mediacao de conflitos comunitarios e facilitacao de dialogos relato de uma experiencia na mare

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 MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMUNITÁRIOS E FACILITAÇÃO DE DIÁLOGOS: Relato de uma experiência na Maré

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Mediacao de Conflitos Comunitarios e Facilitacao de Dialogos Relato de Uma Experiencia Na Mare

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  • MEDIAO DE CONFLITOS COMUNITRIOS E FACILITAO DE DILOGOS:

    Relato de uma experincia na Mar

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  • Ficha tcnica FGV Direito RioDiretor: Joaquim FalcoVice-Diretor de Ps-Graduao: Srgio GuerraVice-Diretor de Graduao: Fernando PenteadoProfessor Supervisor do CJUS: Luiz AyoubProfessora Supervisora do Mestrado Profi ssional em Poder Judicirio: Leila MarianoCoordenadora de Marketing Estratgico e Planejamento: Milena BrantCoordenador de Administrao e Finanas: Diogo PinheiroCoordenadora de Publicaes Impressas: Patrcia SampaioCoordenador de Publicaes Digitais: Pedro Mizukami

    EquipeCoordenao da pesquisaJos Ricardo Cunha (Professor da Graduao e Mestrado da FGV DIREITO RIO)

    Gerente do Projeto Mediao dos Confl itos Comunitrios e Facilitao de DilogosLgia Fabris (Coordenadora de Prtica Jurdica NPJ-Clnicas e Trabalho de Concluso de Curso)

    Supervisora da ClnicaTnia Almeida (Professora do Mestrado da FGV DIREITO RIO

    OrganizaoJos Ricardo Cunha (Professor da Graduao e Mestrado da FGV DIREITO RIO)Rodolfo Noronha (Assistente Acadmico do Mestrado)

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  • MEDIAO DE CONFLITOS COMUNITRIOS E FACILITAO DE DILOGOS:

    Relato de uma experincia na MarOrganizadores: Jos Ricardo Cunha e Rodolfo Noronha

    Rio de Janeiro, 2010

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  • ISBN - 978-85-63265-02-9Obra licenciada em: Creative Commons

    EDIO FGV DIREITO RIOPraia de Botafogo 190 13o andar - BotafogoRio de Janeiro - RJCEP:22.250-900e-mail: [email protected] site: www.direitorio.fgv.brImpresso no Brasil / Printed in BrazilOs conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autores.

    Superviso e Acompanhamento: Milena Moraes Brant de Almeida e Alessandro Monteiro de Barros Agra Cadarso

    Diagramao: Selnia Servios

    Reviso: Jos Ricardo e Rodolfo Noronha

    Capa: Bruno Lopes

    Ficha catalogrfi ca elaborada pelaBiblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

    Mediao de confl itos comunitrios e facilitao de dilogos: relato de uma expe-rincia na Mar / Organizadores: Jos Ricardo Cunha e Rodolfo Noronha. Rio de Janeiro : Escola de Direito do Rio deJaneiro da Fundao Getulio Vargas, 2010.96 p. : il.

    72 p.

    Inclui bibliografi a.

    1. Direitos sociais. 2. Mediao. 3. Confl ito Administrao. 4. Resoluo de disputas (Direito). 5. Mar (Rio de Janeiro, RJ). I. Cunha, Jos Ricardo. II. Noro-nha, Rodolfo. III. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundao Getulio Vargas.

    CDD - 341.27

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  • Sumrio

    Apresentao ....................................................................................................................................... 7

    Agradecimentos especiais .............................................................................................................. 11

    Estado Social e Estado Policial: Da desigualdade radical

    exigncia de uma nova tica Jos Ricardo Cunha ......................................................... 13I) Poltica e Polcia ................................................................................................................................. 13

    Ii) Direitos Sociais e o Custo dos Direitos ....................................................................................14

    Iii) Pobreza e Desigualdade Radical ................................................................................................ 18

    Iv) O Homo Sacer: sem Direito a ter direitos .............................................................................23

    V) Por uma tica da alteridade .......................................................................................................27

    Vi) Proteo social, proteo policial e tica............................................................................... 31

    Referncias Bibliogrficas .................................................................................................................33

    Mediao de Conflitos e Facilitao de Dilogos: aportes tericos

    para dilogos com mltiplas partes Tania Almeida ..........................................................35Introduo ...............................................................................................................................................35

    1. Contextualizao ..............................................................................................................................37

    2. Mediao de Conflitos ...................................................................................................................42

    3. Facilitao de Dilogos com Mltiplas Partes........................................................................44

    Consideraes Finais...........................................................................................................................52

    Referncias Bibliogrficas .................................................................................................................53

    Relato de trajetria da Clnica de Mediao de Conflitos Comunitrios

    e Facilitao de Dilogos ...............................................................................................................57

    Produo dos atores comunitrios que participaram do curso

    de Facilitao de Dilogos ocorrido na UNISUAM, em 31 de julho de 2009. ................67

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  • Apresentao

    Muito daquilo que podemos dizer sobre sociedades, ao tentar descrev-las, est na forma como indivduos e instituies se relacionam; em outras palavras, em como encaram a noo de outro e em como se relacionam com este outro. Muito das teorias do Direito (assim como teorias do estado), de certa maneira e at certa medida, dizem respeito s relaes e formas de relaciona-mentocomo elas so e como devem sercom o outro.

    No Brasil, muitos estudos apontam a existncia de uma tradio jurdica adversarial1, onde as diferentes partes que compem um confl ito posicionam-se em lados necessariamente opostos. A lgica de funcionamento desta forma de se relacionar com o outro separa, divide, contrape; coloca em lados opostos personagens de uma mesma histria, verses de um mesmo fato. Dessa forma, possvel dizer que o Direito, ao organizar as partes envolvidas em uma con-tenda, reproduz caractersticas dessa cultura mais preocupada em impor argu-mentos do que em assumir o ponto de vista do outro.

    Jogando olhares sobre um espao social urbano muito caracterstico (embora no exclusivo) do Rio de Janeiro, e tambm mudando a perspectiva de comporta-mento entre indivduos e pensando-se na relao entre espaos, pode-se dizer que a cidade possui uma parcela signifi cativa que nem sempre vista como desejada; ou de forma mais clara, algumas partes de um mesmo todo (a cidade) so vistas da perspectiva da dicotomia, da segregao. Tratam-se das favelas, espaos sociais urbanos fortemente marcados tanto por caractersticas socioeconmicas (indica-dores internos) quanto pelas representaes sociais acerca dele (olhares externos).

    1 Por exemplo, KANT DE LIMA, Roberto (Org.) ; AMORIM, Maria Stella (Org.) ; BURGOS, Marcelo Baumann (Org.) . Juizados Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios inter-disciplinares. 1. ed. Niteri: Intertexto, 2003; ou em KANT DE LIMA, Roberto (Org.) ; AMORIM, Maria Stella de (Org.) ; MENDES, Regina Lcia Teixeira (Org.) . Ensaios sobre a Igualdade Jurdica. Acesso Justia Criminal e Direitos de Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005; ou ainda KANT DE LIMA, Roberto . Ensaios de Antropologia e de Direito: Acesso Justia e Processos Institucionais de Administrao de Confl itos e Produo da Verdade Jurdica em uma Perspectiva Com-parada. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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  • 8 Mediao de Conflitos Comunitrios e Facilitao de Dilogos: Relato de uma experincia na Mar

    No difcil caminho entre duas escolhasmaximizar as diferenas ou assumir o ponto de vista do outro -, muitas vezes se opta pela primeira alternativa. Essa escolha pela supervalorizao das diferenas pode ser captada desde o incio do mito de origem das favelas no Rio de Janeiro2. Como consequncia, de um lado cola-se imagem da favela o estigma de espao das ausncias (de regra, de ordem, de moral), onde quem perde o espao segregado; de outro, impe-se tambm a perda (ou ao menos, subestimao) de ricas experincias sociais. Nes-sa lgica, quem perde no quem segregado, mas tambm quem segrega.

    Porm, na dicotomia das escolhas mencionadas, a outra via permanece como uma possibilidade, ou ao menos, uma esperana. O exerccio de alterida-de de ver o outro como o outro v o mundo, e de assim aprender mais sobre si, ao ver-se aos olhos do outro cada vez mais se torna uma urgncia, no apenas uma alternativa.

    A luta por direitos sociais da (e na) favela encontrou, em sua histria, al-gumas alternativas. Uma delas a judicializao3 desses confl itos, procurando no Judicirio uma forma de realizao desses direitos. Algumas so as vitrias, inegveis, mas que ainda no foram capazes nem de realizar integralmente os direitos sociais, nem de reconstruir a relao deste espao com o restante da cidade at por que se trata de um caminho trilhado pela via no do dilogo, mas da oposio: o binmio ns x eles contido na expresso morro x asfalto pode encontrar espao na lgica de funcionamento da judicializao deste tipo de confl itos.

    Na trilha do outro caminho proposto, a alteridade pode ser transformada, de inteno, esperana, necessidade, em mecanismo de reconstruo de rela-es, em instrumento de composio de confl itos. o que se props a fazer o Ncleo de Mediao de Confl itos Comunitrios e Facilitao de Dilogos. Contando. Com o apoio da Secretaria de Reforma do Judicirio do Minist-rio da Justia, por meio do Programa Pacifi car Formar para a cidadania e a promoo da paz e realizado em parceria entre a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundao Getulio Vargas e a organizao social Viva Comunidade, o Ncleo procurou construir uma ponte para a realizao dos direitos sociais na Mar, espao urbano que possui dupla identidade: em termos jurdico-ad-

    2 ALVITO, Marcos. ZALUAR, Alba. Um sculo de favela. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004.3 Sobre a militncia de lideranas em especial, ver SOUZA, Marcelo Lopes de. RODRIGUES, Glauco

    Bruce. Planejamento urbano e ativismos sociais. So Paulo: Editora UNESP, 2004; PANDOLFI, Dulce Chaves. GRYNSZPAN, Mario (org.). A favela fala. Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003; ainda RIBEIRO, Luiz Csar de Queiroz. SANTOS JR, Orlando Alves dos. Associativismo e Participao popular Tendncias da organizao popular no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ; FASE, 1996.

