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    LTIMO DIA TODOS OS DIAS

    e outros escritos sobre cinema e filosofia

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    Adrian Martin

    traduo de Rita Benis

    punctum books ! brooklyn, ny

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    rpara Cristina lvarez Lpez

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    ndice

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    Figuras num JardimO Efeito Domin

    // Cristina lvarez Lpez

    ltimo dia Todos os DiasPensamento Figural, de Auerbach eKracauer a Agamben e Brenez

    // Adrian Martin

    Avatares do Encontro

    // Adrian Martin

    Bibliografia

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    Figuras num JardimO Efeito Domin

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    Cristina lvarez Lpez

    Numa primeira leitura, poderamos deduzir que ltimo DiaTodos os Dias, essencialmente (como o seu subttulo origi-nal parece indicar), uma digresso pelo pensamento figural apartir de uma srie de autores chave. De facto, o livro traa

    um percurso que pode ser encarado como uma tentativa dehistorizao, mas uma que no pretende ser exaustiva, fecha-da ou cronolgica. A histria que ltimo Dia Todos os Diasesboa apenas uma de tantas possveis; uma histria muitopessoal e, de certo modo, nica; que toma por base uma sriede fragmentos de textos dispostos, segundo Martin, maisou menos pela mesma ordem em que estes chegaram at

    mim, a ordem em que me encontraram. O livro exploraesses textos, revelando harmoniosas relaes entre si e tra-ando um mapa de conexes (algumas evidentes, outras maisintricadas, mas sempre criativas e subtis). s vezes deixa-selevar por digresses poticas (como a reflexo dedicada aoacto de nomear) que encaixam surpreendentemente bem no

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    corpuscentral deste trabalho, deixando a descoberto a sensi-bilidade particular do seu autor.

    ltimo Dia Todos os Diaspode ser uma boa introduo aopensamento figural para aqueles que no esto familiariza-dos com este tpico. No entanto, embora Martin se detenhasobre uma srie de conceitos e noes-chave, jamais procuradefinir o seu objecto de forma plana e esquemtica, nem topouco dissec-lo a partir de uma srie de princpios bsicos.Isto pode parecer algo desconcertante para quem, como eu,

    chegue a este livro sem nenhum contacto prvio com a teoriafigural. Mas quando conseguimos trespassar a superfcie edeixamo-nos levar pelo jogo proposto pelo seu autor queno nenhum outro seno o de abordar o figural a partir dasua colocao em prtica, isto : criando a sua figura olivro revela-se uma aproximao verdadeiramente apaixo-nante e esclarecedora, totalmente coerente com o seu objec-

    to, em perfeita fuso com este.Alm disso, ao ler-se ltimo Dia Todos os Dias, com-preende-se de imediato que fora da teoria pura e dura mais precisamente no contacto com a prtica artstica, com acrtica ou com a anlise que muitos caminhos e pre-ocupaes do pensamento figural so desenvolvidos. Porexemplo, um texto brilhante (alm de breve e conciso) como

    Prciser Renoir, de Nicole Brenez , dedicado anliseconcreta das relaes figurais existentes entre Passeio aoCampo(Partie de Campagne, 1936), de Jean Renoir, e Sombra(Sombre, 1998), de Philippe Grandrieux , pode dizer-nostanto ou mais sobre pensamento figural esclarecendo-nosas ideias de um modo mais claro e directo que um textopuramente terico. Alis, hoje em dia no estranho encon-trarmos escritos sobre um ou vrios filmes que, sem mostrarsinal algum de preocupao terica, se erguem conscienteou inconscientemente sobre ideias, intuies ou eixos deinvestigao dificilmente alheios ao campo figural. Esta uma confirmao feliz e libertadora (certamente libertadorapara mim, mas tambm, creio, para a prpria corrente figu-

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    ral j que estas manifestaes, que nos chegam de fora dateoria, so aquelas que nos do a melhor medida da sua ne-

    cessidade e evidenciam que esta nasce como resposta a umimpulso real).

    Algo de tudo isto est implcito no prprio itinerrioproposto por ltimo Dia Todos os Dias. Entre os nomes quefiguram no subttulo original, dois deles Erich Auerbache Nicole Brenez esto inconfundivelmente ligados aopensamento figural. O primeiro porque, a partir do seu livro

    Mimesise, sobretudo, do seu ensaio Figura, abre caminhoatravs de uma srie de ideias ou imagens (o Dia do JuzoFinal, o Alm, a consumao, a redeno ) que, na ex-posio de Martin, sero convertidas em figuras; figurascontinuamente revisitadas, retrabalhadas e repensadas pelolivro. Brenez, por seu turno, providencia uma base tericamais slida permitindo ao autor esboar diversas aproxi-

    maes ideia de figura e de figurao, ou oferecer-nos umarequintada e potica passagem sobre os diferentes tipos desombra uma vez que, tal como Martin refere, foi Brenezquem, no campo dos estudos flmicos europeus contem-porneos, forjou a palavra figura (e todas as suas derivaes:figurativo, figurvel, etc.).

    O caso de Siegfried Kracauer e de Giorgio Agamben ,

    todavia, diferente. Nos seus escritos a conexo com o pen-samento figural no to evidente ou no est reflectida deforma to explcita como em Brenez ou Auerbach. ComKracauer e com Agamben (e tambm com Walter Benja-min), Martin procede anlise e interpretao dos seustextos procurando realar o seu fundamento figural. A pas-sagem dedicada ao ensaio The Detective Novel, de Kracauer,culmina quase febrilmente com esta cadncia, agitada e ver-tiginosa, de enlaces:

    ento que o heri da fico policial passa a funcionar,no seu ponto mais alto de redeno, como uma figura detenso que habita as esferas intermdias (Kracauer

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    2001, 201), que vive entre esferas, entre os dois reinos,mesmo se o reino definitivo o reino real seja jamais

    aquele stio em que consiga viver. Comeamos a ver algica da imagem de capa do editor francs: Scottie(James Stewart), emA Mulher que Viveu Duas Vezes(Ver-tigo,1958) surge como o rfico anti-heri que caminhaentre os fantasmas e as sombras, entre o domnio dos vi-

    vos e dos mortos (o romance de Boileau/Narcejac, emque o filme se baseia, tem o ttulo de Dentre les morts; na

    verdade, esta dupla escreveu tambm, em 1964, um estu-do de no fico intitulado Le roman policier!).

    Os pargrafos finais de ltimo Dia Todos os Diasimergem num breve ensaio de Agamben, O Dia do JuzoFinal, de 2007. Trata-se de um dos fragmentos maiscomoventes do livro. Nele, a beleza do texto original redo-

    brada pela elegncia dos comentrios de Martin e pela afec-tuosa descrio que faz da fotografia que inspirou Agamben:

    Agamben oferece um exemplo admiravelmente artificiale perfeitamente alegrico, aquele com que adorna a capado livro: uma imagem tirada em Paris, hoje consideradacomo a primeira fotografia em que aparece uma figura

    humana (Agamben 2007, 23) Boulevard du Tem-ple, de Louis Daguerre (1838). Apenas uma figura nu-ma rua que, logicamente, deveria parecer agitada e re-pleta de gente. No entanto, dado o longo tempo de ex-posio que os primitivos aparelhos necessitavam paraque a luz imprimisse algo na pelcula, a rua surge estra-nhamente vazia exceptuando essa nica estrela escura,essa massa disforme de um ser humano, situada no cantoinferior esquerdo da imagem. Precisamente por estarinadvertidamente quieto, ou esttico, o gesto deste ho-mem acaba por ficar imortalizado na histrica fotografia.Mas que gesto este que vem representar, emblematizare, na verdade, substituir este indivduo annimo de Pa-

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    ris? No os gestos extticos, de dor ou alegria, vida oumorte, perseguidos por Aby Warburg (outra obsesso de

    Agamben). De facto, um gesto absolutamente banal: ohomem, aparentemente, aguardava enquanto lhe en-graxavam os sapatos.

