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Revista FORPROLL | 73
MOVIMENTOS DE RUPTURA NOS RELATOS DE
APRENDIZAGEM DE O MESTRE IGNORANTE, CONTO DE
ESCOLA E OS DESASTRES DE SOFIA
BREACH MOVEMENTS IN THE LEARNING NARRATIVES OF O MESTRE IGNORANTE,
CONTO DE ESCOLA AND OS DESASTRES DE SOFIA
Francine Bystronski Puchalski1
RESUMO: Este trabalho busca realizar uma intepretação de O mestre ignorante, de Rancière, de Conto de escola, de Machado de Assis, e de Os desastres de Sofia, de Clarice Lispector, destacando de que maneira se instauram momentos de ruptura nos relatos de aprendizagem narrados nas obras. Inicialmente será analisado o relato de O mestre ignorante, que traz uma situação real de aprendizagem vivenciada por Joseph Jacotot e seus alunos no século XIX. O objetivo é perceber como o objeto do livro é fundamental na emancipação intelectual dos sujeitos envolvidos. Posteriormente, serão analisados os contos de Machado e Clarice: no primeiro serão examinados a figura do professor e o medo que incute nos seus alunos, bem como o tipo de conhecimento adquirido pelo narrador-personagem; no segundo conto serão percebidos os vínculos entre professor e aluna, constatando como ocorre uma inversão na hierarquia da transmissão de conhecimentos. Dessa forma, busca-se um diálogo entre os textos através de alguns temas tratados por Rancière em O mestre, tais como a lógica explicadora e as relações entre mestres e alunos, tendo como núcleo os momentos de dissensão, que se tornam oportunidade para aprendizagens à margem do sistema tradicional de ensino.
ABSTRACT: This paper aims to perform a reading of O mestre ignorante, by Rancière, Conto de escola, by Machado de Assis, and Os desastres de Sofia, by Clarice Lispector, highlighting how the breach moments in the learning narratives are established in the works. Initially it will be analyzed the narrative of O mestre ignorante, which brings a real learning situation experienced by Joseph Jacotot and his students in the 19th century. The goal is to realize how the book as an object is important for the intellectual emancipation of the subjects involved. Later, the short stories of Machado and Clarice will be studied: in the first story will be examined the teacher description and the fear he causes on his students, as well as the type of knowledge acquired by the narrator-character; in the second story the links between teacher and student will be perceived, noting how there is an inversion in the hierarchy of knowledge transmission. Thus, we seek a dialogue between texts through some subjects covered by Rancière in O mestre, such as the explainer logic and the relationship between teachers and students, with the core moments of dissension, which become opportunity for learning outside the traditional education system.
PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem, contos, personagens, mestre, aluno.
KEYWORDS: learning, short stories, characters, master, student.
1 Mestranda em Estudos Literários Aplicados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].
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1. INTRODUÇÃO
Na vivência escolar de alunos e professores, os relatos de aprendizagem possuem
dupla finalidade: uma individual e outra social. A primeira seria registrar a aprendizagem
alcançada para enriquecer o caminho intelectual de quem a adquiriu; e a segunda comunicá-
la aos demais, a fim de que os outros também se beneficiem de uma experiência que vale a
pena ser compartilhada, pois traz alguma situação inovadora ou proveitosa para o âmbito
educacional.
Esse panorama muitas vezes é alterado, no entanto, pelo surgimento de
experiências que se constituem como uma verdadeira quebra de paradigmas, instaurando
incertezas sobre a transmissão de conhecimento, desfazendo os laços entre saber e poder e
entre as fronteiras que separam aquele que sabe daquele que aprende. Este é o caso da
experiência de Joseph Jacotot, narrada por Jacques Rancière em O mestre ignorante. Nesta
obra o autor percorre a aventura intelectual pela qual passou o pedagogo francês, que foi
capaz de transformar os conceitos do que é aprender, e de como se pode aprender, tendo
como mestre alguém “ignorante” a respeito do conteúdo que ensina.