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  • APRESENTAO 9

    ministrativos, trata-se de um bairro, assim reconhecido pela prefeitura do Rio de Janeiro desde 1994; mas em termos de representao social, reconhecida por toda a cidade como favela e carrega em si no apenas o estigma que a ex-presso encerra, mas tambm os problemas na realizao de direitos sociais to comuns a outras localidades do mesmo gnero.

    O caminho proposto pelo projeto foi diferente de outros j vistos em ou-tras oportunidades: a partir da escolha pela mediao de confl itos e Facilitao de Dilogos, baseou-se na escuta, na compreenso, na aprendizagem. Para tal, mobilizou diversos setores da Escola de Direito: a Coordenao de Atividades Complementares da Graduao em Direito acolheu o curso de formao para alunos, militantes locais e parceiros da OAB/RJ; o Ncleo de Prtica Jurdica constituiu uma Clnica Jurdica, onde alunos de graduao atuaram diretamen-te nas aes desenvolvidas pelo projeto; e o Mestrado em Poder Judicirio, da mesma instituio, fez o acompanhamento e coleta de dados que orientaram as aes e o relatrio fi nal.

    Alm dos ganhos obtidos no caminhar do projeto4, espera-se deixar uma contribuio para um futuro prximo: a estrada construda pela ao do pro-jeto, as ferramentas construdas, a articulao produzida, os grupos que se for-maram em torno de um mesmo objetivo, e claro, a esperana constituda em torno de uma perspectiva melhor de vida no podem ser desperdiadas. As prximas linhas procuram sistematizar algumas das refl exes e aes desenvol-vidas neste caminhar, e mais do que tudo, possuem a pretenso de servir como apoio queles que queiram usar esta narrativa como material proveitoso para a constituio de uma nova trajetria, dali adiante.

    4 Que faz lembrar as palavras de Eduardo Galeano, a utopia est no horizonte [...].

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  • Agradecimentos especiais

    Agradecimentos mais do que especiais a todos e todas que viabilizaram este projeto, de diferentes maneiras. Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia e a todos os membros do Programa Pacifi car, que concor-daram em apostar em uma formao jurdica pouco convencional, ao investir na Mediao de Confl itos em faculdades de Direito.

    Aos alunos de graduao que fi zeram parte dos cursos de formao em Me-diao de Confl itos e Facilitao de Dilogos, assim como os alunos que partici-param das Clnicas do Ncleo de Prtica Jurdica. Apostaram na prpria forma-o jurdica e humana e contriburam para a construo desta trajetria.

    A todos os membros da Escola de Direito da Fundao Getulio Vargas e do Viva Comunidade, que apoiaram este empreendimento e se empenharam em realiz-lo.

    Aos docentes e supervisores envolvidos no projeto, que partilharam suas experincias e conhecimentos e moveram tantos esforos para a realizao das atividades.

    E principalmente, a todos os parceiros, associaes, entidades, militantes, ativistas e articuladores comunitrios da Mar, que to bem apostaram na pro-posta de uma luta por direitos baseada no dilogo. A todos, o nosso obrigado e o nosso sincero desejo de que tenhamos colaborado com a construo de mecanismos e ferramentas que sirvam Mar.

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  • Estado Social e Estado Policial:

    Da desigualdade radical exigncia de uma nova ticaJos Ricardo Cunha5

    I) POLTICA E POLCIA

    Aristteles dizia que o homem um ser naturalmente poltico e por isso vive em conjunto. Dizia tambm que aquele que no vive com os outros ou um deus ou um selvagem.6 Como ser poltico, o homem constri sua vida em torno da polis. Em latim, a palavra grega polis costuma ser dita civitas, sig-nifi cando no apenas cidade, mas tambm cidadania. O termo polis expressa, assim, a densidade do que signifi ca essa vida em comum, esse viver com os outros que inevitvel a todos os mortais. A polis no apenas a cidade, mas a Cidade-Estado. Aquela que pela poltica organiza a fora, para que esta seja juridicamente instrumentalizada e, de efeito, no se renda barbrie prpria da selvageria. Do grego polis resulta a palavra poltica e tambm a palavra pol-cia. Se a poltica busca as condies para uma vida em comum, a polcia busca as condies para a preservao da vida em comum. Claro que isso assim o , em tese. Na vida prtica, tanto o sentido da poltica como o sentido da polcia podem ser corrompidos em funo da busca de interesses particulares postos acima dos interesses pblicos ou, ainda, pelo predomnio de uma razo ins-trumental cegamente pragmtica. Mas o fato dessas distores ocorrerem no implica o desaparecimento do sentido normativo dos termos poltica e polcia. Ambos esto etimologicamente vinculados ideia de busca e manuteno das condies da vida em comum.

    A poltica, ao menos conforme sua tradio clssica, liga-se ao conceito de cidado, cidadania, e, portanto, de administrao pblica ou de administrao da coisa pblica. Contudo, administrar a coisa pblica no um ato apenas

    5 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professor Adjunto da Universidade Es-tadual do Rio de Janeiro e Professor Adjunto da FGV Direito Rio. tambm o coordenador do Ncleo de Mediao de Confl itos Comunitrios e Facilitao de Dilogos da FGV Direito Rio, com apoio do programa Pacifi car e parceria com o Viva Comunidade.

    6 Cf. ARISTTELES. A Poltica. So Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 4-5.

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  • 14 Mediao de Conflitos Comunitrios e Facilitao de Dilogos: Relato de uma experincia na Mar

    burocrtico que se encerra em si mesmo. Essa administrao tem um fi m, um telos. Diz Aristteles: Mas no apenas para viver juntos, mas sim para bem vi-ver juntos que se fez o Estado.7 Administrar a polis signifi ca buscar as condies para um bem viver de todos os cidados, de todas as pessoas. Ainda segundo Aristteles, o bem viver entre concidados traz uma exigncia de igualdade, isto , que cada um tenha a sua vez, o que, para esse fi lsofo, se traduz em justia e honestidade.8 A administrao pblica possui, nessa linha de raciocnio, um compromisso transcendental com a justia, ou seja, com a repartio de bens, encargos e imunidades. Esse o sentido de uma justia distributiva, preocupada em equiparar pessoas e grupos a uma espcie de linha mdia da sociedade.

    De certa forma, os dois sentidos dados por Aristteles exigncia de igual-dade, quais sejam, justia e honestidade, articulam-se com as duas palavras que decorrem do termo grego polis: poltica e polcia. Enquanto a poltica deve ser guardi da justia, a polcia deve ser guardi da honestidade. Mas no s isso: a ao da poltica deve ser pautada pela honestidade, bem como a ao da polcia deve ser pautada pela justia. Os quatro termos obedecem a uma reciprocidade direta e cruzada. Assim como no pode haver uma poltica sem justia e hones-tidade, tambm no pode haver uma polcia sem justia e honestidade. Com efeito, num plano prescritivo, poltica e polcia esto interligadas a partir das mesmas exigncias morais. Contudo, no assim que acontece na prtica. O texto que se segue apresentar alguns argumentos que pretendem enfatizar essa ruptura ftica, ou trauma moral, que por diversas vezes ocorre entre o sentido prescritivo e o sentido descritivo de poltica e polcia.

    II) DIREITOS SOCIAIS E O CUSTO DOS DIREITOS

    Todos ns sabemos que os direitos humanos resultam, em ltima instn-cia, de uma luta contra a arrogncia e a opresso do poder. Trata-se de erigir um campo de proteo a pessoas e grupos sociais em face de um domnio, no mais das vezes, revestido de postura ofi cial. Embora o poder, por defi nio, possa, ele no deve fazer tudo o que pode. O poder do Estado ou do capital, mesmo que juridicamente organizado, deve conhecer limites ticos que salvaguardem a liberdade, a autonomia e a dignidade de pessoas e povos.

    Dentro dessa premissa geral acima exposta, os direitos humanos foram afi rmados gradativamente na histria. conhecida a classifi cao dos direitos

    7 ARISTTELES. Op. Cit. , p. 53.8 ARISTTELES. Op. Cit., p. 63.

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  • ESTADO SOCIAL E ESTADO POLICIAL 15

    humanos em geraes ou dimenses. Na primeira gerao ou dimenso temos documentos histricos como a Magna Carta de 1215 e a Carta de Direitos de 1689, ambas na Inglaterra. Ainda podemos falar na Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, na Frana. Todos esses documentos so caracterizados pela afi rmao de direitos civis e polticos, tais como direito integridade, segurana e s diversas formas de liberdade. J no alvorecer do s-culo XX, a partir de todas as transformaes ocorridas no sculo XIX, sobretudo por fora da chamada revoluo industrial, assistimos ao surgimento da segunda gerao ou dimenso dos direitos humanos. Nesta temos documentos histricos como a Constituio mexicana de 1917 e a Constituio alem de 1919. Tam-bm merece destaque a Declarao do Povo Trabalhador e Explorado de 1918, na Rssia. Esses documentos so caracterizados, por seu turno, pela afi rmao de direitos econmicos e sociais, tais como educao, trabalho e previdncia.9

    As duas dimenses dos direitos humanos foram fi nalmente integradas na Declarao Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948. Apesar disso, no processo posterior de regulamentao da Declarao, por razes histricas que no sero debatidas neste texto, foram aprovados pelas Naes Unidas dois distintos Pactos: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. A proclamao de dois pactos reforou a distino entre as dimenses dos direitos humanos, como se direitos civis e polticos e direitos econmicos e sociais no pudessem andar juntos. Para evitar essa interpretao equivocada, dois anos depois, na I Conferncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teer, em 1968, foi consagrada expressamente a indivisibilidade dos direitos humanos, tendo sido afi rmado que uma vez que os direitos humanos e as liberdades fun-damentais so indivisveis, a realizao plena dos direitos civis e polticos sem o gozo dos direitos econmicos, sociais e culturais impossvel. Apesar de ter ocorrido esse esforo em Teer e depois ter sido reafi rmada a indivisibilidade e interdependncia dos direitos humanos na II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, em Viena, em 1993, permaneceu uma ideia de divisibilidade dos direitos humanos.

