o nome e a coisa o populismo na política brasileira

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O populismo e sua história

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  • O populismo e sua histria

  • COPYRIGHT O 2000 by Joqe Ferreira

    Evclyrt Grumach

    PROJETO GRFICOEvelyn Grumach e ]

  • O nome e a coisa: o populismo

    na poltica brasileira

    Jorge Ferreira

  • "No h povo amorfo. No h massa bruta e indiferente. A

    massa formada de homens e a natureza de todos os homens

    i a mesma: dela i a paixo, a gratido, a clera, o instinto

    luta e o instinto de defesa."

    Rachel de Queirs

    Herdeiro do clientelismo da Primeira Repblica, o popi-

    lismo, aps 1930, teria dado continuidade a uma relao desi

    gual entre Estado e sociedade e, em particular, entre Estado c

    classe trabalhadora. Sobretudo com a ditadura de Getlio Vargas,

    os trabalhadores, com a violncia policial, teriam |ii i ili

  • O N O M E i A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I R A S 11 E I R A

    Cooptados, manipulados, iludidos e amedrontados com as

    perseguies da Polcia Especial, os assalariados, aps 1945, no

    teriam conseguido livrar-se das amarras ideolgicas tecidas na

    poca anterior: cerceados em suas lutas pela manuteno da

    legislao corporativista e a tutela estatal dos sindicatos, trados

    com a atuao dos pelegos sindicais e confundidos politicamen

    te com as lideranas populistas, as mais antigas como Vargas, as

    mais recicladas como Goulart. Os comunistas, igualmente ilu

    didos com o nacionalismo, reforaram os laos, j apertados,

    da teia populista.

    A histria dos trabalhadores, como contada, no nova e.

    independentemente de suas diversas verses, retoma uma longa

    tradio intelectual. Liberais e autoritrios, de direita ou esquer

    da, diagnosticaram que os males do pas provm de uma rela

    o desigual, destituda de reciprocidade e interlocuo: a uma

    sociedade civil incapaz de auto-organizao, gelatinosa em

    algumas leituras, e a uma classe trabalhadora dbil, impe-se

    um Estado que, armado de eficientes mecanismos repressivos e

    persuasivos, seria capaz de manipular, cooptar e corromper. A

    interpretao ainda foi reforada por um certo tipo de marxis

    mo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma deter-

    minada conscincia que lhe corresponderia e um caminho, ni

    co e portanto verdadeiro^a ser seguido. Nesse caso, se a classe

    jio surgiu como se imaginava, se a conscincia no se desen-

    volveu como se previa e se os caminhos trilhados foram outros,

    a explicao poderia ser encontrada no poder repressivo de

    Estado, nos mecanismos sutis de manipulao ideolgica e, ain

    da, nas prticas demaggicas dos polticos populistas. A teoria

    do desvio", assim, reforou a interpretao que polarizava Es

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  • O P O P U L I S M O C S UA H I S T R I A

    categoria

    tado e sociedade. Como lembra Jos Murilo de Carvalho, a

    postura antiestatal, maniquesta em sua definio, inviabiliza

    qualquer noo de cidadania e, na prtica, acaba por revelar

    uma atirude paternalista em relao ao povo, ao contiido,

    vtima impotente diante das maquinaes do poder do Estado

    ou de grupos dominantes. Acaba por bestializar o povo".*

    Culpabilizar o Estado e vitimizar a sociedade, eis algun da i

    fundamentos da noo de populismo.

    No so poucos, verdade, os trabalhos que rompenM^

    com esta espcie de relao patolgica entre um Estado <

    surge pleno de poderes e uma sociedade incapaz de reagirei

    manifestar.2 No entanto, se o populismo, como explicativa da poltica brasileira entre 1930 e 1964, e

    uma maneira de enfocar o movimento operrio e sindical, va

    desde a dcada de 70, sendo posto em dvida em um ou outro

    aspecto, em uma ou outra afirmao, o conjunto da teoria at*^

    da continua a dar as cartas para explicar o panado recente dtt|

    pah- JNas pginas que se seguem, procuro reconstituir a histnjj

    do populismo. No entanto, importante frisar, no i

    do a expresso como um fenmeno que tenha regido

    es entre Estado e sociedade durante o perodo de 1930 a :

    ou como uma caracterstica peculiar da poltica brasileira

    quela temporalidade, pois sequer creio que o perodo t

    '}ot Munlo de CarraJbo. Os bestwltzda. O fbodt Janem e a t

    no foi. S&o Paulo, Companhia d Letra, 1989, pp. 10-11. *eja Angela (te Cattro Gome. Poiuca: hittna, ancia, catl

    Ettvdot Hutnco^tf 17. Riodejaneiro, Editora da Fundalo ( 1996.

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  • O N O M E E A C O I S A : O P O P U I I 5 M O NA P O l l T I C A B K A S I I E I P A

    populista, mas, sim, como uma categoria que, ao longo do

    tempo, foi imaginada, e portanto construda, para explicar essa

    mesma poltica.

    O POPULISMO DE PRIMEIRA GERAO

    Nos anos 50/60, a teoria da modernizao repercutiu nos mei

    os acadmicos do pas com grande impacto, sobretudo para a

    configurao da noo de populismo. Para Gino Germani,1 o mais conhecido desses tericos, a insero da Amrica Latina

    no mundo moderno no seguiu os padres clssicos da demo

    cracia liberal europia. A passagem de uma sociedade tradicio

    nal para uma moderna ocorreu em um rpido processo de ur

    banizao e industrializao, mobilizando, desta maneira, as

    massas populares. Impacientes, elas exigiram participao

    poltica e social, atropelando, com suas presses, os canais

    institucionais clssicos. A resoluo dos problemas ocorreu com

    golpes militares ou com revolues nacionais-populares, sen

    do que as ltimas, sobretudo seus resultados, foram nomeadas

    de populismo. Torcuato di Telia,4 por sua vez, foi alm. A exploso demogrfica e as aspiraes participativas das massas

    populares foraram alteraes no sistema poldco. Em certo

    ponto, de muita tenso, as massas, com suas expectativas, se

    JGino Germani. Poltica e sociedade em uma tpoca de transio: da sociedade

    tradicional sociedade de massas. Sio Paulo, Mestre Jou, 1973.

    Torcuato di Telia. Para uma poltica latino-amencana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.

    4

  • O P O P U I I S M O E S UA H I S T R I A

    aliaram s camadas mdias, setores ressentidos por no se tor

    narem classes dominantes. Assim, diante de um quadro em que

    is classes fundamentais no deram respostas adequadas exigidas

    pelo momento histrico as dominantes, por sua

    inoperncia, a operria, por sua inexpressividade , surgiram

    lderes oriundos das classes mdias prontos para manipularem

    as massas.

    Desse modo, no contexto da transio de uma economia

    tradicional, de participao poltica restrita, para usnt

    'economia de mercado, de participao ampliada, a teoria

    Ja modernizao elegeu um ator coletivo central para 4

    surgimento do populismo na Amrica Latina: os camponeses.^

    Mesmo que eles no sejam nomeados com todas as lettMl|H

    eixo fundamental dos argumentos de Germani e di Telia gin||

    em torno da questo do mundo rural, definido como tradidof|

    nal. O populismo surgiu em um momento de transio d o M

    sociedade para a moderna, implicando o deslocamento de po- 1 pulaes do campo para a cidade o mundo agrriojnraj||

    do o urbano-industrial. Como a mescla de valores tradicionaise 1

    modernos, os lderes populistas se projetaram em sociedadera

    que no consolidaram instituies e ideologias autnomas, m ata

    necessariamente seriam substitudos por outras lideranas por*

    tadoras de idias classistas quando o capitalismo alcanasqfl

    maturidade na regio.

    Os crticos de Germani e di Telia, de variadas maneiras, de- I

    nunciaram a suposta vinculao entre camponeses que vieram

    para as cidades e lderes populistas. Octavio Ianni, por exem

    plo, denunciou a imagem, sugerida pelos tericos da moderni

    zao, de docilidade das massas s manipulaes populi:

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  • O N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l t T I C A ( A S I l E I f t A

    demaggicas e carismticas.5 Por um aspecto, diz Ianni, h o surgimento de populaes recm-chegadas do mundo rura! que

    no dispem ainda das condies psicossociais, ou horizonte

    cultural, para um adequado comportamento urbano e demo

    crtico. Por outro, a sociedade carece de instituies polticas

    slidas, a exemplo de um sistema partidrio. Da o sucesso da

    arregimentao das massas marginais, ou classes populares, pelo

    populismo. Trata-se de um descompasso, retrocesso ou desvio

    de curso no sentido que se queria ideal: o modelo europeu de

    democracia representativa. No mundo urbano-industrial, con

    tinua Ianni em sua crtica, onde imperam as relaes de merca

    do, sobrevivem ou predominam as massas e o lder, cujos vncu

    los so a demagogia e o carisma.

    - Com o tempo, as inconsistncias da teoria da modernizao

    foram percebidas e as crticas tornaram-se mais agudas. A dis

    tino entre pases atrasados e desenvolvidos, indicando,

    segundo Maria Helena Capelato, uma relao de exterioridade

    entre eles, o mundo capitalista moderno como modelo a ser

    seguido, a perspectiva etapista, progressista, que levaria con

    solidao do regime democrtico nos pases atrasados con

    cepo desmentida pelas ditaduras militares nos anos 60 .

    entre outras questes, abalaram a credibilidade do enfoque.*

    No entanto, mesmo dcadas depois, quando as crticas tor

    naram as idias de Germani e di Telia desacreditadas, as ima

    Octavio Ianni. O populismo na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Gvilizaio

    Brasileira, 1975, pp. 25-28.

    Maria Helena Rolim Capelato. Estado Novo; novas histrias1*. In Marcos

    Coar de Freitas. Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo, Contex

    to, 1998, p. 186.

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  • gens de atraso, desvio e manipulao perdurariam. As

    representaes imaginrias, sabemos, so capazes de resistir a

    crticas, mesmo aquelas formais, eruditas e com base na investi

    gao emprica. Assim, perdurou, ao longo do tempo, a idia de

    que, com o processo de urbanizao, os indivduos recm-che

    gados do mundo rural teriam contaminado os antigos opcjf)H

    com suas idias tradicionais e individualistas. Sociedade atrasa

    da, camponeses que vieram para as cidades, igualmente um atra

    so, e, logo, uma poltica novamente atrasada, eis o ambiente etM

    que teriam proliferado os lderes populistas.

    teoria da m^dTrr>*7a?0 ^ icM para a P*nK;rfl8 frwtj mulaes sobre o populismo no BrasiL Segundo Angela de QM

    tro Gomes,7 em meados da dcada de 50 um grupo de interna ruais, sob o patrocnio do Ministrio da Agricultura, passou M

    reunir periodicamente com o objetivo de debater os probleo]jg|

    polticos do pas. Como uma vanguarda esclarecida, o Grupo

    de Itatiaia, como ficou conhecido,1 esforou-se para formul* projetos polticos e estabelecer uma nova viso de mundo. Um

    dos problemas identificados foi o surgimento do populisnljgj

    na poltica brasileira. Embora se constate ausncia de esforos

    para conceituar o fenmeno nas condies do pas, explicava-

    Angela de Castro Gomes. O populismo e as nas sociais no Brasil: noa*

    sobre a trajetria de um conceito". Nesta coletnea.