    Estas imerses no pensamento, nas preocupaes e nosestilos dos autores comentados formam uma constante emltimo Dia Todos os Dias. Martin desconstri, passo a passo,

    o desenvolvimento dos fragmentos citados, decompondo-ose recompondo-os cuidadosamente. Somente depois de taloperao que os textos se iluminam, revelando essasimagens, configuraes e dispositivos figurais que oautor neles encontra ou, nas palavras de Kracauer, ape-nas ento que os nomes entregaro os seus segredos. Esta

    viso retrospectiva, este olhar sobre uma srie de obras que

    revelam novos horizontes ao serem lidas sob a lupa do figu-ral, no meramente aplicado aos textos, mas tambm prpria anlise cinematogrfica. As procisses medievaisdescritas por Auerbach servem de modelo para discutir asequncia de abertura de O Meu Maior Pecado (The Tar-nished Angels, 1957), de Douglas Sirk, na qual quatro per-sonagens so dispostas e fixas nos lugares que ocuparo o

    resto do filme. De forma similar, os escritos de Claude Olli-er (outro nome importante para o autor) sobre Josef vonSternberg e, em particular, sobre a noo de esteretipo,servem para encerrar uma passagem reveladora em que oautor nos faz participar do choque salutar que experimen-tou ao rever O Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930):

    um filme que eu casualmente (na verdade, estu-pidamente) recordo como sendo um velho clssico docnone sabotado, sem dvida, pelas dificuldadestecnolgicas de combinar e sincronizar, no incio do so-noro, os sistemas de gravao de imagem e de som. Maso filme, visto atravs do filtro de Auerbach e do seu cr-

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    culo, torna-se, de novo, extraordinrio. O que rejeiteiuma vez por considerar rgido e esttico na realidade

    um deliberado esquema artstico: literalmente, umaprocisso de figuras, de personagens transformadas emfiguras (brinquedos, bonecos, esttuas, figurinos de todosos feitios, etc.), dispostas no enredo em repetidas confi-guraes, em diagramas pictricos de induo, de circu-laridade, em progresses mveis, paralelas, de tipo iti-nerrio. O filme conjura, de todas as formas brilhante-

    mente inventivas, que Sternberg sempre guardava namanga, uma ressurreio para o cinema de Weimar:aquilo a que Auerbach se referia como a procisso dosprofetas no teatro medieval e nas representaes cclicasdas esculturas da mesma poca. (Auerbach 1959, 52)

    Em ltimo Dia Todos os Dias, Martin descreve trs

    maneiras de situar o figural: como algo que floresceu e mor-reu num tempo especifico e num dado lugar histrico; co-mo algo que permanece sempre latente, possvel e virtual;ou, seguindo Bill Routt, como algo absolutamente funda-mental, essencial, inerente ao prprio acto da crtica. O seulivro nasce da interaco entre estas duas ltimas possi-bilidades, alm da convico (muito auerbachiana) de que

    necessitamos de ambas. Martin acredita nesta regeneraodo figural, que surge em diferentes tempos e lugares,adoptando formas distintas se h algo que ltimo DiaTodos os Diasconfirma, de todos os modos possveis, que otrajecto figural s se completa quando estas formas so sub-metidas interpretao, quando encontram um desti-natrio. Para Martin, assim como para Routt, a crtica oque preenche a obra de arte, elevando-a, redimindo-a etambm completando-a, finalizando-a, fechando-a na con-cluso do circuito figural.

    Mas em que medida realiza ltimo Dia Todos os Diasestetrabalho de crtica e interpretao? Enquanto Martin saltaagilmente de um texto para outro, e a narrao avana cata-

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    pultada por pequenos mecanismos (seja uma imagem, umapreocupao comum ou uma referncia compartilhada por

    dois pensadores), o seu texto vai-se aprofundando, enraizan-do-se, adquirindo um depsito mais denso: este duplo mo-

    vimento d ao livro a sua energia particular. O autor regressaconstantemente a uma srie de conceitos relacionados com oltimo dia, o Dia do Juzo Final esta a figura que ob-sessivamente escrutinada e perseguida atravs do livro in-teiro. E, de cada vez que revisitada, descobrimos nela um

    trao ou um perfil novo que a modifica. Neste sentido, ofilme ideal para acompanhar a leitura de ltimo Dia Todos osDias(e eu posso assegurar que isto verdade porque ca-sual ou premonitoriamente vi-o pela primeira vez namesma noite em que terminei este livro) 4:44 ltimo Diana Terra(4:44 Last Day on Earth, 2011), de Abel Ferrara,um filme ferverosamente preocupado com as implicaes e a

    representao desta figura, e construdo sobre o mesmo pa-radoxo que d ttulo a este livro.Em ltimo Dia Todos os Dias, no s certos conceitos,

    imagens e ideias so tratados como figuras, como tambm osprprios fragmentos citados recebem um tratamento figural.Assim, a citao no um mero suporte nem uma simplesferramenta usada para autorizar ou confirmar uma hiptese

    mas sim algo desenhado e moldado, revolvido e volteado,disposto numa srie. Martin tem sempre em conta a energiae o ritmo de cada orao e, com a sua inconfundvel acui-dade e paixo atributos que o levam a classificar umadefinio de Brenez como um colossal whopper proustianoou a deter-se numa mxima de Kracauer para exclamar quefrase, que imagem, que ideia! , reescreve cada fragmento,devolvendo-o iluminado por dentro. Por tudo isto, uma dasmelhores coisas que pode ser dita sobre ltimo Dia Todos osDias que este inspira no leitor um verdadeiro desejo deaprofundar a obra dos autores que marcam o seu itinerrio.

