migraÇÕes e expansÃo do capital -...

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MIGRAÇÕES E EXPANSÃO DO CAPITAL Eric Gustavo Cardin 1 Pensar os fluxos migratórios no mundo contemporâneo é um desafio fundamental. Sabemos que os homens e mulheres migraram ou se deslocam espacialmente a milhares de anos. Todavia, os atuais fluxos vão além da busca por melhores condições de sobrevivência e se configuram ou ainda se apresentam como elementos intrínsecos as engrenagens do sistema sociometabólico do capital. Neste sentido, refletir sobre a relação entre migração, questão social e expansão do capitalismo é algo urgente. Não sendo suficiente estas justificativas, não podemos negar: a) importância da migração na formação de todo o oeste brasileiro; b) a gravidade da situação na Europa derivada do processo de descolonização do continente africano e dos fluxos migratórios derivados e; c) mais do que isso, a relação de interdependência existente entre o modelo econômico e o fenômeno migratório mais abrangente. Este último aspecto deve ser o eixo de minha exposição. De maneira inquestionável, o processo de expansão do sistema do capital está correlacionado com os deslocamentos populacionais e estes deslocamentos possuem, no mínimo, dois perfis bem diversos. Em um primeiro momento, encontram-se os deslocamentos necessários e que fazem parte das estratégias de composição da força de trabalho e do exército de trabalhadores de reserva e, em um segundo momento, aqueles deslocamentos entendidos como consequências indesejáveis do movimento político- econômico do próprio sistema, ou seja, resultantes das políticas imperialistas ou da exploração econômica descontrolada de territórios específicos. Neste último caso, visualiza-se o surgimento da migração clandestina e, posteriormente, dos refugiados e refugiadas. Dentro da lógica de expansão do sistema sociometabólico do capital, um elemento chave para a a sua própria reprodução é a garantia da existência de um permanente exército de trabalhadores que possa equilibrar o mercado de trabalho e garantir, como consequência, níveis mais radicais de extração de mais-valia absoluta. Em outras palavras, quanto mais trabalhadores disponíveis em determinado mercado, mais desvalorizados são os salários e 1 Doutor em Sociologia. Professor dos Programas de Pós-Graduação em “Sociedade, Cultura e Fronteiras” e em “Ciências Sociais” na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

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MIGRAÇÕES E EXPANSÃO DO CAPITAL

Eric Gustavo Cardin1

Pensar os fluxos migratórios no mundo contemporâneo é um desafio fundamental.

Sabemos que os homens e mulheres migraram ou se deslocam espacialmente a milhares de

anos. Todavia, os atuais fluxos vão além da busca por melhores condições de sobrevivência e

se configuram ou ainda se apresentam como elementos intrínsecos as engrenagens do sistema

sociometabólico do capital. Neste sentido, refletir sobre a relação entre migração, questão

social e expansão do capitalismo é algo urgente. Não sendo suficiente estas justificativas, não

podemos negar: a) importância da migração na formação de todo o oeste brasileiro; b) a

gravidade da situação na Europa derivada do processo de descolonização do continente

africano e dos fluxos migratórios derivados e; c) mais do que isso, a relação de

interdependência existente entre o modelo econômico e o fenômeno migratório mais

abrangente. Este último aspecto deve ser o eixo de minha exposição.

De maneira inquestionável, o processo de expansão do sistema do capital está

correlacionado com os deslocamentos populacionais e estes deslocamentos possuem, no

mínimo, dois perfis bem diversos. Em um primeiro momento, encontram-se os

deslocamentos necessários e que fazem parte das estratégias de composição da força de

trabalho e do exército de trabalhadores de reserva e, em um segundo momento, aqueles

deslocamentos entendidos como consequências indesejáveis do movimento político-

econômico do próprio sistema, ou seja, resultantes das políticas imperialistas ou da

exploração econômica descontrolada de territórios específicos. Neste último caso, visualiza-se

o surgimento da migração clandestina e, posteriormente, dos refugiados e refugiadas.