    Na prtica, essa divisibilidade dos direitos humanos ocorre sob o argu-mento de que os direitos civis e polticos so direitos negativos e, por isso, se realizam sem a participao do Estado, ou melhor, com a inao do Estado. O exemplo mais corrente o do direito s liberdades pblicas, ou mesmo o direito de ir e vir. Tais direitos no demandariam uma ao direta do Estado, mas, ao

    9 Cf. COMPARATO, Fbio Konder. A A rmao Histrica dos Direitos Humanos. So Paulo: Sarai-va, 1999.

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  • 16 Mediao de Conflitos Comunitrios e Facilitao de Dilogos: Relato de uma experincia na Mar

    contrrio, sua absteno que permitiria ao cidado realizar suas atividades lci-tas no exerccio de tais direitos. Por isso estes seriam direitos autorrealizveis. Na outra ponta h o argumento de que os direitos econmicos e sociais so di-reitos positivos e, por isso, se realizam com a participao do Estado, na forma de prestao de bens e servios para o cidado. Exemplos correntes so os do direito sade e do direito previdncia. Tais direitos demandariam uma ao direta do Estado, seja na construo de hospitais e contratao de profi ssionais de sade, seja na organizao da mquina previdenciria e pagamento de apo-sentadorias, penses e benefcios. Por isso, no seriam esses direitos autorreali-zveis, mas progressivos conforme a disponibilidade oramentria do Estado.

    No obstante o raciocnio que insiste na divisibilidade entre os direitos civis e polticos e os direitos econmicos e sociais seja, em certa medida, com-preensvel, ele no deixa de ser passvel de questionamentos. A crtica de fundo e mais importante que a divisibilidade favorece uma lenincia com relao no-realizao de certos direitos. Isso nos remete ao contexto da Guerra Fria, na qual o bloco capitalista apoiava os direitos civis e polticos mas impunha restries aos direitos econmicos e sociais. Do outro lado, o bloco comunista apoiava os direitos econmicos e sociais mas impunha restries aos direitos civis e polticos. No meio da disputa ideolgica, fi cava a pessoa desamparada e sujeita a diferentes formas de violao de sua autonomia e dignidade. Esse o preo maior da divisibilidade dos direitos humanos.

    Alm da crtica mais geral acima apresentada, pode-se dizer que falsa a ideia de que os direitos de primeira gerao necessariamente ocorrem com a absteno do Estado, assim como tambm falsa a ideia correlata de que os di-reitos de segunda gerao necessariamente ocorrem com a presena do Estado. Em relao aos direitos de segunda gerao, basta que lembremos a ao de mo-vimentos sociais, ONGs e sindicatos que atuam conquistando e assegurando determinados direitos econmicos e sociais muitas vezes independentemente da ao do poder executivo e, s vezes, at contra ele. Mas ainda que se pense Estado no apenas como poder executivo, por vezes os movimentos sociais (em sentido amplo) fazem suas conquistas diretamente em face do capital ou de setores privados da sociedade. J em relao aos direitos civis e polticos, de pri-meira gerao, o argumento mais eloquente ainda. falso imaginar que, por exemplo, o direito de ir e vir dependa apenas de uma absteno do Estado. Ao contrrio, depende de uma ao positiva complexa e sofi sticada de oferecimen-to direto ou indireto de transportes e de gerenciamento de um sistema pblico de transporte terrestre, areo e martimo que inclui no apenas as mquinas de locomoo, mas estradas, portos e aeroportos. Na mesma linha vai o direito

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  • ESTADO SOCIAL E ESTADO POLICIAL 17

    de eleger os representantes polticos. No obstante seja um direito de primeira gerao, ele demanda o investimento direto de recursos pblicos para organizar e levar a cabo as eleies. Sem dinheiro no h eleies.

    Dentre os exemplos apresentados, gostaria de dar destaque ao direito integridade pessoal e patrimonial, tambm chamado de direito segurana p-blica. No h dvida de que se trata de direito civil de primeira ordem. Con-tudo, para que ele se realize, impensvel a absteno do Estado em qualquer nvel. Esse direito, tal qual o direito sade ou educao, implica a construo e compra de equipamentos, dos mais simples aos mais sofi sticados, bem como a contratao direta de pessoal em larga escala. Em outras palavras, um direito que demanda muito dinheiro, muitos recursos oramentrios. No entanto, so raros os discursos que afi rmam despudoradamente que a segurana pblica no pode ser oferecida porque no h dinheiro no oramento. Ou ainda, que por demandar a ao do Estado trata-se de um direito progressivo a ser realizado conforme a disponibilidade oramentria do mesmo. Qualquer cidado de clas-se mdia ou alta fi caria estupefato diante do argumento de que o policiamento no pode acorrer porque no h disponibilidade oramentria... E nenhum poltico ou administrador eleito seria tolo o sufi ciente para falar algo assim.

    A concluso que todos os direitos possuem custos. Em 1999, numa de-fesa do Estado Social diante do ataque mais contundente do neoliberalismo, Stephen Holmes e Cass Sunstein publicaram o livro Th e Cost of Rights: why liberty depends on taxes (O Custo dos Direitos: por que a liberdade depende de impostos). Nesse livro, os autores afi rmam que a oposio entre direitos positivos e direitos negativos no faz sentido e que totalmente ftil, pois h uma srie de direitos que simplesmente escapam ao simplismo desta classifi ca-o.10 Os autores lembram que essa dicotomia tornou-se popular entre muitos americanos pois estes acreditavam que se tratava de uma diferena entre os que estavam imunes interferncia do Estado nas suas vidas e os que estavam su-jeitos a tal interferncia. Alguns tambm acreditavam que os direitos positivos gerariam uma dependncia nas pessoas assistidas pelo Estado. Contudo, Hol-mes e Sunstein afi rmam que essas questes, embora presentes, no do conta da complexidade do debate e que a garantia de qualquer direito implica certos custos. Os autores lembram a mxima where there is a right, there is a remedy11 para concluir que rights are costly because remedies are costly.12 Em outras pala-

    10 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. Th e Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton & Company, 1999, pp. 37-38.

    11 Onde h um direito, h um remdio.12 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. Op. Cit., p. 43. Os direitos so custosos porque os remdios

    so custosos.

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    vras, todos os direitos implicam mecanismos para sua realizao ou proteo e tais mecanismos inevitavelmente importam custos diretos ou indiretos para o Estado e, portanto, para a sociedade.

    Ao fi m e ao cabo, se todos os direitos implicam custos, no h porque se argumentar que os direitos econmicos e sociais no so plenamente realizveis porque dependem de disponibilidade oramentria. A rigor e por essa linha de raciocnio, nenhum direito seria por si s plenamente realizvel, pois qualquer um depende, de alguma forma, de disponibilidade oramentria. Melhor expli-cando, os mecanismos (remedies) de promoo e/ou garantia de qualquer direi-to exigem algum custo. Mesmo os direitos mais elementares como liberdade de conscincia e opinio dependem da existncia de um custoso aparato judicial que lhes garantam e protejam frente a qualquer ameaa ou violao concreta. Ento, se todos os direitos esto em p de igualdade, tudo depende de uma questo de escolha, de opo.

    III) POBREZA E DESIGUALDADE RADICAL

    Pobreza e violncia so duas categorias que constantemente aparecem as-sociadas na forma de um binmio. Evidentemente, essa articulao bem mais complexa do que no mais das vezes aparece. No se trata de estabelecer aqui nenhuma relao de causa e efeito necessria, pois isso seria um tosco equvoco, afi nal nem todos os empobrecidos cometem atos de violncia e nem todos os atos de violncia so cometidos por empobrecidos. Por outro lado, so conhe-cidos os relatrios ofi ciais das administraes penitencirias que revelam que a maioria esmagadora da populao carcerria formada por pessoas empobreci-das. Se verdade que nem s os empobrecidos cometem crimes, parece ser uma igual verdade que majoritariamente so estes que so perseguidos e punidos pelo Estado em razo dos crimes cometidos. Novamente estamos diante de uma constatao que abriga inmeras e complexas variveis que demandariam uma anlise prpria, o que no ser feito nos limites deste texto. Por ora, quero estabelecer [fundamentar] a hiptese de que se correto dizer que pobreza e violncia no estabelecem uma relao de causa e efeito, por outro lado poss-vel afi rmar que os empobrecidos so os que mais sofrem com a violncia.

    De forma geral, parece que a sociedade j se acostumou com a violncia sofrida pelos mais empobrecidos. No nada desarrazoado afi rmar que se os mesmo ndices de crimes violentos que assolam as comunidades mais carentes e perifricas fossem constatados nos bairros das classes mdias e altas haveria

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    um levante social. Seriam inmeras as manifestaes e isso ocuparia espao de destaque nas principias mdias e meios de comunicao do pas. Tomando a si-tuao da cidade do Rio de Janeiro apenas como exemplo, eventualmente ouvi-mos ou lemos em jornais algo do tipo: Moradores de Copacabana no conseguem dormir em funo de tiroteio no Cantagalo. Ora, no difcil perceber como a semntica da frase revela que a vida de quem est no asfalto vale mais do que a vida de quem est no morro, ao menos no imaginrio de quem elaborou esse tipo de manchete. Se triste a situao dos moradores de Copacabana que no conseguem dormir em funo do barulho do tiroteio, dramtica e intolervel a situao dos moradores da comunidade do Cantagalo que esto com suas vidas diretamente ameaadas em funo da troca de tiros. Contudo, como foi dito antes, de uma forma geral, a sociedade perece tolerar com certa facilidade, ou at indiferena, a violncia que atinge os mais empobrecidos.

