantoosaspectos econômicos como os políticos do capitalismo), reapareceminscritosestruturalmentetantonaarticulaçãodaeconomia,dasclassesedo Estado com as economias centrais e com as potências dominantes,como na articulação dessas mesmas classes e no tipo de organizaçãoeconômica e política que prevalece no interior de cada situação dedependência.”(Ibidem,p.29).

Oparalelismoentreasduassériesdeproposiçõeséevidente,inclusivenomodo

de apresentação. É possível sugerir que Cardoso tenha procurado matizar sua

interpretaçãodadependência,reduzindoopesodoesquemasociológicoeenfatizando

suadimensãohistoricista.Adefiniçãoinicialdaperiferiacomofontedematériasprimas

controladapelocentroésubstituídapela ideiadeumaanálisecentradana“dinâmica”

dasrelaçõesentreasclassessociaisnointeriordasnações.Aideiade“rupturadopacto

colonial”, por sua vez, centrada no “fortalecimento da capacidade dos produtores

nacionais” e na aliança destes com oligarquias locais para formar o Estado, é agora

Page 16: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

apresentada como “condicionantes externos” que, de alguma forma, se inscrevem

“estruturalmente”nasrelaçõespoliticaseeconômicasentreasclasses,tantoparafora

comonointeriordecadanação.

EmsuacríticaaotrabalhodeCardoso,Weffortdiscutiraadifusãodacategoriade

uma “dependência estrutural” dos países latino-americanos em relação aos países

centraisnopós-guerra.ParaWeffort,inicialmenteousodaexpressãopretenderaforjar

um novo conceito – não apenas um “novo rótulo” para a “velha ideia de país

semicolonial”–masasambiguidadesiniciaisdestainiciativanãoteriamsidosuperadas.

Por estemotivo dependência passara a cumprir uma função “ideológica”, ao lado de

termos como “nação” e “nacionalismo”. Estas últimas seriam, a seu ver, noções

ultrapassadashistóricaepoliticamente,porisso“ideológicas”,contrapostasaodesafio

deelaboraçãodeuma“teoria”declasse.

Paratal,Weffortpropunhaprocederporumaconcepçãoqueconsiderassedois

níveisdeseparaçãocategórica:umprimeiro,entreclasseenação;e,ainda,entreteoria

eideologia.Estaduplacisãoepistemológicasesobrepunhaàanálisepolíticadequeas

classestrabalhadoras–particularmenteooperariadonoBrasil–sinalizavamaruptura

com o compromisso populista no mundo sindical. Em outras palavras, as greves de

1968expressavam,emsuavisão,aemergênciadeumaconsciência“verdadeira”–ou,

aomenos,maisoriginal–doprocessohistórico,emcontrastecomaconsciência“falsa”

– ou limitada – dos intelectuais dependentistas, associados ainda ao paradigma

modernizante.20

Nestesentido,Weffortproblematizouousodecategorias“globais”,quetendiam

ahomogeneizar–dadaasuaprópria imprecisão–asrealidadeshistóricasdospaíses

latino-americanos, entre elas as noções “subdesenvolvimento”, “desenvolvimento

nacional”e,possivelmente,tambémade“dependência”.21Anoçãodedependênciateria

tidooméritodeformularumconjuntodeproblemasespecíficosarespeitodasrelações 20Esta nova chave de leitura foi seguida da elaboração porWeffort de uma nova e polêmicaagendadepesquisasobreoperíodoanterioraogolpemilitar,1945-1964,noqualinvestigouadinâmicasindicaleaatuaçãodoPartidoComunistaBrasileironestecontextodo“sindicalismopopulista”(cf.Weffort,1973[1972]).21HáalgodeirôniconacríticadeWeffortaocaráterexcessivamenteenglobantedoconceitodedependêncianamedidaemque,anosmaistarde,objeçõessemelhantesserãoformuladaspeloscríticosdoconceitode“populismo”(cf.Roxborough,1984).

Page 17: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

entreanaçãoeasclassessociais,esobreasrelaçõesdeproduçãonocapitalismolatino-

americano(Ibidem,p.12). Contudo,aambiguidade intrínsecae insolúvelaoconceito

de dependência o impediria de oferecer respostas renovadoras ao problema do

desenvolvimento latino-americano e, assim, de promover uma nova unidade teórico-

prática.