Além de uma experiência real, também a literatura ficcional aborda momentos de
aprendizagens desde o ponto de vista dessa quebra de padrões. Conto de escola, de Machado
de Assis, e Os desastres de Sofia, de Clarice Lispector, são contos que estabelecem um
deslocamento da ordem sobre o que se considera o ensino tradicional, promovendo
movimentos de dissensão que resultam em alguma aprendizagem. Nessas narrativas estão
presentes diferentes interações entre professores e alunos, assim como reações de
resistência dos estudantes com relação ao sistema explicativo imposto pela escola, tornando
possível pensar os contos à luz da abordagem de Rancière em O mestre ignorante.
2. “UMA AVENTURA INTELECTUAL”: O LIVRO E A LIBERDADE DAS
INTELIGÊNCIAS
No primeiro capítulo de O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual,
intitulado “Uma aventura intelectual”, Rancière narra a inusitada experiência de Jacotot
como professor de alunos falantes de holandês, e de como o resultado dos estudos saiu
além do esperado, pois devia ensinar francês a estudantes que desconheciam o idioma,
enquanto ele nada sabia de holandês. Tendo apenas uma edição bilíngue do livro Telêmaco
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como instrumento para ensinar a língua, o mestre solicitou aos alunos que buscassem
aprender o francês tendo como apoio apenas a tradução. A surpresa de Jacotot pelo
resultado é assim expressa por Rancière (2011, p. 18-19):
Ele solicitara aos estudantes assim preparados que escrevessem em francês o que pensavam de tudo quanto haviam lido. “Ele estava esperando por terríveis barbarismos ou, mesmo, por uma impotência absoluta. (...) Mas qual não foi sua surpresa quando descobriu que seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses! Não seria, pois, preciso mais do que querer, para poder? Todos os homens seriam, pois, virtualmente capazes de compreender o que outros haviam feito e compreendido?
A partir da constatação de que seus alunos aprenderam o idioma sem sua
intervenção direta e fazendo uso de um livro bilíngue, Jacotot percebeu os problemas dos
sistemas explicativos, que não permitem ao aluno a liberdade de utilizar sua inteligência na
busca de conhecimentos, e os limites impostos pela figura de um mestre explicador. Há na
descoberta do professor um primeiro momento de tomada de consciência, de ruptura de
uma ordem pré-estabelecida, em que a figura do mestre é contestada e os alunos assumem
o protagonismo de suas próprias aprendizagens.
A experiência de Jacotot produz uma alteração na hierarquia intelectual que orienta
a vinculação entre mestres e alunos. Não mais as explicações e a reprodução destas são
vistas como o modelo inquestionável de como se produz conhecimento. As funções
atribuídas a cada parte são transformadas, havendo uma reconfiguração da partilha do
sensível derivada das novas disposições de sentidos percebidas por Jacotot. Segundo
Rancière (2005, p. 16):
A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter essa ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum, dotado de uma palavra comum etc.
Dentro do universo dessa partilha havia uma divisão de papéis bem determinados,
no qual o educador ensina os educandos; porém, foram os alunos que ensinaram ao mestre
algo diferente e inesperado. Assim, a partilha do sensível sofre modificação na sua ordem,
pois as figuras do mestre e do aprendiz perdem seu caráter absoluto e tornam-se
intercambiáveis, relativas.
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Entre a explicação do professor e a compreensão do aluno se interpôs o objeto do
livro, a partir do qual os estudantes fizeram seu itinerário de aprendizagem da língua
francesa. Para Rancière (2011, p. 63), “o livro é a igualdade das inteligências”, já o método
explicador de ensino é visto como a verdadeira causa de uma estagnação das inteligências e
fruto de uma “educação” embrutecedora:
O livro sela a nova relação entre os dois ignorantes que a partir daí se reconhecem como inteligências. E essa nova relação transforma a relação embrutecedora da instrução intelectual e da educação moral. Em vez da instância disciplinadora da educação, intervém a decisão da emancipação, que torna o pai ou a mãe capaz de representar, para o seu filho, o papel do mestre ignorante em quem se encarna a exigência incondicionada da vontade. (RANCIÈRE, 2011, p. 63)
Os alunos de Jacotot aprenderam uma língua lendo um livro literário, Telêmaco, que
foi capaz de remover as distâncias entre as inteligências do mestre e do aluno, vistas agora
como iguais. Já o método Velho (nas palavras de Rancière), sustenta que as inteligências são
diferentes, sendo uma superior e a outra inferior. A vivência de Jacotot e de seus estudantes
atesta, assim, o princípio norteador que deve presidir todo ensino, já preconizado pelo
pedagogo francês e desenvolvido por Rancière: a igualdade das inteligências.
