origem,produção e composição quimica da cachaça

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3 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 18, NOVEMBRO 2003 QUÍMICA E SOCIEDADE A seção “Química e sociedade” apresenta artigos que focalizam diferentes inter-relações entre Ciência e sociedade, procurando analisar o potencial e as limitações da Ciência na tentativa de compreender e solucionar problemas sociais. Origem, produção e composição química da cachaça Recebido em 3/1/02, aceito em 9/10/03 Uma pequena dose de história Não teria havido a cachaça 1 sem a cana-de-açúcar, uma espécie vege- tal originária da Ásia e da Oceania (Figura 1), inicialmente usada no Bra- sil Colônia para a produção de rapa- dura nos engenhos. Para extrair o suco da cana, usavam-se engenho- cas de madeira (moendas) movidas por animais, pelos escravos (Figura 2) ou pela força da água. Para separar o álcool do suco de cana fermentado, utilizavam-se os alambiques, que eram em grande parte feitos de barro (Guerra e Simões, 2001, p. 125, 127). Segundo fontes documentais dos anos de 1762 e 1817, eram obtidos dois tipos de bebida destilada: uma provinha do caldo de cana fermenta- do e se chamava aguardente de ca- na; a outra era obtida a partir do que restava nas caldeiras dos engenhos e era chamada aguardente de mel ou cachaça (Zeron, 2000, p. 56, 58). Auguste de Saint-Hilaire, em “Viagens pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais” (1817), registrou o gos- to geral pela aguardente, incluindo brancos, mulheres, índios e negros. Paulo C. Pinheiro, Murilo C. Leal e Denilson A. de Araújo A cachaça é uma bebida genuinamente brasileira, com teor de etanol entre 38% e 54% em volume, a 20 °C, obtida através da destilação do caldo de cana-de-açúcar fermentado. No presente artigo, são descritos alguns de seus aspectos históricos, sociais, econômicos, sua produção e sua composição química. cachaça, produção, composição química É evidente, em seus registros, o vício (por vezes desastroso) desses dois últimos pela bebida (Ibidem, p. 59). Diante da predileção popular pela cachaça, que era mais barata e abundante que as bebidas portugue- sas, muitos engenhos passaram a valorizar mais a sua produção do que a do açúcar. Diante disso, a Compa- nhia de Comércio recorreu à Ciência do Conselho da Coroa e, em 13 de setembro de 1649, a Carta Real proibiu a fabricação da bebida em to- da a Colônia. Entretanto, uma pro- dução oculta e teimosa continuou se desenvolvendo. Segundo Cascudo (1968, p. 26, 27), esse ato da Coroa foi inoperante, ineficaz e desastroso, impelindo à clandestinidade e ao con- trabando da bebida. Em face disso, e sob forte pressão da Colônia, o Rei D. Afonso VI suprimiu a proibição em 1661, mas logo vieram as taxações. Em 1756, os impostos de comerciali- zação da aguardente contribuíram para a reconstrução de Lisboa, aba- tida por um grande terremoto. Existia também o subsídio literário imposto à produção da bebida, destinado às faculdades na Corte. Como conse- qüência, a bebida se transformou em verdadeiro símbolo dos ideais de li- berdade junto aos Inconfidentes e ou- tros movimentos revolucionários. No tempo da transmigração da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, a ca- chaça já era considerada um dos principais produtos da economia e era moeda corrente para a compra Figura 1: Aquarela sobre papel de Jean Baptiste Debret: Canne à sucre (cana-de-açúcar).

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Page 1: Origem,Produção e Composição Quimica da Cachaça

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 18, NOVEMBRO 2003

QUÍMICA E SOCIEDADE

A seção “Química e sociedade” apresenta artigos que focalizam diferentes inter-relações entre Ciência e sociedade,

procurando analisar o potencial e as limitações da Ciência na tentativa de compreender e solucionar problemas sociais.