    Quando, h alguns meses, tive a sorte de ler ltimo DiaTodos os Dias, ainda no podia captar, numa nica leitura, a

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    intensidade do trabalho figural conseguido por Martin; masperseverei porque, tal como canta Leonard Cohen, love

    calls you by your name h chamadas que, simplesmente,no podem ser ignoradas. Mais tarde, convenci-me de quenecessitava de traduzi-lo para o espanhol (com o que o autorgentilmente concordou) e foi ento que este pequeno livrocomeou a revelar-me muitos dos segredos concentrados nassuas pginas. No aconteceu logo de imediato, mas agora

    vejo com claridade a figura criada pelo livro. uma figura

    formada por todas as outras e evocada na infinidade de va-riaes do tema da serialidade variaes que vo do geral(a citao de Ricur que encontramos ao incio) ao concreto(a frase de Agamben que Martin toma emprestada para ottulo). Uma figura logo anunciada no pargrafo de aber-tura, quando Martin faz referncia a uma conferncia emque Gayatri Spivak procede dispondo uma srie de livros

    sobre uma mesa, utilizando passagens deles (que leria emvoz alta para depois comentar). Claro que s conseguimosver essa figura na totalidade, tendo a passagem sido con-cluda pelo autor e tendo o leitor tomado parte nisso. Aquitemos, de novo, outra demonstrao que confirma quo cen-tral , para ltimo Dia Todos os Dias, a ideia de Auerbach defigurao como sistema de profecia onde um processo

    inicial anuncia o segundo e o segundo preenche o primeiro.O gesto decisivo de ltimo Dia Todos os Dias consiste emdar um passo mais alm e converter esta figura num disposi-tivo: algo como o equivalente literrio daquilo que conhe-cemos por efeito domin. O livro substitui as peas dedomin por citaes, cada uma representando uma figuradistinta (quase sempre relacionada com a ideia central deltimo dia). As citaes so colocadas em srie, formandouma cadeia; basta um pequeno empurro para que cada umadelas, ao tomar contacto com a ideia seguinte, v caindo(isto : abrindo-se, revelando-se). Durante o processo, asfiguras deste jardim vo mostrando-nos inslitas perspec-tivas e, uma vez tendo todas cado, acedemos a um desenho

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    global completamente novo. O efeito domin desencadeiaassim um movimento em grande escala a partir do menor

    dos gestos; todavia, por baixo da aparente simplicidade destemecanismo esconde-se uma preparao rdua, milimtrica,em que cada pea cuidadosamente construda e disposta,tendo em conta uma infinidade de parmetros. Em ltimoDia Todos os Dias, cada fragmento tratado como se fosse oltimo, mas reverbera com o efeito do seu predecessor eprovoca um impacto no que vem depois.

    No mail que fecha o livro, Nicole Brenez escreve quequanto mais singulares e nicos forem [os filmes], maistero a oferecer ao conhecimento da figuralidade, porqueso estes nas suas singularidades, que esto a enriquecer omtodo. ltimo Dia Todos os Dias, este modesto livrinhoescrito em poucos minutos, depois de vrios anos, incorpo-ra esta afirmao e converte-a na sua resplandecente e rigo-

    rosa misso.

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    ltimo Dia Todos os DiasPensamento Figural, de Auerbach e Kracauer a

    Agamben e Brenez

    a

    Adrian Martin

    Em cinema, apenas existe apresunodas figuras.

    Nicole Brenez

    Uma vez em Melbourne, h cerca de 25 anos atrs, assisti auma palestra de Gayatri Spivak, em que esta tinha disposto,numa longa mesa sua frente, uma sequncia de livros, ali-nhados lado a lado. Cada livro estava virado para baixo,aberto e marcado em determinada pgina, com a lombada

    vista. A palestra consistia na autora avanar mesa abaixo,pegar num livro vez Heidegger, Freud, Derrida , depoucos em poucos minutos, aparentemente improvisandosobre uma passagem que comeava por ler em voz alta. Pare-cia uma maneira bastante natural, fcil e espontnea de dar

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    uma palestra, mesmo que (claro) fosse tudo completamentepremeditado, artificial e teatral.

    Quase que poderia reencenar aqui este impressionantetruque de Spivak, pois irei, de forma semelhante, abrircaminho atravs de uma srie de fragmentos citados. Ireiigualmente perseguir uma ideia, um tanto obscura e difcil,atravs de um conjunto de textos mais ou menos pelamesma ordem em que estes chegaram at mim, a ordem emque me encontraram. Esta ideia a ideia de figura, que

    simultaneamente uma coisa muito simples e muito com-plexa; algo que tem tanto de natural e de acessvel como deartificial e de teatral.

    l

    Opto por comear com Paul Ricur, com o seu ensaio de1974 A Philosophical Interpretation of Freud. Comprei olivro em que este ensaio surge, The Philosophy of Paul Ricur:

    An Anthology of His Work, por um dlar, numa livraria dealfarrabista, j l vo uns 30 anos. Finalmente encontrei-lheutilidade (nota para mim mesmo: no deitar nada fora).Neste texto, uma smula do seu trabalho sobre Freud, Ri-cur complementa a ideia daquilo que denomina de arque-ologiana teoria de Freud,

    a restrita arqueologia dos instintos e do narcisismo, aarqueologia generalizada do superego e dos dolos, ahiperblica arqueologia da guerra dos gigantes Eros e

    Thanatos (Ricur 1978, 181),

    com outra ideia que considera igualmente necessria: a de

    teleologia. Cada uma das ideias supe um sujeito individual eaquilo que Ricur denomina de uma concepo de filosofiareflexiva. A arqueologia atira/atrai o sujeito para trs para as origens, as pulses, os mitos originrios enquantoa teleologia empurra/projecta o sujeito para a frente.

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    Ricur cndido em relao ao Pensador Mestre dequem ousa aqui apropria-se: admite que o sistema de Freud

    se baseia fundamentalmente no aspecto arqueolgico porser, na expresso rigorosa de Freud, uma decomposioregressiva que no necessita de propor qualquer sntese. por isso que teleologia, no sentido que Ricur lhe atribui,no uma ideia freudiana, mas sim uma noo filosficaque o leitor de Freud forma por sua conta e risco (Ricur1978, 181).

    Tomemos ento esse risco, com Ricur, e vejamos onde que isso nos leva. Ricur escreve naquela que , paramim, a mais impressionante e enigmtica formulao desteensaio que:

    A apropriao de um significado constitudo previamentea mim pressupe o movimento de um sujeito lanado pa-ra alm de si mesmo por uma sucesso de figuras; cada

    uma delas encontrando o seu significado nas que lhe su-cedem. (Ricur 1978, 181)

    Esta noo de figura, diz-nos Ricur, est vinculada [at-tached] (eis uma boa palavra) enquanto derivao de Fenomenologia do Esprito,de Hegel. Teleologia, acrescen-ta, a nica lei para a construo das figuras do esprito

    (Ricur 1978, 181). Ricur procura assim encontrar ummodelo para dar conta do que descreve como maturao:o crescimento do homem para alm da sua infncia. Apsicologia ou a psicanlise podem dizer-nos como que umapessoa deixa a sua infncia, mas um caminho mais extenso requerido: a pessoa deve tornar-se

    capaz de um certo itinerrio significativo que ter sido

    ilustrado por um certo nmero de configuraes culturais as quais, por sua vez, extraem o seu sentido do seu en-cadeamento prospectivo. (Ricur 1978, 181, nfase minha)

    Portanto, de certa forma, saindo do Imaginrio e virando-separa o Simblico. No entanto, Ricur no est aqui a

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    oferecer uma apologia do status quo ou da socializao or-deira do indivduo, nem daquilo que ele descarta como o

    mais vulgar conformismo (Ricur 1978, 182). Teleologiano finalidade, assevera:

    As figuras numa teleologia dialctica no so causasfinais, mas sim significados que extraem o seu prpriosentido do movimento de totalizao que os transporta eempurra para alm de si mesmos. (Ricur 1978, 182)