O desvio do sistema educacional da época provocou um movimento de dissensão
não apenas com relação ao método, mas também no que diz respeito à própria concepção
da capacidade da inteligência humana, elemento comum e unificador da igualdade entre os
indivíduos. Nessa concepção, o ritmo da aprendizagem e o método utilizado partem do
aluno, e não do professor, que apesar de não ditar a sequência pedagógica do estudo,
acompanha o itinerário do aluno, deixando que percorra com liberdade sua trajetória por
meio do livro:
O livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o aluno, mas sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso? E, assim, até o infinito. (RANCIÈRE, 2011, p. 44)
Os alunos aprenderam de uma forma inesperada e altamente produtiva segundo os
relatos do mestre, todavia, foi o próprio mestre aquele que mais aprendeu, pois teve sua
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vida de pedagogo transformada por uma situação de ensino improvisada, considerada a
princípio longe da ideal.
A partir da inversão da lógica explicadora, visando uma educação emancipadora do
sujeito, não apenas os alunos de Jacotot obtiveram um conhecimento que transcende
qualquer aprendizagem conquistada à custa de explicações, mas o “mestre ignorante”
conquistou para si algo que toda a sua formação como pedagogo até então não fora capaz
de proporcionar: a consciência de que qualquer indivíduo pode “aprender qualquer coisa e
a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual
inteligência”. (RANCIÈRE, 2011, p. 38).
3. CONTO DE ESCOLA E OS RESULTADOS DE UMA EDUCAÇÃO
EXPLICADORA/EMBRUTECEDORA
Enquanto Rancière apresenta um relato de aprendizagem pelo ângulo do mestre
Jacotot, Conto de escola, de Machado de Assis, traz um narrador em primeira pessoa
relatando um episódio de sua vida escolar como aluno. A história é contada por Pilar, o
personagem-narrador que não se considera um menino de virtudes, obrigado pelo pai a ir à
escola para que alcance sucesso como comerciante. O medo das represálias do pai e do
professor, ambos figuras autoritárias, norteará várias das atitudes do menino e de seu
colega Raimundo, filho do mestre Policarpo.
Os pais das crianças se destacam no conto por agirem de forma bastante impositiva
para com os filhos, exigindo-lhes, um pelo sucesso profissional, e outro por ser professor
do próprio filho, perfeição nos estudos. A figura do mestre na sala de aula é vista com o
devido distanciamento, produzindo ordem e silêncio. A lógica explicadora é fortemente
presente no conto e pode ser considerada como uma metáfora do sistema escolar vigente
na época (século XIX), modelo ainda presente em alguns métodos educacionais
atualmente.
A figura estereotipada do professor em Conto de escola não corresponde exatamente à
do mestre explicador (real) do qual fala Rancière, mas pode ser vista como a sua caricatura,
como revelam as palavras do autor: “O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que
entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser maléfico que
pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social”. (RANCIÈRE, 2011, p.
24). Policarpo, no entanto, encarna exatamente esse tipo de mestre, que pelo abuso da
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autoridade impõe regras rígidas de comportamento, utilizando-se da palmatória para
castigar os alunos caso não atuem segundo as normas.
Diante do panorama da falta de autonomia e da intimidação causada pelo professor,
surge uma situação em que Pilar é solicitado por Raimundo a explicar-lhe a lição, pois se
sente incapaz de compreender a aula do pai. Para que o colega o ajude, Raimundo promete
recompensá-lo com uma pratinha:
Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto de sintaxe. (...) E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos. (ASSIS, 2008, p. 21).