Talambiguidadenãoseresolveria,emseumododever,peladistinçãofeitapor

CardosoeFalettoentreabordagens [approachs]de “dependênciaexterna”–referente

às relações políticas entre sociedades latino-americanas e países centrais, comum ao

pensamento cepalino – e de “dependência estrutural”, que envolveria também a

estrutura de classes e as relações de produção em cada país. A seu ver, não seria

suficiente privilegiar a “dependência estrutural” diante da “externa” para tratar as

relaçõesentreclassessociaisemumcontextodependente,jáqueoefeitopráticodesta

escolhaseriaodenegaroproblemapolíticodadependência.

Apesar das críticas, passagens importantes da primeira versão do texto de

Weffort – transcritas por Cardoso em seu comentário22– permitem perceber que a

atitudedocientistapolíticoemrelaçãoanoçãodedependêncianãoeraadenegação,

quesóacontecerianaversãofinaldotexto.Acomparaçãodapassagemtranscritapor

CardosocomotextopublicadoporWeffortem1971evidenciamudançassubstantivas

nos argumentos de crítica às possibilidades teóricas da dependência; e, ainda mais

importante, mostra uma tentativa inicial de reforma ou ao menos localização do

conceitodedependênciaemumaabordagemteóricadasclassessociais.

22Naversãorevisadaprapublicação,CardosochamaaatençãoalgumasvezesparamudançasqueWeffortpromoveuparapublicaçãodotexto.Nãofoipossívelteracessoaversãooriginaldacomunicaçãoedaréplica,possivelmenteperdidas.

Page 18: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

PrimeiraversãodotextodeWeffort,

apresentadaemnovembrode1970SegundaversãodotextodeWeffort,

revisadaparapublicaçãoem1971

“E ao nível geral,supranacional, ao nível das

relações de produção, que a questão das

possibilidades de desenvolvimento do

capitalismo na América Latina deve ser

colocada domesmomodo que é a este nível

que seria possível tentar encontrar algum

lugar teórico definido para uma ‘teoria de

dependência’. Ou seja, é a este nível que a

‘teoria da dependência’ pode aparecer

como teoria explicativa e onde também se

podeobteralgumasugestãoparaentender

sua incapacidadede ir alémdaspremissas

nacionais. Por mais que se fale em

dependência interna é inevitável voltar à

questão da dependência externa. Em outras

palavras,a‘teoriadadependência’parecegirar

em torno de algum tipo de teoria do

imperialismo:aquestãoésaberdequetipode

teoria” (apud Cardoso, 1971, p. 37. Grifos

adicionados).

“Éaoníveldasrelaçõesdeprodução,ondenão

há qualquer razão para assumir a forma

nacionalcomonecessária,queaquestãodas

possibilidades do desenvolvimento do

capitalismo (e alternativamente a questão das

possibilidades da revolução socialista) na

AméricaLatinadeve ser colocada.Domesmo

modo, é a este nível que seria possível

tentar encontrar algum lugar teórico

definido para o 'problema nacional'

apontado pela ‘teoria da dependência’.

Alémdisso,éaestenívelqueosproblemas

propostos pela ‘teoria da dependência’

podemencontrarsoluçãoemalgumateoria

realmente explicativa. É onde também se

pode obter alguma sugestão para entender as

concessões feitas aos ‘modelos clássicos’ e às

suas premissas nacionais. Neste ponto, o que

meparecenecessário(pormaisquesefaleem

dependência interna) é voltar à velha questão

da dependência externa. Em outras palavras,

defatoa‘teoriadadependência’giraemtorno

de algum tipo de teoria do imperialismo. A

questão é saber: que tipo de teoria?

Socialista ou pequeno-burguesa radical?”

(Weffort,1971,p.19-20.Grifosadicionados).

Na comparação entre a primeira e a segunda versão do texto, é possível

distinguirduasmudançasimportanteseumainclusãodetexto(sinalizadasemnegrito).

Page 19: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

Na versão de 1970, Weffort estabelece que a questão das “possibilidades de

desenvolvimentodocapitalismonaAméricaLatina”deveriaserdiscutidaemumplano

“supranacional”, o único no qual seria possível apreender as relações de produção.

Defineesteplanocomoolugarnoqualateoriadadependênciapoderiaencontrarum

“lugarteórico”eseconfigurarcomo“teoriaexplicativa”.Aquestãoseria,então,discutir

quetipodeteoriamaisamplaabrigariaateoriadadependência.