    'Segundo a autora, o grupo fundou, em 1953, o Instituto Brasileiro de Eco

    nomia, Sociologia e Poltica (IBESP) e comeou a publicar os CatUmos d*

    nosso tempo. Participaram da revista intelectuais como Alberto Guerreiro

    Ramos, Cindido Mendes de Almeida, Hermes Lima, Igncio Rangel, Joio

    Paulo de Almeida Magalhes e Hlio Jaguaribe. O ncleo bsico do IBESP,

    mais adiante, organizaria o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

    tdtm.

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  • O N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L T I C A I * A S 11 E I * A

    se a expresso por variveis histrico-sociolgicas, influencian

    do, mais tarde, as inmeras formulaes que se seguiram.

    Para os intelectuais do Grupo, em primeiro lugar, o po

    pulismo era uma poltica de massas.9 Trata-se de um fenmeno vinculado modernizao da sociedade, sobretudo no tocante

    ao processo de proletarizao de trabalhadores que no adqui

    riram conscincia de classe. Interpelados como massa, eles so

    mente se libertariam dos lderes populistas quando alcanassem

    a verdadeira conscincia de seus interesses. No difcil, por

    tanto, perceber as influncias da teoria da modernizao. Mas,

    em segundo lugar, o populismo igualmente estava associado a

    uma classe dirigente que perdera a sua representatividade, que

    carecia de exemplos e valores que orientassem toda a coletivi

    dade. Em crise e sem condies de dirigir o Estado, as classes

    dominantes necessitariam conquistar o apoio poltico das mas

    sas emergentes. Por fim, diante da inconsistncia das classes

    fundamentais da sociedade, o terceiro elemento completaria o

    fenmeno: o lder populista, homem carregado de carisma, com

    capacidade incomum para mobilizar e empolgar as massas.

    Nessa linha de abordagem, em 1961, o socilogo Ajberto

    _Guerreiro Ramos, integrante do Grupo de Itatiaia, publicou A

    crise do poder no Brasil. O livro estabeleceria, de maneira mais

    sistematizada, a imagem do populismo na poltica brasileira e

    influenciaria estudos acadmicos que, naquela poca, ainda es-

    tavam em curso.

    Na anlise que segue, Angela de Castro Gome* explora o ensaio Que i o

    atnunismof, publicado no primeiro semestre de 1954, sem autor identificado. Liem.

    a

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  • 0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    Tambm em uma perspectiva histrico-sociolgica, Ramos

    defende que o estabelecimento do populismo no Brasil ocorreu

    sobrerudo a partir de 1945. Com o fim do Estado Novo, o pas

    jnheceu, no plano poltico, um mnimo de probidade nas elei

    es e, no plano econmico, uma industrializao mais consto*

    tente. Assim, em uma conjuntura de expanso industriai, urba

    nizao e de participao poltico-eleitoral, que se manifesta]

    ram as primeiras geraes de assalariados das cidades. Para o

    autor, o populismo, como uma ideologia pequeno-burgueslH

    procurou mobilizar politicamente as massas obreiras nos pctt*

    odos iniciais da industrializao.10 Contudo, os assalariadtiM^I apresentavam aquela mentalidade dassista que costuma e t fH

    terizar as geraes de trabalhadores providos de longas tra jfl

    es de lutas", uma vez que as classes sociais ainda no tinhaai

    se configurado, despontando no cenrio poltico do pais 4

    maneira rudimentar", como um agregado sincrtico. Em um

    palavra, a classe trabalhadora se apresentava como

    estado embrionrio". Assim, novamente associando os campg|

    neses ao populismo, os lderes de massa, diz Ramos, encontra*

    ram sustentao em componentes recm-egressos doscmgM

    [que] ainda no dominam o idioma ideolgico". So trabalha

    dores com escasso treino partidrio e tmida conscincia

  • 0 N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P Q L f T I C A B R A S I L E I R A

    trabalhismo brasileiro, classificando, no sem alguma ironia, as

    suas doenas infantis. A primeira o varguismo. Trata-se, em

    suas palavras, de um resduo emocional baseado em impres

    ses e crenas populares na bondade intrnseca de Vargas". A

    segunda o janguismo, definido como uma forma de seguidismo

    que se fundamenta no reconhecimento de amplas camadas

    populares de que o Sr. Joo Goulart o continuador da obra do

    Presidente Getlio Vargas. A terceira, o peleguismo, na verda

    de um subproduto do varguismo e irmo siams do janguismo.

    Para Ramos, o peleguismo impede a formao de um movi

    mento obreiro na exata expresso da fora poltica que tm j

    os trabalhadores brasileiros. Por fim, o expertismo, ou seja, a

    prtica do partido em recorrer a um doutor, encomendando-

    lhe uma teoria sob medida.11 No difcil perceber aue as doenas infantis do trabalhismo, formuladas por Guerreiro Ra

    mos. sobretudo as trs primeiras, firmaram-se como imagens

    fortemente introjetadas na imaginao poltica das geraes que

    o sucederam. Ironias que foram tomadas a srio._____

    ^ Seja como for, os socilogos do Grupo de Itatiaia, sobretu

    do Hlio Jaguaribe e Guerreiro Ramos em particular, influenci

    ados pela teoria da modernizao, foram aqueles que formula

    ram as primeiras reflexes sobre o populismo na poltica brasi

    leira.

    Assim, dando continuidade a uma linha interpretativa que

    se constitua desde meados dos anos 50, um outro grupo de

    ocilogos, agora nas universidades, desenvolveu reflexes so

    bre o papel dos camponeses no processo de formao da classe

    f "Idem, pp. 90-93.

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  • operria e do movimento sindical. Nomeada por Luiz Werneck

    Vianna de a interpretao sociolgica, o primeiro desses tra

    balhos veio ao conhecimento do pblico em 1964, com Juarez

    Brando Lopes.u A partir do auxlio de algumas categorias

    weberianas, Brando procurou compreender as motivaes de

    operrios de uma empresa de porte mdio em um momento de

    trnsito de uma economia tradicional para uma economia

    de mercado. A concluso, segundo Werneck Vianna, foi a de

    terminao estrutural entre a origem social e a conscincia de

    classe. Desse modo, os trabalhadores originrios do campo 4*

    das pequenas comunidades do interior, quando instalados a a

    cidades, no se identificariam completamente como operCM

    industriais, tendendo a se comportar de acordo com seus inte

    resses pessoais. No conseguiriam, dessa maneira, explicitar a

    conscincia de sua identidade coletiva devido falta de expojN

    ncias cooperativas, prprias do mundo urbano e industrial. Os

    outros operrios, qualificados e mais antigos nas cidades, por

    sua vez, demonstrariam satisfao com suas profisses, mas, por

    sua situao vantajosa no mercado de trabalho e pela falta de

    tradio industrial, tornaram-se pouco sensveis para aes

    coletivas atravs do sindicato.13Segundo Luiz Werneck Vianna, os estudos sobre o movi

    mento operrio e sindical no Brasil se iniciaram com os traba

    lhos de Juarez Brando Lopes e Lencio Martins Rodrigues

    uJuarez Brando Lopes. Sociedade industrial no Brasil. So Paulo, Difel, 1964.

    MLuiz Werneck Vianna. Estudo* sobre sindicalismo e movimento operrio:

    resenha de algumas tendncias'. Rio de Janeiro, Revista Dados, BIB, 1978,

  • 0 N O M E { A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L T I C A * A S 11 E I * A

    como tambm com os de Azis Simo e Jos Albertino Rodrigues.M

    Embora com suas diferenas e especificidades, a interpretao

    sociolgica compartilha perspectivas semelhantes em suas an

    lises. Partindo dos gloriosos anos 10, com a atuao dos anar

    quistas, a reflexo procura tornar evidente a transio, comple

    tada na dcada de 30, para um sindicalismo burocrtico e aco

    modado, permitindo o surgimento de uma classe operria que

    teria perdido sua autonomia, espontaneidade e mpeto revolu

    cionrio. As matrizes tericas da interpretao sociolgica",

    diz Wemeck Vianna, provm da hegemonia do pensamento

    cepalino nas universidades brasileiras, dos trabalhos de Gino

    Germani e da leitura de textos de Weber e Marx. Tais concep

    es foram entendidas como convergentes para explicar a reali

    dade latino-americana.15 Assim, o enfoque sobre o comportamento operrio, determinado pela origem da fora de traba

    lho em um contexto de transio de uma economia tradicio

    nal, de participao poltica restrita", para uma economia

    de mercado, de participao poltica ampliada", teria resulta

    do em uma classe operria que, marcada pelo individualismo,

    por suas origens rurais, tradicionais e patrimoniais, se tornou

    passiva e dependente do Estado. O resultado, portanto, foi o

    surgimento do populismo.

    As crticas, na verdade, tardaram a chegar. Para Maria Hele

    na Capelato, um dos elementos constitutivos da noo de

    Lencio Martins Rodrigues. Conflito industrial e sindicalismo no Brasil.

    SSo Paulo, Difel, 1966; Azu Si mio. Sindicato t Estado. So Paulo, tica,

    1981; Jo* Albertino Rodrigues. Sindicato e desenvolvimento no Brastl. So

    Paulo, Difel, 1966.

    uLuiz Wemeck Vianna. Op. cit., p. 71.

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  • O P O P U L I S M O S UA H I S T R I A

    populismo nesse perodo a compreenso dos movimentos so

    ciais como reflexos das variveis scio-econmicas. Assim, ex

    plica-se o comportamento poltico das classes a partir M

    determinantes estruturais (processo de industrializao, origem

    rural da classe trabalhadora). A adeso ao populismo entendi*

    da ento a partir da estrutura social, sem se levar em conta q tiH

    quer elemento de ordem poltica ou cultural.1* O novo prokN

    tariado da dcada de 30, muito distante do velho e revolucnj

    nrio anarquismo dos anos 10, teria surgido, no dizer de Wernetfl Vianna, com uma concepo individualista que traz do mundo

    do tradicionalismo agrrio se tornaria na massa de mafljfljH

    do populismo (...) assinalando o toque de recolher para o nuln

    xismo no movimento operrio substitudo pelo nacionalismo?

    ^ No entrecruzamento da teoria da modernizao com atM

    certa interpretao do marxismo, eis que surgem os campou

    ses no cenrio poltico, representando o ator coletivo chave jmm

    a formulao e disseminao da primeira verso do populisffiK

    Seria na passagem da sociedade tradicional para a moderna*

    que atuariam os camponeses, seres incapazes de aes coletivll

    porque imbudos de uma percepo individualista da sociedade

    e, exatamente por isso, refratrios s mudanas sociais edfl

    particular as revolucionrias.

