mediacao didatica na historia

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217 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 217-238, jul./dez., 2005 A MEDIAÇÃO DIDÁTICA NA HISTÓRIA DAS PEDAGOGIAS BRASILEIRAS Cristina d’Ávila * Minha mãe achava o estudo A coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo É o sentimento. (Adélia Prado) RESUMO Com este artigo pretendemos discutir a natureza da mediação didática no seio das pedagogias que compuseram o cenário educacional brasileiro desde a chegada da Companhia de Jesus no séc. XVI até os dias atuais. Trazemos à baila as características da pedagogia jesuítica, da pedagogia nova, tecnicista, freireana, histórico-crítica e construtivista, enfatizando em cada uma das tendências pedagógicas apresentadas o tipo de mediação didática mais marcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios (como na tecnopedagogia), dentre outros. A compreensão dessas tendências se dá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortina atualmente no contexto escolar. Concluímos pela possibilidade de construção de uma síntese superadora das tendências apresentadas, tendo em vista uma prática pedagógica mais criativa, prazerosa e construtiva, sem que para isso precisemos abrir mão do conteúdo sistematizado e da autoria docente. Palavras-chave: Mediação didática – Teorias pedagógicas – Trabalho docente ABSTRACT DIDACTIC MEDIATION IN THE HISTORY OF BRAZILIAN PEDAGOGIES This paper aims at discussing the nature of didactic mediation within the pedagogical tendencies which have composed the Brazilian educational scene from the Jesuits arrival on the sixteenth century up to our days. We make clear the characteristics of all: the Jesuits’ pedagogy, the new pedagogy, the technical one, as well as those inspired from Paulo Freire, and from the historic-critical and constructivist epistemologies. We stress in each of the pedagogical * Doutora em Educação pela UFBA, com estágio doutoral na Université de Montréal, Canadá. Professora adjunta da Faculdade de Educação – FACED/UFBA. Professora adjunta do Departamento de Educação Campus I e do Mestrado em Educação e Contemporaneidade – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

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Cristina d’Ávila

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 217-238, jul./dez., 2005

A MEDIAÇÃO DIDÁTICA

NA HISTÓRIA DAS PEDAGOGIAS BRASILEIRAS

Cristina d’Ávila *

Minha mãe achava o estudoA coisa mais fina do mundo.

Não é.A coisa mais fina do mundo

É o sentimento.

(Adélia Prado)

RESUMO

Com este artigo pretendemos discutir a natureza da mediação didática no seiodas pedagogias que compuseram o cenário educacional brasileiro desde achegada da Companhia de Jesus no séc. XVI até os dias atuais. Trazemos àbaila as características da pedagogia jesuítica, da pedagogia nova, tecnicista,freireana, histórico-crítica e construtivista, enfatizando em cada uma dastendências pedagógicas apresentadas o tipo de mediação didática maismarcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios(como na tecnopedagogia), dentre outros. A compreensão dessas tendênciasse dá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortinaatualmente no contexto escolar. Concluímos pela possibilidade de construçãode uma síntese superadora das tendências apresentadas, tendo em vista umaprática pedagógica mais criativa, prazerosa e construtiva, sem que para issoprecisemos abrir mão do conteúdo sistematizado e da autoria docente.

Palavras-chave: Mediação didática – Teorias pedagógicas – Trabalho docente

ABSTRACT

DIDACTIC MEDIATION IN THE HISTORY OF BRAZILIANPEDAGOGIES

This paper aims at discussing the nature of didactic mediation within thepedagogical tendencies which have composed the Brazilian educational scenefrom the Jesuits arrival on the sixteenth century up to our days. We make clearthe characteristics of all: the Jesuits’ pedagogy, the new pedagogy, the technicalone, as well as those inspired from Paulo Freire, and from the historic-criticaland constructivist epistemologies. We stress in each of the pedagogical

* Doutora em Educação pela UFBA, com estágio doutoral na Université de Montréal, Canadá. Professora adjunta daFaculdade de Educação – FACED/UFBA. Professora adjunta do Departamento de Educação Campus I e do Mestradoem Educação e Contemporaneidade – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia -UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

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tendencies the most important type of didactic mediation, through the teacher(in the Jesuits’ pedagogy), through means (technical pedagogy) and so on. Wepresent these pedagogical tendencies at the light of the present didactic andpedagogic context within Brazilian schools. We conclude to the possibility of aunifying synthesis of all presented tendencies, aiming at a more creative,pleasurable and constructive pedagogical practice, without denying systematizedcontent and authorship.

Keywords: Didactic mediation – Pedagogical theories – Teacher’s practices

Introdução

O olhar sobre a mediação didática docentesob ângulos distintos, consubstanciado em prá-ticas pedagógicas que vigoraram na história daeducação brasileira, levou-me a desenvolver opresente artigo. A análise histórica do fenôme-no educativo e, no seu seio, da mediação didá-tica docente, permitiu articulações necessáriasà compreensão deste olhar múltiplo e, ao mes-mo tempo, integrado, do que vivenciamos comoprocesso educacional no Brasil, mormente apartir dos estudos das teorias de maior expres-são na nossa história.

A opção por iniciar este artigo com a Peda-gogia Tradicional Jesuítica está em ter sido estapedagogia a que primeiro se estabeleceu, noBrasil, como modelo formal de ensino, ofere-cendo, assim, as balizas fundamentais que fari-am evocar, posteriormente, suas própriascríticas e o nascedouro de outras teorias peda-gógicas. A concepção de mediação didáticadocente que temos hoje é, sem dúvida e tam-bém, resultado do que se viveu e se herdou des-ta pedagogia.

A pedagogia da Escola Nova se colocoucomo eixo importante na compreensão desteprocesso, tendo representado influência signifi-cativa nos rumos da educação nacional. Nesta,a mediação didática docente, como se poderáverificar do capítulo que se segue, se dialetizana relação com o educando, onde o professordeixa de ser o detentor absoluto do saber – comona pedagogia tradicional – e passa a constituir-se em orientador da aprendizagem.

A Tecnopedagogia também se insere nomovimento histórico da educação no Brasil, num

difícil momento de silêncio político e obscuran-tismo educacional. Nesta, a mediação didáticadocente é eclipsada em nome dos meios tec-nológicos, que davam o tom desta pedagogia.

Era preciso, em pleno regime militar, respi-rar um pouco da esperança perdida, incluindo,na compreensão do fenômeno educativo e naeclosão de um pensamento pedagógico coeso,o componente social e político, banido desteprocesso desde o início dos anos de 1960. As-sim, as pedagogias de cunho sociopolítico seimiscuíram no processo educacional brasileiro,como possibilidade de luta e transformação con-tra o que se instituía como poder. Paulo Freireconcede a abertura da porta com a elaboraçãodo seu ideário pedagógico que, por força doexílio a que se submetera, havia de se tornarrealidade fora do país. O professor haveria deser um mediador político que, além de ensinar,a partir da vivência concreta dos educandos,proporcionaria a elaboração do pensamentocrítico e da conscientização política, necessári-os à transformação social.

A pedagogia histórico-crítica surge comooposição às vertentes tradicionais e da EscolaNova, bem como crítica ao ideário freireano.Nesta, o professor é responsável por uma me-diação de natureza também sociopolítica, como acento muito mais evidente na transmissãode conteúdos de caráter universal — expedi-ente este que deveria constituir-se em ferra-menta necessária às lutas pela transformaçãodas estruturas sociais do país.

Com a teoria construtivista e a sociocons-trutivista, veremos como a mediação didáticavolta o eixo para a compreensão dos processosde aprendizagem e desenvolvimento cognitivo

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do educando – como se fazia no período emque vicejou a Escola Nova. O professor, nestatendência, volta os olhos, efetivamente, à apren-dizagem significativa do conhecimento e à ca-pacidade de construção e reconstrução desaberes pelo educando. O professor é um me-diador de saberes ressignificados e reconstruí-dos pelos educandos. A mediação didática nãose resume à transmissão do conhecimento ela-borado, mas às possibilidades de reelaboraçãodeste pelos educandos, que haverão de impri-mir-lhe significação pessoal.

É este o panorama que se pretende descor-tinar no corpo deste artigo.

1. A pedagogia Jesuítica e a medi-ação do mestre

A volta entusiasta à antigüidade clássicamarcava a Renascença. Após o período dastrevas da Idade Média, Grécia e Roma reto-maram seus postos como fontes de beleza hu-mana imortal. Ao seu lado renascia também apedagogia dos seus mais célebres educadores.As citações dos grandes clássicos fervilhavam:ao lado da retórica de Aristóteles se afiguravao De oratore de Cícero. Plutarco e Sêneca fi-guravam como moralistas preconizadores de umideal humano quase cristão. Finalmente, Quin-tiliano encarnava, no século XVI, a pedagogiaromana.

A Companhia de Jesus imprimia, nesse pe-ríodo, uma pedagogia de cunho tradicionalista eclássico. Sobretudo no que se refere ao ensinodas humanidades, a força da antiguidade clás-sica suplantou a tradição escolar da Idade Mé-dia, que conservara a filosofia e a teologia comoprimados. Os séculos XIV e XV assistiam àdecadência visível da escolástica que atingiraseu apogeu no século XIII. Entretanto, nos pri-meiros anos do século XVI, a restauração dasíntese clássica do pensamento medieval co-meçava a se configurar.

É na Ratio Studiorium (plano curricular je-suítico, publicado em 1599) que iremos visuali-zar com clareza a mediação do mestre. Em que

pese a importância conferida aos conteúdosclássicos, o preciosismo da Ratio estava nametodologia de ensino.

A mediação didática não se resumia à trans-missão dos conhecimentos. Os jesuítas toma-vam esse processo como ponto de partida numaprática pedagógica onde a exercitação e a trans-ferência de conhecimentos estavam perfeita-mente associadas. A aula se iniciava pelapreleção, ou prelectio, que consistia numa li-ção antecipada, ou seja, numa explicação doque o aluno deveria estudar.