    Mas no se trata unicamente da violncia mais ostensiva que atinge pri-mordialmente os mais empobrecidos, nem mesmo do fato de a sociedade aturar esse quadro com certa passividade. A questo mais dramtica que a pobreza em si uma forma de violncia que degenera a vida das pessoas. Quando essa pobreza assume um carter estrutural, seja nos sistemas nacionais ou no sistema global, ento podemos falar de uma desigualdade radical. Essa a expresso usada por Th omas Nagel para afi rmar que mesmo quando as pessoas e pases mais ricos praticam atos de caridade para remediar a pobreza, ainda sim esta se encontra dentro de um campo de reprovao moral, na medida em que ela automaticamente reproduzida pelo sistema global.13

    Nesse sentido, o sistema que reproduz a pobreza e a dominao se choca frontalmente com a prescrio jurdico-moral inscrita na Declarao Univer-sal dos Direitos Humanos da ONU, que assevera em seu artigo 25: Todo ser humano tem direito a um padro de vida capaz de assegurar-lhe, e sua famlia, sade e bem-estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, e direito segurana em caso de desemprego, doena, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistn-cia em circunstncias fora de seu controle. Para confi rmar a contradio entre a norma e a realidade, dados do Programa das Naes Unidas para o Desenvol-vimento PNUD do conta de cerca de um bilho de pessoas no mundo sem a nutrio adequada e sem acesso gua potvel.14 Ainda segundo o PNUD, o Brasil ocupava em 2008 a 70 colocao no relatrio de Desenvol-

    13 Cf. NAGEL, Th omas. Poverty and Food: why charity is not enough. In: POGGE, Th omas; MOEL-LENDORF, Darrel. Global Justice: seminal essays. Minneapolis: Paragon House, 2008, pp. 49-57.

    14 Cf. http://hdr.undp.org/en/statistics/ Acessado em janeiro de 2010.

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    vimento Humano, numa lista com 179 pases.15 bem verdade que a poltica econmica, a poltica de seguridade social e as polticas de transferncia de renda tm levado a uma consistente reduo das taxas de pobreza no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios de 2007.16 O chamado ndice de Gini, que mede a desigualdade na concentrao de renda, vem mostrando algumas melhoras progressivas, passando de 0,593 em 2001 para 0,552 em 2007, correspondendo, portanto, a uma taxa de reduo mdia anual de 1,2 %.17 Contudo, ainda h uma pobreza estrutural e sist-mica que assola o Brasil e o mundo, gerando a chamada desigualdade radical, com seus nveis intolerveis de vida.

    Alguns aspectos dramticos desse quadro de desigualdade radical podem ser sintetizados da seguinte forma: 1) praticamente impossvel para quem est em estado de pobreza absoluta mudar sua prpria situao por vias lcitas; 2) a maior parte das pessoas que est em situao melhor de vida no consegue se colocar na situao daquelas que esto em piores condies e no possuem a mnima ideia do que viver de forma totalmente degradante; 3) essa desi-gualdade radical no diz respeito apenas renda e ao consumo, mas a todos os aspectos da vida social, como acesso s belezas naturais ou produes culturais e artsticas; e 4) a desigualdade radical acarreta diferentes formas de violncia, que se manifestam difusamente na sociedade, mas atingem com mais crueldade exatamente os mais empobrecidos, que so duplamente penalizados.18

    importante que se diga que o prprio conceito de pobreza em si mesmo complexo, admitindo uma signifi cativa gama de interpretaes. Possivelmente, os professores indianos Armatya Sen e Arjun Sengupta esto entre os principais estudiosos da matria.19 Com base em algumas refl exes desenvolvidas por esses autores, possvel falar em pobreza em pelo menos trs perspectivas: 1) pobreza

    15 Cf. http://hdrstats.undp.org/es/2008/countries/country_fact_sheets/cty_fs_BRA.html Acessado em janeiro de 2010.

    16 Cf. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2007/comenta-rios2007.pdf Acessado em janeiro de 2010.

    17 Cf. IPEA. PNAD 2007: Primeiras Anlises. Pobreza e Mudana Social. Volume 1. Braslia, 2008, p. 4. Cabe esclarecer que quanto mais prximo de zero estiver o ndice de Gini (ou coefi ciente de Gini), menor ser a desigualdade de renda.

    18 Parte dessa lista pode ser encontrada em POGGE, Th omas. Para Erradicar a Pobreza Sistmica: em defesa de um dividendo dos recursos globais. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos. So Paulo, n 6, ano 4, 2007, pp. 145-146.

    19 Cf. SEM, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. So Paulo: Cia das Letras, 2000. SEN, Amar-tya. Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001. SEN, Amartya. Collective Choice and Social Welfare. San Francisco: Holden-Day, 1970. SENGUPTA, Arjun. Poverty Eradication and hu-man Rights. In: POGGE, Th omas. Freedom From Poverty as a Human Right: who owes what to the very poor? Oxford: Oxford University Press, 2007.

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    com base na renda; 2) pobreza como privao de capacidades; e 3) pobreza como excluso social.20

    O conceito de pobreza com base na renda bastante utilizado por rgos e organismos ofi ciais nacionais e internacionais, por permitir mensuraes objeti-vas das condies de vida das pessoas. Dentro desse conceito, comum se falar em pobreza extrema e pobreza moderada. Para as Naes Unidas, por exemplo o PNUD, considera-se pobreza extrema a situao daquela pessoa que ganha menos de um dlar PPC por dia (PPC signifi ca dlar por paridade de poder de compra, isto , aquele que elimina a diferena de custo de vida entre os pases, permitindo, assim, uma anlise global). J o IBGE considera estar em pobreza extrema aquele indivduo que possui renda mensal inferior a um quarto do sa-lrio mnimo. No mais das vezes, polticas econmicas e polticas distributivas so pensadas tendo em vista esse conceito de pobreza.

    J o conceito de pobreza entendido como privao de capacidades leva em considerao o quadro mais amplo de bem-estar da pessoa. Nessa linha, pobres seriam as pessoas privadas de suas capacidades, ou seja, privadas das liberdades bsicas que se pode (e precisa) desfrutar para uma vida digna. Aqui, a liberdade no deve ser encarada como valor individualista e nem reduzida apenas vida civil ou poltica, mas como, por exemplo, liberdade para obter uma nutrio saudvel, para acessar um bom sistema de ensino e sade, para ler e escrever e conhecer lugares novos. O pleno exerccio de liberdades plenas o que coloca o sujeito em condio de exercer uma vida com qualidade. J a limitao dessas liberdades impede que o sujeito exera suas capacidades e possa desfrutar com autonomia da sua prpria vida. A pobreza aqui no uma questo meramente quantitativa, mas qualitativa. Leva em considerao as condies de vida da pessoa e as possibilidades efetivas que ela tem de acessar e desfrutar tanto do mercado como das prprias polticas de bem-estar.

    Por fi m, o conceito de pobreza como excluso social leva em considerao no apenas os nmeros da renda e as condies particulares do sujeito para o exerccio das suas capacidades, mas tambm o lugar social da pessoa e a maior ou menor vulnerabilidade que esta pode ocupar no momento de se relacionar com grupos sociais e com a sociedade como um todo. Os excludos so aqueles que por diversas razes so impedidos de participar da sociedade em geral, ou, ao menos, tm essa participao bastante difi cultada. A excluso pode resultar de razes econmicas, como tradicionalmente acontece, ou por outros fatores

    20 Cf. COSTA, Fernanda Doz. Pobreza e Direitos Humanos: da mera retrica s obrigaes jurdicasum estudo crtico sobre diferentes modelos conceituais. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos. So Paulo, n 9, ano 5, 2008, pp. 91-92.

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    que transcendem o aspecto meramente monetrio. Esse o quadro de determi-nados grupos que so socialmente marginalizados, tais como mulheres, crian-as, defi cientes, negros, ndios e homossexuais. Se, por um lado, bem verdade que muitas vezes a privao dos recursos fi nanceiros gera a excluso social, igualmente verdade, por outro lado, que muitas vezes a excluso social que gera privao de recursos fi nanceiros.

    Em qualquer uma das trs defi nies de pobreza, possvel falar que existe uma visceral ligao entre a pobreza em si e a violao de direitos humanos. A pobreza pode ser considerada, ao mesmo tempo, como causa e consequncia da violao de direitos humanos, na medida em que razovel presumir que caso tais direitos fossem assegurados, as pessoas teriam acesso a uma renda ade-quada, poderiam exercer suas capacidades e seriam socialmente includas. H, tambm, os que afi rmam que ser livre da pobreza seria em si mesmo um direito humano.21 De certa forma isso est presente na orientao de organismos in-ternacionais, como o PNUD e seu conceito de desenvolvimento humano22, e na orientao dada pela prpria constituio brasileira ao elencar no apenas direi-tos civis, polticos, econmicos e sociais, mas ao estabelecer como fundamento da Repblica a dignidade da pessoa humana e como objetivos fundamentais erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regio-nais. Contudo, problemas graves resultantes da desigualdade radical conduzem a uma corroso paulatina do Estado de Direito. A democracia, em sentido am-plo e no apenas eleitoral, que seu principal pilar, fi ca atingida, e o sentimen-to mais geral da populao passa a oscilar entre o medo de perder o que tem (muito, pouco ou quase nada) e a intolerncia em relao a tudo e todos que possam representar uma ameaa real ou presumida, ainda que presumida com base em preconceitos.