Na segunda versão, a ideia do plano supranacional é suprimida as relações de

produção são definidas como aquelas para as quais “não há qualquer razão para

assumira formanacional”.Ao “nível”dasrelaçõesdeprodução, continua,poderiaser

definido um “lugar teórico” para o “’problema nacional’ apontado pela ‘teoria da

dependência’”.Nanovaformulação,osproblemaspropostospelateoriadadependência

encontrariam solução em outra teoria, “realmente explicativa”. Em oposição à teoria

nacionalista, pequeno-burguesa e radical da dependência, conclui, seria necessário

voltaraoproblemada“dependênciaexterna”eelaborarumateoriasocialista(Ibidem,

p.9-10n).

EmsuareaçãoàsduasversõesdotextodeWeffort,Cardosorebateua ideiade

que sua abordagem seria uma continuidade radicalizada do nacional-

desenvolvimentismo. Para reforçar sua defesa, recupera em uma nota a seguinte

passagemdoensaioescritocomFaletto:

“Nãoseriasuficientenemcorretoproporasubstituiçãodosconceitosdedesenvolvimento e subdesenvolvimento pelos de economia central eeconomiaperiféricaou–comosefossemumasíntesedeambos–pelosdeeconomias autônomas e economias dependentes. De fato, são distintastanto as dimensões a que estes conceitos se referem quanto suasignificação teórica. A noção de dependência alude diretamente àscondições de existência e funcionamento do sistema econômico e dosistema político, mostrando a vinculação entre ambos, tanto no que serefereaoplano internodospaísescomoaoexterno” (CardosoeFaletto,1970[1967],p.27;apudCardoso,1971[1970],p.29n).

ParaCardoso,Weffortdesconsideravaporcompletooesforçodeseustrabalhos

de1966-1967emsedesprenderexplicitamentedoeconomicismoeevolucionismoque

predominavamentreosintelectuaiseanalistaslatino-americanos,comotambémentre

osbrasileiros, fossemcepalinosoumarxistas.Mais importante ainda,Weffortparecia

Page 20: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

não considerar necessário ou eficaz o esforço de Cardoso e Faletto em dialogar na

linguagem destes intelectuais e enfrentar os dilemas do desenvolvimento em seu

próprio campo, o que não poderia ser feito sem a incorporação de uma boa dose de

ambiguidadenaselaboraçõessobreadependência.

Weffort via a “continuidade” evolucionista e economicista da noção de

dependênciaemrelaçãoao“desenvolvimentismo”e“nacionalismo”reformistas,oque

Cardosobuscouafastarargumentandoa favordeumadimensãorelacionalehistórica

doconceito.Restava,então,defenderaestratégiaadotada,dadisputadalinguagemeo

léxico“desenvolvimentista”.

EmsuadefesaàscríticasdeWeffort, Cardosoargumentouquenãopretendera

substituir “dependência externa” ou “imperialismo” por outro conceito abstrato.

Tampoucoteriapropostouma“teoriadadependência”comumcarátertotalizante.Seu

objetivo fora mais modesto, o de promover um ponto de inflexão no conjunto das

análises sobre o desenvolvimento nos países latino-americanos. Este ponto consistia

justamentenoprincípiorelacionaldadependência (“quemdepende,dependedealgo,

está condicionado, não é condicionante”), capaz de criar um conjunto de problemas

teóricos e analíticos no qual as determinações pudessem ser compreendidas como

essencialmenterecíprocas.Inflexãoestafundamentalmentepolítica:

“Pretender elevar a noção de dependência à categoria de conceitototalizanteéumnonsens.E,rigorosamente,nãoépossívelpensarnuma‘teoria da dependência’. Pode haver uma teoria do capitalismo e dasclasses,masadependência,talcomoacaracterizamos,nãoémaisdoquea expressão política, na periferia, do modo de produção capitalistaquandoesteélevadoàexpansãointernacional.”(Cardoso,1971[1970],p.32.Grifoadicionado).

Emsuaargumentação,Weffortoscilaraentreadefesadacontribuiçãooriginalde

Cardoso e Faletto ao problemado desenvolvimento capitalista naAmérica Latina e a

crítica da manutenção do binômio modernizante “externo/interno” como base da

reflexãosobreadependência.Aseuver,aindaquefossepossívelconcordarcomaideia

da “existência de países, nações economicamente dependentes e politicamente

independentes”, a dependência mantivera “a reprodução do problema no plano do

conceito”,sendoincapazdetraçarumaestratégiaparasoluciona-lo(Ibidem,p.13).