Origem, produção e composição química da cachaça

Recebido em 3/1/02, aceito em 9/10/03

Uma pequena dose de história

Não teria havido a cachaça1 sema cana-de-açúcar, uma espécie vege-tal originária da Ásia e da Oceania(Figura 1), inicialmente usada no Bra-sil Colônia para a produção de rapa-dura nos engenhos. Para extrair osuco da cana, usavam-se engenho-cas de madeira (moendas) movidaspor animais, pelos escravos (Figura2) ou pela força da água. Para separaro álcool do suco de cana fermentado,utilizavam-se os alambiques, queeram em grande parte feitos de barro(Guerra e Simões, 2001, p. 125, 127).Segundo fontes documentais dosanos de 1762 e 1817, eram obtidosdois tipos de bebida destilada: umaprovinha do caldo de cana fermenta-do e se chamava aguardente de ca-na; a outra era obtida a partir do querestava nas caldeiras dos engenhose era chamada aguardente de mel oucachaça (Zeron, 2000, p. 56, 58).Auguste de Saint-Hilaire, em “Viagenspelas Províncias do Rio de Janeiro eMinas Gerais” (1817), registrou o gos-to geral pela aguardente, incluindobrancos, mulheres, índios e negros.

Paulo C. Pinheiro, Murilo C. Leal e Denilson A. de Araújo

A cachaça é uma bebida genuinamente brasileira, com teor de etanol entre 38% e 54% em volume, a 20 °C,obtida através da destilação do caldo de cana-de-açúcar fermentado. No presente artigo, são descritos algunsde seus aspectos históricos, sociais, econômicos, sua produção e sua composição química.

cachaça, produção, composição química

É evidente, em seus registros, o vício(por vezes desastroso) desses doisúltimos pela bebida (Ibidem, p. 59).

Diante da predileção popular pelacachaça, que era mais barata eabundante que as bebidas portugue-sas, muitos engenhos passaram avalorizar mais a sua produção do quea do açúcar. Diante disso, a Compa-nhia de Comércio recorreu à Ciênciado Conselho da Coroa e, em 13 desetembro de 1649, a Carta Realproibiu a fabricação da bebida em to-da a Colônia. Entretanto, uma pro-dução oculta e teimosa continuou sedesenvolvendo. Segundo Cascudo(1968, p. 26, 27), esse ato da Coroafoi inoperante, ineficaz e desastroso,

impelindo à clandestinidade e ao con-trabando da bebida. Em face disso,e sob forte pressão da Colônia, o ReiD. Afonso VI suprimiu a proibição em1661, mas logo vieram as taxações.Em 1756, os impostos de comerciali-zação da aguardente contribuírampara a reconstrução de Lisboa, aba-tida por um grande terremoto. Existiatambém o subsídio literário impostoà produção da bebida, destinado àsfaculdades na Corte. Como conse-qüência, a bebida se transformou emverdadeiro símbolo dos ideais de li-berdade junto aos Inconfidentes e ou-tros movimentos revolucionários. Notempo da transmigração da Cortepara o Rio de Janeiro, em 1808, a ca-chaça já era considerada um dosprincipais produtos da economia eera moeda corrente para a compra

Figura 1: Aquarela sobre papel de Jean Baptiste Debret: Canne à sucre (cana-de-açúcar).

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 18, NOVEMBRO 2003Origem, produção e composição química da cachaça

de escravos na África, sendo tambémusada como alimento complementarna trágica dieta das travessias doAtlântico (Cascudo, 1968, p. 25, 26).

Durante o século XIX, houve noBrasil um período marcado por sériosproblemas sociais e intensificou-se adiscriminação em relação à cachaça.O Movimento Modernista de 1922 em ú s i c a sfamosas como“Camisa Listra-da” (1935), “Sevocê pensa quecachaça éágua, cachaçanão é águanão...” (1953) eo samba-enredo da escola de sambaImperatriz Leopoldinense, campeãem 2001, representam algumasmanifestações populares contrárias aessa discriminação.

Estima-se que existem atualmenteno Brasil mais de um milhão e meiode trabalhadores ao redor da bebida,cerca de 40 mil produtores e cincomil marcas disponíveis para o consu-mo. Muitos produtores estãoorganizados em associações ecooperativas e há legislação para pro-duzir e comercializar a cachaça nopaís. Cascudo (1968, p. 54) a des-creveu como a mais comunitária dasbebidas, sendo usada em festas,cerimônias tribais, cultos religiosos e

oferendas votivas aos mortos, muitoalém das terras brasileiras.

Produção

Segundo o Programa Brasileiro deDesenvolvimento da Cachaça2, o paísproduziu 1,3 bilhão de litros/US$ 500milhões e exportou 11 milhões delitros/US$ 9 milhões no ano de 2001.

A cachaça é a bebidadestilada mais consumidano Brasil, na forma pura(Figura 3) ou misturadacom frutas (Figura 4), talcomo a “caipirinha”, comoé preferida no exterior.