Nas classes elementares de gramática, oprocesso de ensino constituía-se de explicaçõessobre o texto, esclarecimentos sobre o vocabu-lário quanto à propriedade dos termos, ao senti-do das metáforas, à gramática, à ordem econexão das palavras.

Chamava-se eruditio o estudo mais apro-fundado e complexo do conteúdo ministradomediante o conhecimento das realia indispen-sáveis, ou conhecimentos positivos, em outraspalavras, subliminares. O eruditio, então,compreendia as noções de história, geografia,mitologia, etnologia e arqueologia, que pudes-sem elucidar o sentido do texto estudado. As-sim, às noções de gramática elementarsucederiam os estudos da sintaxe, estilo e artede composição. O mestre aí estava mais ocu-pado com as idéias e sua expressão.

A função do professor era mais a de possi-bilitar a análise e, menos, a de propiciar o acú-mulo de conhecimentos. Que se permita umaassociação à prática pedagógica de hoje... Emque pese o academismo, como marca registra-da da pedagogia jesuítica, aprender significavamais que acumular conhecimentos.

A prática pedagógica jesuítica, por outrolado, esteve sempre associada à disciplina. Ocolégio deveria funcionar como um pequeno Es-tado escolar tendente à autonomia, onde os ci-dadãos seriam recrutados com prudência. Nesseponto, a relação com as famílias era de estrei-teza ímpar: constituía-se numa relação de dele-gação de poderes, onde um pai aceitaria osprincípios e a disciplina do colégio. Os jesuítasrecriariam a atmosfera familial e alegre nos in-

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ternatos e exerceriam sobre a criança a autori-dade do pai ausente.

Mas não se pode falar em método sem con-teúdo, assim como não se pode compreender oprocesso de mediação do mestre sem a maté-ria prima do seu trabalho: o saber. O saber e osaber fazer pedagógico se encontram, assim,imbricados no processo ensino-aprendizagem,o que explica, vez por outra, nesse texto um ir-e-vir do conteúdo ao método.

O conteúdo marcadamente clássico dava otônus dessa pedagogia e era exatamente atra-vés deste que a mediação desenvolvida pelosmestres se fazia sentir. Escolheram os jesuítas,como plano de estudos, a formação exclusiva-mente literária, baseada nas humanidades clás-sicas.

Inicialmente, a Ratio Studiorum previa en-sino puramente formal e gramatical, mas, pou-co a pouco, diversas disciplinas foram introdu-zidas (auxiliares do humanismo), constituindo oeruditio, que tornaria mais forte a eloqüênciados adolescentes. Com a arte de discorrer (artde conférer), os estudantes estariam prepara-dos para sustentar, na sociedade, discussõesbrilhantes sobre todos os assuntos referentes àcondição humana e à defesa da religião cristã.

Logo à entrada no colégio, as crianças eramconvidadas ao aprendizado do latim e do grego.E, como língua de conversação, o latim eraprescrito até no recreio. A fixação era facilita-da através de exercícios que desenvolviam amemória.

A classe era dividida em decúrias e o estu-dante de confiança do mestre fazia, cada ma-nhã, os colegas repetirem a lição, enquanto oprofessor procedia à correção dos exercícios.A aula estava resumida a um exercício metódi-co, onde a preleção da véspera era repetida pelosalunos, a começar dos melhores. Sem dúvida, ométodo quase sempre resvalava para a mono-tonia, e a luta contra esta fazia consagrar umdia na semana (o sábado) para exercícios maisinteressantes e opção por variedade de autoresestudados.

O sistema de exames prévios, no segundociclo, partia de um exercício fundamental: pra-

electio. Nas classes de gramática a finalidadeera lembrar ao aluno o funcionamento das re-gras, sem deixar de incentivar a sua sensibili-dade. A praelectio atingia o seu ápice nasclasses de retórica.

O método jesuítico de avaliação se restrin-gia a exames e revelava objetivos pedagógicosfundados na capacidade analítica dos estudan-tes. Aliás, a metodologia de ensino jesuítica de-monstrava atenção, para além da memorização,para com a capacidade criadora dos alunos. Aexemplo, nas classes superiores, os sábadoseram destinados a uma verdadeira parada lite-rária, caracterizada por uma brilhante preleção,um discurso latino ou grego, ou mesmo um po-ema clássico criado pelos alunos. Logo, a me-diação didática capitaneada pelo mestre jesuíta,permitia o exercício da criação (ainda que comos limites de um conteúdo impregnado da ideo-logia cristã).

O virtuosismo da pedagogia jesuítica esta-va, pois, no método aliado a um conteúdo denatureza abstrata.

A técnica da emulação compunha-se deencenação inspirada nas próprias humanidades.A classe era dividida em duas frações, Roma-nos ou Cartagineses. Os melhores alunos tra-vestiam-se da magistratura soberana, e oscargos menos importantes constituíam, em cadaum dos grupos, um estado-maior valoroso queparticipava da disciplina da classe. Colocadosem ordem decrescente, em cada coluna um alu-no tinha diante de si um homólogo da mesmaforça, seu êmulo – adversário regular, de quemdevia assinalar os erros e as inexatidões. Deacordo com a vantagem de um aluno sobre seuêmulo, o campo estava aberto às honras ou àsdesonras. Esse método mantinha a emulaçãonão só entre os melhores alunos, mas tambémaos últimos da classe, no qual a vitória sobre oêmulo oposto (que poderia ser o melhor colo-cado na classe) era seguida da redistribuiçãodos cargos que se realizava a cada dois meses.

Quanto ao ensino da língua materna, con-vém ressaltar que a ausência desta como con-teúdo obrigatório não se constituía em faltagrave, uma vez que, para os jesuítas, o conhe-

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cimento do vernáculo era uma prescrição. AsConstituições e as regras comuns lembravam atodos o dever de estudar a língua falada pelopovo. Ocasionalmente, as traduções, versões,ditado e exposições de argumento, garantiam atodos um estudo eficiente do vernáculo. Inclu-sive, com o desenvolvimento progressivo dasliteraturas modernas, a Ratio Studiorium abriaespaço para o estudo direto das línguas vivas.Além disso, o aluno podia praticar, no estudo dagramática, o manejo da língua pátria medianteo comentário dos autores clássicos e a compo-sição literária. Ademais, os jesuítas imprimiramgrande importância aos estudos práticos do ver-náculo, configurados em composições, constru-ções variadas de análises e argumentos sobreos clássicos. O rigor dos exercícios, inclusivede caráter prático, era uma constante.

O conteúdo de filosofia era a matéria pri-ma da pedagogia jesuítica. Na Ratio, o aristo-telismo era a substância do ensino. Nãoobstante, as lutas travadas entre defensores daReforma e da Contra-Reforma fizeram eclodircerto estreitamento no ensino de filosofia, a qual,intimamente ligada à teologia, fez transmudar,muitas vezes, em sabedoria cristã os conheci-mento teóricos ou práticos adquiridos no longocontato com a Antigüidade Clássica.

Era Aristóteles o autor de base, mas os li-vros oferecidos aos alunos permitiam a cons-trução de um curso inteiro de filosofia. Nosprimeiros anos, a Lógica e a Física iluminadaspelos comentários de S. Tomás de Aquino per-faziam a filosofia natural. O professor de Filo-sofia Moral se incumbia de ensinar a Ética, queeditava os valores eternos da sabedoria antiga,e o professor principal culminava com perspec-tivas elevadas da Metafísica e do tratado daalma. Aristóteles era considerado o mestre dafísica e a Ratio de 1586 ordenara sua leituracomo obrigatória. O ensino de Física, a essaépoca, versava primordialmente sobre os doistratados: Do céu e os meteoros.

O humanismo italiano concedia lugar de des-taque às matemáticas e, posteriormente, Ináciode Loyola não hesitou em declarar-se partidá-rio manifesto. A utilidade das matemáticas, en-

tão, e suas aplicações práticas começavam aser percebidas.

Finalmente, podemos dizer que a mediaçãodo mestre na pedagogia jesuítica, do ponto devista didático, estava marcada por três elemen-tos fundamentais: o conteúdo clássico com oacento na ideologia cristã, o rigor da disciplinae o preciosismo do método.

Ao contrário do que diziam as variadas crí-ticas sobre essa pedagogia, descobri na RatioStudiorium um estudo didático profundo, o querevela a preocupação desses mestres para como método pedagógico e, por conseguinte, paracom a aprendizagem dos alunos. Sem dúvida,era o mestre o centro do processo ensino-apren-dizagem. Não há dúvidas também que o aluno,nessa perspectiva, assumia forçosamente umaatitude passiva diante das verdades sacrossan-tas que caracterizavam o conteúdo transmiti-do. Entretanto, havia espaço para que o espíritoanalítico fosse exercitado, o que prova o surgi-mento de pensadores revolucionários formadospela Companhia de Jesus.

2. Mediação docente na peda-gogia da Escola Nova: o pro-fessor como parceiro de jor-nada

Para explicitar a mediação didática docentena Escola Nova (tendência pedagógica forte-mente vivenciada no Brasil a partir dos anos1930), é preciso entender o pensamento peda-gógico de Anísio Teixeira, seu idealizador, apartir das influências que ele recebeu àquelaépoca, especialmente de John Dewey, pedago-go norte-americano, que viveu entre o final doséculo XIX e a primeira metade do século XX.

O movimento pela educação ativa que ha-veria de influenciar Anísio Teixeira e seus se-guidores no Brasil da primeira metade do séculoXX, nascera na Europa, em fins do século XIX,com as idéias de Seidel, na Alemanha e Suíça,com a constituição do Bureau Internationalpour l’École Nouvelle, organizado por Adol-phe Ferrière, com a obra de Kerschensteiner

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em Munique, Ligthart, na Holanda, Ovide De-croly, na Bélgica, que, no ano de 1907, fundaraa renomada École de l’Ermitage em Bruxe-las, mesmo ano da fundação da Casa dei Bam-bini, na Itália, por Maria Montessori.