Page 21: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

OdebateeentreCardosoeWeffortdesembocavaemumimpasse.Oconceitode

dependênciadesafiaradefinitivamenteas “teoriasconvencionaisdodesenvolvimento”

mas, ao fazer isso, se via incapaz de se desvincular de sua linguagem e pressupostos

políticos.Aexigênciapolíticaepráticadeumateoriasocialistaeclassistaparapensaro

desenvolvimentocapitalistanaperiferia,porsuavez,nãoencontravaumterrenofértil

parasurgireconquistarsuaindependência.

Consideraçõesfinais

Opresentetrabalhoprocuroureconstruirasdiferentesfasesdarelaçãoentreo

pensamento político de FranciscoWeffort e a problemática da dependência. Em um

primeiromomento,deconstituiçãodeumléxicopolíticolatino-americanocentradonas

categorias de “dependência” e “populismo”, o cientista político brasileiro incorporou

umaperspectivadependentistaemsuasanálisessobreopopulismo,emespecialsoba

influência de Fernando Henrique Cardoso, quem também empregou o conceito de

“populismo”, trabalhadoporWeffort, em sua interpretaçãoda “dependência”. Emum

segundomomento,contudo,sobaconjunturadasmobilizaçõesoperáriaseestudantis

de1968,Weffortdeslocousuaspreocupaçõesdopopulismocomorelaçãolíder/massas,

paraasrelaçõesentretrabalhadores,Estadoesindicatos.Essainflexão,porsuavez,foi

acompanhadadetentativassucessivasdecríticadasperspectivasdependentistasdeum

modogeral,atéopontodeoporadependênciaaoquepoderiaserumaanáliseclassista

dodesenvolvimentonaAméricaLatina.

Uma primeira tentativa explícita do distanciamento da “dependência”, como

visto, se tornou explícita em novembro de 1970 ocorre o debate com Fernando

HenriqueCardosonoChile.Emabrilde1971,naversãopublicadadestacomunicação,

Weffortcarregouaindamaisastintasnoargumentodaimpossibilidadedadependência

oferecer uma alternativa classista para compreensão do desenvolvimento.Nomesmo

período, em março de 1971, apresentou outra comunicação, agora sobre referidas

grevesdeOsascoeContagem,resultadodeuma“pesquisadehistóriasocialbrasileira”

Page 22: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

quedesenvolviaàépocanoCEBRAP(Weffort,1972a[1971],p.3).23Estruturadasobre

novas fontes intelectuais – dentre as quais é interessante assinalar a presença de

referências a Antonio Gramsci –, distintas daquelas usadas anteriormente em seus

estudossobreopopulismo,aênfasedestacomunicaçãoestavaemmostraranovidade

destasgrevesemrelaçãoàspráticasedinâmicassindicaisconsolidadasnoBrasilantes

de1964.Paratal,Weffortassinalou:

“Omovimentooperárionãopodeservistoapenas comodependentedahistóriadasociedade,mastambémcomosujeitodesuaprópriahistóriae,comotal, capazde influirsobreasociedade.Ésobretudonestasegundoperspectiva histórica que um estudo sobre as greves de 1968 seapresentacomopertinente.”(Ibidem,p.10)

Também foi nesta comunicação que Weffort apresentou, possivelmente pela

primeira vez, a ideia de “sindicalismo populista” (Ibidem, p. 27) para se referir às

práticassindicaiscomasquaisacreditavaqueasgrevesde1968haviamrompido.Em

todocaso,éinteressanteassinalarquemesmonestetextosuaargumentaçãocaminhou

no sentido de reconhecer uma dupla-face da experiência política do movimento

operário,dependente“dahistóriadasociedade”mastambémautônomo,“sujeitodesua

própriahistória”,comdestaqueparaestasegundacaracterística.