Há dois modos deprodução: o artesanal e o

industrial. Novaes (1996) mencionaque algumas unidades industriaisproduzem mais do que 300 mil litros/dia e as unidades menores entre 100e 1.000 litros/dia, sendo que cerca de95% da produçãonacional provêm dasdestilarias de médioe grande porte.

Após o plantio,colheita e moagemda cana, processa-se a fermentação deseu caldo. É comumajustar a concen-tração de açúcar nocaldo entre 10° Brix e 14° Brix3, idealpara a fermentação; para isso,

normalmente se efetua a diluição comágua. O modo artesanal utiliza ofermento natural4 presente no caldoda cana e leva cerca de 24 horas paracompletar-se. Costuma-se acrescen-tar fubá, milho moído cru ou tostado,farelo de arroz e suco de limão aocaldo para auxiliar o desempenho do

fermento. Nas gran-des indústrias o pro-cesso é mais rápido(cerca de 5 horas),devido à adição defermento de panifi-cação. Adicionam-se, também, vitami-nas, substânciasnitrogenadas, à basede fósforo e sais

minerais, para favorecer o crescimen-to e a atividade da levedura; bac-tericidas e antibióticos, para minimizara proliferação de bactérias contami-nantes; substâncias antiespumantes,para evitar a formação de espumas,e ácidos fixos, para ajuste do pH en-tre 4,5 e 5,0 (Faria, 1995; Novaes,2000).

A enzima invertase das levedurasdesdobra a sacarose presente no cal-do de cana em glicose e frutose, quesão depois degradadas em etanol edióxido de carbono5 (Laluce, 1995):

C6H12O6 → 2CH3CH2OH + 2CO2

Através desse processo, as leve-duras obtêm energia para o seu meta-bolismo.

Concluída a fermentação, proces-sa-se a destilação do vinho da cana.Nessa etapa, ocorre a separação desubstâncias, assim como algumasreações químicas dentro dos destila-

Figura 2: Aquarela sobre papel de Jean Baptiste Debret: Machine à exprimer le jus de lacanne à sucre (Engenho manual que faz caldo de cana), Rio de Janeiro, 1822.

Figura 3: Copo com cachaça e cana-de-açúcar cortada (Fonte: Revista GloboRural n. 211, foto de Ernesto de Souza).

Estima-se que existem

atualmente no Brasil mais

de um milhão e meio de

trabalhadores ao redor da

bebida, cerca de 40 mil

produtores e cinco mil

marcas disponíveis para o

consumo

A enzima invertase das

leveduras desdobra a

sacarose presente no caldo

de cana em glicose e

frutose, que são depois

degradadas em etanol e

dióxido de carbono

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dores (Boza e Horii, 1998). No modoartesanal, esses aparelhos são feitosde cobre (Figuras 5 e 6) e são aqueci-dos em sua base pela queima dobagaço da cana ou de madeira. Umacoluna oca acoplada à parte supe-rior da panela do alambique favorecea condensação de vapores de baixoteor alcoólico, devolvendo-os, por re-fluxo, à panela. Isto aumenta o teoralcoólico nos vapores e devolve aovinho substâncias de baixa volatili-dade que atribuem mau gosto e aci-dez elevada ao destilado. Em contatocom o vinho, essas substânciassofrem reações químicas induzidaspelo calor e ação catalítica do cobre,formando outras menos prejudiciais(Novaes, 2000). Esse dispositivo estáconectado a uma tubulação encur-vada como um “pescoço de cisne”,onde irá ocorrer uma condensaçãoparcial dos vapores e a sua conduçãopara a serpentina, onde a condensa-ção se completa. Como esse apare-lho opera de modo descontínuo, acada “alambicada” o destilado éseparado em três porções: a primeiraé a cabeça (5% a 10% do destiladototal); a segunda o coração (80% dodestilado) e a terceira a cauda. Acabeça e a cauda são descartadasou incorporadas em um novo vinho aser destilado, enquanto o coraçãocorresponde à cachaça propriamentedita, contendo ao redor de 47,5% v/vde etanol, a 20 oC. O teor de etanolno destilado é medido utilizando umdensímetro que o expressa em oGL(1o GL é aproximadamente igual a 1%v/v) ou em unidades Cartier.