    O movimento das figuras do esprito: c est uma exigenteabstraco hegeliana, difcil de apreender. Mas eu quero fo-car-me, em termos cinematogrficos, no tipo especfico demovimento que Ricur prope: um movimento em etapas,um tipo de movimento faseado, com marcos ao longo docaminho. Estas so as figuras, as escalas do Ser (de estaoem estao), onde o indivduo devm, se assume, atinge um

    estdio particular da sua personalidade ou do seu destino com a salvaguarda de que essa identidade ou destino nunca fixo de antemo.

    s

    Hoje em dia, em grande parte da teoria e da prtica cultural,lidamos com uma ideia de movimento bastante distinta,ainda que de inspirao cinemtica: rpidas ou lentas mu-taes ou morphings, algo transformando-se noutra coisa,sempre beira da transformao, perfeitamente fluido, solto.O recurso de Ricur figura, como ideia central ou metfo-ra, tem algo de majestoso e calculado (aquele plano ou tra-

    jecto do itinerrio significativo, posto em marcha), alm de

    suscitar uma srie de devaneios, de variedade um tanto cls-sica, na minha memria: as portas da conscincia que seabrem para o infinito, uma aps a outra, na sequncia dosonho em A Casa Encantada (Spellbound, 1945), de AlfredHitchcock; os labirnticos e intricados mundos paralelos dothriller fantstico de terror A Nona Porta (The Ninth Gate,

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    1999), de Roman Polanski, semelhantes aos nveis cada vezmais difceis dos videojogos; os livros citados por Spivak, um

    seguido ao outro, alinhados mesa abaixo; a viagem do velhosem-abrigo Ventura, de casa a casa, casebre em casebre, em

    Juventude em Marcha (2006), de Pedro Costa.Vem-me ainda ideia um certo tipo de narrativa flmica

    fantstica, igualmente antiquada e contudo totalmentemoderna: todas aquelas histrias de indivduos que se con-frontam fisicamente com os seus duplos (doppelgngers), com

    os fantasmas dos seus antigos ou futuros eus desde Duelono Deserto (The Shooting [1966]), de Monte Hellman verso do conto de Edgar Allan Poe, Histrias Extraor-dinrias (Spirit of the Dead, 1968), de Federico Fellini, pas-sando por Um Homem na Sombra(Monsieur Klein, 1976), de

    Joseph Losey e Noite de Estreia (Opening Night, 1977), deJohn Cassavetes, ouAmor Eterno(LAmour Mort, 1984), de

    Alain Resnais e tambm o psicodrama de cmara Depois doEnsaio (Efter Repetitionen, 1984), de Ingmar Bergman, atchegar s comdias dramticas geracionais de Pedro Al-modvar, ou ainda aos desdobramentos psquicos de DavidLynch ou a Trs Vidas e uma S Morte(Trois Vies & UneSeule Mort, 1996), de Ral Ruiz, ou a Histria de Marie e

    Julien(Histoire de Marie et Julien, 2003), de Jacques Rivette,

    e assim por diante. O casamento entre uma mente de vinteanos e um fantasma violento revela-se decepcionante,escreveu o poeta Ren Char, porque ns prprios somosdecepcionantes (Char 1964, 126). Tambm Ventura, em

    Juventude em Marcha, de Pedro Costa, parece incarnar al-gum tipo de fantasma, um fantasma com muitos, muitosfilhos; na verdade, praticamente todos aqueles com quem secruza e que cumprimenta como o seu filho h muito perdi-do, para sempre a si ligado apesar de nada confirmar ounegar esta hiptese em definitivo.

    Enfim, mas eu no comecei pelo princpio. No hmuito tempo, passei cerca trs anos a traduzir um livro: o deNicole Brenez sobre o cineasta americano Abel Ferrara

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    (2007). Posso dizer com exactido e certeza que foi Brenezquem, no campo dos estudos de cinema europeu contem-

    porneo, forjou a palavra figura (e todas as suas derivaes:figurativo, figurvel, etc.), mesmo se a palavra j tivesse sidoanteriormente utilizada/declinada por Jean-Franois Lyo-tard, Stephen Heath, David Rodowick, Dudley Andrewentre outros. Mas Brenez no se refere nem toma nada deemprestado destes utilizadores, ou usos, do termo (relativa-mente contemporneos). Ela cria o termo de forma com-

    pletamente nova: ateia-lhe uma chama e trabalha em se-guida no rasto que essa luz produz. Aps finalizar, aps trsanos a trabalhar na traduo deste seu longo texto sobre Fer-rara, percebi que esta palavra figura, que traduzi literalmentecentenas de vezes, permanecia ainda um mistrio para mim.

    Tal como saber, quem j tiver traduzido algum trabalholiterrio complexo, uma traduo implica por vezes um

    difcil, mas sempre fascinante, jogo de identificao e dis-tanciao face ao texto, de domnio e de constante perda demo sobre ele. Mas, de alguma forma, num sentido maisessencial, tem de haver alguma coisa que no compreende-mos no texto e que nos retm ali, no esforo da sua traduo,nessa perseguio a verdade em marcha.

    Na palavra figura, tal como Brenez a usa, encontramos

    exactamente aquilo que se imagina [one figures] que nelaexista: uma noo de desenho ou traado, como as que exis-tem nas artes figurativas ou plsticas, um moldar criativomais do que uma simples reproduo mecnica; uma ideiade corpo, mas no apenas do corpo humano, pois h figurasinumanas, figuras-objectos, figuras abstractas, muitos tiposde figuras; e h tambm um constante exerccio de descober-ta, de imaginar [figuring out], um contnuo ensaio ou ex-perimentao. Mas h algo mais, qualquer coisa maisenigmtica, mais poderosa, algo que oferece mais possi-bilidades prpria Brenez enquanto escritora e analista. Noseu trabalho, e de modo bem deliberado, parece-me, Breneznunca define o conceito figura de forma simples, clara ou

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    directa. Na sua imensa obra de 1998, De la figure en gnralet du corps en particulier, Brenez comea por citar um pedido

    recebido via email para definir o termo figura em duas outrs palavras. Mas que repto: uma elaborada resposta inicialdepressa se transforma em milhares e milhares de palavras na verdade, todas as 466 pginas do livro elaboram hbile artisticamente essa extensa resposta.

    eVou rapidamente reafirmar trs momentos que consideroestimulantes na definio do mbito figural do trabalho deBrenez. Num dos seus primeiros trabalhos publicados, umaedio de 1990 da revista colectiva Admiranda, dedicada aotema Figurao Desfigurao: Proposies, h um Glossrio

    final dedicado a Temas Mveis e Palavras Interminveis(no nos esqueamos que, na tradio da crtica francesacontempornea, tais glossrios ou lxicos so muitas vezesdeliberada e astutamente cmicos no seu ratio ou comodiria Siegfried Kracauer, na sua pose de hiper-raciona-lidade). Nas pginas finais que concluem Admiranda, a pa-lavrafigura ento assim definida:

    A figura inventa-se a si mesma como a forade uma rep-resentao, aquilo que permanece sempre por constituir,aquilo que, no visvel, tende para o Inesgotvel. Nestesentido, a figura jamais poder ser confinada ao Homem,pois da ordem do Imprevisvel, do Impondervel.(Brenez 1990, 76)

    A segunda definio vem do mesmo Glossrio. Figuraodefinida preparem-se para esta frase colossal, um verda-deiro whopper proustiano como

    o jogo simblico ou processo que procura estabelecer

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    uma correlao fixa, evolutiva ou instvel, entre osparmetros plsticos, sonoros e narrativos, capazes de ex-

    trair categorias fundamentais de representao (tais co-mo: visvel e invisvel, mimsis, reflexo, apario e de-sapario, imagem e origem, o integral e o descontnuo, aforma, o inteligvel, a parte e o todo ) e outros par-metros que podem ser os mesmos dependendo dotipo particular de determinao efectuada relaciona-dos com categorias fundamentais da ontologia (tais co-

    mo: ser e aparncia, essncia e apario, ser e nada, omesmo e o outro, o imediato, o reflexivo, interior e exte-rior ).