Neste episódio, a mecanicidade do ensino é refletida pela questão monetária
envolvida, ou seja, a aprendizagem, ao invés de ser algo que parte da inteligência do aluno,
torna-se apenas um negócio de compra e venda, com uma finalidade prática: livrar-se do
castigo que o mestre aplicaria ao filho caso não soubesse a lição. O medo é o motor que
incentiva o aluno a aprender algo, e não o desejo de conhecimento. As palavras de Rancière
(2011, p. 25-26) ilustram essa situação:
A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obedece à férula, eis tudo: ela aplicará sua inteligência em outra coisa. Aquele, contudo, que foi explicado investirá sua inteligência em um trabalho do luto: compreender significa, para ele, compreender que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem. Não é mais à férula que ele se submete, mas à hierarquia do mundo das inteligências. (...) Assim, a criança adquire uma nova inteligência – a das explicações do mestre. Mais tarde, ela poderá, por sua vez, converter-se em um explicador.
Ainda que os alunos busquem atuar por si mesmos, instaurando uma quebra na
autoridade do mestre, todavia persiste a lógica de uma educação embrutecedora, pois a
explicação que Pilar daria a Raimundo seria apenas uma reprodução do sistema pedagógico
do professor. As circunstâncias implicam uma ausência da figura do mestre, no entanto, as
vontades e inteligências de Pilar e Raimundo estão submetidas à de Policarpo. Segundo
Rancière (2011, p. 31-312) é a partir dessa relação entre vontade e inteligência que se pode
diferenciar uma educação embrutecedora de uma emancipadora:
No ato de ensinar e de aprender, há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade, a
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de Jacotot, e a uma inteligência, a do livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.
À educação embrutecedora soma-se a posição de desigualdade/inferioridade com
que os meninos são vistos pelo mestre, pois o conteúdo escolar compartilhado entre os
alunos (iguais) é condenado pelo mestre (superior) como ilegítima, ou seja, a quebra da
normalidade das relações entre aquele que aprende (aluno) e aquele que deve ensinar
(professor) é severamente censurada. Após serem denunciados pelo colega Curvelo, Pilar
narra a reação do professor:
E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. (ASSIS, 2008, p. 24)
A infração é considerada tão séria que Pilar, ao chegar a sua casa, mente à mãe,
dizendo que levou palmadas por não saber a lição. Certamente o menino não queria revelar
à mãe a troca monetária planejada, contudo, pesa também a gravidade da subversão
causada pelos alunos na forma da transmissão das aprendizagens - desfazendo os laços
entre saber (o conteúdo) e poder (ensiná-lo) - que no contexto apresentado é considerada a
pior das transgressões.
Há, no entanto, outras rupturas presentes no conto. Algo fundamental a ser
observado é a sala de aula vista como uma prisão por Pilar e pelo mestre Policarpo. Os dois
se encontram limitados pela escola, e nesse sentido estão simetricamente identificados: um
quer sair e aproveitar o dia; o outro lê o jornal de forma compenetrada. No momento em
que o aluno, irrequieto por sair logo da escola, flagra o professor nos seus gostos pessoais,
há uma quebra na organização política da sala de aula (de acordo com os moldes
tradicionais), na qual o professor deveria ser o mais interessado na própria aula,
desenvolvendo a função de transmitir com convicção os ensinamentos para os alunos:
Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas sobre a mesa. E lá fora, o céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. (ASSIS, 2008, p. 23)
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A maior ruptura presente no conto, entretanto, provém do tipo de aprendizagem
que Pilar relata ter alcançado a partir da aula. Sabe-se que os dois meninos foram
denunciados pelo colega Curvelo e que, apesar de Pilar ter conseguido explicar a lição a
Raimundo, ficara sem a sua pratinha por conta da denúncia. No dia seguinte, o personagem
é arrastado ao som do tambor e não vai à escola. Nas últimas linhas do conto é registrado o
relato de aprendizagem de Pilar: “E, contudo, a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo
e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação.”
(ASSIS, 2008, p. 25).
Ou seja, “o primeiro conhecimento” de Pilar é alheio à matéria escolar e diz
respeito à própria engrenagem da vida adulta, pautada por esquemas fraudulentos. Dentro
do contexto escolar, a aprendizagem valorizada deu-se à margem do que a escola se
propõe, evidenciando os resultados de um sistema explicador e mecânico, desprovido de
sentido para o aluno, que aplica sua inteligência em outro lugar e de outra forma. Em Conto
de escola, a aprendizagem não é intelectual, mas implica um conhecimento constitutivo da
própria realidade, ocorrido por meio das relações interpessoais e construído subjetivamente
pelo personagem.