    Entre os mais ricos e poderosos e os mais empobrecidos est o chamado cidado mdio, que tomado, muitas vezes, por um sentimento de ameaa pela possibilidade de ser confrontado pelos interesses e sistema de vantagens de algum que esteja acima da lei e da constituio e, assim, seja violado nos seus direitos e achacado nos seus planos pessoais. Como se no bastasse, o sentimen-to de ameaa tambm ocorre em funo da possibilidade de encontro desse cidado mdio com algum que esteja abaixo da lei e da constituio e que, no tendo mais nada a perder, comporte-se para com ele de forma agressiva ou lesiva. Tudo isso conduz a um individualismo crescente e a um movimento de fechamento social como forma de autoproteo. Nesse compasso, a intolerncia

    21 Cf. COSTA, Fernanda Doz. Op. Cit., pp. 95-104.22 Cf. http://hdr.undp.org/en/humandev/ Acessado em janeiro de 2010.

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    tende a crescer, e o medo, que sempre o pior conselheiro, passa a ditar as regras no convvio social. Como efeito, assistimos a um duplo movimento: a) de um lado, o ceticismo que renuncia a qualquer esperana de que os mais favorecidos sejam, um dia, enquadrados pelo sistema jurdico e moral; b) de outro lado, a insensibilidade que torna invisvel os menos favorecidos com suas respecti-vas dores e clamores. Tanto o ceticismo como a insensibilidade inviabilizam qualquer tipo de reao moral e poltica da sociedade, que vai, lentamente, se acostumando com essa situao e fazendo com que cada pessoa crie seus meca-nismos prprios de sobrevivncia.23

    IV) O HOMO SACER: SEM DIREITO A TER DIREITOS

    Esse quadro geral s parece ser alterado quando agudizado diante das situ-aes mais drsticas de confl ito, especialmente quando elas acontecem entre os mais empobrecidos e os mais ricos, embora isso seja muito raro. Nessas circuns-tncias, em geral violentas e sangrentas, a corda tende a arrebentar, obviamente, para o lado mais fraco. Assim, os empobrecidos e socialmente excludos so estigmatizados e rotulados como obstculos ordem e convivncia. Oscar Vi-lhena sugere a expresso demonizao para aludir a tal circunstncia, explicando que se trata do processo pelo qual a sociedade desconstri a imagem humana de seus inimigos, que a partir desse momento no merecem ser includos sob o domnio do Direito24. A partir da, os demonizados passam a ser execrados social e juri-dicamente. Por isso mesmo a sociedade, de maneira geral, no ope resistncia queles que queiram eliminar os demonizados. Na verdade, isso de alguma forma estimulado, seja pelo incentivo retrico, seja pela certeza da imunidade jurdica a ser dada a quem elimin-los. Bordes como bandido bom bandido morto exemplifi cam a ideia. Alm disso e de forma mais eloquente, os inme-ros casos de extermnio so provas desse fenmeno.

    Para esses que so demonizados, o Estado de Direito no fracassa apenas, ele se converte perversamente em Estado de No-direito25 e a soberania da lei

    23 Cf. VILHENA, Oscar. A Desigualdade e a Subverso do Estado de Direito. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, So Paulo, n 6, ano 4, 2007, pp. 42-43.

    24 VILHENA, Oscar. Op. Cit., p. 44.25 Quanto a esse processo, Giorgio Agamben defende a tese do Estado de Exceo como aquele onde a

    fora de lei transcende a prpria lei para repousar na autoridade decisional do sujeito que aplica (ou no) a lei. Trata-se, assim, de uma fora de lei sem necessariamente lei, isto , de um espao aparentemente legal mas verdadeiramente anmico. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. So Paulo: Boitem-po, 2004.

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    atua desaplicando-se a si, abandonando por completo os demonizados. Estes so convertidos em bando da lei. Nesse sentido, Giorgio Agamben cita as refl exes de Jean-Luc Nancy sobre a lei:

    Abandonar remeter, confi ar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confi ar ou entregar ao seu bando, isto , sua proclamao, sua convocao e sua sentena. Abandona-se sempre a uma lei. A privao do ser aban-donado mede-se com o rigor sem limites da lei qual se encontra exposto. O abandono no constitui uma intimao a comparecer sob esta ou aquela imputao da lei. constrangimento a comparecer absolutamente diante da lei, diante da lei como tal na sua totalidade. Do mesmo modo, ser banido no signifi ca estar submetido a uma certa disposio da lei, mas estar sub-metido lei como um todo. Entregue ao absoluto da lei, o banido tambm abandonado fora de qualquer jurisdio...26

    O abandono diante da lei , por assim dizer, o abandono diante do poder de uma lei que no prescreve nada alm de si mesma, alm de sua prpria vign-cia vazia e sem sentido. O abandono remete, portanto, ao poder da soberania acima da lei, isto , ao poder poltico que atua por meio da lei, aplicando e desaplicando a lei conforme a convenincia. uma espcie de lei sem lei ou sem jurisdio, como afi rmou Nancy , que submete aqueles que a ela foram abandonados, ou seja, aqueles que no tm mais a quem ou a que recorrer. Estes formam o bando da lei. O bando a consequncia imediata do ato de bandir, isto , de banir quem no pertence quela faco. Esses que foram abandonados, banidos, so sempre vistos com maus olhos, so chamados de bandoleiros por-que pertencem ao bando da lei. So considerados bandidos porque seu prprio abandono diante da lei visto como um crime em si mesmo. Como bandidos, so culpados e, de efeito, tornam-se vidas matveis. Esses so os que Giorgio Agamben chama de homo sacer.27

    A classifi cao como homo sacer remete a uma situao pior do que aque-la sugerida pela classifi cao como demonizado. Isto porque se o demonizado estava, segundo afi rmou Oscar Vilhena, excludo do domnio do Direito,28 o homo sacer est abandonado ao domnio de uma legalidade que vige apenas para reproduzir-se e perpetuar-se a si mesma como forma de exerccio de seu prprio poder. Ao demonizado resta sempre a esperana de ser includo no sistema, mas

    26 NANCY, Jean-Luc. Limpratif catgorique. APUD AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder so-berano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG, 2004, p. 66.

    27 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG, 2004, pp. 79-117.

    28 VILHENA, Oscar. Op. Cit., p. 44.

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    ao homo sacer nem isso resta, pois ele j est includo no sistema, ainda que na forma de uma exceo, isto , por meio de uma excluso inclusiva. Para Gior-gio Agamben, o elemento-chave de compreenso do homo sacer a estrutura da sacratio conforme estabelecida no direito romano. Esta era constituda por dois elementos: o veto do sacrifcio e a impunidade de sua morte. O homo sacer era aquela pessoa condenada pelo cometimento de determinado delito que por sua natureza o transformava em pessoa impura ou ser pertencente aos deuses. A curiosa contradio essa que fazia da pessoa ao mesmo tempo impura e ser dos deuses, algo como maldito e anjo ao mesmo tempo. Por ser anjo santi-fi cado, sacralizado ou pertencente aos deuses, ele no podia ser sacrifi cado ou executado, mas por ser impuro ou maldito ele era abandonado prpria sorte e qualquer do povo que o sacrifi casse no estaria cometendo um delito, no poderia ser punido. O homo sacer quebra o princpio da no-contradio e se apresenta a um s tempo como puro e impuro, como fasto e nefasto. Pelo crime cometido, o homo sacer abandonado pela lei, sendo exilado do humano sem, contudo, passar ao divino. Portanto, apesar de puro, ele no-purifi cado, no h como expiar a culpa, por isso ele entra na comunidade humana pela sua desumanizao, pela sua prpria matabilidade. Afi rma Agamben:

    Aquilo que defi ne a condio de homo sacer, ento, no tanto a pretensa ambivalncia originria da sacralidade que lhe inerente, quanto, sobretu-do, o carter particular da dupla excluso em que se encontra preso e da vio-lncia qual se encontra exposto. Esta violncia a morte insancionvel que qualquer um pode cometer em relao a ele no classifi cvel nem como sacrifcio e nem como homicdio, nem como execuo de uma condenao e nem como sacrilgio. 29

    O homo sacer representa, portanto, um dos aspectos mais brutais da desi-gualdade radical. Para ele, o Estado de Direito apenas um estado formal de direito que se apresenta como abandono da lei diante da violncia de uma lei que se aplica ao no aplicar-se. Esse paradoxo, defi nido por Agamben como parado-xo da soberania, coloca a cru o aspecto mais cruel dos processos de dominao pessoal e social: pr em questo qual vida vale ser vivida. Nesse nvel admite-se que podem existir vidas miserveis que chegaram ao ponto de perder a qualidade de bem jurdico e moral e, assim, j perderam totalmente o valor, tanto para seu prprio portador como para a sociedade. Como vida, permanece insacrifi cvel pelo Estado, mas como vida sem valor fi ca sujeita matana impune. De um

    29 AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit., p. 90.

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    ponto de vista mais pessoal e particular, esse debate nos remete para problemas como o da eutansia, mas de um ponto de vista mais social e geral esse debate nos remete para as diferentes formas de excluso que recaem sobre distintos gru-pos sociais como, por exemplo, crianas em situao de rua ou homossexuais. Quando esses so convertidos em homo sacer a sociedade acaba por decidir sobre o valor de suas vidas e se elas valem ou no ser vividas. o mais absoluto aban-dono que se d sob o manto da lei que assegura a ordem para a impunidade.

    So vrios os exemplos que comprovam esse processo. De tempos em tem-pos vm tona casos de brutalidade cometidos e justifi cados pelo biopoder, isto , o poder da vida sobre a vida. No Rio de Janeiro, crianas foram assassinadas enquanto dormiam na porta de uma igreja e o senso comum achou aceitvel por se tratarem apenas de menores de rua... Em Braslia, jovens atearam fogo em um ndio que dormia no ponto de nibus e justifi caram dizendo no saber se tratar de um ndio, acharam que era apenas um mendigo... Em So Paulo rapazes que andavam pelo parque de mos dadas foram espancados at que um deles foi morto, e os autores explicaram que o fi zeram porque eles eram gays... No Rio de Janeiro, dois jovens espancaram uma empregada domstica e justifi caram dizendo que s o fi zeram porque pensaram ser apenas uma prostituta... Aqui o advrbio apenas representa a vida do homo sacer, a vida sem valor: apenas crianas, apenas mulheres, apenas negros, apenas favelados, apenas mendigos, apenas doentes, apenas loucos, etc...

    Celso Lafer, ao tratar do processo de reconstruo kantiana dos direitos humanos, lembra que aps a I Guerra Mundial, muitas pessoas se viram des-titudas da sua condio de nacionais e, por isso, no tinham a quem recorrer para buscar seus legtimos direitos de cidadania. Eram pessoas sem casa, con-sideradas como refugo da terra ou displaced persons.30 Tais pessoas fi cavam merc da caridade alheia ou da prpria sorte. Por isso elas no eram alcanadas pela gramtica dos direitos humanos. Da que Hannah Arendt, conforme relata Celso Lafer, conclui que o primeiro direito humano o direito a ter direitos.31 A situao desses deslocados produz angstia porque inquietante. So pessoas que esto constantemente em busca do reconhecimento de sua cidadania pelo Estado. Para que isso acontea, por vezes elas cometem algum tipo de delito, pois na condio de criminosos passam a ser reconhecidas pelo Estado, que lhes aplica a lei que tanto buscam.32

    30 Cf. LAFER, Celso. A Reconstruo dos Direitos Humanos: um dilogo com o pensamento de Hanna Arendt. So Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 139. Displaced persons, isto , deslocados, sem lugar.