    Esta definio assim concluda:

    Todas as supracitadas categorias podem, consoante cada

    caso particular, ser repetidas, inventadas, deslocadas,questionadas ou destrudas. (Brenez 1990, 75, todas asnfases so minhas)

    O seu breve livro, de 1995, sobre Sombras (Shadows, 1959)de John Cassavetes, contm ainda uma outra sugestiva (masno definitiva) lista de definies despoletada pela medi-

    tao sobre esta nica palavra: sombras , referente aosprincpios e variedades de figuras flmicas (Brenez 1995, 6569). Em primeiro lugar, a sombra um desenho repre-sentacional, um traado, mas afastado do realismo, sobre-tudo do realismo da personagem ou da persona. Tal regimede representao da sombra tem origens mticas gregas: aprimeira silhueta de um amante traada numa parede, en-

    volvendo o corpo de outro amante, ou o primeiro desenhoque preencheu a figura projectada de um cavalo numa super-fcie branca e vazia. Em segundo, a sombra uma desig-nao shakespearianapara a mais obscura e instvel esfera daspersonagens: as pulses, os instintos, os reflexos ou, comorefere Brenez, as virtualidades devastadas e as possibilidades

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    fantasmticas no interior e ao redor de cada pessoa. Emterceiro, as sombras do filme de Cassavetes silhuetas,

    contornos, obscuridades da forma so estudos, trabalhosem processo, pessoas ou situaes ou relaes, em constanteconstruo, portanto reminiscentes da definio citada ante-riormente, a figura como o que permanece eternamente porconstituir. A figura da sombra , neste sentido, de acordocom Brenez, tanto branca como preta, igual e diferente,absolutamente presente e sempre sem forma e sem limites

    (Brenez 1995, 67).O quarto tipo de figura-sombra enumerada por Brenez a mais curiosa: aqueles fantasmas ou aparies, figuras tute-lares, como ela lhes chama. Dois dos actores afro-americanos do filme de Cassavetes, Hugh Hurd e RupertCrosse, nas suas interaces no ecr, enquanto personagenscom os seus prprios nomes, reproduzem maneirismo por

    maneirismo, de acordo com Brenez, o dueto real formadopelos jazzistas Clifford Brown e Max Roach. Portanto, paraos seus olhos e ouvidos, o filme preenchido por certasharmnicas fnebres. um tmulono sentido genrico oupotico (como em Mallarm), um trabalho de luto e umtributo, no apenas por dois indivduos especiais, mas tam-bm por uma ideia mais geral, que Brenez liricamente for-

    mula como uma amizade com o prprio mundo, exigindouma criatividade soberana (Brenez 1995, 6869).Ah ha! Este tema dos dois indivduos negros como figu-

    ras tutelares, transformando outras figuras reais em gestopotico, exactamente a pista, o gancho, o eco que precisavapara voltar arqueologia do termo figura. Brenez, tal comoRicoeur, refere-se a Hegel sua Estticamais do que sua

    Fenomenologia do Esprito, porm no se refere a Ri-

    coeur. A fonte principal para a sua teoria da figura parece ser(quando nela se penetra) o fillogo literrio alemo ErichAuerbach, autor do famoso Mimesis, de 1946, e do menosconhecido ensaio, porm no menos deslumbrante, Figura escrito nos finais dos anos trinta e includo, mais tarde,

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    num pequeno volume de 1959 com o esplndido (deverasfigural) ttulo: Cenas do Drama da Literatura Europeia. A

    noo brenezianade uma relao significante entre dois pon-tos ou conjuntos (Clifford e Max na vida, Hugh e Rupert nofilme) uma relao que no uma mera simulao, imi-tao ou representao, mas algo de mais profundo e in-

    ventivo puro Auerbach como tentarei explicar, medida que avano.

    hNa verdade, Brenez (como orgulhosamente comprovou) noderivou nem se apropriou do termo figuradirectamente deAuerbach. A filiao ou transmisso de ideias aconteceu deforma muito mais inquietante duma forma, inconscienteou atmosfrica, semelhante que Brenez sugere num texto de

    1997, quando diz que o pequeno artigo Laccident, de JeanLouis Schefer (republicado em Schefer 1999).

    no poderia ter sido escrito antes de Histoirie(s) du cin-ma [srie em vdeo de Jean-Luc Godard] inde-pendentemente do seu autor a ter visto ou no. (Brenez1997)

    Brenez afirma que se deparou com o termo figura alguresnos anos oitenta, como uma espcie de farol para as suaspesquisas, e que s mais tarde, com prazer e espanto, que

    veio a descobrir o ensaio de Auerbach com o mesmo nome levando-a, nessa altura, a incorporar e a reinventar algu-mas das suas [Auerbach] especficas noes filolgicas.

    O que realmente quero aqui assinalar o mistrio danomeao o dar nome a uma ideia. Brenez nomeou a suaideia a sua amorfa, mbil, interminvel constelao desensaes e de intuies como quem d um nome a umapintura, a uma cano pop ou a uma criana. Um nomeque condensa uma essncia percepcionada, pr-existente, e

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    que, ao mesmo tempo, abre uma porta para um futuro maisamplo, esperanoso, para um estado do Ser ainda por vir. O

    nome (a ideia) tem uma zona de sombra. Cria ou conjurapontos, etapas, estaes, tanto no tempo como no espao.Ao escutar, em 2008, uma esplndida palestra de Michael

    Taussig sobre o desenho e o testemunho (depois includa noseu livro, de 2011, I Swear I Saw This: Drawings in Field-work Notebooks, Namely My Own) fui relembrado da di-menso por vezes sagrada do acto de nomear em certas

    religies/tradies espirituais. Love calls you by yourname, cantou Leonard Cohen. E a palestra de Taussig so-bre espritos recordou-me o verdadeiro poder de encanta-mento do que literal, segundo a realizadora surrealista Nel-ly Kaplan, quando disse: todas as imagens so feitios: in-

    voca-se um esprito e esse o esprito que aparece (Kaplan1982, 56). Pensar no materialismo apaixonado de Taussig,

    ou de Kaplan, leva-me a considerar o que , para alguns dens, uma preocupao perene: o problema, ou desafio, paraos no crentes, em compreender ou usar a linguagem dosagrado e do espiritual, mas sem a religio; aproximar e cele-brar o mistrio especialmente o mistrio potico, ouaquilo que o cineasta avant-garde Ken Jacobs chama demistrio da personalidade, mas sem a parte mstica. O pen-

    samento figural, o trabalho figural, est, no meu entender,confundido ou cristalizado neste desafio.

    l

    Mergulhemos agora no corao do trabalho de Auerbachsobre a figura. O seu trabalho um esforo histrico: por

    compreender e elaborar um sistema de interpretao ex-tremamente coerente, alm de cultural e artisticamente po-deroso em particular, a interpretao dos acontecimentosregistados na Bblia judaico-crist , e por traar a sua evo-luo desde a filosofia e a teologia at literatura e a outrasformas de arte. O gnio especial de Auerbach foi discernir

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    este sistema especfico, esta categoria do pensamento. Eleno procurou celebrar, defender ou reviv-lo, interessava-lhe

    meramente exp-lo detalhadamente, passo a passo; e fez issomagistralmente no ensaio Figura, assim como o faria paratodo o drama da representao da realidade na literaturaocidental emMimesis um livro que recentemente regres-sou a ns, ao nosso momento contemporneo, graas (entreoutros) a Edward Said.