O movimento em prol da educação ativa,àquela época, se insurgia contra o que era es-sencial na escola tradicional: a preparação paraa vida adulta, segundo Dewey a “preparaçãopara uma vida após a morte”. Preocupava-semuito mais em preparar a criança para uma fasefutura da vida do que para a vida no presente.O desenvolvimento das capacidades das crian-ças repousava, principalmente, sobre a razão ea memória. O método de instrução autoritário,a disciplina cultivada e o estudo, uma desagra-dável tarefa. O mestre era a autoridade inques-tionável e a submissão à ordem, a palavra defé. O aluno, enfim, era visto como um adultoinfeliz miniaturizado.

A Escola Nova voltava as costas contra tudoisso, almejando um espaço escolar e tambémpedagógico verdadeiramente construído pelosalunos.

Um dos maiores inspiradores dessa tendên-cia foi, sem dúvida alguma, John Dewey (1859- 1952). O educador norte-americano tinhagrande interesse em fazer florescer suas idéi-as pedagógicas num meio e numa época emque o ideário tradicionalista de ensino fazia eco.Acreditava que os métodos das escolas ele-mentares não se afinavam com as concepçõespsicológicas da hora. Fora, então, convidado adirigir a seção de Filosofia e Psicologia na Uni-versidade Chicago (1894) e viu, neste empre-endimento, uma oportunidade valiosa paraassociar a Pedagogia à Filosofia e, sobretudo,à Psicologia.

Erguia, então, a sua célebre escola-labora-tório, mais conhecida como Escola Dewey, cujoponto de partida se apoiava nas atividades co-muns nas quais as crianças estavam imediata-mente envolvidas. Os propósitos da educaçãoteriam matriz na vida da criança, razão pela qualela passaria a assumir com total interesse o pró-prio aprendizado. Os fins estariam aceitos. Asatividades manuais como a marcenaria, a cozi-

nha, a costura ou a tecelagem, tinham lugar dedestaque e ligação estreita com as necessida-des cotidianas da criança. Assim, estaria asse-gurada a sua base de interesse.

Em Democracia e Educação (1959),Dewey torna bastante clara a diferença exis-tente entre a atmosfera social criada na escolatradicional e a que ele argüia como necessáriaà vida. Seu programa refletia a vida em comu-nidade e aproveitava as situações para promo-ver na criança o sentimento de cooperaçãomútua e o de trabalhar positivamente para acomunidade. A ordem e a disciplina não se pau-tavam, pois, em atitudes coercitivas, mas a par-tir do respeito que a criança obtinha pelotrabalho que realizava e da consciência dos di-reitos dos outros, empenhados em outras par-tes da tarefa comum.

A educação nova estava baseada em prin-cípios científicos e deveria valer-se de méto-dos ativos. Assim, Anísio Teixeira acreditavaque o método científico deveria reger a EscolaNova:

Com o método científico, vamos submeter as«tradições» ou as chamadas «escolas» ao cri-vo do estudo objetivo, os acidentes às inves-tigações e verificações confirmadoras e o po-der criador do artista às análises reveladorasdos seus segredos, para a multiplicação desuas descobertas; ou seja, vamos examinarrotinas e variações progressivas, ordená-las,sistematizá-las e promover, deliberadamente,o desenvolvimento contínuo e cumulativo daarte de educar. (TEIXEIRA, 1957, in: ROCHA,1992, p. 257).

Lourenço Filho (1978), um dos integrantesdo movimento da Escola Nova no Brasil da pri-meira metade do século XX, descreve no seulivro Introdução ao Estudo da Escola Nova,os princípios fundamentais que regem essa pe-dagogia. São eles:• o respeito à personalidade do educando ouo reconhecimento que este deverá desfrutar deliberdade, desenvolvendo suas própriascapacidades por ação e esforço individual;• a compreensão funcional do processoeducativo, tanto sob o aspecto individual, quantosocial;

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• a compreensão da aprendizagem simbólicaem situações da vida social. Isto significa levarem conta a cooperação social, a necessidadeque tem o homem de interagir com seu própriomeio;• as características de cada indivíduo sãovariáveis segundo a sua própria cultura. Esteprincípio evoca o aspecto do naturalismopresente na tendência da escola nova. AfirmaLourenço Filho que:

Ninguém poderá negar que há diferenças indivi-duais de natureza biológica que se refletem naexpressão de cada pessoa. “Tais diferenças, noentanto, são mais de possibilidade de desenvol-vimento que mesmo de qualificação essencialquanto às aquisições possíveis, de ordem inte-lectual e moral” (1978, p. 248).

O autor afirma que nenhum sistema educa-cional poderá se furtar de observar certas con-dições para desenvolvimento do processoeducativo, dentre as quais destaca o desenvol-vimento biológico do educando, a socialização,a preparação para o trabalho, a afirmação pes-soal e o relacionamento “com os mais altos finsde expressão humana” (LOURENÇO FILHO,1978, p. 249).

Os pressupostos da Escola Nova apresen-tados por Lourenço Filho expressam com cla-reza a essência desta pedagogia a partir dainfluência sofrida pelos educadores apontadosno início. A influência de Montessori e Decro-ly, por exemplo, se faz sentir no que tange àobservância do aluno, enquanto ser individualbiológico, em condições para desenvolver-se emtoda sua plenitude, a partir de esforços e açãopessoais.

Em Dewey, o conceito de experiência re-sume o espírito da filosofia educacional escola-novista. Para ele, a experiência se constitui deduas partes: uma, ensaiar, e a outra, provar. Aexperiência compreendia a prova como conhe-cimento, uma vez que, para ele, a realidade pri-mitiva, anterior, é essencialmente diferente daexperiência comum de cada dia.

No famoso método da descoberta, o meca-nismo de elaboração de hipóteses para a solu-ção de determinado problema e as conseqüên-

cias, advindas da testagem destas, resume opercurso do aprendiz. Se a criança antecipaatravés da imaginação as possíveis conseqüên-cias daquilo que está em vias de realizar, obteráa liberdade de escolher e controlar o desenvol-vimento dos acontecimentos. E, ainda, após tersido feita a escolha do fim, poderá apreciar seas circunstâncias lhe serão favoráveis ou não.Logo, a escolha do fim sugere a ordem do pró-prio método de aprendizagem.

Na pedagogia da Escola Nova, então, a prá-tica pedagógica passa a ser regulada por ativi-dades reais, ou melhor, cotidianas, e quase in-teiramente conduzida pela capacidade que oaluno tenha em auto-desenvolver-se. O méto-do de ensino se resume à pesquisa, às possibili-dades de elaboração de hipóteses que normali-zam o caminho que o aluno deve percorrer parafazer descobertas. A mediação do professor éexercitada aqui mediante orientação das ativi-dades didáticas. O seu papel é de orientaçãode estudos e não de imposição de conteúdosabstratos.

A mediação didática entre aluno e conheci-mento é responsabilidade dos métodos ativosde ensino, o que inclui a capacidade de experi-mentar que cada criança desenvolve ao longodo seu processo de formação. Experimentar é,pois, a palavra chave nesse processo de medi-ação.

A escolha dos estudos depende do valor queapresentam como instrumentos para atingir finsespecíficos. Não há hierarquia fundamental deestudos dispostos em ordem dos menores paraos mais elevados, evocável em qualquer ocasião.

O método da descoberta significa tanto ométodo de ensino, quanto o método de aprendi-zagem. Constitui-se, numa só palavra, em pes-quisa. São cinco os passos necessários àaprendizagem:

A primeira fase, então, do método do pro-blema se inicia com alguma experiência atualda criança e isso não deve ser presumido. Oponto de partida, portanto, será alguma situa-ção empírica específica e atual.

Em segundo lugar, como as conseqüênciasdo que havia sido tentado fazer são incomple-

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tas, sugere-se um problema, o qual pede pes-quisa, ou investigação do melhor meio para serestaurar a continuidade da experiência.

A análise dos dados disponíveis pode forne-cer a solução. Nesse ponto os alunos necessi-tarão do capital da experiência passada. Essa éa terceira fase, e representa o conteúdo queconstituirá o programa.

Na quarta fase, os alunos formulam hipóte-ses com o fim de restaurar a continuidade daexperiência.

A restauração da continuidade quebrada daexperiência é obtida mediante a escolha da hi-pótese mais apta à solução do problema, o queconstitui a última fase do método.

A atividade intelectual puramente abstratae verbal seria insuficiente à aprendizagem. ParaAnísio Teixeira, pensar vai além e implica emagir sobre as coisas, alterar as condições domeio, a fim de verificar se as conseqüênciaadvindas daí corroboram as previsões hipotéti-cas. O método do problema asseguraria, segun-do essa tendência pedagógica, o interesse dacriança. As atividades intelectuais, abstratas,não cumpririam tal objetivo.

O ideário escolanovista no Brasil não este-ve imune às críticas de educadores brasileiros.Dermeval Saviani (1984) faz uma crítica con-tundente à Escola Nova, na sua obra Escola eDemocracia. Segundo a sua compreensão, oensino se diluiria em atividades de pesquisa,sendo o professor substituído pelos chamadosmétodos ativos e pela aprendizagem auto-re-gulável. Para Saviani, a Escola Nova privile-giou a pesquisa em detrimento do ensino deconteúdos. Segundo ele, os conteúdos eramrarefeitos nesta tendência pedagógica, em ra-zão de certo espontaneísmo reinante no pro-cesso ensino/aprendizagem, vez que o professorteria papel secundarizado. Segundo Saviani, adinâmica do processo didático de ensinar eaprender, na perspectiva da Escola Nova, ex-clui o ensinar. A construção e validação de hi-póteses construídas pelas crianças a partir doseu universo particular, sedimentam-se numaúnica visão (a da criança), e se dissipariam pornão se consubstanciarem no saber já elabora-

do. A remissão à própria criança da escolha dosseus fins pedagógicos excluiria do professor aresponsabilidade em conduzir a prática peda-gógica, tornando-se o aluno professor de simesmo.