    31 LAFER, Celso. Op. Cit., pp. 153-154.32 Cf. LAFER, Celso. Op. Cit., p. 147.

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    Todavia, como dissemos anteriormente, a situao daquele que ocupa o lugar do homo sacer mais dramtica ou trgica. Enquanto o sem lugar busca ser incorporado ao espao social e ocupar, assim, algum lugar, o homo sacer j est incorporado sociedade. Sua situao angustiante, no porque ele este-ja formalmente excludo, coisa que no est, mas porque ele est exatamente abandonado e preso dentro de um espao de mera formalidade vazia. Sua situ-ao , portanto, angustiante porque claustrofbica. No h para onde entrar, ele j est dentro, ainda que isso de fato no lhe signifi que nada melhor. Do ponto de vista da ordem jurdico-poltica, o mais tormentoso que possvel dizer que, de certa forma, o Estado de Direito funciona sim para o homo sacer, funciona como uma espcie de Estado de No-Direito; funciona porque no funciona, pois, afi nal, o que foi feito para no funcionar e no funciona, en-to funciona...

    V) POR UMA TICA DA ALTERIDADE

    A constatao do fenmeno do homo sacer presente entre ns e caracteri-zado nas diversas pessoas que carregam a marca de certa denegao ou refuso social, especialmente dentre os mais empobrecidos, revela exatamente o aban-dono da lei que vigora sem valer. Eles so os corpos matveis, simbolicamente ou concretamente. Da a precariedade da rede de proteo social e a mirade de argumentos, dos mais cnicos aos mais sofi sticados, para justifi car a impos-sibilidade de cumprimento de vrios direitos humanos, em especial de direitos econmicos e sociais.

    Uma das razes pelas quais a sociedade convive com espantosa facilidade diante da desigualdade radical e do fenmeno do homo sacer o fato de estar-mos todos, em maior ou menor medida, acostumados e at orientados por uma ideia geral de estilo de vida que costuma ser individualista, pragmtico e egosta. Afi rmaes do tipo para pensar no outro voc deve pensar primeiro em voc, ou ento, para poder ajudar o outro voc deve primeiro ajudar a voc mes-mo, ou, ainda, para arrumar o mundo voc deve comear pela prpria casa, so bastante comuns e usadas. Elas so reveladores de um tipo de ethos que coloca o bem do outro em segundo plano. Para esse tipo de pensamento, a tica , no mximo, agir com coerncia. Agir com coerncia em relao a voc mesmo e suas prprias ideias (cada um tem a sua tica) e/ou agir com coerncia em rela-o determinado grupo onde se insere. Por isso mesmo alguns falam em tica da polcia ou em tica dos bandidos, isto , desde que se aja com coerncia

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    dentro do que esperado para o comportamento daquele grupo, a pessoa agiu conforme a tica, isto , a tica daquele grupo. Aqui, a tica foi brutalmente reduzida como se seu sentido fosse o de agir dentro de um protocolo. Essa defi nio ou esse entendimento do que seja tica no nos ajuda na tarefa da superao da desigualdade radical e do fenmeno do homo sacer. Quero propor algo contra uma tica individualista ou uma tica dos grupos tal como tica da polcia ou tica dos bandidos. Me alinho com aqueles que asseveram uma tica que nos remete ao cuidado com o outro.

    Para tanto necessrio fazer uma distino entre tica e moral. Muitas vezes, as palavras moral e tica so usadas em sentido sinonmico, o que plena-mente aceitvel, pois ambas podem ser entendidas como conduta orientada para o bem conforme certo costume ou tradio. Isso se explica na prpria etimologia das palavras, j que o vocbulo moral vem do latim morus, que signifi ca cos-tume ou cultura, enquanto o vocbulo tica vem do grego thos, que tambm signifi ca costume ou cultura. Todavia, essa no a nica forma de grafi a da palavra; desde o grego antigo h uma variao fontica e semntica que intro-duz um sentido diverso para a palavra tica.33 Quando em grego ela escrita , possui a vogal breve e, por isso, deve ser transliterada como thos (som aberto). Nesse caso, como j foi dito, tica signifi ca um conjunto de costumes e hbitos ou as caractersticas culturais de uma coletividade. Porm, quando es-crita , possui a vogal longa, devendo ser transliterada como thos ou thos (som fechado). Nessa segunda forma, a palavra no signifi ca mais costume ou cultura, mas sim morada ou covil habitual, falando-se em animais.

    Essa segunda interpretao exatamente aquela que destaca Heidegger na sua carta Sobre o Humanismo: thos signifi ca morada, lugar da habitao. A palavra nomeia o mbito aberto onde o homem habita. O aberto de sua morada torna-se manifesto naquilo que vem ao encontro da essncia do homem e assim, aproximando-se, demora-se em sua proximidade.34 Ora, esse aberto da morada no se reduz, portanto, vida domstica ou morada domstica, mas refere-se situao de existncia do homem no mundo. Ns habitamos o mundo, vivemos no mundo, moramos no mundo. Essa nossa condio essencial, que neces-sariamente compartilhada por todos. Assim sendo, nossa vivncia no mundo tambm convivncia no mundo, isto , viver com. Por seu turno, viver com presume a existncia de um outro. Como afi rma Heidegger, o nosso ser-no-

    33 Cf. CHAU, Marilena. Introduo Histria da Filoso a: dos pr-socrticos a Aristteles. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 349.

    34 HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 170.

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    mundo determinado pelo com, pois o mundo da presena sempre o mundo compartilhado. O ser em sempre o ser com os outros.35 Aqui sim, fi nalmente, podemos encontrar o sentido forte para a palavra tica.

    Com efeito, tica aquilo que nos remete para o outro, para a emergncia de uma alteridade. De um ponto de vista tico, esse outro no pode ser visto apenas como conceito ou categoria abstrata, muito menos como ente manipu-lvel segundo minhas perspectivas e interesses, mas como existncia autnoma que reclama respeito e dignidade na sua prpria qualidade de outro, isto , na sua outricidade. Como afi rma Manfredo de Oliveira, a liberdade s se afi r-ma como liberdade pelo reconhecimento incondicionado da outra liberdade como liberdade.36 Nessa esteira, a tica uma relao bilateral, mas no em sentido tradicional como eu e outro. O eu nessa relao seria uma ameaa narcsica inteno tica.37 Por isso, a bilateralidade da relao tica outro e outro, ou seja, o eu fi ca transformado em outro do outro. Isso quer dizer que o outro deve ser visto desde um ponto de vista arquimediano independente das minhas idiossincrasias. Eu devo constatar, respeitar e tolerar o outro porque ele existe como tal, no porque isso pode ser bom para mim. A tica nos remete, assim, para um campo de responsabilidade pelo outro como condio inevitvel de nossa existncia ou morada no mundo. Nas palavras de Lvinas: O que chamo de responsabilidade por outrem, ou amor sem concupiscncia, o eu s pode encontrar sua exigncia em si prprio; ela est no seu eis-me aqui do eu... ela originalmente sem reciprocidade, pois traria o risco de comprometer sua gratuidade ou graa... 38

    A tica nos situa no centro do campo do cuidado.39 O outro aquele a quem dirigimos nosso cuidado, nosso zelo, nossa ateno; ele nos interpela em nossa capacidade mais profunda de produzir humanidade, de perceber e fazer brotar a existncia humana para que ela cresa e perdure na sua prpria vida. Nessa perspectiva possvel, sim, dizer que a tica produz um ganho subjetivo, pois a humanidade produzida inevitavelmente transcende o outro para tambm crescer no eu que a pratica. como se a conduta tica gerasse em quem a pra-tica um sentimento ao mesmo tempo ligeiro e profundo de realizao humana. Esse o mximo de satisfao que a tica pode proporcionar ao sujeito, ao eu, uma vez que ela no se destina autorrealizao, mas garantia da convivncia humana. Alm disso, como ente no-manipulvel, no se pode esperar que o outro aja conforme as minhas expectativas, nem mesmo em relao sua con-

    35 Cf. HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo. Petrpolis: Vozes, 1995, p. 170.36 OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. tica e Racionalidade Moderna. So Paulo: Loyola, 1993, p. 101.37 Cf. LVINAS, Emmanuel. Entre Ns: ensaios sobre a alteridade. Petrpolis: Vozes, 2005, p. 197.38 LVINAS, Emmanuel. Op. Cit., p. 293.39 Cf. RICOEUR, Paul. Em Torno ao Poltico Leituras 1. So Paulo: Loyola, 1995, pp. 162-163.

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    duta tica. Em outras palavras, no devemos agir eticamente para que o outro tambm o faa, at porque seria impossvel ter garantias nesse sentido, mas porque humanamente devemos faz-lo.