    De acordo com Auerbach, a figurao um sistema de

    profecia: na mesma medida, por exemplo, que certos even-tos, ou pessoas do Velho Testamento, profetizam (ou prefi-guram) eventos a acontecer no Novo Testamento. Mas ocircuito de passos, etapas ou nveis figurais no se detm poraqui. Cito uma passagem, de invejvel lucidez, tirada deFigura:

    A profecia figural implica a interpretao de um acon-tecimento mundano, por meio de um outro; o primeirosignifica o segundo, o segundo realiza o primeiro. Ambospermanecem acontecimentos histricos; ainda assim, vis-tos deste ngulo, ambos supem algo de provisrio e in-completo; cada um remete mutuamente para o outro, aomesmo tempo que apontam para algo futuro, algo ainda

    por vir, iminente, e que ser o acontecimento derradeiro,real e definitivo. Isto verdade no apenas em relao prefigurao do Velho Testamento, que aponta prospec-tivamente para a Encarnao e proclama os Evangelhosdo Novo Testamento, mas igualmente verdade para osprprios Evangelhos, pois tambm neles no se d ocumprimento ltimo, salvo a promessa do fim dos tem-pos e do verdadeiro reino de Deus. (Auerbach 1959, 58)

    O fim dos tempos e o verdadeiro reino de Deus: aqui alcanamoso evento definitivo do ltimo dos dias, o dia do Juzo Final,o dia do fim do mundo e naturalmente vm cabea unsquantos ttulos de blockbustersapocalpticos.

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    H um aspecto particular desta rica ilustrao que Auer-bach faz do conceito de figurao que desejo agora aqui

    realar. Em Mimesis(tal como o fez antes e depois durantetoda a sua carreira), Auerbach regressa ao caso de Dante.EmInferno, a representao do Alm segue uma lgica figu-ral; ela

    no da mesma magnitude que a esfera terrestre, evoluo,potencialidade, provisoriedade, mas sim o desgnio de

    Deus em activa concretizao. (Auerbach 1974, 189190)

    No entanto, est ainda imperfeita e incompleta, porqueaguarda a realizao suprema e definitiva do Juzo Final. Orabem, ento que tipo de personagens existe, fala e prestatestemunho neste peculiar alm-mundo? Aquelas que no

    mudam, que so de uma vez e para todo o sempre completamente elas prprias, seladas na sua identidade edestino. Esto mortas, so uma espcie de fantasmas,

    as vicissitudes dos seus destinos cessaram; o seu estado definitivo e imutvel, nele haver apenas lugar para umasingular mudana: a recuperao definitiva dos seus cor-

    pos fsicos com a chegada da Ressureio no dia do JuzoFinal. (Auerbach 1974, 190)

    Auerbach mostra-se fascinado pela rica realidade, fsica epsicolgica, com que Dante investe as suas personagens. Assuas prprias vidas terrenas conservam-nas completa-mente, atravs das suas memrias, mesmo tendo essas vidasterminado (Auerbach 1974, 191). E apesar de viverem (co-mo nos recorda Auerbach) em tmulos flamejantes e deserem almas separadas de seus corpos, com apenas umaespcie de corpo fantasma, de modo a que possam ser vistos,possam comunicar e sofrer", no entanto, a impresso queproduzem no a de que esto mortos apesar de o es-

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    tarem mas sim de que esto vivos (Auerbach 1974, 190,191). Eu sugeriria que as personagens do Alm de Dante, tal

    como as articula Auerbach, so criaes profundamente ci-nemticas e no de espantar que, por exemplo, RalRuiz tenha abraado a oportunidade de criar para televisouma sequncia avant-garde a partir dos cantos de Inferno(ver Martin 1993).

    o

    Irei agora traar a linha que pe em ligao um crculo defiguras figuras que constituem, de novo, um pequenocrculo de amigos e que mantm igualmente uma ntimarelao com uma criatividade soberana , todas elas mar-cadas, ao que parece, pelos singulares espritos progressistasda cultura de Weimar. Auerbach e Walter Benjamin, comosabemos graas aos fragmentos da sua calorosa corres-pondncia, publicada tanto em alemo como em ingls (verBarck, 1992) , foram amigos durante muitos anos. Ben-

    jamin admirava imenso a primeira grande obra de Auerbach,precisamente o seu primeiro trabalho sobre Dante e inter-pretao figural (1929).

    Gostaria de citar brevemente um fragmento de Benjamin

    escrito num perodo ainda anterior, por volta de 19191920.Um excerto no publicado em vida, mas que est traduzidopara o ingls no Volume I dos Selected Writings, intituladoWorld and Time [Mundo e Tempo]. uma contem-plao figural descarada, e inicia-se assim:

    Na revelao do divino, o mundo o teatro da histria

    sujeito a um grandioso processo de decomposio,enquanto o tempo a vida daquele que o representa sujeito/a a um imenso processo de preenchimento.(Benjamin 1996, 226)

    Nas duas frases seguintes, Benjamin evoca o fim do mundo:

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    a destruio e a libertao de uma representao (dramti-ca) e a redeno da histria a partir daquele que a repre-

    senta.Este pargrafo termina com a questo se a mais profun-

    da anttese do mundo no o tempo, mas sim o mundopor vir. Mais tarde, surge uma inflexo materialista: Aminha definio de poltica: a realizao [fulfilment] de umahumanidade imperfeita. O divino manifesta-se no social que , em si mesmo, uma manifestao de poderes

    espectrais e demonacos apenas enquanto fora revolu-cionria. Tais manifestaes, conclui, no devem serprocuradas na esfera do social, mas sim na percepo orien-tada para a revelao e para a linguagem sagrada (Benja-min 1996, 227). Estes gneos motivos, como sabemos, nun-ca abandonaram por completo o trabalho de Benjamin.

    Siegfried Kracauer, o amigo seguinte deste crculo ou

    cadeia, estava especialmente concentrado nestes aspectos depensamento visionrio no seu ensaio de 1928, On theWritings of Walter Benjamin, editado em The Mass Orna-ment. Tal pensamento tem mais afinidades com a escritatalmdica e com os tratados medievais, afirma, pois, semelhana destes, o seu modo de apresentao o da inter-pretao. As suas intenes so de ordem teolgica (Kra-

    cauer 2005, 259). Nestes termos de Kracauer ecoam, consci-entemente ou no, os termos usados na histria da figura deAuerbach.