Todavia, por mais que os métodos ativos e,dentre estes, o método da descoberta tenhamtido papel significativo na Escola Nova, não sepode afirmar que Dewey ou Anísio Teixeiratenham defendido a rarefação dos conteúdos ea instituição de práticas espontaneístas na salade aula. O que esses educadores advogavam éque os estudantes deveriam apropriar-se sig-nificativamente dos conteúdos, participandoativamente do seu processo de ressignificaçãoe produção. Aliás, eles não negavam a trans-missão do conhecimento, mas a colocavam den-tro de pré-requisitos fundamentais à aprendiza-gem significativa. Dewey se perguntava no livroComo pensamos (1959), a propósito da instru-ção baseada na palavra e na experiência dosoutros: “Como tratar a matéria apresentada pelocompêndio e pelo professor, para que ela se ins-titua em material de investigação reflexiva e nãopermaneça um mero alimento intelectual, já pre-parado para ser recebido e ingerido, como secomprado numa mercearia?” (DEWEY, 1959,p. 254).

Em resposta, Dewey sugeria que a trans-missão do conhecimento deveria ser, antes detudo, necessária, ou seja, tratar de um objetoimpossível de ser apreendido pela observação,justificando que “o professor, ou o compêndio,que atulha os alunos com noções que, com poucomais de trabalho, eles próprios poderiam des-cobrir por investigação direta, ofende-lhes a in-tegridade intelectual, leva-os a cultivar aservidão mental” (p. 254).

Talvez tenha havido exagero na prática mal-versada do ideário pedagógico de Anísio emterritório brasileiro nos poucos anos em quetal tendência vigorou (principalmente nos anos1950 e início dos anos 1960). O certo é que,depois do advento do governo militar, em 1964,as escolas públicas que começavam a remo-delar sua prática, a investir na criatividade pe-dagógica e apostar na curiosidade e no respeito

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ao saber das crianças, foram obrigadas a aqui-escer em nome de uma ideologia absolutamentecontrária a toda e qualquer investida demo-crática. Mesmo antes, logo no início da ideali-zação deste novo modelo educacional epedagógico no País, Anísio e seus companhei-ros de jornada já sofriam uma primeira derro-ta: com a ditadura do Estado Novo de GetúlioVargas (entre 1937 e 1945) foram obrigados acalar-se.

Assim, entre uma ditadura e outra, o Brasilnão chegou a ver florescer os primeiros frutosda Escola Nova (o trabalho pedagógico é umprocesso que envolve gerações). Antes queisso pudesse acontecer, o modelo tecnocráti-co que se impunha no poder político instituíatambém na esfera educacional a sua ideolo-gia, dando lugar, assim, ao que se convencio-nou chamar de tecnicismo pedagógico, ou aindae para melhor corresponder a esse ideário, àTecnopedagogia.

3. A mediação didática docentena Tecnopedagogia

A perspectiva tecnológica na educação bra-sileira surgiu, na década de 1960, mais especi-almente depois de instalado o governo militarde 1964, como uma alternativa para a educa-ção popular. No seio do desenvolvimento capi-talista que lhe deu origem – o norte-americano– a racionalização do sistema de ensino, tendoem vista sua eficiência e eficácia, deveria ga-rantir um produto que atendesse às necessida-des do modelo econômico e político vigentes: aideologia empresarial.

Depois da Teoria Geral de Administraçãocomo primeira sistematização sobre a organi-zação do trabalho e seu controle, é no âmbitoda Teoria Geral dos Sistemas que a racionali-zação e o controle referidos chegam aos limi-tes da perfeição. No Brasil, tal ideologia seconcretiza na política administrativa do Estadoautoritário e, no campo educacional, através deuma pedagogia capaz de responder à ineficá-cia do sistema de ensino em todos os seus ní-

veis: a Tecnopedagogia. Ao lado dessas con-cepções, o comportamentalismo e o positivis-mo lógico foram tendências incorporadas aoideário tecnopedagógico, tendo em vista o aten-dimento de níveis cada vez mais altos de efici-ência e eficácia exigidos pelo modelo dedesenvolvimento.

Esta abordagem, somada à teoria behavio-rista de Skinner, deu o tom da tecnopedagogia.Presentes na letra da Lei 5692/71, a mistura doenfoque sistêmico e da teoria comportamenta-lista de Skinner integram o texto da lei e os inú-meros pareceres daí decorrentes. O conteúdodos livros didáticos se fragmenta em nome dasuposta eficiência. O conceito básico da teoriade Skinner é o de comportamento operante,caracterizado pelas relações que estabelece como meio ambiente, ao receber deste influênciasdeterminantes.

Das prerrogativas teóricas mencionadas,podemos depreender o sentido pedagógico e,mais especificamente, didático desta tendên-cia, tentando recortar desse contexto as me-diações didáticas decorrentes: a mediação doprofessor (quando existiu) e a mediação esta-belecida pelos recursos tecnológicos inerenteà essa pedagogia.

Do ponto de vista didático, essa tendênciavisa ao ajustamento dos objetivos de ensino (ago-ra, objetivos instrucionais, daí a redução do en-sino à instrução), às exigências do sistema social,sem fugir aos critérios de maximização de ren-dimentos e minimização de custos. O detalha-mento dos objetivos deveria ser classificado detal ordem, a fim de tornar possível a sua imple-mentação e a mensuração dos resultados a partirde uma prática diagnóstica de avaliação. Por-tanto, eram discriminados em terminais e par-ciais, intermediários, mediatos e imediatos.

Os meios são o cerne da tecnopedagogia,determinando, assim, os próprios objetivos deensino-aprendizagem e as finalidades da edu-cação escolar. Isto porque a relevância do mo-delo estava na quantificação dos resultados;daí a inversão: os meios justificam os fins. Amediação didática docente nesta pedagogia éeclipsada em nome da técnica, passando, as-

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sim, o meio técnico a ser o mediador principale o professor, seu administrador. Na EscolaNova a mediação docente não é diluída ou se-cundarizada. Ao contrário, ela é dialetizadana relação de orientação pedagógica; ela nãoé ausente, é diversa da mediação da pedago-gia tradicional.

Na tecnopedagogia diminui-se a importân-cia das relações interpessoais (importante gan-ho da anterior Escola Nova), e mantêm-se oindividualismo, agora sobre outras bases: o re-curso tecnológico coloca-se na linha de frente,com o qual o aluno irá se relacionar, supondo,portanto, uma outra forma de relação entre alunoe conhecimento. Se antes, na Escola Nova, erao aluno quem escolhia o meio mais adequadopara aprender e/ou descobrir, com a padroniza-ção dos meios de ensino, essa escolha passa aser estranha para ele.

A mediação didática aqui se faz pelos re-cursos tecnológicos, dentre os quais ganhamdestaque os manuais didáticos, mais do quenunca fragmentados em instruções sobre comofazer, responder aos exercícios e avaliar-se.Esse recurso de ensino, mais as máquinas deensinar, o método Keller, a instrução progra-mada e outros métodos acéfalos substituem afigura do professor e o ensino, enquanto pro-cesso de criação. Com efeito, mesmo com acriação da Comissão Nacional do Livro Didáti-co (CNLD), em 1938, é com a instituição daFundação Nacional do Material Didático (FE-NAME), em 1968, que esse recurso de ensinoganha fôlego e assume a posição de comandona mediação entre o saber escolar e o aluno.

Por isso, quando se fala em mediação didá-tica na tecnopedagogia é preciso, praticamen-te, deixar de citar o professor. Numa posiçãosecundária, o seu papel passa a ser o de admi-nistrador de um saber fragmentário, pré-mol-dado e da ideologia do sistema. Não queroparecer fatalista. Em verdade, muitos profes-sores lutaram contra esse estado de coisas, maso que se depreende, como efeitos dessa época,é uma prática pedagógica que corrói a funçãodo professor como sujeito mediador entre soci-edade e alunos que se formam e entre estes

sujeitos-alunos e conhecimento crítico.A mediação didática docente repousava,

pois, sobre a organização das condições deaprendizagem (o conceito de aprendizagemestava restrito às mudanças de comportamen-to). Mas, que tipo de organização se requeria?A tarefa do professor consistia em modelar asrespostas que fossem apropriadas aos objeti-vos instrucionais, buscando, como conseqüên-cia, o comportamento adequado pelo controledo ensino. O sistema instrucional estava apoia-do em três componentes básicos, como descre-veu Libâneo:

As etapas básicas do processo ensino-aprendi-zagem são: a) estabelecimento de comportamen-tos terminais, através de objetivos instrucionais;b) análise da tarefa de aprendizagem, a fim deordenar seqüencialmente os passos da instru-ção; c) executar o programa, reforçando gradu-almente as respostas corretas correspondentesaos objetivos. (LIBÂNEO, 1986, p. 30).

Ao professor restava seguir os passos esta-belecidos pelo programa de ensino, programaque não era idealizado por ele, mas por técni-cos, especialistas, alheios ao processo de ensi-no em curso, ou pelo livro didático. Era oprofessor um administrador das condições detransmissão da matéria, reduzindo-se a um elotênue de ligação entre verdade científica e alu-no. Este último, um elemento responsivo, es-pectador frente à verdade objetiva.

Essa prática mudou nos últimos tempos, prin-cipalmente dos anos 1980 para cá, mas os res-quícios da tecnocracia continuam vivos nainsistência do autoritarismo, muitas vezes vistoe vivido na escola, nos ditames de um plano deensino fabricado por autoridades exógenas aeste processo (como o manual escolar, coorde-nadores pedagógicos, diretores de escola etc.),funcionando como camisa de força para aque-les que almejam mudar alguma coisa no espa-ço da sala de aula. O fato é que, desde essaépoca, o manual didático ainda reina como ba-luarte, num contexto onde a criatividade teimaem adormecer.

Todavia, como o processo histórico e, comele, a história da educação brasileira, é um pro-

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cesso contraditório e dinâmico por natureza,outras tendências pedagógicas lutaram por sematerializar em práticas mais humanas, mes-mo nas épocas mais difíceis. Não poderíamos,pois, deixar de falar da mediação didática sobas lentes críticas de Paulo Freire.