    Estamos, portanto, diante de um paradigma tico que demanda de todos senso de responsabilidade e tolerncia. A responsabilidade decorre, acima de tudo, da conscincia de nossa fi nitude material. Como seres fi nitos, no temos razo nenhuma para acreditar que a vida humana se perpetuar ad infi nito no planeta Terra. Por isso, devemos agir para com os outros e para com o planeta de forma a renovar constantemente as possibilidades de uma existncia digna para todos.40 J a tolerncia decorre, acima de tudo, da conscincia da inevitvel coexistncia.41 Se a vida humana um empreendimento coletivo, imperioso que sejam respeitadas todas as manifestaes pessoais e sociais decorrentes do livre arbtrio que caracteriza a condio humana.42 Ainda que saibamos que o livre arbtrio no um dado absoluto, pois existem muitas sobredeterminaes, tanto nas macrorrelaes como nas microrrelaes, o livre arbtrio continua merecendo o respeito e, por isso, deve haver tolerncia. A palavra tolerncia est aqui no como condescendncia de algum superior em relao a outro inferior. Ela pretende registrar o dever de respeitar manifestaes com as quais no se concorda, na linha do conhecido aforismo de Voltaire: Posso discordar de tudo que voc est dizendo, mas vou lutar at o fi m para que voc tenha o direito de diz-lo. Uma sociedade plural aquela onde cada pessoa deve ter direito escolha do seu prprio projeto de vida, ainda que arque com os nus de tal projeto.43

    Todavia, o princpio da tolerncia no , ele mesmo, maior do que a tica. Por isso no pode ser tomado de forma absoluta. Em outras palavras, o dever de tolerncia no signifi ca que tudo deva ser tolerado. No podem e no devem ser toleradas as prticas que conspiram contra as relaes ticas, isto , contra o respeito dignidade do outro. A tolerncia uma regra que carrega, em si mes-ma, sua exceo: tudo deve ser tolerado, menos a intolerncia. Todas as prticas e manifestaes pessoais, institucionais e culturais que violem o lugar do outro no devem ser toleradas.44 importante registrar que esse lugar do outro se

    40 Cf. JONAS, Hans. Le Principe Responsabilit. Frana: Flammarion, 1998, pp. 39-42.41 Cf. MARAS, Julin. Tratado sobre a Convivncia: concrdia sem acordo. So Paulo: Martins Fon-

    tes, 2003.42 RAWLS, John. Liberalismo Poltico. Lisboa: Editorial Presena, 1996. pp. 43-49; pp. 141-174.43 RAWLS, John. A Th eory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999, pp. 211-216. Cf.

    TAYLOR, Charles. Th e Politics of Recognition. In: TAYLOR, Charles et al. Multiculturalism: exami-ning the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, pp. 25-73. Cf. WALZER, Michael. Da Tolerncia. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    44 Cf. RAWLS, John. Op. Cit., pp. 216-221.

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    defi ne tanto pelo direito como pela moral, ou, dito de outro modo, trata-se do respeito aos direitos jurdicos e morais que tm todas as pessoas.

    nesse cenrio que toma sentido falar-se em uma nova tica. Uma tica cosmopolita e inclusiva fundada na fi gura do outro como condio de possibi-lidade da existncia humana livre e digna.45 Essa nova tica no apenas uma baliza para o presente, mas uma forma de se entender o tempo, isto , de se in-terpretar o passado e planejar o futuro. A conduta tica nos obriga ao constante reexame do nosso passado histrico pessoas, instituies e povos , tendo em vista recuperar e reparar os erros perpetrados contra indivduos ou grupos sociais. Isso signifi ca que a responsabilidade tica transcende tempo e espao, e o fato de no termos vivido num certo momento ou num certo local no nos exime dos nossos compromissos ticos. Da mesma forma o futuro, mesmo incerto, tambm campo obrigatrio pata tais compromissos. Ainda que ns mesmos no vivamos no futuro distante, temos hoje o dever tico de zelar por ele e pelas pessoas que nele existiro, seja prevenindo, seja orientando para que no ocorram erros conhecidos. As aes do presente devem ser pautadas por exigncias ticas no somente de hoje, mas tambm do passado e do futuro.

    VI) PROTEO SOCIAL, PROTEO POLICIAL E TICA

    O direito segurana pblica realiza-se no bojo de polticas pblicas que devem ser deliberadas socialmente e implantadas pelo Estado, preferencialmen-te com a participao da populao. Da mesma forma ocorre com outros di-reitos imprescindveis existncia humana, tais como educao e sade. So todas essas polticas sociais bsicas que devem ser dirigidas ao universo todo da populao, ou seja, so polticas universais. Tais polticas so indispensveis a quaisquer pessoas e devem ser planejadas de forma massiva.

    Porm, essas polticas universais no so sufi cientes, pois existem pessoas que partem de um ponto mais combalido que as demais. Em geral so aque-las situadas na zona da desigualdade, mais ou menos radical, e que, por isso, necessitam de uma ao adicional do Estado e da sociedade para constiturem as condies elementares de suas prprias vidas. Tendo em vista as condies dessas pessoas, o Estado demandado a implantar outras polticas, alm das universais. So as chamadas polticas supletivas ou assistenciais. Enquadram-se

    45 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Th e Ethics of Identity. Princeton: Princeton University Press, 2005. Cf. DUSSEL, Enrique. tica da Libertao na idade da globalizao e da excluso. Petrpolis: Vo-zes, 2000.

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    aqui os programas de transferncia de renda, de ateno especial sade e educao de segmentos sociais vulnerabilizados, bem como vrias formas de aes afi rmativas. A lgica que deve presidir tais polticas no a do assistencia-lismo, mas a da busca das condies bsicas de vida para que cada pessoa possa, a partir da, desenvolver seu prprio projeto de vida. No o Estado que deve dizer o que melhor para cada pessoa, mas ele deve oportunizar o acesso a bens primrios para que cada um possa traar e perseguir seu projeto de vida. Contu-do, o acesso a tais bens primrios para aqueles segmentos mais vulnerabilizados depende no s das polticas bsicas, mas tambm das polticas supletivas.

    Todavia, podem existir grupos de pessoas em situao especial de risco pessoal e social. Para tais pessoas, no bastam as polticas bsicas e/ou suple-tivas. Faz-se necessrio gerar uma ao diferenciada e coordenada de proteo especial para que elas sejam amparadas e, s vezes gradativamente, retiradas da situao de risco que lhes afl ige. Esse o caso, por exemplo, de crianas em situ-ao de rua, mulheres vtimas de violncia domstica, jovens com dependncia qumica, etc... Essas pessoas ou grupos de pessoas demandam do Estado e da sociedade servios de proteo especial consubstanciados, no mais das vezes, em programas de acolhimento e de atendimento queles que foram vtimas de circunstncias especfi cas de abuso, violncia, negligncia ou opresso. Essas so as chamadas polticas de proteo especial.

    A realizao de todas essas polticas universais, supletivas e de proteo especial deve conformar uma rede de proteo social que permita a cada pes-soa e aos grupos sociais a conduo de suas vidas em patamares dignos.

    importante que se note que a proteo policial no deve ser considerada um fi m em si mesmo deslocado da rede de proteo social. Quando assim ocor-re, somos remetidos a uma ideia de segurana pblica como guerra. Numa guerra, o objetivo matar e exterminar o inimigo. Se fssemos transpor esse tipo de lgica para a proteo policial, seriamos forados a responder, de sada, pergunta: quem o inimigo?. A desigualdade radical faz com que boa parte da populao, especialmente nas classes mdia e alta, identifi que nos mais em-pobrecidos esse inimigo. Quando esse raciocnio se encontra com a fi gura do homo sacer, essas vidas matveis perdem o valor de vida, e toda sorte de violn-cia, da ameaa ao extermnio, passa a campear na vida desses mais subalterni-zados. Em geral, esse tipo de perspectiva costuma sobressair aps os episdios mais dramticos de violncia explcita, mas apenas aqueles que atingem pessoas das classes mais favorecidas. Episdios de violncia explcita atingem os mais empobrecidos com uma chocante constncia, porm isso no afeta a chamada opinio pblica, pois esta no se importa com aqueles.

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    Por essa razo, necessrio que nossas visadas polticas ou sociolgicas acerca da ao policial sejam necessariamente permeadas por uma preocupao tica. A polcia no deve ser apenas aquela que protege a mim, mas tambm a que protege ao outro. E esse outro no deve ser tomado, prima facie, como ameaa ou perigo. Especifi camente, os empobrecidos no devem ser colocados na condio de alvo principal da polcia, pois merecem tanta considerao e respeito como os mais favorecidos. Mas alm da mesma considerao e respeito que eles merecem, ainda fazem jus a um vis prprio de proteo social, onde se insere a proteo policial que leve em conta suas condies peculiares.

    Para que isso acontea, necessitamos refundar a tica para que a dignidade intrnseca em cada ser humano seja considerada. O sentimento de indiferena e desprezo pelo outro que torna possvel a ideia de vida matvel deve ceder lu-gar ao respeito e tolerncia. A honestidade e a justia, como queria Aristteles, devem realmente ser a marca da polis, seja na poltica, seja na polcia.

    * * *Fevereiro de 2010

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  • Mediao de Conflitos e Facilitao de Dilogos: aportes tericos

    para dilogos com mltiplas partes46

    Tania Almeida47

    INTRODUO

    O avano cientfi co e tecnolgico da modernidade propiciou a necessria fragmentao do conhecimento, criou as especialidades e os especialistas e des-prestigiou as vises generalistas naturalmente carentes de aprofundada especi-fi cidade. Esse processo acabou por desencadear a subespecializao e a sistema-tizao dos saberes nas distintas disciplinas e, sabiamente, no as hierarquizou em termos de importncia.

    O movimento cientfi co contemporneo identifi cou os benefcios e tam-bm os custos da ao anterior e vem propondo que a construo do conheci-mento, assim como a identifi cao, a anlise e os atos pertinentes s questes relativas a qualquer classe de saber, possam incluir a tica da multidisciplinari-dade, caracterizada pela interao de saberes de mltiplas disciplinas, na busca por manter os benefcios veiculados pela preciso de cada uma delas e evitar os custos da ausncia da viso holstica.

    No campo da gesto de confl itos, o Direito e a Psicologia foram as disci-plinas que se dedicaram, na modernidade, prtica da resoluo de controvr-sias. Emprestaram seus olhares aos contextos em confl itos e possibilitaram que fossem tratados, com especifi cidade, tanto pelo vis jurdico como pelo vis

    46 Este artigo foi escrito com a inteno de compilar os principais aportes tericos compartilhados com os integrantes do Projeto Pacifi car, coordenado pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundao Getulio Vargas (FGV) e pelo Viva-Comunidade e realizado em 2009. O aprendizado terico-prtico foi exposto pelos alunos da Escola de Direito, participantes do projeto, em artigo produzido com essa fi nalidade. O aprendizado prtico dos atores comunitrios fi cou registrado em uma listagem de atitudes facilitadoras do dilogo, construda por eles nas dinmicas de campo.