    A redeno chama, e canta. Na sua reflexo sobre Ben-jamin, Kracauer assinala que o mundo terreno, "obscurecido eobstrudo, deve ser esmagado de modo a alcanarmos oessencial. Kracauer descreve este mundo das essencialidadescomo ancestral, presente desde o comeo (Kracauer2005, 260, 261). Em Benjamin, o presente das construese dos fenmenos vivos parece baralhado como num sonho,ao passo que num estado de decadncia, tornam-se maisclaros (Kracauer 2005, 262). Este tipo de anlise figural,conforme praticada por Benjamin ou Kracauer, medida

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    que se afasta do presente, aponta simultaneamente para umpassado primordial e para um futuro utpico (a meno de

    utopia poderia trazer ainda Ernst Bloch para este grupo dediscusso do crculo de Weimar, mas vou deix-lo de partepois no creio que a sua noo de esprito da esperana fun-cione, imagtica ou dramaticamente, como uma procisso defiguras auerbachiana: no de todo a mesma sala de es-pelhos).

    Pouco tempo antes, entre 1922 e 1925, Kracauer escre-

    veu um pequeno tratado sobre The Detective Novel(que fig-ura entre as referncias-chave de Brenez, no seu livro sobreAbel Ferrara). Kracauer escolheu no publicar o livro em

    vida, excepto um excerto condensado, o ensaio intituladoThe Hotel Lobby, presente no seu The Mass Ornament. Otexto completo aparece na colectnea dos seus escritos emalemo, ainda no traduzida para o ingls. Sei da sua exis-

    tncia pela traduo francesa uma edio de capa dura,amarelo-acastanhado, maravilhosamente adornada com umfotograma deA Mulher que Viveu Duas Vezes(Vertigo, 1958),de Hitchcock.

    Na til introduo a esta edio, o co-tradutor RainerRochlitz especula sobre o facto de, em 1925, Kracauer terposto o manuscrito de lado pelo facto de a aliana entre a

    sociologia e a teologia existencialista j no o satisfazer(Kracauer 2001, 24); Tal como o seu amigo Benjamin,Kracauer teria comeado a aproximar-se de um sistema deconhecimento mais marxista, materialista. De qualquer for-ma, os aspectos teolgicos de The Detective Novel perma-necem fascinantes e rimam com o singular pensamento figu-ral a reapario ou reinveno deste que predominouno perodo de Weimar.

    Na primeira pgina do texto, aps uma breve introduoprevendo a actual crtica da globalizao uma vez que, nombito da fico policial internacional do princpio do scu-lo XX, todos os pases so retratados de forma uniforme esimilar, com apenas algumas particularidades distintivas para

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    adicionar um pouco de cor local varivel (Kracaeur 2001, 33), numa seco que poderia ser traduzida por Esferas, ou

    talvez Reinos, Kracauer conjura a existncia de duas esferasque mantm uma relao de espelho invertido, deformado: aesfera dos humanos, na sua sociedade mundana, e o reinosuperior que, seguindo Kierkegaard, Kracauer explicita-mente denomina de esfera religiosa (Kracauer 2001, 35-36). Numa lgica bem familiar aos estudantes de Kracauer,o mundo da sociedade contempornea impiedosamente

    racionalizado, industrializado e burocratizado oferece umpattico e degradado reflexo do mundo perfeito, da esferadivina: o reflexo inautntico do autntico, um mundo semtragdia, sem sublime ou xtase.

    O que eu quero aqui frisar que esta dupla imagem dasesferas separadas uma configurao, um dispositivo, ab-solutamente figural neste caso mais espacial do que tem-

    poral (ver Martin 2011). A esfera superior descrita, de pas-sagem, como o lugar da redeno messinica: o lugar ao qualse deve ascender, onde os nomes entregaro os seus se-gredos que frase, que imagem, que ideia! , onde

    o ser estar em plena relao com o mistrio supremo.Mistrio esse que o carregar at ao ponto mximo da

    sua existncia. Palavra e aco, Ser e forma, alcanaroaqui os seus limites extremos; o que experienciado tor-nar-se- real; o conhecimento adquirido atingir um va-lor humano absoluto. (Kracauer 2001, 35)

    E o que mais interessante que tudo isto acontecer noseu devido tempo, tal como o disse Kracauer, incutindouma vitalidade extra numa frase perfeitamente corriqueira ebanal (Kracauer 2001, 50).

    Mas ento como que chegaremos l, a esse ltimo dia?Mesmo no fim do livro (reflectindo as suas ansiedades, doincio de 1925, sobre a sua orientao intelectual e filosfi-ca), Kracauer desloca a sua argumentao numa nova di-

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    reco, mais prxima da nossa sensibilidade contempornea,de eterno entre-dois [in-between].

    A palavra figura aparece frequentemente neste texto inicialde Kracauer e, de forma semelhante ao que sucede no tra-balho dos anos vinte de Benjamin, o Surrealismo faz aquitambm uma apario, na forma de vaso comunicante ousistema de transporte entre as duas esferas, humana e divina. ento que o heri da fico policial passa a funcionar, noseu ponto mais alto de redeno, como uma figura de tensoque habita as esferas intermdias (Kracauer 2001, 201),que vive entre esferas, entre os dois reinos, mesmo se o reinodefinitivo o reino real seja jamais aquele stio em que

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    consiga viver. Comeamos a ver a lgica da imagem de capado editor francs: Scottie (James Stewart), em A Mulher que

    Viveu Duas Vezessurge como o rfico anti-heri que cami-nha entre os fantasmas e as sombras, entre o domnio dos

    vivos e dos mortos (o romance de Boileau/Narcejac, em queo filme se baseia, tem o ttulo de Dentre les morts; na

    verdade, esta dupla escreveu tambm, em 1964, um estudode no fico intitulado Le roman policier!)

    rSer que o pensamento figural alguma vez abandona porcompleto o trabalho de Kracauer? O ttulo do seu ltimolivro publicado pela primeira vez em 1969, trs anos apsa sua morte , History: The Last Things Before the Last(1995) traz-nos ecos destes primeiros escritos que men-cionei. E, claro, temos ainda o clebre (ou infame), cer-tamente enigmtico, the redemption of physical reality (a re-deno da realidade fsica), o subttulo que percorre todo o seulivro Theory of Film(1960), um livro que s agora estamos aaprender a ler, ou reler.

    Por esta altura j deve ser claro que Kracauer falava dealgo muito para alm de uma simples valorizao, ou mesmode uma estratgica desfamiliarizao do mundo fsico e ma-terial. O conceito de redeno ressoa fortemente nas ima-gens do mundo e do seu duplo, no poder ressurreccionaldesta transformao, numa certa realizao figural da nossaexistncia na terra. Para redimir o mundo no basta(a)perce-blo tanto na sua mundanidade como nas suasmaravilhas , se os nossos olhos fossem suficientes, ou

    mesmo a nossa prpria experincia vital, ento porque queprecisaramos de uma cmara, fotogrfica ou cinematogrfi-ca? este o mistrio potico do mundo e do seu reflexo, omistrio de toda a arte representacional ou mimtica umaideia-talism a que Jean-Luc Godard tem regressado comfrequncia desde o incio da dcada de oitenta.