    Portanto, entre meados dos anos 50 e incio dos anos 60,

    algumas imagens sobre os desvios" da poltica brasileira e da

    prpria classe trabalhadora, determinados pelo papel dissolvecfl

    exercido pelos camponeses que vieram para as cidades, come-

    Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 185-186.

    Luix Werneck Vianna. Op. cit., p. 78.

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  • O N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A S P A S I L E I A A

    aram a circular em alguns crculos intelectuais no Brasil. Ten

    do como matriz a teoria da modernizao, tais idias inicial

    mente foram apropriadas pelos socilogos do Grupo de Itatiaia

    e, da, comearam a ganhar espaos nas universidades. O golpe

    militar, em 1964, no entanto, veio acelerar o processo, permi

    tindo que a noo de populismo surgisse como fator explicativo

    para a fraqueza do movimento operrio e sindical diante da

    investida, verdadeiramente fulminante, da direita civil-militar.

    Foi nesse contexto poldeo e intelectual que, em meados

    dos anos 60, veio a pblico uma srie de artigos, reunidos, mais

    tarde, sob o ttulo de O populismo na poltica brasileira. A cole

    tnea resgatou o conjunto de idias que, desde a dcada anteri

    or, vinha afirmando a noo de populismo e, sintetizando-o de

    maneira original, abriu caminhos para pesquisas e reflexes

    posteriores.1 * Embora apresente reflexes avanadas para a primeira metade dos anos 60, o prprio contexto intelectual da

    quela poca imps limitaes tericas aos textos. Assim, duas

    tradies interpretativas percorrem as pginas do livro. A pri

    meira a adoo da tipologia de Gino Germani, que alude

    passagem de uma democracia com participao limitada" para

    uma ampliada.19 Trata-se de um processo de massificao prematura ou antecipada de massas rurais na vida urbana e

    no processo poltico.20 Weffort recupera a tese que afirma o

    "Francisco Weffort. O populismo na poltica brasileira. Rio de Janeiro, Paz e

    Terra, 1980, p. 22. Minha anlise limita-se aos trs primeiros artigos da cole

    tnea: Poltica de massas*, escrito originalmente em 1963; Estado e massas

    no Brasil", de 1965; e O populismo na polidca brasileira", de 1967.

    '*Idem, p. 45.

    tem, p. 54.

    7 4

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  • sucesso da poltica varguista entre os trabalhadores porque o

    xodo rural trouxe para as cidades uma mo-de-obra com tra

    dies patrimoniais, individualistas e sem experincias de lutas

    sindicais. Desencadearam-se, desse modo, a revoluo indivi

    dual dos migrantes oriundos do campo que chegaram ao mun

    do urbano e a conseqente presso para o acesso ao consumo e

    ao emprego. Portanto, trata-se, sempre, de formas individual

    de presso, as quais se apresentavam aos populistas como um

    problema a resolver.21 Ou seja, como j afirmara Guerrettjt Ramos, existia a classe, mas faltava a sua conscincia, mMcajg

    da ou deformada no processo que transformou camponeses M l

    assalariados urbanos, permitindo a Weffort sugerir que a refle

    xo sobre o populismo deva basear-se a partir de relaes indi

    viduais.22 A teoria da modernizao, portanto, central nas anlises de Weffort.

    A segunda tradio intelectual presente na coletnea pro

    vm de uma poca em que se acreditava que os atores sodffl|

    tinham vontade prpria. Assim, diz o autor: a burguesia 4$

    proletariado, em especial este ltimo, tendem a organizar raci

    onalmente sua ao poltica e a colocar, de maneira clara, seus

    interesses de classe luz do dia do debate poltico.23 Muitas vezes, noes oriundas da ortodoxia aparecem de maneira pe

    remptria: Na impotncia histrica da pequena burguesia est

    a raiz da demagogia populista (...). Deste modo, por limitar-se

    s formas pequeno-burguesas de ao, o populismo traz em si a

    O P O P U L I S M O S UA H I S T R I A

    "Idm , p. 75. uld*m, p. 72.

    p. 28.

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    UserRealce

  • 0 N O M E I A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l f T I C A S B A S I l f l P A

    inconsistncia que conduz inevitavelmente traio.2'' Se o

    populismo foi traio, a grande pergunta, nunca respondida,

    lembra com razo John French, : por que os operrios sucum

    biram aos agrados dos lderes populistas, aceitando a domina

    o, e, no mesmo movimento, se dispuseram a confiar em trai

    dores?25 JPortanto, ler O populismo na poltica brasileira v nhecer um autor afinado com o contexto intelectual de seu tem

    po, mas igualmente limitado por ele.

    AJgumas vezes, personagens com tradies e prticas polti

    cas distintas so tratados de maneira indiferenciada, perdendo-

    se, assim, especificidades e a prpria historicidade dos projetos:

    entre o populismo dos demagogos e o reformismo nacionalis

    ta de 1964 sempre existiram afinidades profundas de conte

    do".26 Em um Estado como esse, alega, no h lugar de destaque para as ideologias. Os aspectos decisivos da luta poltica

    as formas de aquisio e preservao do poder esto vincula

    dos a uma luta entre personalidades.27 Ao mesmo tempo que personaliza o passado histrico da sociedade brasileira, o autor

    dilui e, conseqentemente, perde a especificidade dos projetos

    polticos em que estes lderes polticos se manifestaram. Assim,

    Joo Goulart, Leonel Brizola, Roberto da Silveira, Alberto

    Pasqualini, Fernando Ferrari, Lcio Bittencout, entre outros,

    todos filiados a um partido poltico, o PTB, bem como a uma

    UserRealce

  • tradio poltica, o trabalhismo, surgem no mesmo patamar que

    Jnio Quadros e Adhemar de Barros, polticos que o prprio

    Weffort caracteriza como fenmenos de So Paulo.2* Eles, por

    sua vez, so igualados ala direitista-golpista da UDN, como

    Carlos Lacerda, ao general Eurico Dutra e a Juscelino Kubitschek.

    Todos, segundo indicaes de Weffort, surgem na mesma dP;

    menso porque se dirigem ao povo, sem distinguir as contradil

    es de classe contidas nesta concepo.

    Enfim, vrios so os temas a serem explorados na coledfl

    nea. No entanto, vale observar uma certa tenso ao longo dk

    argumentos do autor. Em alguns momentos do livro, um grupo

    de afirmaes revela uma interlocuo, uma interao, nas rela*

    es entre Estado e classe trabalhadora, vistas como um procee-

    so legtimo:

    o populismo foi, sem dvida, manipulao de massas, mas

    manipulao nunca foi absoluta. Se o fosse, estaramos obrigM

    dos a aceitar a viso liberal elitista, que, em ltima instncia, W

    no populismo uma espcie de aberrao da histria alimentafl

    pela emocionalidade das massas e pela falta de princpios dai

    lderes. Se o populismo foi manipulao, alega, tambm fot

    um modo de expresso de suas insatisfaes.2*

    Outra indicao importante, que relativiza o poder de Esta*

    do e resgata o papel e a atuao dos prprios trabalhadores nd|

    relaes polticas daquela poca, igualmente dada por Weffort:

    0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    I ldem, p. 28.I nld*m, p. 62.

    7 7

    UserRealce

  • Grupo burgus algum capaz, por si prprio, de inventar um

    poltico de massas. As condies de existncia das massas tm

    tambm seu papel nesta inveno.30i As afirmaes, importantes, sugerem que o populismo no

    foi mera manipulao de massa, de cima para baixo, mas que

    houve interlocuo entre Estado e classe trabalhadora. No en

    tanto, muitas leituras no observaram com maior cautela uma

    linha de reflexo que se abria. Talvez pela prpria ambigidade

    das idias contidas em seus textos, as atenes voltaram-se para

    outro conjunto de afirmaes. Weffort critica a verso liberal

    do populismo, cuja explicao seria a manipulao e a demago

    gia dos lderes conjugadas ignorncia e ao arraso das massas.

    Contudo, em outros momentos, contrariando suas prprias cr

    ticas concepo liberal, o texto permite leituras bem diferen

    tes. Assim, para o autor, em 1930 aparece o fantasma do povo

    na histria poltica brasileira, que ser manipulado soberana

    mente por Gctlio Vargas durante 15 anos.31 Ou ento as massas populares constituram a raiz do poder dos lderes populistas,

    mas, nesta mesma condio, no passam de massa de mano

    bra.31 Ao dar ao Estado um poder que ele, teoricamente, no alcanou, mesmo nas ditaduras mais intolerantes, surgem afir

    maes bastante questionveis: nas formas espontneas do

    populismo, a massa v na pessoa do lder o projeto do Estado;

    abandona-se a ele, entrega-se sua direo e, em grande medi

    da, ao seu arbtrio.33

    *Idem, p. 34.

    *.Idem, p. 51.

    nldem, p. 58.

    "Idem, p. 41.

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  • O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    Assim, as anlises das relaes mantidas entre Estado e clas

    se trabalhadora so conduzidas sob certa tenso, sob certa am

    bigidade: ora interlocuo, ora manipulao. No entanto, esta

    ltima maneira, de cima para baixo, foi a que se firmou nos

    estudos posteriores, ressaltando-se as passagens em que Weffort

    analisa de maneira mais caricatural as relaes entre as mas

    sas e os lderes populistas: manipulao, emocionalidade

    relaes individuais, traio etc.

    Seja como for, com a teoria da modernizao, as idias do

    Grupo de Itatiaia, a interpretao sociolgica do movimento

    operrio e os trabalhos de Weffort, o populismo, na segunda

    metade dos anos 60, comeou a firmar-se nas Cincias Huma*

    nas no Brasil. Era necessrio, no entanto, situ-lo em um con

    texto histrico internacional para estabelecer a noo com m M

    or preciso metodolgica. Assim, nos compndios e manuais

    sobre o populismo na Amrica Latina e no Brasil, invariavd^

    mente a introduo ou o captulo inicial tratavam dos "a n ttH

    dentes histricos: o leitor, desse modo, conhecia o populismo

    na Rssia tzarista e nos Estados Unidos no sculo XIX. Novai

    mente, portanto, h a presena do mundo rural. Embora 08 contextos econmico, poltico, social, agrrio, cultural, ideol

    gico e religioso do Brasil tenham sido diversos da Rssia tzarista!

    e, ambos, distintos dos Estados Unidos, o que une histrias to

    diferentes o campesinato. E onde ele est, de se prever, tam

    bm aparecem os populistas.