A limpeza dos equipamentos usa-dos na produção de cachaça influisobremaneira na qualidade da bebi-da. Durante o processo de destilação,forma-se uma substância esverdeadanas paredes dos alambiques de co-bre, o “azinhavre” [CuCO3.Cu(OH)2],resultante de sua oxidação, que é dis-solvido por vapores ácidos, contami-nando o destilado. Por isso, o alambi-que tem de ser lavado com água ecaldo de limão, que por sua naturezaácida contribui para a dissolução docomposto:

CuCO3.Cu(OH)2(s) + 4H+(aq) →2Cu2+(aq) + 3H2O(l) + CO2(g)

No processo industrial a destila-ção é conduzida nas colunas de des-tilação (Figura 7). Trata-se de um cilin-dro de aço inoxidável6, com diâmetrovariável em função de sua produtivi-dade horária, e altura que varia entrequatro e cinco metros, provido inter-namente com bandejas contendo aschaminés, as calotas e os sifões. Co-loca-se o vinho da cana em sua partesuperior, de modo contínuo, de ondevai descendo de bandeja a bandeja,nas quais ocorre a vaporização do ál-cool devido ao aquecimento do siste-ma por vapor de água ou outras fon-tes. Na base da coluna sai o vinhoto,resíduo praticamente isento de álcool.No topo emanam os vapores conten-do álcool e demais substânciasvoláteis, que são conduzidos atravésde um condensador, onde sofremuma condensação parcial, de modo

Figura 4: Drinques de cachaça com frutas(Fonte: folder da Cachaça Samba & Cana).

Figura 5: Alambique de cobre (Fonte:folder da Cachaça Benvinda).

Figura 6: Esquema de um alambique sim-ples.

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que uma fração do condensadoconstitui parte do destilado final,enquanto a outra retorna ao interiorda coluna. O sistema dispõe de umcondensador auxiliar para liquefazeros vapores que não se condensaramanteriormente. Os destilados alcoó-licos provenientes dos dois conden-sadores passam juntos pela resfria-deira e saem do equipamento. Apósser armazenado em um tanque de fer-ro revestido com asfalto, o destiladoé diluído com água, adoçado comxarope de açúcar, filtrado e engar-rafado (Figura 8) (Novaes, 2000).

A cachaça recém destilada é dedifícil degustação, apresentandosabor ardente e seco (Faria, 1995).Para melhorar a sua qualidade sen-sorial, convém deixá-la envelhecer emrecipientes de madeira. SegundoBoscolo et al. (1995), a legislaçãobrasileira não estipula um tempo mí-nimo de envelhecimento e consideraenvelhecida a aguardente que conti-ver um mínimo de 20% da bebidaacondicionada em tonéis de madeira,sendo permitida a adição de cara-melo para padronização de cor. LimaNeto e Franco (1994) afirmam que oenvelhecimento é resultado de umasérie de reações químicas e não con-

fere à aguardentequalquer coloração,que se deve àdissolução de subs-tâncias químicasexistentes na ma-deira dos tonéisonde a aguardentefoi acondicionada oudevido à adição desubstâncias quími-cas. O processo deenvelhecimento oumaturação não étotalmente conhe-cido; além da perdade água e etanol pore v a p o r a ç ã o ,ocorrem as seguin-tes reações (Boscoloet al., 1995):

a) oxidação eesterificação: sãoreações de álcoois ealdeídos com oxi-gênio e entre álcoois

e ácidos produzindo ésteres.

álcool + O2 → aldeído

aldeído + O2 → ácido

álcool + ácido → éster

b) extração, decomposição, oxi-dação e esterificação da lignina damadeira: em contato com o etanol, alignina da madeira forma um comple-xo etanol-lignina que se degrada nosálcoois coniferílico e o sinápico. Estesálcoois são oxidados produzindo al-deídos, ácidos e ésteres, que atri-buirão aroma, sabor e cor à bebida.Polifenóis também são formados nadegradação da lignina (Isique eFranco, 2000).

álcool coniferílico + O2 →coniferaldeído + O2 →

vanilina + O2 → ácido vanílico

álcool sinápico + O2 →sinapaldeído + O2 →

siringaldeído + O2 → ácido siríngico

c) eliminação de compostos con-tendo enxofre: tióis e mercaptanaspresentes em pequena concentraçãosão eliminados devido à sua elevadavolatilidade.