Dentro da lógica de expansão do sistema sociometabólico do capital, um elemento

chave para a a sua própria reprodução é a garantia da existência de um permanente exército de

trabalhadores que possa equilibrar o mercado de trabalho e garantir, como consequência,

níveis mais radicais de extração de mais-valia absoluta. Em outras palavras, quanto mais

trabalhadores disponíveis em determinado mercado, mais desvalorizados são os salários e

1 Doutor em Sociologia. Professor dos Programas de Pós-Graduação em “Sociedade, Cultura e

Fronteiras” e em “Ciências Sociais” na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

2

mais explorados são os trabalhadores e trabalhadoras. Contudo, é preciso observar, que tal

premissa tem plena validade durante os períodos de expansão econômica, que só é garantida

com a existência de uma força de trabalho barata e um mercado consumidor. Por outro lado, é

comum observamos a tendência comum do sistema do capital em desenvolver momentos de

grande acúmulo de capital seguidos de grandes recessões.

É nestes períodos de crise ou de recessão que os fluxos migratórios tendem a ser

questionados. Ou seja, quando há um enxugamento dos empregos, acompanhado de uma

diminuição do consumo, os primeiros trabalhadores a possuírem o status questionado são os

migrantes. É dentro deste contexto que podemos problematizar as manifestações xenofóbicas,

o surgimento de grupos radicais de extrema direita e até mesmo a proposição de leis de

controle migratório em países economicamente desenvolvidos. Controlar a migração, antes de

qualquer coisa, representa um esforço para proteger os trabalhadores e trabalhadoras

nacionais da concorrência com os estrangeiros e estrangeiras.

Com o intuito de demonstrar a intima relação, para não dizer a relação de dependência,

entre os diferentes momentos do processo de expansão do capital e os fluxos migratórios,

destacarei de forma breve cinco experiências diferentes de deslocamento populacional que são

diretamente relacionadas com a expansão do sistema do capital, experiências localizadas em

momentos históricos e espaciais diferenciados. Inicialmente, destacaria que o próprio Karl

Marx (1985) demonstrou de maneira fundamentada que o capitalismo, ainda no seu início, foi

completamente dependente do deslocamento interno da população inglesa. Somente com este

deslocamento foi possível constituir o trabalhador assalariado (que possibilita a extração de

mais-valia) e também fomentar o aparecimento de um mercado de consumo.

No primeiro livro, segundo volume, do livro “O Capital”, mais especificamente no

conhecido capítulo “A Chamada Acumulação Primitiva”, Marx explica de forma minuciosa o

processo de expropriação e expulsão das terras dos pequenos agricultores ingleses, expulsão

que foi acompanhada pelo esvaziamento populacional de tais regiões e pelo deslocamento

destes trabalhadores para os centros urbanos que se desenvolviam rapidamente devido a

industrialização. Tal esvaziamento e posterior deslocamento para as cidades, permitiu a

reorganização do campo e, principalmente, a constituição de uma massa de trabalhadores que,

por meio de ações muitas vezes violenta, foi forçada a se adaptarem a nova forma de

organização do trabalho.

3

As brilhantes observações realizadas por Karl Marx demonstram que o futuro do

processo de industrialização passava, necessariamente, pelo rápido crescimento do exército de

trabalhadores disponível na cidade. Para tanto, era preciso forçar a migração campo-cidade e,

mais do que isso, forjar novos modos de viver para os trabalhadores e trabalhadoras. Não era

suficiente existir uma quantidade de pessoas em número suficiente para garantir a produção e

a reprodução do capital, era preciso preparar, adaptar estas pessoas ao novo mundo que

surgia. Neste sentido, por meio do estudo de leis, Marx demonstra como o mercado vai se

constituindo e, mais do que isso, como os antigos trabalhadores e trabalhadoras rurais vão

sendo forçados a aquisição de novas práticas laborais.