    Estaria a primeira verso do populismo superada? Creio que

    no. No primeiro semestre de 1998, em uma prestigiada escola

    catlica na cidade de Niteri, uma aluna da segunda srie do

    7 9

  • 0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A ( P A S I L E I P A

    segundo grau recebeu de seu professor de histria uma apostila

    resumindo a trajetria da poltica brasileira aps 194S. Logo

    no incio, a menina leu: O perodo que se estende de 1945 a

    1964 tradicionalmente conhecido como o perodo do

    Populismo. Entre aspas e em negrito, para chamar a ateno

    dos jovens leitores, o conceito teria algumas caractersticas

    bsicas:

    Como j se observou, o populismo na Amrica Latina teve como

    caracterstica bsica uma intensa manipulao das massas, num

    momento de transio entre a economia agro-exportadora e a

    economia mais moderna, que comea a se instalar aps a crise

    de 1929. Lideranas mais ou menos carismticas disputaram o

    poder junto a essa massa, ora fazendo concesses (as leis traba

    lhistas de Vargas so um bom exemplo), ora utilizando o povo

    como elemento de ataque s antigas oligarquias.

    Os trabalhadores, cuja conscincia social estaria a meio-ter

    mo entre os padres rurais e os vigentes na indstria, deixaram-

    se envolver por lderes burgueses, que, habilmente, os usaram

    como massa de manobra. Aps aprender as dimenses tericas

    do conceito, a aluna, um tanto confusa, tambm aprendeu com

    o professor o que se seguiu na poltica brasileira: a democrati

    zao de 1945, o surgimento dos partidos polticos nacionais e

    o governo Dutra. No entanto, em 1950, surpreendentemente,

    o populismo teria ressurgido. No sem alguma ironia, os auto

    res da apostila escreveram:

    Nas eleies de 1950, Vargas voltou ao poder (...). Sua vitria

    traduzia claramente o poder de manipulao da poltica

    8 o

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  • populista: afinal, Vargas era o pai dos trabalhadores brasi

    leiros... |

    Mas, entre 1963 e 1964, as lutas sociais se acirraram, conti

    nua a apostila. A concluso resume-se a um jargo, comum na

    literatura sobre o assunto: com o golpe militar de 1964, dizem

    os autores do texto em tom peremptrio, era o colapso da

    cpoca populista no Brasil.

    Seria uma injustia, grave a meu ver, desmerecer o trabalhtf

    desses professores. No esse o meu objetivo. So profissionait

    mal pagos, trabalhando muitas vezes em condies difceis, scjj

    chances de atualizao ou recursos para comprar livros. Q|jfl

    honestidade e seriedade, fazem o melhor que podem, mas isso

    o melhor que fazem.

    Para os professores que formam os nossos filhos, a poltiqg

    brasileira e as relaes entre Estado e classe trabalhadora du

    rante o perodo de 1930 a 1964 encerrara um senso comuanj

    no sentido gramsciano do termo, nomeado de populismo e

    em sua primeira verso, a dos anos 50 e 60. Mas seria correto

    afirmar que esse senso comum circula somente entre os pro

    fessores de nvel mdio? Estariam eles to desatualizados aaM

    Com ressalvas, creio que no.

    Os resultados desta primeira verso do populismo so co

    nhecidos e aceitos at hoje, tanto nas apostilas de nvel mdio

    quanto na bibliografia especializada. No primeiro governo de

    Vargas, os trabalhadores tiveram acesso aos direitos sociais, mal

    no aos polticos, e, a partir de clculos sobre suas perdas e

    ganhos, trocaram os benefcios da legislao por submisso po

    ltica. Assim, incapazes de pensar por si mesmos, fracos dMj

  • O N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I R A S I I E I K A

    das investidas ideolgicas das classes dominantes, recebendo

    passivamente e sem crticas a doutrinao poltica, os trabalha

    dores brasileiros oriundos do mundo rural, destitudos de tra

    dies de luta, organizao e conscincia, passaram a idolatrar

    Vargas e, desde 1945, a eleger outros lderes populistas e a vo

    tar no PTB.

    O POPULISMO DE SEGUNDA GERAO

    Na virada dos anos 70 para a dcada de 80, a primeira verso

    do populismo comeou a dar mostra de esgotamento em suas

    hipteses centrais. A teoria da modernizao, o papel do Esta

    do como elemento que organizaria as classes, o comportamen

    to poltico da classe trabalhadora determinado por estruturas

    sdo-econmicas como sua origem rural ou devido s pecu

    liaridades da industrializao brasileira , entre outros fatores,

    no mais satisfaziam os estudiosos. Os grandes ensaios sobre o

    populismo na Amrica Latina tornaram-se cada vez mais ra

    ros. Socilogos e cientistas polticos, pioneiros nos estudos, pas

    saram a debater com historiadores, os quais, com seus mtodos

    de pesquisa, enfrentaram a questo.

    Assim, os estudos voltaram-se principalmente para as rela

    es entre Estado e sociedade na poca do primeiro governo

    de Vargas. De alguma maneira, o problema que preocupou a

    primeira verso do populismo foi reiterado pelos novos estu

    dos: em 1930, instituiu-se no Brasil um Estado de vertente au

    toritria que se acentuou em 1935 e se imps como uma dita

    dura em 1937, influenciada pela experincia do fascismo euro

    8 2

  • peu. As liberdades democrticas foram suprimidas, e o movi

    mento operrio duramente reprimido. Anarquistas, socialistas,

    comunistas e liberais perderam os espaos de atuao poltica, e

    muitos deles, a prpria vida. A represso policial, a censura aos

    meios de comunicao, entre outros dispositivos arbitrrios e

    discricionrios, impediram qualquer movimento para as oposi-

    es. No entanto, diante de um contexto poltico to sufocan

    te, os trabalhadores apoiaram a ditadura de Vargas. O apoio,

    admitem diversas tendncias historiogrficas, no era apenat

    formal, mas sincero, e o reconhecimento, a gratido e as D9MIM festaes elogiosas dos assalariados ao ditador dificilmente aft

    refutados pelos estudiosos. Esse, portanto, foi o problema qug|

    o populismo de segunda gerao herdou da primeira e proettj

    rou novamente enfrentar, centrando os estudos nas relaes cntfB

    Estado e sociedade/classe trabalhadora entre 1930 e 1945.

    Para enfrentar a questo, houve, inicialmente, a recusa, pelo

    menos formalmente, das hipteses centrais da primeira vcgjH

    do populismo. Contudo, a recusa no foi total, tanto assim qqfl

    o texto-sntese daquela primeira verso, O populismo na poltt^

    ca brasileira, de Weffort, continuou a ser citado nos textos

    algo que no casual.

    H uma premissa formulada por Weffort nos anos 60 que

    persistiu entre os historiadores da dcada de 80. Interrogando^

    ao extremo a coletnea O populismo na poltica brasileira pro

    cura das razes que teriam levado os trabalhadores a apoiarea

    lderes populistas, encontramos um argumento central: o

    populismo imps-se pela conjugao da represso estatal com|

    manipulao poltica, embora a chave de seu sucesso tenha sido

    a satisfao de algumas demandas dos assalariados. Assim, me*- .

  • mo que a segunda verso tenha rejeitado as premissas anterio

    res teoria da modernizao, determinaes scio-estrutur.ii>

    nas organizaes da classe trabalhadora, a influncia negativa

    dos camponeses no meio operrio, entre outras questes , a

    premissa central, sugerida por Weffort, represso, manipulao

    c satisfao, continuou presente, embora no exatamente da

    mesma maneira. Ela continuou nas anlises, mas enfatizando o

    poder repressivo e manipulatrio do governo e, no mesmo

    movimento, minimizando os espaos para a atuao e interven

    o dos trabalhadores e sua interlocuo com o Estado. A se

    gunda verso do fenmeno apropriou-se das idias de Weffort,

    ressaltando as variveis represso e manipulao, mas subesti

    mando, e muitas vezes desconhecendo, o vis da satisfao. Sur

    giu, assim, o populismo na sua interpretao mais repressiva e

    demaggica.

    Neste aspecto, importante citar uma poderosa tradio

    que influenciou, direta ou indiretamente, toda uma gerao de

    intelectuais: o marxismo. O marxismo apresentou uma questo

    importante ao estudioso: uma ordem social no imutvel, e a

    sua prpria reproduo propicia a sua transformao. Para um

    historiador, marxista ou no, a assertiva foi muito bem recebi

    da. As divergncias, porm, surgiram sobre a maneira e os cami

    nhos que permitiriam a transformao, suscitando acalorados

    debates entre autores e militantes marxistas. Assim, a verso

    mais disseminada defendeu que a possibilidade da mudana pro

    vm da capacidade dos trabalhadores de alcanarem a verda

    deira conscincia de classe, de desvendarem as contradies

    sociais, de perceberem quais seriam os seus reais interesses.

    No casual, desse modo, que muitas pesquisas produzidas nos

  • O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    programas dc ps-graduao cm Histria Social, a partir de fins ^

    dos anos 70, discutissem, na parte terica dos trabalhos, a quet*|

    to da ideologia. Marx, Lenin, Lukcs, Goldman, Althusser ou

    Gramsci, para citar os mais conhecidos, eram convocados em|

    busca de uma definio mais apropriada para o fenmeno. Afi

    nal, o conceito de ideologia, compreendido na maioria das ve

    zes como falsa conscincia, poderia desvendar as razes qati

    teriam levado os operrios a no se revoltarem contra ordenfij

    sociais opressoras.

    No campo do marxismo, um dos clssicos que niarcifj|fl

    uma gerao foi Antonio Gramsci. Como um dos mais refinfln

    dos pensadores marxistas, em fins dos anos 70 suas idias cutfj

    ram nas universidades brasileiras perodo, tambm, em qtfl

    os historiadores comearam a estudar a poltica brasileira flfffl

    1930, em particular o primeiro governo de Vargas. Foi

    posta terica de hegemonia em Gramsci que mais fascinou lfl|

    estudiosos na poca. No quero discutir o conceito, sabefflNH

    que ele permitiu diversas interpretaes. O que importa, aqrw

    a sugesto de que a dominao de uma classe social sobre outftn

    no se impe apenas pela fora, pelo poder repressivo de Esta-!

    do, como era comum pensar, mas que sua eficcia ocorre aofl|

    conjugar com as instncias persuasivas da sociedade. j

    Com o pensador italiano, no foi difcil para muitos histori-:

    adores reavaliarem a teoria do primeiro populismo. Assim, en

    tre a trade represso, manipulao e satisfao em Weffort e a .

    dicotomia represso e persuaso em Gramsci, a ltima tornoM

    se mais atraente. Com a alterao no enfoque, pode-se dizer ,

    mesmo que houve uma regresso na maneira de se pensarem t

    relaes entre Estado e classe trabalhadora na poca de Varga*^

    8 s

  • 0 N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A B R A S I L E I R A

    Na primeira verso, ainda havia a varivel satisfao, aceitando

    que os assalariados se beneficiaram com as polticas pblicas do

    Estado varguista, como a legislao social, por exemplo. Na se

    gunda verso, no entanto, sequer isto foi considerado. Repres

    so e persuaso, ou, como comum dizer, represso policial e

    propaganda poltica, tornaram-se os elementos centrais para se

    compreender os mistrios do sucesso de Vargas entre os traba

    lhadores.