4. OS DESASTRES DE SOFIA: DESFAZENDO OS LIMITES ENTRE A
IGNORÂNCIA E O SABER
Assim como no conto de Machado, em Os desastres de Sofia há um narrador em
primeira pessoa, desta vez uma menina, que conta suas memórias de infância na escola e a
relação com o mestre. A personagem relata suas percepções interiores a respeito das
situações que vive, e como se descobre a si mesma a partir de um texto que faz para a aula
do professor, figura que lhe desperta obsessiva fixação. Ao contrário de Conto de escola, a
presença do medo já não se manifesta na relação professor-aluna, e algumas vezes a
personagem até mesmo se sobressai da autoridade do mestre, tal como se depreende de
uma das primeiras passagens do conto:
E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
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-Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. (LISPECTOR, 1999, p. 11)
Essa quebra da superioridade do professor é o primeiro elemento que instaura um
movimento de dissensão na narrativa. Não há neste momento uma situação de igualdade,
mas um conflito entre autoridade do mestre e as tentativas da aluna de burlar essa
autoridade. A atitude da menina revela certa ânsia por tornar-se adulta, no entanto, o
professor - a quem procura desvendar para sair do universo infantil - não parece possuir os
atributos de um verdadeiro adulto, pois agia perturbado e constrangido ao perceber o olhar
perscrutador da menina: “Irritava-me que ele obrigasse uma porcaria de criança a
compreender um adulto”. (LISPECTOR, 1999, p. 16).
A vontade de compreender o professor situa a construção de um itinerário de
aprendizagem por parte da aluna, que busca conhecimentos mais além dos conteúdos do
colégio. A sua curiosidade e desejo de compreensão não se situam na lógica imposta por
um sistema explicador, mas sim em um plano de autoconhecimento a partir do que observa
e do que vive, sempre tendo como objetivo descobrir os segredos do mestre. A resistência
da menina a uma lógica explicadora é exposta claramente pela sua narração:
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. (...) Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação sempre bem-sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; (...) Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. (LISPECTOR, 1999, p. 14-15)
Percebe-se, pois, que o conteúdo passado pelo mestre não era atrativo para a
protagonista, resolvida a empregar sua capacidade de atenção em outros assuntos. Dessa
forma, o estudo é postergado, e a ignorância surge como algo cultivado antes do interesse
pelas matérias escolares. A personagem em vários momentos se declara como ignorante, no
entanto, ainda assim tem consciência de que essa ignorância possui algo de substancial, que
precisa transmitir ao mestre: “Aceitava a vastidão do que eu não conhecia e a ela me
confiava toda (...). Seria para as escuridões da ignorância que eu seduzia o professor?”
(LISPECTOR, 1999, p. 13).
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A ignorância da personagem encerra um saber sobre outras esferas da realidade,
que se aproximam de certa forma daquele conhecimento valorizado por Pilar em Conto de
escola: conhecimento “marginal”, “sem virtudes”, não declarado como tal pelos adultos, mas
que se constitui como o percurso natural trilhado pelos alunos na sua busca por
compreenderem a si mesmos, o mundo e as pessoas com as quais se relacionam.