Um segundo exemplo que demonstra a dependência do modelo econômico em relação

ao deslocamento populacional pode ser visualizado na própria constituição da força de

trabalho no Brasil. Primeiramente por meio do rapto e trabalho forçado de milhares de

escravos e escravas de origem africana e, em um segundo momento, quando é desenvolvida a

política de inversão da força de trabalho, que correspondeu a chegada de milhares de

imigrantes no país. Segundo dados do IBGE, entre o Século XVI e XIX, o Brasil recebeu

aproximadamente 4 milhões de escravos e escravas oriundos e oriundas do continente

africano, que, em diferentes medidas, foram determinantes no desenvolvimento econômico do

país, no processo de povoamento e de formação cultural.

Entrada de escravos(as) africanos(as) no Brasil

Período 1500-1700 1701-1760 1761-1829 1830-1855

Quantidade 510.000 958.000 1.720.000 618.000

Fonte: IBGE.

No inicio do processo de colonização do território brasileiro, não havia uma

preocupação explicita da metrópole portuguesa em povoar a região. O objetivo era extrair de

maneira rápida e violenta a maior quantidade de riqueza possível. Para tal empreendimento

foi utilizada a força de trabalho escrava. Contudo, com o passar dos anos, com as reformas

políticas europeias espelhadas na Revolução Francesa e o avanço do capitalismo, o

escravagismo começa a ser questionado, mas, mais do que isso, se sente a necessidade

econômica da ampliação da circulação de capital nos territórios para gerar um mercado de

4

consumo. Desta forma, torna-se fundamental o fortalecimento da força de trabalho

assalariada. Neste processo de mudança na concepção de trabalho, os escravos(as) foram

considerados ideologicamente inaptos(as) para este novo desafio, exigindo a chegada de

novos(as) trabalhadores(as), já acostumados(as) com a nova organização do trabalho

capitalista. Assim, entre o final do Século XIX até metade do Século XX, o Brasil recebeu

mais de 4 milhões de migrantes de diferentes nacionalidades.

IMIGRAÇÃO PARA O BRASIL, POR NACIONALIDADE E PERÍODOS

Nacionalida

de

1884 -

1893

1894 -

1903

1904 -

1913

1914 -

1923

1924 -

1933

1934

-

1944

1945

-

1949

1950 -

1954

1955-

1959

Total

Alemães 22.778 6.698 33.859 29.339 61.723 N/D 5.188 12.204 4.633 176.422

Espanhóis 113.11

6

102.14

2

224.672 94.779 52.405 N/D 4.092 53.357 38.819 683.382

Italianos 510.53

3

537.78

4

196.521 86.320 70.177 N/D 15.31

2

59.785 31.263 1507.69

5

Japoneses - - 11.868 20.398 110.19

1

N/D 12 5.447 28.819 188.723

Portugueses 170.62

1

155.54

2

384.672 201.25

2

233.65

0

N/D 26.26

8

123.08

2

96.811 1391.89

8

Sírios e

Libaneses

96 7.124 45.803 20.400 20.400 N/D N/A N/A N/A 189.727

Outros 66.524 42.820 109.222 51.493 164.58

6

N/D 29.55

2

84.851 47.599 596.647

Total 979.57

2

852.11 1.006.6

17

503.98

1

713.13

2

N/D 92.41

2

338.72

6

247.94

4

4.734.4

94

Fonte: IBGE.

5

A chegada destes trabalhadores é emblemático por sinalizar a ocorrência de uma

mudança na posição do país no ciclo de desenvolvimento do capitalismo, indicando que o

Brasil estava deixando de ser unicamente um território de produção primária para ser tornar

também um país onde ocorria a reprodução ideológica do sistema. Esta transformação

perpassa pela mudança na força de trabalho, ou seja, pela substituição da força de trabalho

escrava pelo trabalho assalariado, mas também por uma mudança nos processos de formação

do trabalhador e da trabalhadora. Neste sentido, como ocorreu em outras regiões do globo, se

visualizou experiências simultâneas de normatização de comportamentos, coibição e

estigmatização de práticas populares, muitas delas desenvolvidas por ex-escravos(as).