    47 Docente e pesquisadora em Mediao de Confl itos e em Facilitao de Dilogos. Diretora-Presidente do MEDIARE Dilogos e Processos Decisrios. Mdica. Ps-graduada em Neuropsiquiatria, Psica-nlise, Terapia de Famlia, Sociologia e Gesto Empresarial. Mestranda em Mediao de Confl itos pelo Institut Universitaire Kurt Bsh (Sua). A autora foi supervisora geral do Projeto Pacifi car, que motivou essa publicao.

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    emocional, em separado. A psicologia jurdica48 veio socorrer os sujeitos em confl ito, identifi cando algumas articulaes entre os dois saberes e possibilitan-do tratamentos menos fragmentados para as desavenas.

    Na contemporaneidade, a Mediao de Confl itos chega guardando coe-rncia com sua poca e se constitui transdisciplinar em gnese e propsitos.49 A Mediao prope um dilogo entre disciplinas e se constitui nas suas interfa-ces. Atravessa a Filosofi a, o Direito, a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, entre outras, sem manter fi delidade absoluta a nenhuma delas. Na Mediao, distintas disciplinas se articulam e a enriquecem com esse entrelaamento. Por pertencer ltima gerao dos Mtodos Alternativos de Soluo de Confl itos, incorpora a contemporaneidade da viso transdisciplinar, fazendo desaparecer fronteiras entre diferentes saberes e, com isso, contemplando um leque maior de aspectos contidos nos confl itos.

    Reeditada em momento histrico mundial dedicado a implementar a cul-tura do dilogo na busca de solues cooperativas e pacfi cas, em lugar das tradicionais solues adversariais e a uma maior participao dos cidados na resoluo dos prprios confl itos, a Mediao, assentada na autonomia da von-tade das partes, sobressai aos seus pares pela busca da genuinidade da autoria na autocomposio de controvrsias.

    Inspiradora de outros mtodos dedicados ao dilogo inclusivo e partici-pativo, como a Facilitao de Dilogos e o Dilogo Colaborativo, a Mediao oferece seus princpios, seus propsitos e seu instrumental tcnico, construdos a partir do aporte de diferentes disciplinas, para a prtica do dilogo produtivo aquele que privilegia a escuta (e no a contra-argumentao), a construo de consenso (e no o debate), o entendimento (e no a disputa).

    Este artigo dedica especial ateno Mediao e Facilitao de Dilogos como processos contemporneos, em sua gnese e propsitos, de construo de consenso, assim como participao do mediador e do facilitador de dilogos como terceiros imparciais entre pessoas em discordncia.

    48 Psicologia na Mediao (Fiorelli; Malhadas Junior; Moraes, 2004) uma obra que chama ateno para os processos emocionais dos sujeitos em confl ito e procura demonstrar a interferncia da emoo na participao desses sujeitos em processos de resoluo de controvrsias.

    49 Em Interdisciplinaridad en la Educacin, Ezequiel Ander-Egg (1994) demonstra como esse tema relevante na vida intelectual contempornea. O autor faz uma distino entre multi ou pluridisciplinaridade quan-do vrias disciplinas se ocupam simultaneamente de idntico problema, ou seja, quando uma questo estudada por diferentes disciplinas e disciplinaridade cruzada um caso de integrao de conhecimentos cientfi cos, em que o cruzamento dos saberes de diferentes disciplinas produz uma interao terica e metodolgica que d lugar a uma disciplina nova que expressa essa interdependncia, como o caso da Psi-cologia Jurdica. Ander-Egg refere-se transdisciplinaridade como uma perspectiva epistemolgica que vai alm da interdisciplinaridade, buscando no s o cruzamento e a interpenetrao de diferentes disciplinas, mas, tambm, apagando os limites que existem entre elas para integr-las em um sistema nico.

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  • MEDIAO DE CONFLITOS E FACILITAO DE DILOGOS 37

    1. CONTEXTUALIZAO

    1.1. O momento histrico50

    O homem, suas crenas e seu momento histrico criam problemas e solu-es, demandas e ofertas num moto-contnuo cada vez mais veloz. Mais afasta-do do privilgio conferido aos bens, preconizado pela sociedade industrial, ele valoriza, na atualidade, as ideias sua criao, difuso e prtica , que, neste incio de milnio, esto especialmente voltadas para os temas da convivncia social: a viso de mundo sistmica norteadora de aes desde a ecologia eco-nomia, a necessidade de atuar em colaborao manifesta pelos mercados co-muns e pelas junes empresariais, o exerccio da cidadania reivindicado tanto pelas minorias quanto pela populao em geral, o acesso Justia, preocupao de todos.

    nessa pauta que o espao para os instrumentos de resoluo alternativa de disputas est reservado com lugar de destaque, pois que estes no s garan-tem coerncia com os temas da atualidade mas tambm possibilitam ampliar o campo de negociaes entre pessoas e povos, exigncia natural do mundo globalizado. Como todas as outras demandas originadas de mudanas para-digmticas, nascem em alguns lugares antes de outros e ganham personalidade congruente com cada cultura, com cada contexto.51

    Recurso dedicado genuinidade da autoria, a Mediao trabalha no sen-tido de restabelec-la, fazendo jus nova viso de mundo e agregando o valor tico da responsabilidade pela criao, cumprimento e manuteno das solu-es autocompostas.

    Instrumento complementar aos j conhecidos, no pretende substituir ou concorrer com nenhum deles, marcando sua diferena e a necessidade de sua existncia pela dessemelhana com os anteriores, por incluir como objeto de considerao e cuidado elementos neles no existentes previamente.

    Acostumados noo de verdade, temos historicamente substitudo cer-tezas vigentes, expressas em ideias ou modelos de funcionamento, por novas formas de pensar e de fazer e nos surpreendemos com esse instrumento, que no chega para substituir, mas para agregar. Acostumados ao surgimento de concorrentes e no de colaboradores, nos surpreendemos, igualmente, com esse

    50 Mediao na virada do milnio, artigo publicado pela autora na Gazeta Mercantil em 1999. Fala da sintonia da Mediao com esse momento histrico.

    51 Ver o artigo Mediao: entre o individualismo e a interdependncia, em que Celia Passos (2008) nos coloca em contato com dados relativos prtica da Mediao em distintos contextos culturais.

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  • 38 Mediao de Conflitos Comunitrios e Facilitao de Dilogos: Relato de uma experincia na Mar

    recurso que se prope a existir e a atuar de forma absolutamente coerente com seus propsitos, colaborando com todos os outros, sem deslegitim-los.

    A coexistncia do pluralismo de ideias, propsitos e culturas exigida pela sobrevivncia no mundo globalizado, certamente, trar como benefcio para as culturas, de maneira geral, uma maior fl exibilidade e capacidade de incluso e considerao por aquilo que dessemelhante.

    1.2 Alguns riscos e benefcios de uma prtica transdisciplinar

    O mundo multidisciplinar nos acompanha desde os bancos escolares, e at hoje nos benefi ciamos dos currculos que congregam distintos saberes. Infl un-cia benfazeja da modernidade, a fragmentao do conhecimento deu origem ao aprimoramento de diferentes campos de estudo. H bem pouco tempo o homem dedicou ateno inter-relao possvel entre algumas disciplinas e, acompanhando o advento do pensamento sistmico,52 em meados do sculo passado, passou a ter como objeto de curiosidade e pesquisa sua interdepen-dncia e o resultado inter e transdisciplinar de algumas prticas visivelmen-te interativas.

    A Mediao exemplo recente daquilo que a tica transdisciplinar pde produzir. Nenhuma das atividades profi ssionais de que se tem notcia, at o momento, oferece os conhecimentos e destrezas necessrios para a prtica da Mediao. Seu exerccio mpar e demanda capacitao especfi ca, de contedo programtico multidisciplinar.

    Cada contexto profi ssional possui uma cultura particular, um estilo pr-prio de interpretar os eventos, elementos possibilitadores de leituras e aes naturalmente reduzidas coerncia de seu universo de conhecimento. Restrin-gir a Mediao a qualquer contexto profi ssional ou confundi-la com prticas existentes implica, portanto, sacrifi car sua qualidade transdisciplinar de atuao e de resultados.

    Reside na articulao sistmica dos saberes nos quais a Mediao foi buscar suporte e com os quais estabelece interao o seu carter transdisciplinar e a sua natural dessemelhana com seus pares, desde suas intenes at os resultados de sua prtica.

    52 O pensamento sistmico, explorado por Ludwig von Bertalanff y, em Teoria geral dos sistemas (1977), foi categorizado como um novo paradigma da cincia e tem sido objeto de refl exo de autores oriundos de distintas disciplinas. Ver Fritjof Capra A teia da vida (1997), O Tao da fsica (2000) e Maria Jos Esteves de Vasconcellos Pensamento sistmico: o novo paradigma da cincia (2003).

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  • MEDIAO DE CONFLITOS E FACILITAO DE DILOGOS 39

    Desacostumados com a qualidade transdisciplinar de atuao, tendemos a tomar como sinnimos espcies de um mesmo gnero como ocorre, por exemplo, em nossa cultura, com a Mediao e a Conciliao.53

    A viso sistmica da controvrsia, objeto da Mediao, possibilita que esta seja entendida como parte de uma cadeia de eventos e no como fato isolado. O convencimento a respeito do aspecto multifatorial na gnese dos confl itos e o diagnstico diferencial com relao aos seus componentes so-ciais, econmicos, jurdicos, psicolgicos e outros viabilizam a adequao de abordagem no seu trato e a eleio de norteadores apropriados de resoluo e de encaminhamento.

    Juntas, a viso sistmica e a qualidade transdisciplinar da Mediao per-mitem ao mediador, inclusive, a anlise de sua prpria atuao, da propriedade de sua conduo do processo e de sua contribuio para o fomento ou para a resoluo da controvrsia. O mediador parte do sistema de resoluo e sua atuao interfere nos resultados do processo de dilogo.54

    1.3 A postura adversarial e a negociao efetiva de diferenas

    O lugar da adversarialidade