    Surgiram, assim, diversos trabalhos a partir do incio dos

    anos 80 sobre o Estado Novo, contribuindo, sem dvida, para a

    compreenso daquela temporalidade. Muitos textos enfatizaram

    a represso policial, outros acentuaram a propaganda poltica

    estatal, e alguns, de maior flego, ressaltaram os dois aspectos.

    Mas a maioria das interpretaes concordavam que o populismo

    floresceria com sucesso em um certo tipo de Estado, autorit

    rio, que recorreria a duas prticas distintas, embora comple-

    mentares: a primeira, voltada para o movimento operrio e sin

    dical, utilizou a represso policial mais truculenta, invadindo os

    sindicatos de trabalhadores, prendendo os seus lderes, espan

    cando os seus militantes, cerceando as suas prticas de luta e de

    organizao, enquadrando os sindicatos por meio de uma legis

    lao controladora e restritiva e suprimindo, s vezes fisicamente,

    as esquerdas. O aparato repressivo, assim, ter-se-ia dedicado a

    eliminar os setores mais combativos da classe, aniquilando as

    veleidades autonomistas do movimento operrio e solapando

    as bases do sindicalismo mais avanado. A polcia, a legislao

    autoritria e os tribunais de exceo teriam impedido que os

    trabalhadores mais organizados seguissem os caminhos natu

    rais que os conduziriam a uma autntica identidade poltica.

    6

  • O P O P U L I S M O SUA H I S T R I A

    Assim, derrotando os grupos organizados, o Estado,

    concomitantemente, teria recorrido a uma segunda prtica, vol

    tando as suas baterias para o povo, ou seja, os assalariados

    que no conheciam as experincias do movimento sindical, os

    pobres e as pessoas comuns para utilizar a linguagem dos

    anos 60 e 70, os novos operrios de origem rural. Para o

    melhor sucesso de seus objetivos, o Estado utilizou os recursos

    oferecidos pelas modernas tcnicas de propaganda e de doutri-

    nao polticas. Com extrema habilidade, o governo de Vargw

    teria inculcado nas mentes das pessoas idias, crenas e valo

    res baseados na mentira, na iluso e na deformao ou inventa

    da realidade. Com o auxlio de seus intelectuais orgnicos, o

    Estado teria inundado a sociedade com imagens e smbolos de

    exaltao ao governo, utilizando como veculos rdios, cine

    mas, livros, jornais, biografias, cartilhas escolares, msicas, ea>

    tas, comemoraes cvicas etc. Assim, eliminando os operrio*:

    mais combativos, com a polcia, e manipulando o restante da

    populao, a partir dos meios de comunicao, o Estado po

    pulista teria alcanado amplo sucesso, sendo, dessa maneira,

    aceito como legtimo pelos trabalhadores.

    No h muitas dvidas sobre a represso policial que se abriu

    a partir de 1930, se acentuou em 1935 e tornou, a partir de

    1937, invivel qualquer resistncia ao regime. As pesquisas de

    monstram, s vezes de maneira irrefutvel, o processo repressi

    vo. Igualmente ficou comprovada a montagem de um comple

    xo sistema de propaganda poltica estatal coordenado, sistem

    tico e, dentro dos recursos da poca, sofisticado. O que se ques

    tiona abordar as relaes entre Estado e classe trabalhadora a

    partir de paradigmas explicativos, ao mesmo tempo opostos e

    S 7

  • complementares, centrados na represso e na manipulao,

    ambos surgindo como formas de violncia estatal sobre os assa

    lariados, fsica em uma dimenso, ideolgica na outra. Como

    diz Angela de Castro Gomes, elas so reconhecidas como fun

    damentais e como pano de fundo sem o qual uma reflexo mais

    refinada sobre seus impactos seria impraticvel. Trata-se, por

    tanto, de consider-las terica e empiricamente insuficientes t

    equivocadas para dar conta do fenmeno que est sendo exa

    minado, considerando-se sobretudo seus desdobramentos atra

    vs do tempo.M

    Como defendi em trabalho anterior, o mito Vargas no

    foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda polti

    ca, ideolgica e doutrinria veiculada pelo Estado. No h pro

    paganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que

    sustente uma personalidade pblica por tantas dcadas sem re

    alizaes que beneficiem, em termos materiais e simblicos, o

    cotidiano da sociedade. O mito Vargas expressava um con

    junto de experincias que, longe de se basear em promessas

    irrealizveis, fundamentadas to-somente em imagens e discur

    sos vazios, alterou a vida dos trabalhadores.11As matrizes tericas do segundo populismo, nos anos 80,

    portanto, distanciaram-se dos pressupostos defendidos nas d

    O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A ( R A S I I E I P A

    * Angela de Castro Gomes. Apresentao''. In Jorge Ferreira. Trabalhadores

    do Brasil. O imaginrio popular. Rio de Janeiro, Fundao Getlto Vargas,

    1997, p. 10.

    uJorge Ferreira. Idem. Alis, vale repetir uma taio do prprio Weffort,

    que, dcadas atrs, j observara que grupo burgus algum capaz, por si

    prprio, de inventar um poltico de massas. As condies de existncia das

    massas tm seu papel nesta invenio". Op. c., p. 34.

    a >

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  • 0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    cadas dc 60 c 70 em diversos aspectos, mas, igualmente, resga

    taram muitos de seus elementos. A noo permaneceu, contudo

    recebeu um tratamento mais sofisticado, atualizando-se com as

    tendncias historiogrficas do momento.

    No entanto, ainda na dcada de 80, houve tentativas de se,

    abandonar a noo de populismo. Diversos autores, evitando

    utilizar a expresso, passaram a ressaltar as polticas pblicas de

    controle social implementadas pelo Estado varguista, sobretu

    do no tocante ao controle operrio. Diante do avano da

    mobilizao dos trabalhadores desde a dcada de 1910, emfjjjfl

    ticular do movimento anarquista, e do conseqente perigo w

    revolues anticapitalistas, novas formas de dominao polftH

    foram implementadas. O poder, interpretado em um sendfl

    mais amplo, certamente sob a influncia das leituras de Micb|fl

    Foucault, no se limitou a agir pelas instncias repressivas

    Estado e por seus aparelhos ideolgicos". Imiscuindo-se d lj

    diversos campos do social, surgiram especialistas que formtilfl

    ram discursos racionais, no sentido sugerido pela chamadfj

    Escola de Frankfurt, Habermas em particular, sobre sade, ca B

    cao, sexualidade, habitao, pedagogia, educao fsica, oflj|

    dicina, direito, entre diversos outros. O objetivo dos espedH

    tas era conhecer o operrio. E, conhecendo-o, control-lo".

    Desqualificados em seu prprio saber, destitudos de legrtflfl

    dade para falarem por si mesmos e pela sociedade, os trabalhai

    dores deixar-se-iam dominar por um saber racional, porque dfl

    entfico, e, logo, apresentado como verdadeiro. A ordem social

    assim, no ficaria mais sob os auspcios da poltica, pois um

    saber tcnico e cientfico, portanto neutro, deveria tomar o sea

    lugar. Os discursos racionais e cientficos, revestidos de tod)|

    e 9

  • N O M t ( A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L T I C A R A S I K I R A

    uma eficcia tcnica, teriam elaborado variadas formas de co

    nhecimento especializado. Fundamentados na competncia tc

    nica, eles comearam a tomar corpo e forma nos anos 20 para

    invadirem todas as dimenses da sociedade nos anos 30.

    O enfoque do controle operrio surgiu como alternativa

    ao binmio represso-propaganda, centrando a anlise na efi

    ccia do poder baseado no argumento da racionalidade e da

    tcnica. Contudo, a abordagem, sabemos hoje, no foi to al

    ternativa como se pensava. Afinal, a represso policial e a pro

    paganda poltica tinham por objetivo a adeso dos trabalhado

    res e, portanto, o prprio controle. Sobretudo com a recepo

    da Histria Cultural no Brasil, percebeu-se que no h por que

    acreditar em uma relao sem mediaes entre as idias erudi

    tas e populares, que h um lapso entre a inteno de controlar e

    o efetivo controle, que o poder dos poderosos no to pode

    roso assim. Sem negar os recursos utilizados pelo Estado aps

    1930, ou ainda nos anos 20, para controlar a classe trabalhado

    ra e racionalizar a sua prpria existncia a partir de critrios

    tcnicos e cientficos, tornou-se necessrio relativizar o

    enfoque a fim de se evitar uma abordagem totalizadora, suge

    rindo estruturas capazes de diluir a existncia de sujeitos polti

    cos e sociais incapazes de super-las. Os mecanismos de con

    trole operrio" foram implementados, mas sua atuao e efic

    cia eram limitadas pela prpria cultura da classe trabalhadora.

    Seja como for, as insatisfaes permaneceram. Os enfoques

    no binmio represso-propaganda ou no controle, que

    ~amente no se opunham, pareciam insuficientes. Era

    explicar, de maneira mais incisiva e contundente, o su-

    de Getlio Vargas entre os trabalhadores. Para alguns au-

  • 0 P O P U L I S M O t S U A H I S T R I A

    torcs, poucos na verdade, as explicaes que ressaltavam a pro

    paganda poltica, a represso policial e o controle sodal no

    estariam necessariamente equivocadas, apenas no foram s il-

    timas conseqncias. A represso estatal e a propaganda polti

    ca no governo Vargas, portanto, sofreram uma leitura radicaLt

    Assim, ainda nos anos 80, e mesmo no incio da dcada se-

    guinte, as alternativas ao populismo no tardaram a chegar. Afi

    nados com os esquemas sociolgicos dos tericos do totalitaris

    mo, historiadores aproximaram o governo Vargas dos rqpmi

    de Hitler e Stalin. Multiplicando em muitas vezes a capacdMi

    da represso policial, at elev-la categoria de terror generaK

    zado, e ampliando ao mximo a eficcia da propaganda polfti

    ca, comparando-a s prticas nazistas e stalinistas, Vargas pas

    sou a ser definido como um lder totalitrio. A inovao apa

    rente e equivocada: novamente a represso e a propaganda,/

    como pressupostos centrais da anlise, permanecem inalteradas.*

    curioso observar, neste aspecto, como a teoria

    do totalitarismo seduziu muitos historiadores brasileiros. Em

    bora os especialistas da histria do socialismo, no Brasil e

    exterior, recusem a expresso,57 os debates sobre o carter totth

    Jorge Ferreira. Op. cit., p. 15.

    '*Na coleo Histria do marxismo, organizada por Eric Hobsbawm, bem

    como na coletnea Histria do marxismo no Brasil, no h um nico especi

    alista que adote a teoria do totalitarismo. Na avaliao de Martin Malia, a

    teoria do totalitarismo baseia-se em classificaes estticas, com forte ten

    dncia a abstraes atemporais. La tragdie sovtitique. Histont du socialiamt

    en Russie. 1917-1991. Paris, ditions du Seuil, 1995, p. 24. Ao dar excessivo

    poder s tcnicas de propaganda e ao terror poltico, a teoria do totalitarismo

    desvia a ateno do estudioso para a colaborao da prpria sodedad

    regime, da cumplicidade que se estabeleceu entre Estado e sodedade.