Segundo Novaes (1997 e 2000),tanto a cachaça obtida artesanal-mente como a industrial podem apre-sentar problemas: o uso de água debaixa qualidade na produção, a quei-ma da cana antes da colheita, acontaminação do caldo de cana porhidrocarbonetos aromáticos policícli-cos (benzênicos) cancerígenos oriun-dos do contato com o óleo lubrificantedas moendas, o uso de reagentesque não tenham grau alimentício eoutros. Suas considerações sobre amelhoria na produção da bebida nopaís reconhecem o valor do conheci-mento tradicional associado ao co-nhecimento científico. A bidestilaçãoda cachaça é considerada adequadapor diminuir a concentração de com-postos tóxicos, mas apresenta a des-vantagem de elevar o preço final doproduto. Deve-se também evitar oarmazenamento da aguardente nointerior de tanques revestidos comprodutos derivados do petróleo(como o asfalto), substituindo-os porrevestimentos neutros como o açoinoxidável.

Há necessidade de uma revisãodos padrões legais de identidade equalidade e de uma fiscalização maisrigorosa. Lima Neto e Franco (1994)

Figura 8: Engarrafamento de cachaça(Fonte: folder da Cachaça Benvinda).

Figura 7: Esquema de um aparelho de destilação do tipocoluna (Fonte: Sales, 2001, p. 94) (publicada com permissãoda Ed. da UFLA).

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 18, NOVEMBRO 2003Origem, produção e composição química da cachaça

chamam a atenção para os proble-mas de saúde pública e da área co-mercial relacionados com a produçãoda cachaça no Brasil, considerandoque cerca de 40% da aguardente in-gerida no país não élegalmente comer-cializada. A produ-ção de cachaça en-volve uma planta deprodução química,sendo necessária aassessoria de pro-fissional qualificado em Química parao acompanhamento e controle daprodução, especialmente nas peque-nas unidades e naquelas que operamclandestinamente.

Composição química da cachaça

A cachaça é uma solução conten-do várias substâncias químicas. Suacomposição depende da matéria-prima utilizada e do modo como aprodução foi conduzida. Além daágua e do etanol, estão presentes ál-coois, aldeídos, cetonas, ésteres, áci-dos carboxílicos, compostos de enxo-fre e outras substâncias. A Figura 9mostra as fórmulas estruturais de al-guns componentes majoritários pre-sentes e a Tabela 1 oferece uma idéiada concentração dos mesmos.

Um estudo comparativo de aguar-dentes obtidas em alambiques de

cobre e de aço inox mostrou que asdiferenças acentuadas nos teores deacetaldeído, ésteres e álcoois são asprováveis responsáveis pelas diferen-ças sensoriais entre os dois tipos de

bebida (Nascimentoet al.,1998). Emboraexista a inconve-niência de contami-nação da cachaçacom íons de cobre7,alguns pesquisa-dores consideram

importante a presença do metal nosdestiladores, atribuindo-lhe o papelde catalisador na desidrogenação deálcoois a aldeídos e agindo natransformação de compostos sulfura-dos voláteis no destilado, cujo odor esabor são desagradáveis (o principalcomposto dessa classe é o dime-tilssulfeto, que é parcialmente oxida-do a sulfato nos alambiques de co-bre), contribuindo para as qualidadesorganolépticas da bebida.

Além dos compostos mencio-nados, uma grande variedade de es-pécies químicas podem estar presen-tes, como outros álcoois com 3 a 5átomos de carbono e superiores (Cle-to, 2000), outros ácidos carboxílicose ésteres (Cardoso et al., 2003), ou-tros aldeídos (Nascimento et al.,1997), compostos fenólicos e partí-culas suspensas (Isique e Franco,

2000), íons de metais de transição (Li-ma Neto e Franco, 1994), uréia, íonsamônio e aminoácidos (Polastro et al.,2001), carbamato de etila8 (Andrade-Sobrinho et al., 2002) e outras.

Cachaça é cultura, ciência, tecnologia

e educação

A cachaça ocupa uma posição dedestaque na história do Brasil que épouco conhecida e valorizada. Inicial-mente produzida através de tecnolo-gias rústicas e saberes do povo, a ca-chaça é hoje objeto de pesquisacientífica, inovação tecnológica e fazparte de programas de exportação doGoverno Federal. Trata-se de um pa-trimônio cultural do povo brasileiro.