O terceiro e o quarto exemplo também estão relacionados com mudanças do papel do

Brasil no interior da divisão internacional do trabalho. Se na primeira metade do Século XX,

nós eramos fundamentalmente receptores de migrantes, durante a segunda metade do mesmo

século nos tornamos grandes emissores devido ao golpe militar, mas, principalmente, a longa

crise econômica vivenciada durante o processo de redemocratização. A ditadura, por

exemplo, foi determinante no processo de reorganização demográfica no oeste do Brasil, e,

especialmente da região onde vivemos, o oeste do Estado do Paraná. O deslocamento de

brasileiros para o leste do Paraguai, iniciado na década de 1950, atingiu seu ápice na década

de 1970 devido ao alagamento de terras férteis pela barragem da Usina de Itaipu, obra

importante dentro da lógica geopolítica e desenvolvimentista do governo militar.

Com a inundação de uma grande extensão das margens do Rio Paraná, ocorreu a

indenização de muitos agricultores e agricultoras que precisaram comprar terras em outras

regiões. Devido aos preços menores e a qualidade das terras, muitos fixaram residência no

Paraguai, próximos a fronteira internacional (ALBUQUERQUE, 2010). Este processo

migratório, pode ser entendido como uma espécie de migração forçada2, mas que foi

fundamental para a lógica econômica do período em que a hidrelétrica foi projetada, por

garantir a energia necessária para os parques industriais brasileiros em processo de expansão e

também por corresponder a uma política de atribuição de valor a terra, estando inserido, de

forma direta, em uma concepção de desenvolvimento capitalista existente em ambos os países

(Brasil e Paraguai).

2 Uma introdução as diferentes definições das categorias migratórias pode ser encontrada em Cardin

(2012).

6

Por outro lado, durante a década de 1980 e 1990, visualizamos o fortalecimento de um

deslocamento populacional acendente para os Estados Unidos, para o Japão e para diferentes

países europeus. Em grande medida, tais fluxos encontravam-se vinculados a recessão

econômica e o processo de implantação do modelo neoliberal no país em contraposição a

situação dos países de destino, que ainda viviam resquícios da reestruturação econômica pós-

segunda guerra mundial. Este período de emissão de migrantes pode ser confirmado pelos

dados do Itamaraty. No ano de 2011, aproximadamente 1.388.000 brasileiros viviam nos

Estados Unidos, 230.552 viviam no Japão, 200.000 no Paraguai, 180.000 na Inglaterra e

158.761 na Espanha. Sobre isso, é importante chamar a atenção para o fato de que estes

números se referem apenas aos migrantes regularizados, o próprio Itamaraty destaca que os

números tendem a ser bem maiores, já que para cada migrante regularizado estima-se a

existência de pelo menos um outro irregular.

Por fim, o quinto exemplo que gostaria de destacar diz respeito a entrada de migrantes

no Brasil nos últimos 10 anos. Com as melhoras nos indicadores econômicos do país na

última década, o país se tornou atrativo para um grande contingente populacional que busca

melhorias em suas condições de vida. Apenas entre os anos de 2011 e 2013, o número de

trabalhadores estrangeiros registrados no país subiu 50,9%, onde destacam-se bolivianos,

argentinos, haitianos e paraguaios. Além disso, o número de estrangeiros com emprego formal

no Brasil subiu, passando de 76.578 em 2011, 94.688 em 2012 e saltando 26,8% no ano

seguinte, chegando a 120.056. A população estrangeira que mais cresceu foi a haitiana, que

passou de 814 trabalhadores legais no país em 2011 para 14.500 em 2013.