    9 1

    UserRealce

  • O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A M A i l l l l H A

    litrio ou no do Estado Novo, como lembra Maria Helena

    Capelato, geraram algumas polmicas.11Para Marc Ferro,1 inquietante, na verdade, o processo de

    banalizao do nazismo com a vulgarizao da teoria do totali

    tarismo, particularmente se considerarmos a contribuio dos

    prprios estudiosos do assunto. Se antes da Segunda Guerra

    somente os regimes de Hitler e Mussolini se definiam dessa

    maneira, aps 1945 o conceito se estendeu tambm para a Unio

    Sovitica.40 Com Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski e, sobre

    tudo, Erns Noite,41 diz Ferro, a equiparao dos campos de extermnio nazistas com os gulags soviticos encobriu o racismo,

    um dos pontos bsicos da poltica hitlerista. Em vrios estudos,

    a concluso, surpreendente, a de que o nazismo, como uma

    Veja Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 197 e seguinte.

    Marc Ferro. Histria da Segunda Guerra Mundial. So Paulo, tica, 1995.

    "No caio sovitico na poca de Stalin, diz Eric Hobsbawm, apesar de brutal,

    burocrtico e terrorista, o sistema sovitico no foi totalitrio. O romance

    1984, de George Orwell, sugeriu a imagem de uma sociedade totalitria,

    vfma de lavagens cerebrais, onde ningum escapava do olho vigilante do

    poder. Isso sem dvida o que Stalin teria querido alcanar", diz o autor. A

    maioria dos soviticos, continua o autor, no sc importava com as declara

    es sobre polftica e ideologia marxista-leninista vindas do lder e do parti

    do, desde que elas no atingissem seu cotidiano e sua vida comum. Somente

    os intelectuais e, certamente, os militantes filiados ao PCUS levavam a srio a

    teoria cientifica' do socialismo sovinco. O sistema, afirma Hobsbawm,

    no exercia efetivo controle da mente, e muito menos conseguia conver-

    so do pensamento (...), embora despolitizasse e aterrorizasse a sociedade.

    Era dos extremos. O breve sculo XX. 1914-1991. So Paulo, Companhia das

    Letras, 1995, pp. 383-384.

    4,Carl Friedrich e Zbigniew Brzezinski. Totalitarian dictatorship andautocracy.

    Cambridge, Harvard University Press, 1956; Emst Noite. Nazionalismo e e

    bolscevismo: Ia guerra civile europea 1917-194S. Florena, Sansoni Editora,

    1988.

    9 2

  • O P O P U L I S M O i S UA H I S T R I A

    forma extremada do fascismo, surgiu em reao ao totalitaris-

    mo sovitico e, para se defender, foi obrigado a imit-lo nos

    genocdios. Contradio flagrante, diz Ferro. Na impossibtlidKfi

    de de negar a existncia das cmaras de gs, embora tivessem a

    ousadia, as interpretaes revisionistas e negadonistas" do

    nazismo responsabilizaram a URSS pelos grandes massacres

    por essa brecha, desculpabilizaram a poltica nazi, apresentan

    do exemplos variados de genocdios: nas colnias europia ^

    faroeste norte-americano ou nas ditaduras dos pases pofara^J

    entre outros exemplos, os extermnios de populaes int

    tambm aconteceram. Chega-se, portanto, ao estgio i

    de normalizao do nazismo no Brasil, por exemplo, tem

    sido o caso do Estado Novo, um regime supostamente "totalit

    rio. Para o autor, definir o III Reich como fascista" on

    generalizaes como totalitrio encobrir a caracterfea

    central do regime: o dio racial e o projeto de dizimao i

    massa no somente de judeus, mas tambm de eslavos, cigano^

    deficientes fsicos, cardacos, entre outros.42 Assim, insiste cc razo o autor, identificar o terror hiderista ao terror da URSS

    corresponde a fazer tbula rasa da especificidade do

    que constituiu um dos pontos bsicos da poltica nazista de <

    mnio. Tal equiparao, segundo Ferro, contribui para o pr

    so de banalizao do nazismo no mundo atual.43 A excessiva1 garizao do termo, portanto, minimiza o nazismo e, no mesmo

    movimento, dilui os horrores perpetrados pelo III Reich.4Trata-se, portanto, de uma falsa questo discutir se o gover-

    Marc Ferro. Op. cit.

    uMarc Ferro. Idtm., p. 175.

    **Marc Ferro. ldem.

    9 3

  • no Vargas foi, ou no, totalitrio*. O que deve ser questiona

    do, como vem ocorrendo entre os especialistas da histria do

    socialismo, a prpria teoria sociolgica do totalitarismo.

    As vertentes do populismo de segunda gerao a aborda

    gem que privilegia o binmio represso-propaganda, a teoria

    do controle social e o enfoque totalitrio tm em comum

    uma maneira de abordar as relaes entre Estado e sociedade/

    classe trabalhadora. Como em uma via de mo nica, de cima

    para baixo, luz do enfoque opressor e oprimido, o Estado,

    todo-poderoso, pela violncia fsica e ideolgica, domina e sub

    juga a sociedade, os trabalhadores em particular, surgindo, des

    se modo, uma relao destituda de interao e interlocuo

    entre as partes. O Estado, com um poder desmedido, total

    em algumas verses, transforma a sociedade em elemento passi

    vo, inerte e vitimizado. Assim, no Brasil, em 1930, 1935 ou

    certamente em 1937, os governantes, armados com variados

    dispositivos simblicos de dominao ideolgica, em alguns

    casos psicolgica, teriam tido a capacidade de manipular, por

    meio de imagens e representaes, as emoes e a sensibilidade

    das pessoas, dominando, inclusive, as suas mentes.

    As delaes que ocorreram na poca do Estado Novo, por

    exemplo, comprovariam a capacidade do poder estatal de pressi

    onar os indivduos, deixando-os tensos, apreensivos e inseguros.

    Muitos teriam escrito cartas a Vargas, ao Dops ou polcia de

    nunciando os opositores do regime porque se encontravam ate

    morizados, ou aterrorizados, com as supostas ameaas dos inimi

    gos, reais ou fictcios, ao governo e, portanto, ordem social.

    Na poca do primeiro governo Vargas, muitas foram as

    denncias deste tipo, e, hoje, facilmente as encontramos no

    UserRealce

  • Arquivo Nacional ou nos arquivos do Dops. So delaes de

    que o vizinho era integralista ou comunista; as famlias alems

    no falavam portugus; o comerciante da esquina estocava ali

    mentos; o fulano era um conhecido agiota. Todas as denncias

    eram seguidas de nomes e endereos. Supor que as pessoas de

    latavam as outras por presses simblicas do Estado ter como

    premissa que a sociedade, em seu estado normal, seria

    mas, ao ser corrompida moralmente pelos governantes do Esta

    do Novo, ter-se-ia transformado em um bando de delatores.

    Mais difcil, repito, compreender que a sociedade, em si mee*

    ma, no era to boa e isenta de culpas, e que nela circulavaMC

    preconceitos contra judeus; manifestavam-se rancores coam

    alemes e japoneses, sobretudo durante a Segunda Guerra Mun

    dial; existiam pessoas com horror dos comunistas ou doa

    integralistas; encontravam-se alguns que queriam punir o COH

    merciante da esquina desmedido em seus lucros; havia outras

    que desejavam livrar-se das dvidas com o agiota e, em algmMj

    casos, mais raros, do prprio marido. Se havia uma d itadu^

    que se mostrava disposta a ajud-las, o caminho ficava mais f

    cil. Em outras palavras, as relaes entre Estado e sociedade

    no eram de mo nica, de cima para baixo, mas, sim, de

    mterlocuo, de cumplicidade.

    Sobre as vertentes que insistem em virimizar a sociedade,

    retomo, aqui, as idias de Jos Murilo de Carvalho, que notf

    adverte sobre os perigos de se tratar uma relao de manein.'

    maniquesta, segundo a qual o Estado apresentado como vi

    lo e a sociedade como vtima indefesa e que, portanto, a

    inexistncia da cidadania simplesmente atribuda ao Estado^

    Insatisfatria, como todas as que trabalham com dicotomias

    UserRealce

  • 0 N O M E I A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A M A S 11 f I ft A

    explicar fenmenos sociais, essa perspectiva, em termos teri

    cos, separa partes de um mesmo todo. Mais ainda, diz o autor,

    o maniquesmo inviabiliza mesmo qualquer noo de cidada

    nia, pois, ou se aceita o Estado como um mal necessrio, ma

    neira agostiniana, ou se o nega totalmente, moda anarquista.

    Na prtica, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em

    relao ao povo, ao consider-lo vtima impotente diante das

    maquinaes do poder do Estado ou de grupos dominantes.

    Acaba por bestializar o povo. Para o autor, mais fecundo ver

    as relaes entre o cidado e o Estado como uma via de mo

    dupla, embora no necessariamente equilibrada.45As abordagens que privilegiam o poder estatal nas relaes

    entre Estado e classe trabalhadora a partir de 1930 no se afas

    taram, no fundamental, das mesmas preocupaes polticas que

    intrigaram lderes, tericos e militantes de esquerda desde o

    sculo XIX: se a classe operria tem um caminho a seguir e um

    destino a cumprir, se sua vocao 6 elaborar uma identidade

    poltica autnoma, como, ento, ela se submete politicamente e

    segue lderes populistas ou totalitrios? A resposta, garan

    tia o marxismo mais vulgarizado, no era difcil: por meio da

    represso aberta e dos efeitos mistificadorcs da ideologia, as

    classes dominantes garantiam e reproduziam o seu poder. Algu

    mas, mais tarde, levando ao extremo o conceito gramsciano de

    hegemonia, acreditaram mesmo que somente os intelectuais

    marxistas teriam a capacidade de superar as iluses fabricadas

    pela ideologia burguesa.4*

    ^Jo Murilo de Carvalho. Op. cit., pp. 10-11.

    Jorge Ferreira. Op. cit., p. 15.

    9 6

    UserRealce

    UserRealce

  • A histria da classe trabalhadora no Brasil, sobretudo com t

    ascenso de Vargas ao poder, reduz-se, assim, a uma espcie de

    conspirao das classes dominantes, sempre criadoras de dis

    positivos ideolgicos, mecanismos eficientes de controle social,

    meios habilssimos de propaganda poltica, instrumentos sutis

    de doutrinao das mentes, entre outros meios para manipular,

    dominar e desvirtuar os assalariados de seus reais e verda

    deiros" interesses. Estranha classe operria, no Brasil e nos pa

    ses de capitalismo avanado. Forte o suficiente para revolucio

    nar o planeta, mas enganada por qualquer lder populista",

    totalitrio ou traidor que aparea no seu caminho. Como

    diz Barrington Moore Jr., no importa de onde venham as U9

    terpretaes, moderadas ou revolucionrias, a histria da h a

    dos trabalhadores por suas conquistas confunde-se com a his-

    tria da domesticao do proletariado.47

    DE GRAMSCI A GINZBURG, DE FOUCAULT A THOMPSON

    Em meados dos anos 80, muitos historiadores brasileiros adota

    ram, em ritmos e graus variados, a literatura de autores identiK

    cados com a histria cultural. Muito resumidamente, as anlise#

    negam que as classes dominantes tenham o monoplio exclusi

    vo da produo de idias. Os trabalhadores, os camponeses e a i

    pessoas comuns tambm produzem suas prprias crenas, valo

    res e cdigos comportamentais, o que, no conjunto, convendo-

    TJarrington Moore Jr. Injustia. As bases sociais da obedincia e da revolteu

    Sio Paulo, Brasiliense, 1987, p. 245.