O tema pode ser aprofundado dediversas maneiras nas aulas de Quí-mica, envolvendo atividades emalambiques, indústrias, centros depesquisa, supermercados e outrospontos de venda da bebida; análisede rótulos; ouvir/cantar músicas co-nhecidas; identificar denominaçõeslocais para a bebida e sua presençana literatura e na culinária brasileiras;debates sobre os efeitos benéficos emaléficos do consumo: interaçõesentre o álcool (e outros constituintes)e o organismo humano, o prazer dobem beber (função antitristeza, anti-tédio e preocupações, a face festivada refeição, a compensação da mise-rabilidade etc.), os limites do beberem demasia (violência, dependência,alcoolismo, acidentes etc.), precon-ceitos e outros significados.

Notas

1. Há mais de cem denominaçõesFigura 9: Fórmulas estruturais de alguns constituintes majoritários presentes na cachaça.

Tabela 1: Concentrações de algumassubstâncias presentes em cachaça obtidaem diferentes alambiques (Nascimento etal., 1998).

Substância/mg L-1 Cobre Aço inox

Metanol 1,82 1,16Álcool isoamílico 1095 1546Isobutanol 203,5 250Propanol 58,0 78,2Acetaldeído 19,0 9,00Acetato de etila 16,3 108Caprilato de etila 1,60 6,70Ácido acético 20,7 21,5Dimetilssulfeto 150 250

A cachaça, patrimônio

cultural do povo brasileiro,

ocupa uma posição de

destaque na história do

Brasil que é pouco

conhecida e valorizada

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 18, NOVEMBRO 2003Origem, produção e composição química da cachaça

Abstract: Origin, Production and Chemical Composition of Cachaça – Cachaça is a genuinely Brazilian spirit, with an alcohol content between 38% and 54% by volume, at 20 °C, obtained by thedistillation of the fermented sugar-cane syrup. In this paper its production, its chemical composition and some of its historic, social and economic aspects are described.Keywords: cachaça, production, chemical composition

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2. O PBDAC foi criado em 1997pela Associação Brasileira de Bebi-das (ABRABE), em conjunto com pro-dutores de cachaça e os Ministériosda Agricultura e Abastecimento, doDesenvolvimento, Indústria e Comér-cio Exterior e da Ciência e Tecnologia.

3. Medida do teor de açúcar reali-zada através de um densímetro cha-mado sacarímetro, que relaciona adensidade com o teor de açúcar, ex-pressando-o em unidades Brix.

4. Corresponde à população mi-crobiana proveniente da manipulaçãona colheita, transporte e moagem dacana, que é constituída por levedurase bactérias. As leveduras são as res-ponsáveis pela conversão do açúcarem etanol, contribuem na formação

de produtos secundários e outrastransformações químicas. A maisabundante é o Saccharomycescerevisae (Schwan e Castro, 2001, p.113, 114), que é também a mais usa-da pela indústria (Laluce, 1995).

5. Considerando a produção de1,3 bilhões de litros de cachaça noBrasil, cerca de 200 milhões de litrosde CO2, um dos gases responsáveispelo efeito estufa, devem ter sido lan-çados na atmosfera no ano de 2001(considerando o teor médio de 45%v/v de etanol e a densidade do etanolcomo igual a 0,791 kg/L). Lima Netoe Franco (1994) mencionaram o pre-juízo financeiro devido à perda de CO2

que poderia ser comercializado e asperdas do próprio etanol (cerca de10%).

6. O condensador e a resfriadeira

podem ser de cobre.7. A legislação brasileira permite

até 5 mg/L de cobre na cachaça (emalguns países o limite é 2 mg/L); oexcesso do metal no organismoprejudica a saúde.

8. Composto cancerígeno cujapresença e controle não estão pre-vistos na atual legislação brasileira.

Paulo C. Pinheiro ([email protected]), licenciado ebacharel em Química pela UFJF, mestre em QuímicaAnalítica e doutorando em Ensino de Ciências naFaculdade de Educação da USP, é docente doDepartamento de Ciências Naturais da UniversidadeFederal de São João Del-Rei (DCNAT/UFSJ). Murilo

C. Leal ([email protected]), licenciado em Químicapela UFJF, mestre em Agroquímica pela UFV, doutorem Educação pela UFMG, é docente do DCNAT/UFSJ. Denilson A. de Araujo ([email protected]),licenciado em Química pela FUNREI, professor deQuímica no Ensino Médio, é técnico do Laboratóriode Química do DCNAT/UFSJ.