4. A mediação docente na peda-gogia de Paulo Freire

Não se pode falar em mediação didática semse falar em mediação também sociopolítica,quando se trata das idéias pedagógicas desteeducador que revolucionou práticas educacio-nais em várias partes no mundo. A mediaçãodidática na pedagogia de Paulo Freire pode serconceituada como uma atividade crítica, cujoobjetivo maior reside na transformação cotidia-na e permanente do mundo sociocultural quecircunda os sujeitos envolvidos no processoeducativo. A mediação didática nessa pedago-gia é também de natureza política.

Com efeito, a atividade crítica de educar/alfabetizar derivaria de um método dialético deinvestigação e inserção política concreta na re-alidade social. Para Paulo Freire, essa ativida-de crítica, essencialmente política, teria porfinalidade última a conscientização e, por con-seqüência, a inserção das classes oprimidas noprocesso político do seu meio, país. A educa-ção, portanto, possibilitaria uma passagem in-dispensável para a humanização do homem,oferecendo ao povo a reflexão sobre si mesmo,seu tempo e seu papel na cultura. A educaçãoseria um instrumento capaz de lograr a passa-gem do estado de consciência ingênua do povoà uma consciência de si, enquanto sujeitos polí-ticos, e de sua realidade sociocultural. A edu-cação, na pedagogia de Freire, é uma atividademediadora. No limite, uma atividade de media-ção política.

Tentar recortar os aspectos didáticos (rela-tivamente ao processo ensino-aprendizagem)que viabilizariam a mediação política na peda-gogia de Freire é uma tarefa arbitrária, pois quenão há disjunção possível entre o ato de educar

e o ato de agir politicamente no mundo. Edu-car é um ato eminentemente político, já diziao próprio Freire. Entretanto, e no que toca opresente estudo, importa conhecer os elemen-tos que instrumentalizariam a prática política naproposta pedagógica freireana.

O método psicossocial de alfabetização deadultos, na pedagogia freireana, almeja tornarpossível o postulado da unidade conhecimento-práxis-conhecimento, desenvolvido numa ativi-dade concreta. A filosofia da alfabetizaçãoproblematizadora objetiva mostrar, como indis-solúvel, a unidade entre investigação e educa-ção, o que geraria um produto não menosindissociável: alfabetização-conscientização.

O primeiro passo metodológico nessa peda-gogia é a investigação temática. O objetivo des-sa etapa reside em encontrar os temas gerado-res – expressões da palavra do povo – paraque, atendendo a uma programação educativa,possa se desenvolver uma ação cultural pro-blematizadora. A trajetória da investigação te-mática passa por três etapas ou fases: a pri-meira fase seria investigadora, a segunda,eminentemente pragmática e a terceira, emi-nentemente pedagógica. Nessa fase pedagógi-ca se incluem as técnicas: brevemente, redu-ção, codificação e decodificação. E é tambémjusto nessa fase que podemos perceber commaior precisão a mediação do professor-coor-denador.

Para explicar a mediação didática (suben-tenda-se a dimensão política sempre contida naação didática) do coordenador, é necessárioconhecer as técnicas pedagógicas inseridas nométodo dialético da pedagogia de Freire, muitobem deslindado no seu livro Conscientização(1980).

Redução: consiste em um processo de te-matização-elaboração dos temas que, numaseqüência pedagógica, serão devolvidos à co-munidade alfabetizanda, de onde foram desco-bertos. Os temas são, pois, reduzidos emunidades de aprendizagem. A seleção da pala-vra geradora supõe dois momentos essenciais:o da crítica interna, onde a equipe de investiga-ção temática submete o conjunto de temas (as

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esperanças, dúvidas, sonhos, problemas, lutase conflitos da comunidade) a uma crítica cientí-fica e disciplinada, até detectar o valor funcio-nal e lingüístico dos temas saídos do contextoinvestigado (NÓVOA, 1977); e o da críticaexterna, quando se conferem os primeiros re-sultados com voluntários do grupo de alfabeti-zandos que atuam aí num duplo papel: o deinformantes e o de representantes da constru-ção popular. A informação selecionada é dis-cutida em sucessivas reuniões até se delimitaros pontos centrais do programa pedagógico.

Codificação: é a simbolização gráfica decada situação existencial estratégica, reduzidaem unidades de aprendizagem.

Decodificação: discussão da codificaçãoexistencial. Pode dar-se no momento da críticaexterior, onde a etapa descritiva se integra àanalítica, para se chegar a uma síntese que pro-jete a temática significativa detectada.

Tomemos como referência ao processo demediação didática, a palavra diálogo. Com efei-to, a mediação didática, na pedagogia de Freire,se realiza através do diálogo, aspecto este sem-pre recorrente nos seus escritos. Para ele, “o diá-logo é o encontro entre os homens, mediatizadospelo mundo, para designá-lo”. O diálogo, então,seria o encontro dos que se orientam para o mun-do que é preciso transformar, não podendo existirsem profundo amor pelos homens e pelo mundo.“O amor é ao mesmo tempo o fundamento dodiálogo e o próprio diálogo. Este deve necessaria-mente unir sujeitos responsáveis e não pode exis-tir numa relação de dominação” (FREIRE, 1980,p. 83). Em Pedagogia da Autonomia (2000), seuúltimo livro, Freire enfatiza o diálogo pedagógicono processo de mediação didática, esclarecendoque ensinar exige disponibilidade para o diá-logo. Não existe, pois, uma ação isolada por par-te do educador. Os sujeitos do ato educativoconvivem numa relação horizontal, onde quem en-sina, aprende e quem aprende também ensina. Aquestão das relações pedagógicas, na proposta dePaulo Freire, assume, assim, dimensões importan-tíssimas que vale aqui ressaltar.

Resumida na frase “ensinar exige querer bemaos educandos”, Freire afirma a necessidade de

o professor abrir-se à afetividade na relação queestabelece com seus alunos (2000, p. 150). “Estaabertura ao querer bem não significa na verda-de, que, porque professor, me obrigo a quererbem a todo os alunos de maneira igual”, mas nãodescarta a união entre “seriedade docente e afe-tividade” (2000, p. 150). A afetividade está nabase da cognoscibilidade, para Freire e não podeinterferir no cumprimento ético do dever de serprofessor. Assim, afirma ainda na Pedagogiada Esperança: “Enquanto relação democráti-ca, o diálogo é a possibilidade de que disponhode, abrindo-me ao pensar dos outros, não fene-cer no isolamento” (1999, p. 120).

Para Freire, a educação problematizadoradeveria romper com os esquemas verticais ca-racterísticos da educação bancária, aspecto quesó seria possível com a superação da contradi-ção entre educador e educandos. Assim, nãoexistiria educador do educando, nem educandodo educador, mas educador-educando e edu-cando - educador, uma clara expressão do diá-logo pedagógico defendido por Freire.

Se na pedagogia tradicional jesuítica, o ele-mento marcante na mediação didática capita-neada pelo mestre jesuíta, eram os conteúdosclássicos, despidos do caráter sociocultural eda reflexão crítica por parte dos discípulos, in-versamente se situava Paulo Freire contra acultura pedagógica verbalista, a qual ele deno-minou de bancária.

O maior objetivo da pedagogia de Freire re-sidia na conscientização política. O elementoforte na mediação didática não era a transmis-são de conteúdos abstratos, mas o saber quedela resultava, a partir de metodologias ativas,do savoir-faire da comunidade alfabetizanda.A ação educativa seria um processo onde oponto de partida estava na prática social, e oretorno, sempre provisório, na leitura críticadessa prática social, com conseqüente retornoà prática social.

Portanto, a leitura da palavra escrita possi-bilitaria o acesso a um conhecimento mais pro-fundo e crítico da realidade que circundaria ossujeitos do ato educativo. A palavra geradoracriaria uma compreensão dessa realidade e se

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alongaria na compreensão do mundo. Muitoseducadores brasileiros, autores de livros sobrea educação no país, centralizaram suas críticassobre o suposto regionalismo em que incorre-ria a pedagogia de Freire, vez que os alfabeti-zandos teriam acesso somente aos conhecimen-tos da sua realidade mais próxima, o que seriaum aspecto limitante à sua formação. Entre-tanto e em que pesem suas críticas ao sistemaeducacional escolar que tem no conteúdo siste-matizado seu aporte mais seguro, ele jamaisnegou a necessidade de se estender os hori-zontes da população alfabetizanda para alémdas cercanias de sua realidade imediata.

A aplicação e implementação do método dealfabetização de adultos, previa uma interven-ção do tipo não-diretiva pelo coordenador euma ação coletiva, interativa, entre os sujeitosenvolvidos no processo educativo (educando -educador e o educador-educando):1) o coordenador deveria evitar dirigir o grupo

e, enquanto líder, evitar a imposição de seuspontos de vista. Deveria ir, isto sim, paulati-namente desafiando e problematizando ogrupo de alfabetizandos. O coordenador era,pois, o mediador entre as experiências indi-viduais (sobretudo nas primeiras fases), e aformação de uma consciência crítica sobreessas experiências, redefinidas numa práti-ca social concreta;

2) além do coordenador, outro elemento do gru-po de investigação temática (um observa-dor não-participante) deveria registrar (se ogrupo não permitisse o registro das sessõesem gravadores) toda a produção do círculode cultura;

3) as perguntas formulados pelo coordenadorao grupo de alfabetizandos deveriam sercolocadas sempre em termos comunitáriose não individuais;

4) os trabalhos de alfabetização-conscientiza-ção só poderiam ter início num grupo ondeas reflexões sobre os possíveis caminhos atrilhar em parceria, fossem exaustivas. Aexpressão inédito viável resume, então, olimite a ser alcançado, não entre o ser e onão-ser, mas entre o ser e o ser mais;

5) havia uma indicação importante para os gru-pos que implementariam o método: a parti-cipação em segmentos políticos, comomovimentos, organizações, partidos, etc.,para garantir, assim, a continuidade e a co-bertura política, em momentos de repres-são política;

6) uma vez terminada a etapa de lecto-escrita,dar-se-ia início à etapa de pós-alfabetiza-ção. Além de iniciados na aprendizagem deoperações matemáticas básicas, os gruposde alfabetizandos deveriam responder aodesafio de realizar um livro-texto para pos-teriores grupos de alfabetização. Essa eta-pa, extremamente criativa, possibilitaria arevisão das dificuldades da etapa desenvol-vida anteriormente pelo grupo, desvendan-do-o para a busca de soluções possíveis. Oespírito criativo do grupo seria estimuladoatravés da criação de um novo livro, plenode suas peculiaridades, com palavras gera-doras específicas e que serviria como ma-terial didático para outros grupos.Freire não entendia a pós-alfabetização jus-

taposta ao processo de alfabetização. E esta,por sua vez, não significaria um momento deaprendizagem formal de escrita e de leitura. Aalfabetização conteria o processo de pós-alfa-betização:

Tal como a entendo, a alfabetização de adultosjá contém em si a pós-alfabetização. Esta conti-nua, alonga e diversifica o ato de conhecimentoque se inicia naquela. Não se trata, pois, de doisprocessos separados – um antes e outro depois–, senão de dois momentos de um mesmo pro-cesso social de formação. E este, não importa onome que se lhe dê - educação, ação cultural,animação -, implica sempre, assim na alfabetiza-ção como na pós-alfabetização, uma determina-da teoria do conhecimento posta em prática.(FREIRE, 1978, p. 121).