IMIGRANTES ATUAIS NO BRASIL POR PAÍS DE ORIGEM

Colocação País Total

1 Bolívia 50.240 (Itamaraty) - 350.000 (Governo Boliviano)

2 Portugal 277.727

3 Estados Unidos 70.000

4 Haiti 50.000

5 Japão 91.042

6 Paraguai 39.222

7

7 Itália 73126

8 Espanha 59.985

9 Argentina 42.202

10 Chile 28.371

11 Uruguai 24.031

12 Polônia 22.467

13 Peru 20.000

14 Alemanha 16.227

15 Cuba 14.462

16 Ucrânia 10.234

17 China 9.227

18 Venezuela 7.000

19 Angola 5.000

20 Líbano 4.974

21 Colômbia 4.159

Fonte: Tabela composta pelo autor utilizando dados disponíveis pela CEPAL, IBGE,

Itamaraty e Polícia Federal.

Todos estes casos apontados se referem a situações onde o deslocamento encontra-se

diretamente relacionado aos estágios do processo de expansão do capital. Pensando por meio

de uma abordagem simplista, tipo push-pull, eles explicitam o deslocamento de trabalhadores

que saíram de locais possuidores de fatores econômicos motivadores de expulsão (recessão,

falta de mercado, falta de terras, limitações nos parques produtivos, etc.) e se dirigiram para

lugares que apresentavam, para tais trabalhadores, melhores condições de inserção

econômica. Haiti, Bolívia e Paraguai apresentaram os piores índices de desenvolvimento

humano na América Latina durante a última década, enquanto o Brasil vinha apresentando

significativas melhoras em seus indicadores econômicos e sociais.

Os trabalhadores rurais que migraram para os polos urbanos na Inglaterra do Século

XIX, os africanos e europeus que trabalharam na construção econômica do Brasil, brasileiros

que se deslocaram para o exterior na segunda metade do século XX e latino-americanos que

chegaram no Brasil nas últimas décadas se incluem nas engrenagens do capital e contribuem,

8

em cada momento histórico, com os diferentes estágios do processo de expansão do capital.

São migrações diferentes, que representam momentos diferentes do circuito de produção

capitalista, migrações que podem denunciar crises econômicas e até desastres humanitários,

mas que são absorvidas pelo sistema do capital e contribuem diretamente nos processos de

acumulação.

Entretanto, em alguns períodos, os fluxos migratórios são derivados de consequências

indesejadas de posicionamentos políticos econômicos tidos em momentos anteriores. Em

grande medida, o fluxo recente de refugiados é o resultado do movimento de descolonização,

por exemplo. Durante muitas décadas, nações capitalistas consolidadas encontraram em

países da América Latina, da África e do Oriente Médio territórios economicamente

interessantes para a extração de recursos naturais e para o uso geopolítico. Minérios, petróleo

e recursos ambientais justificavam políticas imperialistas norte-americanas, inglesas e

francesas durante décadas. Neste movimento, tais potências econômicas forjaram novos

estados, implantando organizações burocráticas e administrativas exógenas, quando não

financiavam verdadeiras ditaduras.

Contudo, a partir da segunda metade do século passado, se fortalece um movimento

amplo de descolonização em muitas das regiões que eram controladas. De maneira geral e

simplista, tal movimento causou um impacto gritante ao gerar um esvaziamento político do

esqueleto do Estado criado pelos países imperialistas. Diante de tal situação, constata-se a

existência de um vazio político-institucional e um processo generalizado de guerra civil entre

diferentes grupos que objetivavam acensão e poder em cada um destes países. Muitos destes

grupos continuavam a ser financiados pelos países imperialistas e outros se colocavam como

oposição (legitimada por diferenças políticas e religiosas). Consequentemete, observa-se que

mais de 300 mil imigrantes e refugiados chegaram à Europa pelo Mar Mediterrâneo até

agosto de 2015, sendo que apenas neste ano mais de 2.500 pessoas morreram afogadas

tentando fazer a travessia. De toda esta população, um terço era formado por homens,

mulheres e crianças da Síria, sendo que os outros dois terços são majoritariamente originários

de países como Afeganistão e Eritréia.