Contudo, a maneira com que cada um faz suas descobertas e constrói seus
conhecimentos é bastante distinta. Em Os desastres de Sofia, a narradora recorda um episódio
em que o professor passou aos alunos a lição de escreverem uma composição a partir da
história de um tesouro. A aluna, que só sabia “usar suas próprias palavras” (LISPECTOR,
1999, p. 17), tivera uma ideia diferente daquela que o professor esperava, rompendo com
uma única forma de refletir a respeito da “moral da história” e dando-lhe outro significado:
Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. (...) Suponho que, arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas que eu aspirava. (LISPECTOR, 1999, p. 17-18)
Contrariando o senso comum na escrita da história, a menina ilustra os
pensamentos que guiavam suas próprias atitudes, marcados pela oposição a um sistema em
que cada coisa obedece a uma lógica interna de comportamento. No entanto, é a partir de
uma situação inesperada que surge a oportunidade da maior descoberta e aprendizagem
que irá alcançar. Ao deparar-se a sós com o professor na hora do recreio, pela primeira vez
a estudante experimenta a sensação de medo e constrangimento. O professor conta que
achou sua história sobre o tesouro “bonita”, e que ela era uma “menina muito engraçada”,
“doidinha” (LISPECTOR, 1999, p. 24). A partir dessa declaração, a forma com que
enxergara a figura do professor até então se altera:
(...) pusera tanta fé em um dia crescer – e aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras... (LISPECTOR, 1999, p. 24)
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É possível perceber, a partir dessa ruptura de percepção em que se desfaz a visão
idealizada sobre o universo adulto, o estabelecimento da igualdade, pois a aluna vê seu
professor como igual, retirando o véu de superioridade que recobria a sua condição de
mestre, pertencente a uma etapa da vida considerada mais avançada. Nesse movimento de
descoberta, que se dá pela simples história invertida sobre um tesouro, a menina descortina
nuances sobre sua própria personalidade, destacando a aprendizagem obtida a partir
daquele momento:
Entendia eu tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo – e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi – assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendo. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé – numa solidão sem dor, não menor que a das árvores – eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível. (LISPECTOR, 1999, p. 27)
No conto de Clarice, a aprendizagem conquistada pela personagem constitui um
paradoxo: o seu resultado é a própria ignorância. A menina sabe que aprendeu alguma
coisa, assim como sabe que algo de sua “ignorância” foi passada ao professor, no entanto,
não consegue dar um nome propriamente ao que aprendeu. A ignorância da aluna, aludida
por ela em diversas ocasiões encerra, assim, um sentido que transcende o fato de não saber
os conteúdos impostos pela escola. Poderia ser entendida como uma “ignorância sábia”,
que a torna apta a atuar como a “mestra ignorante” de seu professor, tendo por princípio a
igualdade de inteligências, afinal, “não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas,
e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar”.
(RANCIÈRE, 2011, p. 11).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao percorrer os relatos do mestre Jacotot e dos personagens de Machado e Clarice,
foi possível constatar o denominador comum das narrativas: um momento de ruptura das
estruturas tradicionais de ensino que resultaram em alguma espécie de aprendizagem. Por
meio do uso improvisado do livro Telêmaco, o mestre Jacotot descobriu o caminho para
libertar a sua inteligência e as dos seus alunos, visando uma educação emancipadora. Já os
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personagens dos contos aprenderam assuntos apartados do conteúdo explicativo, a partir
das suas experiências pessoais dentro do contexto escolar e das relações estabelecidas entre
si e com os professores.
Em Conto de escola, as relações percebidas foram de distanciamento entre as figuras
do professor e do aluno, com posições fixas bem definidas: de um lado, o professor
autoritário e explicador; de outro, alunos intimidados e impossibilitados de exercer
autonomia. Em Os desastres de Sofia, por sua vez, é notório o apagamento nas relações entre
mestre e aluna, sendo a rigidez do professor de Conto de escola substituída pela
condescendência do outro, e o medo dos alunos pela ousadia da aluna. Em ambos, no
entanto, a aprendizagem se dá pelo lado “torto” da vida, assim visto pela perspectiva
tradicional de transmissão de saberes, na qual uns conhecimentos são considerados válidos
e outros não.
Por fim, vale a pena refletir sobre os caminhos, muitas vezes desconhecidos, em
que ocorrem as aprendizagens nos meios escolares, caminhos ilustrados pela literatura
ficcional e postos em ação diariamente na realidade. Nesse sentido, cabe questionar-se:
quem educa quem no processo ensino-aprendizagem? Os papéis podem ser
intercambiáveis? É possível uma educação emancipadora dentro de uma lógica explicadora?
À semelhança de Jacotot e de seus alunos, quais conhecimentos construídos pelos
estudantes na escola são cultivados ao longo da vida e implicam uma aprendizagem real,
significativa e transformadora?
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REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2008. LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009. __________. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.