A crítica contundente às cartilhas tradicio-nais e a ênfase que dava ao saber provindo davivência dos educandos lhe renderam críticaspor parte de educadores conteudistas; críticas,muitas vezes, injustas, diga-se de passagem, vezque, embora crítico, Paulo Freire jamais negoua importância do saber sistematizado na edu-

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cação dos homens. Nos seus últimos livros revêo espaço do conhecimento sistematizado e,mesmo, da transmissão deste conhecimento,como se pode conferir no seu Pedagogia daEsperança (1999): “Não há, nunca houve, nempode haver educação sem conteúdo, a não serque os seres humanos se transformem de talmodo que os processos que hoje conhecemoscomo processos de conhecer e de formar per-cam seu sentido atual” (p. 110) .

Assim, Freire jamais acreditou que o ato deensinar e de aprender pudesse descartar o con-teúdo sistematizado: “Não há educação semensino, sistemático ou não, de certo conteúdo.E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quemensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a al-guém – aluno” (p. 110). Conclui, como bomprofessor de Lingüística que fora por longo tem-po no Recife.

Paulo Freire não deixou de rever suas posi-ções pedagógicas nos últimos anos de sua exis-tência. Inclusive quanto ao papel do educadore do saber sistematizado, como se pode atestarde seus últimos livros: Pedagogia da Esperan-ça (1ª edição em 1992), e Pedagogia da Au-tonomia (1996). A compreensão da evoluçãohistórica do pensamento freireano sobre edu-cação e, em particular, sobre a mediação didá-tica, é uma questão de justiça.

O pensamento pedagógico de Paulo Freirejamais deixou de ser atual e preciso, A um sótempo contundente e amoroso. Educar, paraeste homem, além ser uma ato político se cons-tituía em ato de amor. Acima de tudo.

5. A mediação docente na Peda-gogia Histórico-Crítica

O grito sufocado, premido pelo desejo deviver numa sociedade livre e justa, que vigoroudurante a ditadura militar (1964-1981) no Bra-sil, ecoou veemente nos anos que se seguiramimediatamente a este período, inaugurando umnovo momento chamado de abertura política.Vem de lá a célebre canção de João Bosco eAldir Blanc – “O bêbado e a equilibrista” –

sintetizando o sentimento brasileiro num mistode irreverência e saudade.

No campo educacional, não passamos incó-lumes. Além do irmão do Henfil (Herbert, maisconhecido como Betinho, um renomado soció-logo atuante e sensível) descrito na canção, inú-meros foram os professores, estudantes eintelectuais, em geral, desaparecidos e exiladosdurante este longo e tenebroso inverno.

Nas universidades, para além do clima deterror, gestavam-se idéias de análise e compre-ensão da sociedade injusta em que estávamosinseridos, à luz de estudos marxistas, com es-peranças de varrer do solo brasileiro as durasinjustiças sociais.

A pedagogia histórico-crítica surge no Bra-sil, nessa época, com a esperança dos anos 1980e na esteira do movimento crítico marxista queinvadira a Europa e se explicitara no manifestodos estudantes universitários franceses, em maiode 1968. Com efeito, esse movimento marcouprofundamente uma época e retumbou em vá-rios países, inclusive no Brasil. Os revolucioná-rios pretendiam fazer eclodir a revolução sociala partir de uma revolução cultural, abrangendotoda a superestrutura cultural da sociedade, oque incluía a escola. Foi um movimento ambici-oso que não conseguiu, de fato, mudar a ordeminstituída, mas abalou as suas bases.

A partir do movimento, surge um pensamentonovo e dominante na França que, por força doseu determinismo, ficara conhecido, aqui noBrasil, como movimento crítico-reprodutivista.(Os teóricos como Bourdieu e Passeron (1970,apud SAVIANI, 1984), Baudelot e Establet(1971, apud SAVIANI, 1984)) e, principalmen-te, Louis Althusser (1969) pretendiam provar aimpossibilidade de transformação social pelarevolução cultural, onde se incluía a ação esco-lar. Para Althusser, por exemplo, as instituiçõessociais e políticas, dentre as quais a escola,funcionariam como aparelhos ideológicos de Es-tado. A função precípua desses aparelhos eraa difusão e inculcação da ideologia dominanteburguesa, manifesta através do discurso e prá-tica dos sacerdotes e seus seguidores, no casoda Igreja, do discurso e prática dos professo-res, no caso da escola.

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A teoria crítico-reprodutivista foi importan-te, pois conseguiu articular uma contra-ideo-logia que, no caso dos brasileiros, serviu deargumento e estímulo às lutas contra a ditadu-ra militar. Todavia, era uma corrente teóricacontraditoriamente inflexível, pois não via ou-tra função para a escola (e demais aparelhosideológicos de estado) senão a reprodução daideologia da sociedade de classes. Vale res-saltar que o estudo desses sociólogos france-ses não objetivava a construção de umapedagogia; contudo, concedeu elementos im-portantes à análise da sociedade e do papelsocial da educação.

Foi preciso a organização de um contra-modelo para que se pudesse, no meio acadêmi-co, voltar a ver a escola como instituição sociale palco efervescente de contradições sociais:como espaço onde a luta contra o modelo só-cio-político e econômico estabelecido pudessese constituir; mesmo o aspecto reprodutor daeducação escolar é contraditório, portanto ca-paz de fazer engendrar mudanças.

Saviani engendrou sua teoria pedagógica,para além das análises sociológicas, na buscade modos de intervenção que pudesse, de algu-ma maneira e mesmo que indiretamente, incidirsobre o modelo social instituído. Ao professor,como mediador político de uma pedagogia re-volucionária, estava reservada a tarefa de mu-nir os alunos de classes desfavorecidas, dasmesmas armas que possuía a classe burguesa– o saber sistematizado – para, assim, fazeravançar as lutas sociais por transformações.

O ideário pedagógico progressista surge pri-meiramente através dos escritos de GeorgeSnyders na França, em 1979. Dermeval Savia-ni, um pouco mais tarde, publica, em 1983, olivro Escola e Democracia, onde anuncia suasonze teses em favor de uma pedagogia progres-sista. A sua idéia era buscar uma síntese supe-radora entre as tendências tradicional (que tinhano professor o detentor e transmissor exclusivode um saber abstrato) e a escolanovista (que,segundo o próprio Saviani, colocava no alunoas responsabilidades do processo ensino-apren-dizagem, desde as escolhas dos conteúdos e

programas até a sua atualização na sala de aula).Saviani propunha uma pedagogia onde o alunopudesse ser respeitado como sujeito, mas quenão fosse ele o principal artífice do processoensino-aprendizagem. Propunha uma relaçãohorizontal entre estes sujeitos do ato educativo(professor e alunos), mas não destituía o pro-fessor de sua autoridade pedagógica. Foi deno-minada de pedagogia histórico-crítica.

Não se pode dizer que essa pedagogia te-nha se firmado nas práticas escolares de modogeneralizado; não se tem notícia da institucio-nalização dessa tendência pedagógica. Arriscomesmo a dizer que ela se restringiu aos meiosacadêmicos, à universidade, pois foi concebidanestes centros e sua divulgação não tocou se-não os professores universitários, com exceções.

O objetivo maior dessa pedagogia está natransmissão/assimilação do saber universal so-cialmente produzido. Nesta tendência, Savianiprocurou objetivar historicamente a questão daescola e da importância do trabalho pedagógi-co escolar no processo de desenvolvimentocultural e social.

É aí que se insere a idéia de mediação; umamediação de natureza político-social, pois quese pretendia, através da ação educativa (umaatividade mediadora), prover as classes desfa-vorecidas de um saber e de uma consciênciapolítica capaz de levá-las à compreensão do seumeio social para nele poder intervir. Saviani,àquela época, não tinha ainda bem esclarecidoa si mesmo o que queria dizer com a idéia demediação nesta pedagogia. A idéia, posterior-mente desenvolvida por Cury, Guiomar Mello,Betty Oliveira, Luckesi, dentre outros educa-dores, reunia o objetivo político de transforma-ção das estruturas sociais, mediante (a mediaçãodidática deveria favorecer a isso) a ação políti-ca do educador que instrumentalizaria seus alu-nos através da transmissão e domínio do saberescolar.

Assim, a mediação propriamente didática,que incide sobre o processo de objetivação cog-nitiva dos educandos, se revela como uma ação,prioritariamente, política. Betty Oliveira (1985)decodificou com clareza a idéia de mediação

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na pedagogia histórico-crítica, entendendo aescola como locus privilegiado para a instru-mentalização dos educandos (apropriação dosaber sistematizado) e conseqüente atuação nomeio social.