O destino preferido é a Alemanha, que no ano passado recebeu 202.700 requisições,

ou 32% do total. A Suécia veio logo em seguida com 81.200, ou 13%. Seguem Itália, com

64.600, ou 10% do total, França, 62.800, ou 10%, e a Hungria, 42.800, ou 7%. Vulgarmente,

quando se buscam as justificativas para tal contexto, é comum a mídia anunciar que se deve

9

aos diferentes conflitos vividos nestes países, ao fundamentalismo religioso ou, até mesmo,

devido a crises ambientais. Em nenhum momento se problematiza quais os fatores que

geraram tais conflitos. Desta forma, a imprensa faz com se desenvolva a ideia equivocada de

que a responsabilidade por tal catástrofe é dos próprios países emissores de migrantes.

A Eritreia é um país colonizado por italianos, conquistado pelos ingleses na década de

1950, anexado a Etiópia logo depois e independente por meio de um plebiscito na década de

1960. Atualmente, em sua constituição se prevê uma política pluripartidária, mas não é isso o

que ocorre. Hoje o país é controlado por um único partido (Frente Popular por Democracia e

Justiça), que impede a participação de outros grupos políticos. Assim, o modelo unipartidario

silencia os grupos contrários, principalmente aqueles de tendências marxistas e muçulmanas,

o que alimenta uma guerra regional e também internacional, já que a Etiópia ainda interfere

na organização de tais grupos.

O caso da Síria não é muito diferente. Ex-Colonia Francesa, possui um Estado

Moderno constituído após a Segunda Guerra e logo depois da independência vivenciou a

implantação de um regime ditatorial que conseguiu controlar aproximadamente apenas 40%

do território. O restante do país era controlado ou comandado por diversas etnias. Após a

primavera árabe em 2011, desertores do exército oficial constituíram um bloco de oposição e

iniciaram o processo de guerra civil. Na ocasião vários outros grupos se associaram a este

movimento, entre eles o Estado Islâmico que, a partir de 2013, começou a revindicar terras na

região e a buscar a hegemonia política por meio da violência.

Com as devidas particularidades, a situação de guerra civil tornou-se comum em

muitos países durante o processo de descolonização. Em Angola, desde a década de 1970

observasse a existência de intensos conflitos entre o Movimento Popular de Libertação de

Angola (MPLA), a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e a

Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC). Na Nigéria, um dos países africanos que

possuem o capitalismo mais desenvolvido, visualiza-se a presença do Boko Haran, grupo

radical muçulmano que hoje controla a região norte do país e que vem questionando a

legitimidade do “Estado Moderno”. A situação do Haiti também não é muito diferente, como

não bastasse o grande terremoto sofrido pelo país em 2010. Durante praticamente todo o

século XX o país sofreu com a instabilidade política, visualizada no fortalecimento de

ditaduras e em constantes golpes de Estado, situação que cria de forma permanente um clima

de tensão e violência.

10

A instabilidade política e a guerra civil oriunda da disputa pelo poder, visando

preencher o aparelho abandonado pelas metrópoles, promove um deslocamento populacional

não intencional dentro do sistema do capital. Enquanto os países mais desenvolvidos

conseguem absorver os migrantes/refugiados oriundos destes lugares a importância atribuída

a estes países é periférica e a forma que a população receptora se relaciona com tal população

não apresenta grandes transtornos, pois, em grande medida, estes migrantes se submetem a

condições de trabalho mais precarizadas. Contudo, isso tende a mudar quando se visualiza a

dificuldade concreta dos países ricos em absorver tal população, mudando a forma dos

governos pensarem tais políticas e também a forma da população interagir com os refugiados.

Embora o Brasil não corresponda a um dos principais países de destino para os

refugiados, observa-se que mesmo assim há um número expressivo deles no país. Em grande

medidas, as justificativas dos pedidos de refugio ao governo brasileiro são relacionadas a

perseguição política e, em menor número, aos problemas derivados das crises humanitárias

originadas por catástrofes naturais ou de guerra civil. Segundo o Comitê Nacional para os

Refugiados (CONARE), o Brasil possuía aproximadamente 7.700 refugiados de 81

nacionalidades diferentes até o ano de 2014, sendo que deste conjunto, 25% eram mulheres.