  • O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A I R A S I L d f t A

    nou-se chamar de cultura popular. Cario Ginzburg, por exem

    plo, sugeriu o conceito de circularidade cultural e demonstrou,

    em um estudo de caso, que as idias no so produzidas apenas

    pelas classes dominantes e impostas, sem mediaes, de cima

    para baixo.4* As pesquisas em histria cultural concordam que

    as idias, longe de serem institudas por um grupo e dissemina

    das por toda a sociedade, circulam e, como defende Roger

    Chartier, as camadas populares se apropriam das mensagens

    dominantes, dando-lhes novos e diferentes significados.49 Peter Burke, por sua vez, critica o que chama de teoria do rebaixa

    mento, qualificada por ele de tosca e mecnica. Para o autor,

    as imagens e as histrias no so passivamente aceitas pelos

    expectadores e ouvintes: as mentes das pessoas comuns no

    so como uma folha de papel em branco, mas esto abastecidas

    de idias e imagens; as novas idias, se forem incompatveis com

    as antigas, sero rejeitadas.50 A noo de resistncia cultural, assim, tornou-se parte integrante de muitos estudos. Enfim, di

    versos outros autores, a exemplo de Robert Darnton, Natalie

    Zemon Davis, Giovani Levi, para citar os conhecidos, afirmam

    que a ideologia dominante de uma sociedade no to domi

    nante quanto se pensava.

    No Brasil, muitos historiadores, sem abandonarem seus pr

    prios mtodos de trabalho, passaram a utilizar o conceito de

    Cario Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e a* idia* d* um moleiro

    perseguido pela Inquisio. Sio Paulo, Companhia das Letra*, 1987.

    'Roger Chartier. A histria cultural-, entre prticas e representaes. Lisboa,

    Difel, 1990, pp. 136-137.

    "Peter Burke. A cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. Sio

    Paulo, Companhia dai Letras, 1989, p. 86.

    9

  • O P O P U L I S M O t SUA H I S T R I A

    cultura categoria at ento restrita s anlises antropolgi

    cas. Atravs de uma narrativa densa, os pesquisadores pas

    saram a reconstituir aspectos do passado colonial brasileiro, a

    sociedade escravista e, na Primeira Repblica, a vida social e

    os movimentos populares. Em suas pesquisas, eles avaliaram

    que estas pessoas comuns, embora oprimidas por um poder

    que, muitas vezes, escapava sua compreenso, necessaria

    mente no se deixaram iludir ou manipular. Particularmente

    na Primeira Repblica, seja em Canudos, nas reformas de B&-

    reira Passos, na Revolta da Vacina ou com os anarquistas, o h

    bora haja um Estado repressivo e exdudente, ele no surge

    como todo-poderoso a ponto de moldar as mentes e os com

    portamentos de trabalhadores e populares. Estes, de mane$||

    diversa, so tratados como pessoas portadoras de idias, crcal

    as e tradies que atuaram e, muitas vezes, se revoltaram core

    tra a ordem vigente. Assim, os pesquisadores que voltam suas

    preocupaes para perodos anteriores a 1930 no encontnH

    ram tantas dificuldades para interpretar as prticas e repre

    sentaes de trabalhadores e populares, bem como as suas re

    laes com o poder estatal o que no casual. Afinal, nos

    perodos colonial, imperial e na Primeira Repblica, os pe**

    quisadores no transformaram as classes dominadas em obje

    tos de regulamentao e manipulao do Estado, e nem re-

    ponsabilizaram escravos, brancos pobres, camponeses ou as

    salariados urbanos por se iludirem com as ideologias donr^j

    nantes.

    No entanto, ainda so poucos aqueles que incorporaram o

    enfoque cultural nas suas reflexes sobre a histria poltica bra

    sileira aps 1930, particularmente nas relaes entre Estado e

    9 9

  • 0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L T I C A B R A S I L E I R A

    classe trabalhadora. Parece-me que as indicaes tericas da

    Histria Cultural perdem a validade especialmente quando se

    trata de estudar trabalhadores e populares aps aquela data,

    particularmente durante o primeiro governo" de Getlio

    Vargas, e mesmo aps 1945. Poucos so os historiadores que

    aplicam os conceitos de cultura, tradio, circularidade, apro

    priao, resistncia, entre diversos outros, para o tratamento

    do tema.

    As dificuldades existem, por mais que os historiadores

    etnogrficos h bastante tempo nos ensinem que, se a cultura

    erudita tem o objetivo de subjugar os povos, no h por que

    acreditar, como afirma Roger Chartier, que estes foram real,

    total e universalmente submetidos. Para o autor, preciso, ao

    contrrio, postular que existe um espao entre a norma e o vivi

    do, entre a injuno e a prtica, entre o sentido visado e o sen

    tido produzido, um espao onde podem insinuar-se refor

    mulaes e deturpaes.51 Contudo, a impresso que tais indicaes so levadas a srio para antes de 1930. Para depois,

    no. A histria da classe trabalhadora a partir de 1930, assim,

    torna-se um grande ardil das classes dominantes, que, pela pro

    paganda poltica e a doutrinao das mentes, entre outros dis

    positivos ideolgicos, desviam os trabalhadores de seus verda

    deiros objetivos.

    Se a Histria Cultural no foi suficiente para a superao

    das dificuldades, tambm parece ser o caso de um autor que h

    "Roger Chartier. Cultura popular': revuitando um conceito hUtoriogrico".

    In Estudos Histricos, n 16. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1995,

    p. 182.

    1 0 0

  • O P O P U L I S M O E SUA H I S T R I A

    mais de uma dcada vem influenciando a produo historio-

    grfica brasileira: E.P. Thompson. Suas idias e sugestes

    metodolgicas tm sido apropriadas no Brasil nos mais diverso*

    e studos, dos motins populares s festas, das organizaes culttl*

    rais dos operrios aos rituais, entre outras temticas. No entan

    to, a questo central de sua obra, o processo de formao da

    llasse trabalhadora, surge prioritariamente nos estudos sobre

  • jtc

    Don

    p- x

    itsfo

    jw

  • 0 F O F u i i S M O e s u a h i s t r i a

    tado exige. Como ele diz em seu estilo irnico, tais concepes

    surgem como um roteiro comovente, prprio de filmes infan

    tis: (...) a malvada bruxa do Estado aparece! A varinha mgica

    da ideologia i agitada! E, pronto. Surge, assim, o movimento

    sindical reformista. Embora o ato de chamar ocorra em qual

    quer sociedade, alega o autor, no h por que acreditar que os

    trabalhadores necessariamente atendam, exceto se eles forem

    transformados em seres passivos e sem iniciativa prpria.

    Houve, decerto, a interveno estatal, insisto. Sobretudo td

    partir de 1942, a formulao do projeto trabalhista pelo EsttdflJ

    contribuiu, de maneira decisiva, para configurar uma identid*

    de coletiva da classe trabalhadora. Mas, em qualquer experin-*

    cia histrica, os assalariados sofrem influncias dos contextc

    sociais, polticos e ideolgicos em que vivem. No caso brasilei

    ro, como em outros, tratou-se de uma relao, em que as partes,

    Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comiiiMM

    No trabalhismo, estavam presentes idias, crenas, valores e

    cdigos comportamentais que circulavam entre os prprio* tra-

    balhadores muito antes de 1930. Compreendido como um <

    iunto de experincias polticas, econmicas, sociais, i

    e culturais, o trabalhismo expressou uma conscincia de classe,

    legtima porque histrica.

    Por este enfoque, os trabalhadores, ao viverem sua |

    histria, deixam de ser considerados simples objeto de i

    mentao estatal. O prprio projeto trabalhista, para i

    preendido e aceito, no pode ignorar o patrimnio ;

    presente na cultura poluca popular. O sucesso do {

    portanto, no foi arbitrrio, e muito menos imposto pela j

    paganda poltica e pela mquina poiiaL Igualmente,

  • 0 N O M E I A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I R A S I L E I R A

    casual que o PTB, a institucionalizao do projeto, tenha sido a

    organizao mais popular durante a experincia democrtica

    ps-45, tornando-se, em 1964, a maior agremiao no espectro

    poltico do pas.

    Por fim, uma advertncia bastante contundente do histo

    riador ingls. Trata-se dos perigos de enfocar as relaes en

    tre Estado e classe trabalhadora a partir de cima, dando ao

    aparato estatal, ou s classes dominantes, um poder desme

    dido. Trata-se, para o autor, de uma maneira elitista de tratar

    uma relao:

    Mais uma vez os intelectuais um grupo escolhido entre

    eles receberam a tarefa de iluminar o povo. No h rrao

    mais caracterstico dos marxismos ocidentais, nem mais

    revelador de suas premissas profundamente antidemocrticas.

    Seja a Escola de Frankfurt ou Althusser, esto marcados pela

    sua acentuada nfase no peso inelutvel dos modos ideolgi

    cos de dominao dominao que destri qualquer espao

    para a iniciativa ou criatividade da massa do povo , uma

    dominao da qual s uma minoria esclarecida de intelectuais

    pode se libertar. Sem dvida, essa predisposio ideolgica

    foi alimentada pelas experincias terrveis do fascismo, da

    doutrinao da massa pelos meios de comunicao e do pr

    prio stalinismo. , porm, uma triste premissa para a teoria

    socialista (todos os homens e mulheres, exceto ns, so origi

    nalmente estpidos) e destinada a levar a concluses pessi

    mistas ou autoritrias.11

  • O "COLAPSO" DO POPULISMO

    Como poltica de massas, estilo dc governo e tendo por idias j

    bsicas o controle, a manipulao e a tutela do Estado, a noo J

    dc populismo, no dizer de Angela de Castro Gomes, tomou-se, ;

    em fins dos anos 70, quase uma imposio, pelo compar- ,

    tilhamento j alcanado e pela falta de verses de maior trosNl

    to".56 No entanto, no eram incomuns, mesmo no incio dessa i

    dcada, insatisfaes e inconformismos com a expresso.

    trabalho ainda muito atual, Celso Frederico, j em 1970,

    tionava: |||

    Seja nessas interpretaes convencionais [teorias da modei|9

    nizao], seja em ensaios mais refinados como os de F. C.