A transformação das estruturas sociais é oobjetivo último da pedagogia histórico-crítica.O princípio básico se sustenta sobre a idéia detransmissão do saber, chamado pelos autoreshistórico-críticos, de universal, o saber sistema-tizado, como direito de todos os cidadãos. Aeducação escolar, enquanto atividade mediadorano seio da prática social mais ampla, não deixa-ria de propiciar uma passagem na vida do indi-víduo que deveria assimilar criticamente o sabersistematizado e atuar no seio meio social, emprol das transformações das estruturas.

A prática educativa realizada intencional-mente é, então, vista como uma modalidade daprática social e, como atividade mediadora, tempossibilidades de influir sobre a prática social econtribuir positivamente no rumo das proclama-das mudanças sociais.

Dentro do próprio espaço da sala de aula,os teóricos histórico-críticos já acreditam serpossível engendrar transformações. “Essastransformações, embora específicas da práticaeducativa (escolar), constituem-se partes im-portantes de transformações que se dão nasdemais modalidades da prática social global”.(OLIVEIRA, 1985, p. 99).

Creio que esta citação resume bem o quequero dizer com a mediação de caráter políticoda pedagogia histórico-crítica. Este é o objetivoe o meio pelo qual esta teoria pedagógica secorporifica em prática. Assim, a ação pedagó-gica “cumpre já na sua própria produção umadimensão política, que lhe é, portanto, intrínse-ca”. (OLIVEIRA, 1985, p. 99).

É preciso salientar, no entanto, que os teóricosdesta tendência nunca foram ingênuos ou postu-laram a transformação das estruturas sociais eeconômicas na sociedade capitalista, mediante aação pedagógica escolar. Acreditavam, isto sim,que a educação escolar poderia contribuir indire-tamente para tal fim. E este seria o seu sentidomediador enquanto atividade política.

Talvez o equívoco desta pedagogia tenha sidoo de enfatizar, por demais, a importância datransmissão do conteúdo sistematizado em de-trimento da compreensão dos processos cogni-tivos que nos esclarecem sobre a aprendizageme, portanto, sobre os mecanismos de aquisição,construção e reconstrução do saber.

José Carlos Libâneo (1986) foi outro edu-cador que sistematizou os pressupostos da ten-dência histórico-crítica, explicitando-a do pontode vista didático. Emprestou-lhe o codinome depedagogia crítico-social dos conteúdos edescreveu a sua manifestação na prática peda-gógica escolar.

Libâneo avança bastante no que toca à com-preensão da didática na pedagogia dos conteú-dos. Segundo o autor, o trabalho docenteconsiste em buscar transmitir os conteúdos cul-turais universais, compreendendo os meios pe-los quais os alunos se apropriam dessesconteúdos. Nesse particular, parte do conheci-mento didático se refere às mediações que pro-moverão o encontro entre o aluno – e seucurrículo oculto – e o saber escolar. Desta for-ma é o professor também “portador das media-ções que tornarão viáveis o trabalho docenteque garanta o acesso do aluno ao saber esco-lar” (1986, p. 140) .

A atividade nuclear do trabalho docente se-ria exatamente o encontro entre o aluno e oobjeto de conhecimento:

... cujos resultados formativos passam por inú-meras mediações que contextualizam a situaçãopedagógica (contexto sociopolítico-cultural, con-texto sociopsicológico, processos mentais im-plicados na aquisição e apropriação dos conhe-cimentos, processos de seleção de conteúdosbásicos das matérias e organização da sua se-qüência lógica, especificidade metodológica decada matéria etc.). (Libâneo, 1986, p. 141).

Essas mediações constituiriam, segundo Li-bâneo, a base da prática pedagógica.

Todavia, seria ainda preciso uma outra cor-rente pedagógica que avançasse ainda maisneste terreno, dando conta do ato de conhecercomo processo construtivo. E, nesse contexto,a ação do professor deverá passar a incidir, não

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na transmissão do saber, mas na problematiza-ção do conhecimento, no levantamento de sus-peitas, no aguçamento das curiosidades e nodesejo de aprender. Jean Piaget e Vygotskyforneceram as bases para a compreensão des-se processo. Outros autores, na atualidade, seincumbiram de gerar, a partir dos estudos dosprimeiros, uma tendência pedagógica, entãoconhecida como construtivista.

Assim é que a pedagogia histórico-crítica,embora proponha uma síntese superadora en-tre a corrente tradicional e a pedagogia da Es-cola Nova, deixa uma lacuna do ponto de vistada compreensão dos modos de aprender dascrianças, não apresentando subsídios suficien-tes para a elaboração de um pensamento peda-gógico também construtivo. Talvez essaslacunas tenham concorrido para a exacerba-ção, dos anos 1990 para cá, do construtivismopedagógico que assola as escolas da rede ofici-al de ensino, praticamente, em todo o país –pedagogia esta que conclui o presente artigo,logo em seguida.

6. A mediação didática do-cente no construtivismo pedagó-gico

O amálgama pedagógico em que se consti-tuía a prática pedagógica de professores, noperíodo pós-regime militar, evocava a necessi-dade de elaboração de um pensamento peda-gógico que pudesse dar conta da compreensãodo ato de aprender e de ensinar, e, assim, dabusca de modos de intervenção pedagógica maisinstigantes e prazerosos. O ingrediente do pra-zer e da ludicidade tinham partido, de há muito.

Como que desesperançados, os professores,mormente os de nível fundamental e médio,desenvolviam, nesses tempos taciturnos, umaprática um tanto quanto amorfa, inodora e ino-perante nas escolas da rede pública estadual.Este amálgama, constituído de resquícios davertente tradicional, escolanovista e tecnicista,se imprimiam nas mais variadas manifestaçõesde prática pedagógica, por falta, a meu ver – e

afora todas as questões de ordem política, soci-al ou econômica que estão na base desses pro-blemas – de conhecimento profundo e críticode alguma teoria pedagógica que pudesse fa-zer alavancar um trabalho mais consistente ecriativo na escola.

O clima de desesperança e desestímulo ain-da não partiu, de todo; hoje, o sentimento nega-tivo pode ser atribuído muito mais às precáriascondições de trabalho docente que ao desco-nhecimento de um pensamento pedagógico ra-zoavelmente ordenado. Não quero dizer, comisso, que os professores das escolas brasileiras,em geral, dominam o que se convencionou cha-mar de tendência pedagógica construtivistae desenvolvem uma prática absolutamente co-erente com os princípios desta teoria. Não sus-tento, tampouco, que o construtivismo tenhasurgido como panacéia para resolver todos osmales do ensino público brasileiro, bem ao con-trário disso. Seu desenvolvimento, ou melhor,seu mau desenvolvimento, nestas escolas, sedeve, em muito, à política estadual, e tambémfederal, de esvaziamento ainda maior da quali-dade desse ensino. Falta formação adequada eboas condições de trabalho para que os nossosprofessores saibam e possam desempenhar bemsuas funções. Todavia, já se pode apreciar, hojeem dia, práticas pedagógicas, no ensino públi-co, bem diferentes das de outrora e mesmo ali-nhadas ao ideário construtivista, que aportambons resultados e satisfação, tanto para quemensina quanto para quem aprende.

Antes de tudo, é preciso esclarecer o quese entende por construtivismo e também porsocioconstrutivismo ou socio-interacionismo ou,ainda, construtivismo sócio-histórico – uma ver-tente, digamos, sócio-histórica do construtivis-mo piagetiano que tem, em Vygotsky, seuprecursor.

O construtivismo pedagógico pode ser com-preendido como conjunto de pensamentos psi-copedagógicos organizados empiricamente e fun-damentados em inúmeras pesquisas: desde JeanPiaget (1965a, 1970b, 1970c) e Vygotsky (1984a,1987b) a Emília Ferreiro (1985), seus maioresexpoentes. Os estudos mais atuais que empres-

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taram uma releitura à teoria construtivista apli-cada ao âmbito pedagógico, que considerarei aquicomo referência, provém de Teberosky (1993),Deheinzelin (1986), e Coll e Solé (2001).

O elemento cultural na teoria construtivista,por vezes mal interpretado por críticos ao cons-trutivismo piagetiano, é um ponto fundamentalno estudo de Deheinzelin (1986), pois que per-mite a união daquilo que antes poderia ser vistocomo oposição entre o pensamento de Piaget ede Vygotsky. Mas, retornarei a este ponto, aofinal, quando da síntese das teorias e conclusãodeste artigo.

A questão da mediação didática, na tendên-cia pedagógica construtivista, é um dos pontosmais importantes nos trabalhos de Coll e Solé(2001) e a sua exposição auxiliará, sobrema-neira, a compreensão deste processo aqui.

Segundo Coll e Solé, o construtivismo não é,no sentido estrito, uma teoria, mas um referen-cial explicativo que “integra contribuições di-versas cujo denominador comum é constituídopor um acordo em torno dos princípios constru-tivistas” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 10). A pre-missa básica desta tendência está em queaprender é construir. E se aprende quando se écapaz de elaborar uma representação socialsobre um dado objeto da realidade ou de umconteúdo que se deseja aprender. Essa elabo-ração não é vazia, mas mediada por múltiplasexperiências, interesses, conhecimentos prévi-os que darão conta de uma nova ressignifica-ção. Assim é que, de posse dos nossossignificados, nos aproximamos de um novo as-pecto do real que, na verdade, será interpreta-do com os significados que já possuíamos, e que,assim parecerá novo. Porém, de outras vezes,“colocará para nós um desafio ao qual tenta-mos responder modificando os significados dosquais já estávamos providos, a fim de poder-mos dar conta do novo conteúdo, fenômeno ousituação” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 20). É as-sim que, além de podermos transformar o quejá possuíamos como saber, também podemosinterpretar o novo, de forma singular.

Então, aprender significativamente quer di-zer construir um significado próprio, pessoal para

um objeto de conhecimento objetivamente exis-tente. Este aspecto da aprendizagem resume atarefa do ensino no construtivismo.

A mediação didática, nesta tendência, é umprocesso compartilhado, em que “o aluno, gra-ças à ajuda que recebe do professor, pode mos-trar-se progressivamente competente eautônomo na resolução de tarefas, na utiliza-ção de conceitos, na prática de determinadasatitudes e em numerosas questões” (COLL;SOLÉ, 2001, p. 22).