Entre os refugiados reconhecidos, os sírios correspondiam ao maior grupo, com 23% do total,

seguidos pela Colômbia, Angola e a República Democrática do Congo. No entanto, também

se encontram estrangeiros vindos da Bolívia, do Líbano, da Palestina, da Libéria, do Iraque e

de Serra Leoa.

Em grande medida, a migração interna de um país, a migração fronteiriça, todos os

exemplos de migração forçada ou derivadas diretamente do processo de expansão do capital

comentadas anteriormente apresentam relações implícitas e explícitas com o modelo

econômico político vigente. Mas, por outro lado, também podem apresentar diferenças que

precisam ser exploradas para uma melhor compreensão desta questão social. O processo de

expansão do capital, com seus deslocamentos necessários e indesejados, se apresenta como

um grande pano de fundo onde milhões de trabalhadores se movimentam diariamente. A

primeira grande diferença existente entre todos estes movimentos é de escala.

Apenas com o objetivo de exemplificar, afirmaria que um refugiado sírio na Europa,

um boliviano em uma facção têxtil em São Paulo e um laranja na Ponte da Amizade

desenvolvem suas práticas em cenários distintos mais construídos com matéria-prima e

ferramentas do capital. Para entendermos a crise migratória na Europa precisamos muito mais

11

que um simples olhar humanitário, é fundamental situarmos e analisarmos este movimento

como uma consequência de uma prática imperialista secular, que resultou em um processo de

descolonização desorganizada, que teve os resultados que hoje se visualiza. Com isso, quero

sinalizar que o entendimento daquela situação perpassa pela observação do movimento em

grande escala, aparentemente distante da vida cotidiana dos milhares de pessoas que sofrem

as consequências de tais processos históricos. Enfim, nesta perspectiva não se destacam os

sujeitos, mas apenas os fatores internacionais que alimentaram a configuração estudada.

Entretanto, se o interesse é pensar a inserção dos bolivianos na produção têxtil de São

Paulo, temos um movimento de média escala, pois o interesse é compreender o

desenvolvimento de tais conexões e as redes sociais em que tais trabalhadores se amarram.

Por fim, poderíamos nos concentrar unicamente nos sujeitos que trabalham atravessando

mercadorias na fronteira do Brasil com o Paraguai, desenvolvendo aquilo que a geografia

denomina de movimento pendular, tentando pensar como estes trabalhadores desenvolvem

suas práticas, fazem suas escolhas, enfim, “tocam suas vidas”, o que exigiria uma leitura de

menor escala., valorizando modos de viver, usos e costumes, experiências e práticas sociais.

Isso não quer dizer que não seja possível fazer análises de menor escala

(microssociológicas) da crise europeia ou de maior escala (macrossociológica) no estudo do

trabalho fronteiriço, ambos os casos correspondem a situações possíveis. O que quero indicar

com estas observações em relação a importância das escalas é o fato de que muitas vezes as

diferenciações ou as aproximações que podemos fazer e encontrar em relação a tais fluxos

migratórios se deve a comparações de fenômenos de escalas diferentes. Não é possível

falarmos que o imperialismo norte-americano no oriente médio, que gera um conjunto de

refugiados, tem uma relação direta com o fluxo de trabalhadores fronteiriços na Ponte da

Amizade. No entanto, podemos pensar nas aproximações e distanciamentos da presença

política dos Estados Unidos no Afeganistão e no Paraguai.