No ano seguinte, Weffort defendeu sua tese de livre-docência que tinha por

objeto justamente o surgimento e a crise do “sindicalismo populista” no Brasil entre

1945-1964(Idem,1972b).AdifícilcontrovérsiacomCardoso,nestesentido,coincidia

com constituição de uma nova agenda de pesquisa, na qual o binômio “autonomia-

heteronomia” da classe operária brasileira adquiriu centralidade e conotação

específicos.AcríticadeWeffort sedetinhaagorasobreas insuficiênciasda “teoriada

modernização”,do“marxismoclássico”eda“teoriadadependência”emreconhecera

passagemdaheteronomia(oudependência)àautonomiapopular:

“O problema da autonomia-heteronomia do comportamento operário esindicalconstituionúcleoprincipaldesteestudo.(...)Apropostadeumacríticaaesteprocedimentocomparativo[dateoriadamodernizaçãoedateoriamarxistaclássica]talvezsejaavirtudemaiordachamada‘teoriada

23Intitulada “Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco 1968”, foi apresentada no“SemináriosobreParticipaçãoSocial”realizadoemLima(Peru)peloInternationalInstituteforLabourStudies,ligadoaOITeàONU.Publicadaem1972pelosCadernosCebrap.

Page 23: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

dependência’.(...)Deixandodelado,porém,osresultadoscríticos,ofatoéque deste lado também não se avançou muito no sentido de umconhecimento positivo das classes sociais nos países subdesenvolvidos.(...)Talvezfossepossíveldizerqueestemovimentocríticonãoteveaindatempo suficiente par passar da crítica a afirmações originais.” (Idem,1972b,p.v,x).

Asteoriasdadependência,emparticular,apesardecompartilharemdacríticaàs

perspectivas funcionalistas emarxistas clássicas, acabavam por reproduzir os limites

destas tradições intelectuais. A noção de dependência – e , em alguma medida, a d

populismo – precisavam, em sua opinião, ser investigados em suas limitações, como

crítica do condicionamento da experiência política dos trabalhadores ao espaço

nacional,adotandoportantoanaçãocomopressupostoemrelaçãoaocomportamento

declasse.24Alémdisso,eraprecisaroslimitesdamaneiracomoasclassessociaiseram

descritaseanalisadasatéentão:

“Éinteressanteobservarcomoasduastendências,especialmentea‘teoriamarxista clássica e a ‘teoria da dependência’ passam quase semmediações de proposições de caráter estrutural sobre as posiçõesocupadas pelas classes na estrutura social a proposições de caráterpsicossocial que buscam caracterizar diretamente atributos da condutaindividual. Não é casual, portanto, a oscilação da sociologia brasileira elatino-americananestemovimentopendularentreosensaiosvagamentehistóricosmasemrealidadeglobalizantesedirigidosprimordialmenteàsdimensões estruturais, e o survey inevitavelmente dirigido à análise deatributosindividuais”(Ibidem,p.xi)

A reorientação da agenda de pesquisa deWeffort para a trajetória sindical no

Brasilesuaatividadecomopesquisadoraolongodosanos1970,portanto,sãomelhor

compreendidas se pensada no interior desta mudança-chave de perspectiva. As

formulaçõesarespeitodo“sindicalismopopulista”nascemdacríticadadependênciae

da necessidade de alargar a experiência populista para além da relação líder-massa,

essencialmente eleitoral. Era preciso encontrar um objeto no qual a atividade das

24Aqui, ainda que o autor não faça remissões bibliográficas, ambas as alternativas políticasparecem estar associadas as abordagens, de Cardoso e Faletto e de André Gunder Frank,respectivamente. Afinal, Dependência e Desenvolvimento na América Latina e Capitalism andUnderdeveloppment in Latin America são os mais extensamente discutidos na intervenção deWeffortsobrea“Teoriadadependência”(cf.Weffort,1971).

Page 24: Populismo, classe e nação: Francisco Weffort e a teoria da

classespopularespudesseseexpressardemaneira independente,emrupturacomas

fórmulasanteriores.Asgrevesoperáriasde1968pareciamoferecersubstratoparaesta

novaargumentação,maseraprecisorecuperarseusentidohistórico.

JustamenteporestemotivoécuriosoqueemOpopulismonapolíticabrasileira,

coletâneapublicadacomoobjetivodeoferecerumaversãodefinitivadesuasreflexões

sobre o tema ao final dos anos1970,Weffort tenha – nanota introdutória ao livro –

minimizado a presença da “teoria da dependência” em seu pensamento como algo

“retórico” (Idem, 1978, p. 11-12). A reconstituição da trajetória dos artigos, agora

convertidos em capítulos, mostra por um lado que o lugar da dependência nas

formulaçõesdeWeffort sobreopopulismoao longodasdécadasde1960e1970não

erasuperficialcomoanotalevaacrer.Mostra,ainda,queasinterpretaçõesteóricase

analíticassobreopopulismoalicontidasnãosãounívocasetampoucocontínuas.

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