Tal como apregoa Lenoir (1999), a media-ção didática deverá incidir na capacidade cons-trutiva do educando (em que pesem outrasdimensões aí presentes: sociais, afetivas, políti-cas e outras), desafiando-o, instigando-o. Umaajuda, segundo Coll e Solé, que vai do desafio àdemonstração mais minuciosa, da demonstra-ção de afeto à correção, ajustando-se sempreàs necessidades dos educandos.

Esta ajuda do professor deve incidir, para osautores, na zona de desenvolvimento proxi-mal (ZDP), entre o nível de desenvolvimentoefetivo e o nível de desenvolvimento potencialque pode atingir o educando.

A versão construtivista atualizada de César Colle Isabel Solé não se coaduna com a idéia espon-taneísta de ensino. O construtivismo, na versãode Coll e Solé, não enjeita os conteúdos escolares,ressignifica-os. A ação do professor, este media-dor de saberes, deve, pois, incidir na capacidadeconstrutiva do aluno para que também ele sejaum autor na sua trajetória como aprendiz.

Não poderia falar em construtivismo semmencionar o nome daquela que revolucionou osmeios educacionais, principalmente, na Améri-ca Latina, com suas pesquisas científicas emtorno dos processos que envolvem a aquisiçãoda lecto-escrita: Emília Ferreiro. Psicóloga epesquisadora argentina, radicada no México, fezseu doutorado na Universidade de Genebra, soba orientação de Jean Piaget. A partir de 1974,iniciou seus trabalhos experimentais, na Univer-sidade de Buenos Aires, que derivaram na teo-ria sobre a Psicogênese do Sistema de Escrita.

A criança, para Emília Ferreiro, longe de serum ser passivo, é um sujeito que pensa e intera-

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ge com o mundo ao seu redor. Um sujeito queconstrói, ativamente, suas próprias hipóteses eteorias; põe à prova suas antecipações. Comrelação à linguagem não poderia ser diferente: acriança concebe também suas hipóteses, buscaregularidades e forja assim sua própria gramáti-ca. A criança é capaz de reconstruir sua lingua-gem, abordando seletivamente as informaçõesque lhe provêm do meio. Os erros que cometenessa busca complexa da própria linguagem nãosão erros, mas ocasiões extremamente bem ela-boradas e situadas numa trajetória sempre in-conclusa. Estes erros construtivos, longe deconstituir-se em empecilhos, são provas de queos sucessos futuros, no processo construtivo daaprendizagem, serão perfeitamente possíveis.

Segundo Ferreiro, a literatura em torno daaprendizagem da língua escrita se restringe atipos de metodologias capazes de solucionartodos os problemas concernentes a tal proces-so. São estudos que, de modo geral, buscamestabelecer um rol de habilidades e capacida-des necessárias a esta aprendizagem em parti-cular: lateralização espacial, discriminação visuale auditiva, coordenação psicomotriz, etc. Essesfatores podem, de fato, concorrer positivamen-te para o progresso na aprendizagem da lecto-escrita, mas esta relação não é causal, comoestes trabalhos fazem supor.

Emília Ferreiro busca na teoria de Piaget umpapel ativo para o sujeito aprendiz ou o sujeitocognoscente – um sujeito que busca seu pró-prio conhecimento e trata ativamente de com-preender o mundo que o cerca, construindo suaspróprias categorias de pensamento. Este sujei-to cognoscente está também presente na apren-dizagem da língua escrita.

Seguindo a referência piagetiana, não exis-te um ponto de partida inteiramente novo nomomento em que se aprende. Um conteúdonovo, mesmo que ainda desconhecido, deveráser assimilado pelo sujeito segundo seus esque-mas de assimilação disponíveis. A dependerdesses esquemas, a assimilação será mais oumenos deformante. O ponto de partida de todaaprendizagem é o próprio sujeito e não o con-teúdo a ser abordado.

A diferença conceitual entre as teorias con-teudistas e a teoria de Piaget sobre o sujeito daaprendizagem reside no fato de que, para as pri-meiras, o conhecimento é exterior ao sujeito érecebido de fora. Para a teoria piagetiana, o su-jeito é o construtor de seu conhecimento. Destaforma, o conhecimento objetivo não aparece demodo linear; é um caminho que se faz por rees-truturações progressivas e simultâneas, algumasdas quais errôneas, mas construtivas. Tais er-ros podem ser entendidos como pré-requisitosnecessários à obtenção da resposta correta.

Um outro aspecto fundamental da teoria dePiaget, resgatado por Emília Ferreiro, é o dapossibilidade de reconstrução do conhecimentopelo sujeito cognoscente a partir das leis decomposição do objeto de conhecimento. O co-nhecimento progredirá através de conflitoscognitivos, isto é, através da presença de umobjeto que force o sujeito a modificar seus es-quemas de assimilação, realizando assim umesforço de acomodação para incorporar o queanteriormente resultava em inassimilável.

Não se trata de colocar o indivíduo diantede situações irrealizáveis. Do ponto de vistaprático, significa gerar situações conflitivas emmomentos específicos, diante das quais o sujei-to esteja preparado para transpô-las. Resolven-do suas próprias contradições, o sujeitocognoscente estará em condições de avançarno sentido de novas reestruturações.

O estudo de Emília Ferreiro demonstra a per-tinência da teoria psicogenética de Piaget, bemcomo os conceitos advindos da psicolingüísticacontemporânea, aplicados à natureza dos proces-sos de aquisição do conhecimento em lecto-escri-ta. Não se trata de um método de alfabetização.Não se pode cair no mesmo erro tão alardeadopela autora em passagens diversas no seu livro,confundindo-se método com teoria sobre o pro-cesso de conhecimento. A teoria tratada pela au-tora visa a iluminar os problemas de natureza epis-temológica no campo da lecto-escrita para, assim,ajudar a solucionar os problemas de aprendiza-gem nesta área na América Latina, evitando, des-se modo, o processo de formação de analfabetosainda em curso no sistema escolar.

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Considerações finais: em busca deuma síntese possível

Podemos afirmar que, ao invés de oposição,há complementaridade entre as obras de Vygotskye seus seguidores da Escola sócio-histórica deMoscou e a obra de Jean Piaget e de seus cola-boradores na Escola de Genebra. O elemento dacultura, tão criticado e tido como alheio na obrade Piaget, deve ser então, incorporado ao que sepode chamar de socioconstrutivismo. A compre-ensão de uma e de outra teoria, certamente, serámuito útil a todo e qualquer processo de ensinoque se deseje crítico e construtivo.

É preciso romper com o ensino verbalísticoda pedagogia tradicional sem, entretanto, rom-per com as tradições, pois que elas têm suaimportância. As estruturas internas do conhe-cimento são elementos da cultura e são, inicial-mente, compreendidos, segundo Piaget, pormeio da imitação, gerando, assim, a função sim-bólica, as imagens mentais, as linguagens e osesquemas operatórios que abrem possibilidadese necessidades ad infinitum para o pensamen-to e para a cultura (PIAGET, 1996, p. 84). Logo,a versão atualizada do construtivismo não negaa importância do conteúdo escolar, mas redi-mensiona-o, em função do que as crianças tra-zem como saber e das suas condições paraaprender. Cabe ao professor decifrar, interpre-tar, traduzir estes elementos e então criar con-dições adequadas de ensino/aprendizagem.

Muitos dos projetos pedagógicos atuais es-tão colocados diante de um falso dilema: de umlado, a cultura verbalística do ensino tradicionale, de outro, a ênfase no desenvolvimento cog-nitivo e na livre expressão das crianças, carac-terísticas típicas das chamadas escolasalternativas. Os resultados dessa dicotomia sãonegativos, pois contribuem ainda mais paraagravar o fosso existente entre as classes soci-ais no Brasil, muito embora as camadas popu-lares não freqüentem escolas com uma ou outradessas características tão bem definidas. O queparece estar acontecendo na atualidade é umafalta de concepção pedagógica clara e bemassimilada pelos professores para que estes

possam trabalhar com maior segurança.O espaço da mediação didática está justa-

mente em descobrir o que os alunos sabem ecomo o sabem. O professor, parafraseandoMacedo (2000), como mediador de saberes étambém um tradutor. Assim, o professor é ummediador entre as idéias dos educandos e osobjetos de conhecimento. Este é o sujeito quesabe quando e como deve ressaltar este ou aque-le ponto, introduzir esta ou aquela demonstra-ção, detalhar uma explicação, ilustrar comexemplos, iluminar. O que importa, para o de-senvolvimento adequado da mediação didáticadocente, é considerar o que o aluno traz comobagagem cultural e, então, ensinar/mediar deacordo. O trabalho pedagógico é um trabalhode delicada tradução.

Fechar este artigo supõe abri-lo à compre-ensão do que se passa atualmente, no âmbitoda mediação que pratica o professor. Significa,ainda, a busca pela elaboração de outros sabe-res que poderão nos conduzir a outras possibili-dades didáticas numa engrenagem educativamais prazerosa, desafiadora e criativa. Cadatendência pedagógica apresentada aqui podeoferecer-se como ingrediente interessante paraa reconstelação de práticas pedagógicas queapontem para outras direções menos indiges-tas do que aquelas com as quais se afirmaramas práticas autoritárias de ensino.

O conhecimento das pedagogias (ao menosaquelas de maior expressão) que deram formaàs mediações didáticas empreendidas pelos pro-fessores, ao longo da história, nos garante acompreensão das práticas pedagógicas na atu-alidade. Finalmente, devo concluir, acreditandoque a mediação didática docente é um proces-so que se constrói significativamente, como açãocriadora que deve nascer das necessidades maisprofundas dos educandos como seres humanosaprendizes e cidadãos que são. E que o mestreseja, como afirmou Anísio, sempre de formatão atual: “...o sal da terra, capaz de ensinar-nos, a despeito da complexidade e confusão mo-dernas, a arte da vida pessoal em umasociedade extremamente impessoal” (TEIXEI-RA, 1963, in: ROCHA, 1992, p. 8).

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05