    Weffort, o populismo sempre visto como um desvio, uridHj

    simples deformao ideolgica, uma falsificao da coiwd^H

    ncia de classe.57 5

    Embora com as limitaes impostas pelas teorias vigen||H

    naquela poca, o autor expressou suas dvidas certamente poftj

    entrevistar operrios de carne e osso, conhecendo-os de perto.

    Frederico no encontrou, e demonstrou isso com muito taleM

    to, trabalhadores manipulados, iludidos e desviados dos seus

    reais interesses.

    Somente em fins daquela dcada, surgiram as primeiras veM

    O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    Angela de Castro Gomes. Op. cit., p. 50.

    Celso Frederico. Conscincia operria no Brasil. So Paulo, tica, 1979, p

    121.

    1 0 s

  • 0 N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA R O l l T I C A B R A S I L E I R A

    ses alternativas, sobretudo anlises que apontavam para as

    interaes entre o projeto varguista e as demandas dos prprios

    trabalhadores antes de 1930. Recusando as concepes que su

    geriam os desvios ideolgicos da classe trabalhadora, catego

    ria que implicitamente apontava para um caminho verdadei

    ro, um grupo de cientistas polticos interpretou a conscincia

    de classe como algo que se define por uma complexa interao

    com o Estado e os empresrios. Maria Hermnia Tavares de

    Almeida, Luiz Werneck Vianna e Wanderley Guilherme dos San

    tos ofereceram, assim, importantes contribuies.51Em compasso com o ambiente intelectual propcio para ver

    ses alternativas, outros pesquisadores, em diferentes regies

    do pas, e no apenas no eixo Rio-So Paulo, passaram a criticar

    o populismo na poltica brasileira alguns deles sob a influ

    ncia das interpretaes gramscianas de Ernesto Laclau sobre o

    fenmeno na Argentina. Flvio Henrique Albert Brayner,60 por exemplo, criticou os que, tomando como texto-base o discurso

    de posse de Miguel Arraes no governo de Pernambuco, no in

    cio dos anos 60, classificaram sua proposta poltica como

    populismo de esquerda fenmeno que se caracterizaria pela

    mistificao das relaes de classe, pela presena da mstica Povo-

    Maria Hermnia Tavares de Almeida. Estado e classe trabalhadora no Brasil

    (1930-1945). Tese de doutoramento. Sio Paulo, USP, 1978 (mimeo); Luiz

    Werneck Vianna. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e

    Terra, 1978; Wanderley Guilherme do* Santos. Cidadania * justia: a poltica

    social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979.

    "Ernesto Laclau. M tica t ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro, Paz e

    Terra, 1979.

    **FI4vjo Henrique A. Brayner. Partido Comunista em Pernambuco. Recife,

    Massangana, 1989.

    1 0 6

  • Comunidade. Questionando a indefinio conceituai de po-

    pulismo de esquerda", o que implicaria um de centro e outro

    de direita", Brayner afirma que os autores gostariam de ver

    um discurso que trouxesse um corte de classe preciso, um

    pertencimento de classe facilmente observvel a olho nu. fta*-

    sam as classes, e suas ideologias, sob a forma da reduo. Vem

    a utilizao da categoria POVO no discurso de Arraes como a

    prpria negao do conflito de classes.41

    Miguel Bodea, por sua vez, com base em extensa pesquisa,

    questionou em Weffort a tipologia da relao lder populista-

    massas populares e a idia de que o populismo teria sido na*

    pouco mais que uma forma pequeno-burguesa de consaMH

    o do Estado,u uma vez que desestimularia a organizao

    partidria. Bodea, igualmente influenciado pelas reflexes de

    Laclau, demonstrou como Getlio Vargas, Alberto Pasqualiny

    Joo Goulart e Leonel Brizola primeiro firmaram suas lide*;

    ranas em uma estrutura partidria regional e somente depo^

    se projetaram na poltica nacional. A ascenso ocorreu dentro

    do partido poltico, e no, como muitos parecem supor, a

    partir de uma relao carismtica direta entre o lder e as mas

    sas populares. Para o autor, o carisma, quando houve, de

    senvolveu-se a posteriori. Assim, a liderana de Pasqualini

    impensvel fora do PTB gacho. Sem a organizao partid

    ria, certamente ele seria um personagem desconhecido. Goulart

    I 'Uem, p. 114

    I HFranaco Weffort. Op. cit., p. 73.

  • e Brizola, por sua vez, no alcanariam a projeo nacional

    sem um PTB forte a nvel regional. Mesmo Vargas, at chegar

    categoria de mito poltico, lutou por quase trs dcadas para

    se impor no Partido Republicano Rio-Grandense. Com base

    em farta documentao, o autor rejeita as indicaes sugeridas

    por Weffort de que o lder ser sempre algum que j se en

    contra no controle de alguma funo pblica um presiden

    te, um governador, um deputado etc."63 Em sua pesquisa, contrape Bodea:

    Na avaliao de todas estas carreiras polticas (...) torna-se pa

    tente que nenhum destes lderes teria desenvolvido seu prest

    gio junto s massas ao menos no mbito regional sem

    passar pelo crivo do partido, com suas disputas internas e a

    luta constante pelo voto dos delegados s convenes partid

    rias. Evidentemente, depois de verem sacramentadas suas lideranas e candidaturas no nvel partidrio, todos estes lderes criaram uma projeo prpria de liderana de massa para fora e at acima do partido.64

    nesse contexto de insatisfaes e de procura de alterna

    tivas que vem a pblico, em 1988, A in v e n o d o tra b a lh ism o , de Angela de Castro Gomes. Inicialmente, importante res

    saltar, o trabalho foi recebido com certa inquietao. Afinal,

    no se rompe com todas as premissas da noo de populismo

    e, portanto, com uma tradio longamente aceita e compar

    O N O M I E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A I f t A S I l E I R A

    *Idem. Miguel Bodea. Trabalhismo t populismo no Rio Grande do Sul. Porto Ale

    gre, Editora da UFRGS, 1992, p. 197.

    1 0 8

  • tilhada sem custos. Assim, foi preciso esperar que uma gera

    o de historiadores, influenciados pelas abordagens cultu-

    rais, pelas leituras antropolgicas, pela recepo da assim

    chamada Histria Poltica renovada e, particularmente, pe

    las idias de Thompson, estivesse receptiva para compreen

    der a poltica brasileira entre 1930 e 1964 sob novos enfoques.

    Dez anos aps sua primeira edio, A in ven o d o trabalhismo passou a sofrer uma nova leitura, menos inquietante e mais

    reflexiva.

    Seja como for, em fins dos anos 90, aqueles que recusaram

    as abordagens que privilegiam a manipulao e a tutela estatal

    dos trabalhadores aps 1930 deixaram de ser vozes isoladas.

    Diversos autores vm contribuindo para desacreditar, uma a

    uma, as premissas do populismo na poltica brasileira. As

    sim, Lucflia de Almeida Neves e Maria Celina DArajo, cada.

    uma sua maneira, demonstraram que o trabalhismo no se

    reduziu mera manipulao poltica, e que o PTB, igualmen

    te, no se resumiu a um partido de pelegos.45 Argelina Cheibub Figueiredo, em trabalho inovador, comprovou a

    insustentabilidade da tese clssica que explicaria o colapso

    do populismo pelas mudanas nos padres de acumulao

    capitalista vale dizer, pelo determinismo econmico.64 Maria Helena Rolim Capelato, em sua pesquisa comparativa so-

    "Luclia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964).

    Sio Paulo, Marco Zero, 1989 veja tambm artigo da mesma autora neta

    coletnea; Maria Celina DArajo. Sindicatos, carisma e poder. O PTB de

    1945-65. Rio de Janeiro, Ed. da Fundao Getlio Vargas, 1996.

    Argelina Cheibub Figueiredo. Democracia ou reformas? Alternativas

    crdticas i crise poltica: 1961-1964. Sio Paulo, Paz e Terra, 1993.

  • bre o Estado Novo e o peronismo, relativiza o poder da pro

    paganda poltica de massas. Para a autora, a eficcia das men

    sagens depende dos cdigos de afetividade, costumes e ele

    mentos histrico-culturais dos receptores. Sem a presena

    desses elementos, uma mquina propagandstica, mesmo po

    derosa e sofisticada, cai no vazio. Em teses e dissertaes que

    orientou, surgem contrariedades com as premissas que insis

    tem na capacidade de manipulao estatal das conscincias

    pelos meios de comunicao.47 No meu prprio livro, Trabalhadores do Brasil. O imaginrio popular, procurei reconstituir,

    ainda que parcialmente, idias, experincias e estratgias pol

    ticas de trabalhadores e populares, demonstrando que eles no

    estavam manipulados ou iludidos na poca do primeiro go

    verno de Vargas."

    Mais ainda, em programas de ps-graduao em Histria,

    grupos de pesquisadores, instituindo escolas historiogrficas,

    atualmente formam jovens historiadores crticos da noo de

    populismo.

    O populismo, portanto, parece entrar em colapso. Eviden

    temente que no no sentido dado por Octavio Ianni, mas, sim,

    em sua prpria lgica explicativa. Embora, por uma questo de

    cautela, no se deva subestimar a fora das tradies.

    0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I f t A S t l E I R A

    7Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 203 e 205. Veja, da mesma

    autora. Multides em cena. Propaganda poltica no varguismo e no peronismo.

    Campinas, Papirut, 1998.

    Jorge Ferreira. Op. cit.

    t 1 0

  • 0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A

    A INVENO" DO POPULISMO

    As palavras populismo" c populista no estavam disponveis

    no vocabulrio poltico e na linguagem cotidiana do pas na

    poca do primeiro governo de Vargas. No existiam, simples

    mente. Ento, afinal, quem inventou o populismo?

    No Brasil, o primeiro historiador a defender que a propa

    ganda poltica estatal se mostrou eficaz na manipulao dos tra

    balhadores, e da o apoio deles a Vargas, foi Karl Loewenstein,

    em livro publicado ainda em 1942. A interpretao liberal da

    quele fenmeno percorre a sua anlise.49No entanto, o ano de 1945 foi crucial para a formulao e

    o estabelecimento da crena de que o prestgio do ditador en

    tre os assalariados urbanos constituiu obra da mquina propa-

    gandstica do DIP. Nesse ano, em pleno processo de demo

    cratizao, o pas conheceu uma grande mobilizao em favor

    da continuidade de Vargas no poder. O queremismo, movi*

    mento de propores grandiosas, somente comparado AH*

    ana Nacional Libertadora e campanha das Diretas J, irri

    tou profundamente os grupos liberais de oposio ao Estado

    Novo. Para as foras liberais e antigetulistas, havia uma gran*

    de dificuldade para compreender e assimilar manifestaes po

    pulares de defesa do ditador. Nos jornais, os violentos ataques

    a Vargas tornavam-se, ao mesmo tempo, argumento*

    **Karl Locwenstein. Brazil undrr Vargas. Nova York, Macmillan Company,

    1944 (1* ediio de 1942). Agrad