A segunda fonte de diferença é produzida quando conscientemente não nos

satisfazemos com as leituras push-pull. Reconhecemos que existem fatores gerais de expulsão

e atração derivadas de estágios diferentes do processo de expansão do capital. No entanto,

nem todas as pessoas que vivenciam estes “estágios diferentes” respondem as estas diferenças

das mesmas formas. Porque entre os refugiados africanos alguns decidem ir para a França,

outros para os Estados Unidos e outros para a Argentina? Porque alguns trabalhadores

paraguaios decidem se inserir no mercado de trabalho de São Paulo em vez de ficar nos

12

municípios fronteiriços como a grande maioria dos migrantes paraguaios fazem? Enfim, estes

dois exemplos de problemas tem a única finalidade de indicar, que mesmo em uma situação

restritiva, os sujeitos fazem algumas escolhas. Mas o que influência estas escolhas?

Esta pergunta precisa ser minimamente respondida para evitar que alguém pense que

faço uma defesa da ação racional. Os homens fazem suas escolhas, mas as fazem dentro das

possibilidades herdadas. Neste sentido, os caminhos escolhidos pelos migrantes são

diretamente relacionados a um conjunto de fatores, onde se destacam a existência de redes

sociais de apoio, a atuação de coiotes, a experiência migratória acumulada, o recurso

financeiro disponível e até mesmo a escolaridade. Pesquisas demonstram que quanto maior a

escolaridade e o recurso financeiro disponível mais livre é o sujeito para decidir o seu destino,

por exemplo. O conhecimento do idioma, as redes sociais e a experiência migratória

acumulada são fatores que explicam a diferença tão grande entre o fluxo migratório de

paraguaios para a Argentina em relação ao fluxo para o Brasil, por exemplo3.

Diante de tantos fatores, destacamos que o entendimento dos fluxos migratórios exige

dois exercícios fundamentais. O primeiro diz respeito ao esforço de entender cada fluxo

situando-o dentro de seu respectivo lugar do processo de expansão do capital e no circuito das

mercadorias. Em outras palavras, é preciso observar e entender em qual momento da

produção da riqueza encontra-se articulado cada fluxo. Assim, precisamos indagar se ele é

derivado da necessidade de trabalhadores para a produção de matéria-prima, se ele é

impulsionando pelas demandas geradas em diferentes setores produtivos ou se está

relacionando com processos de circulação de mercadoria. Enfim, talvez tudo isso se resuma

em perguntar: qual é o papel do migrante na estrutura do capital?

Embora o fenômeno migratório esteja de uma maneira geral intimamente relacionada

com a contradição entre capital e trabalho, os fluxos apresentam particularidades derivadas,

principalmente, de elementos que podem ser observados em escalas mais reduzidas,

vinculadas as trajetórias individuais e coletivas. Desta forma, não basta entendermos o

movimento do capital, é preciso analisarmos as escolhas dos migrantes, ou seja, pensar em um

conjunto mais amplo de variáveis que interferem na definição dos fluxos, que, muitas vezes,

estão articuladas com aspectos muito mais latentes. Para concluir, acreditamos que o trabalho

3 Uma introdução as diferentes perspectivas teóricas para o estudo das correntes migratórias pode ser

encontrada em Cardin (2013).

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de análise dos fluxos migratórios que parta da observação das diferentes escalas, garante uma

atuação profissional mais efetiva e isso é um desafio para todos aqueles que estão diretamente

envolvidos na garantia de direitos, sejam professores, profissionais das áreas de saúde ou

assistentes sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, José Lindomar C.. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na

fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.

CARDIN, Eric Gustavo. Notas para o estudo dos processos migratórios no Brasil. In:

COLOGNESE, Sílvio Antônio. Fronteiras do Saber Sociológico. Porto Alegre: Evangraf,

2012. P.

47 – 63.

CARDIN, Eric Gustavo. Fundamentos Teóricos para o Estudo das Migrações. In:

COLOGNESE, Silvio Antônio. Novas Fronteiras para o Saber Sociológico. Porto Alegre:

Evangraf, 2013. P. 59-76.

MARX, Karl. A chamada acumulação primitiva. In: MARX, Karl. O Capital, livro 1, vol. II.

São Paulo: DIFEL, 1985. P. 828-882,