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    As ideias figurais, tanto quanto sei, no foram muitoexperimentadas pelos cineastas alemes que, no entanto,

    de diversas formas e em vrios graus, foram afectados pelacultura artstica e intelectual do perodo de Weimar. Masrecebi, recentemente, um choque salutar ao rever O Anjo

    Azul (Der Blaue Engel, 1930), de Josef von Sternberg, pro-tagonizado por Marlene Dietrich um filme que eu cas-ualmente (na verdade, estupidamente) recordo como sendoum velho clssico do cnone sabotado, sem dvida, pelas

    dificuldades tecnolgicas de combinar e sincronizar, noincio do sonoro, os sistemas de gravao de imagem e desom. Mas o filme, visto atravs do filtro de Auerbach e doseu crculo, torna-se, de novo, extraordinrio. O que rejeiteiuma vez por considerar rgido e esttico na realidade umdeliberado esquema artstico: literalmente, uma procisso defiguras, de personagens transformadas em figuras (brinque-

    dos, bonecos, esttuas, figurinos de todos os feitios, etc.),dispostas no enredo em repetidas configuraes, em dia-gramas pictricos de induo, de circularidade, em pro-gresses mveis, paralelas, de tipo itinerrio. O filme con-

    jura, de todas as formas brilhantemente inventivas, queSternberg sempre guardava na manga, uma ressurreio parao cinema de Weimar: aquilo a que Auerbach se referia como

    a procisso dos profetas no teatro medieval e nas repre-sentaes cclicas das esculturas da mesma poca (Auerbach1959, 52).

    Uma chave para o misterioso trabalho de Sternberg en-contra-se no extraordinrio ensaio de Claude Ollier sobre orealizador, publicado pela primeira vez em 1973 e includodepois no livro Cinema: A Critical Dictionary(Ollier, 1980).Ollier um romancista aclamado em tempos associado,

    vagamente, escola francesa do Nouveau Roman dos anoscinquenta e sessenta. Tal como Ollier deixa claro, na intro-duo do seu Souvenirs cran um livro de ensaios sobrecinema, de 1981 , o seu compromisso de uma dcada coma crtica de cinema foi motivado pelo seu interesse em per-

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    ceber como o visionamento de filmes poderia ser ra-pidamente associado ao trabalho de um escritor, atravs das

    questes colocadas, durante este perodo, de forma similarquer pelo cinema quer pela escrita de fico, sobre o trata-mento dos textos e dos mitos e ainda atravs da sua con-

    vergncia em redor de um objecto comum (Ollier 1981, 1011).

    E que objecto comum esse? Ollier desvenda-o no finaldo seu texto sobre Sternberg: o trabalho do realizador, esse

    audacioso, solitrio e enigmtico trabalho, como ele diz, parte de uma tradio secular relativa relao da obra dearte com o mundo (Ollier 1980, 959). Ollier no usa a ter-minologia da figura ou da figurao (ainda que Brenez, noseu texto de 1997, The Ultimate Journey: Remarks onContemporary Theory, o cite como inspirao central paraa actual anlise figural), mas a sua concepo da obra de arte

    e do mundo o mundo e o seu duplo, como ele prprioprope uma outra imagem ou concepo espacial to-talmente figural, repleta de infernais e vampirescas tran-saces entre e atravs das esferas.

    Sternberg abstrai o mundo, minuciosa e rigorosamente,convertendo-o num universo em avanado estado de rare-faco e confinamento espacial, e reclama o direito a que o

    seu mundo duplicado seja governado por leis outras que noas da imitao e da representao, e to pouco leis da causa-lidade quotidiana (Ollier 1980, 952, 950). Uma vez dentrodeste universo, que tipo de histria elege Sternberg, quelugares recria, com que personagens a povoa? Ollier preci-so neste ponto: tudo , deliberada e obstinadamente, clich eesteretipo. No laboratrio cinematogrfico de Sternberg, ainvestigao empreendida em torno da noo de estere-tipo, no contexto dessas obsoletas e catalogadas formas deliteratura, teatro e iconografia, hoje designadas para o con-sumo de massas (Ollier 1980, 953):

    Aqui tudo rigorosamente estereotipado, de modo a ser

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    o mais aproximado possvel dos elementos mais vulgar-mente admitidos sobre a matria. Os signos facultados

    correspondem exactamente ao que se espera deles a cadamomento. (Ollier 1980, 954)

    Isto poderia, claro, ser verdade para muitos filmes bonsou maus, inspirados ou no. Mas Sternberg vai mais longe.De acordo com Ollier, para Sternberg, este material de or-namentao de massa oferece uma condensao de carac-

    tersticas dramticas e emocionais inventariadas h j muitotempo, algo parecido com uma srie de eventos j cataloga-dos (Ollier 1980, 954). De forma semelhante, as perso-nagens especialmente Dietrich, como femme fatale funcionam como um modelo do efmero, do fugaz, do uni-

    versalmente ilusrio (Ollier 1980, 955). Esto presas nosseus tempos e identidades, imutveis (ou ento esto sujeitas

    a mudanas violentas, segundo uma lgica pouco natura-lista), movem-se como fantasmas: como os obscuros e obs-trudos detritos do mundo moderno, segundo Benjamin;como as flamejantes e espectrais criaturas de Dante, prestan-do testemunho segundo a interpretao de Auerbach.

    t

    28 anos depois de O Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930),Douglas Sirk realiza, em perfeita liberdade, O Meu MaiorPecado (The Tarnished Angels, 1957), em pleno sistema deHollywood. Um projecto que teria nascido, na cabea deSirk, no meio dos anos trinta altura em que Sirk leu oromance de William Faulkner, Pylon, acabado de publicar.

    Num artigo de 1972, apropriadamente intitulado SirksApocalypse, Jean-Loup Bourget, crtico da Positif, solicita-mente inventariou todos os motivos circulares do filme oseu negro e invertido imaginrio carnavalesco, a sua at-mosfera de Dana da Morte. Mas devemos prestar atenoimperativamente ainda a um outro gnio alemo Rainer

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    Werner Fassbinder de maneira a apreendermos a medidacompleta do alcance figural desta obra-prima de Sirk. Fass-

    binder di-lo claramente, e com humor:

    Nada alm de derrotas. Este filme no nada seno umacoleco de derrotas ... A cmara est constantementeem movimento, actuando como as pessoas sobre as quaiso filme se debrua, como se estivesse realmente a acon-tecer alguma coisa. Na realidade, no final, todas elas po-

    deriam deitar-se e deixar-se enterrar. (Fassbinder 1992,85)

    Pensemos, de novo, em Auerbach sobre Dante e projec-temos isso na mais visvel (e menos vista) das convenesusadas por Sirk: a sequncia do genrico inicial.

    No incio de O Meu Maior Pecado, Sirk alinha as suas

    personagens de acordo com a sua hierarquia especialmen-te segundo os esteretipos que representam, infernalmenterepetitivos , nos lugares semnticos e temticos que estasiro diligentemente ocupar ao longo do filme. Em doisplanos furiosamente econmicos vemos, em primeiro lugar,Burke (Rock Hudson) tentando entrar, solcita edesesperadamente, num mundo ao qual estranho; de se-

    guida, entrelaado, Roger (Robert Stack) personagem aoredor da qual gira toda a intriga ocupa o assento dopiloto. Depois aparece LaVerne (Dorothy Malone), sob aforma de espectculo forado: a sua roupa e os seus cabelosagitados pelo vento. Finalmente Jiggs (Jack Carson), o pa-ttico pendura, o tipo emasculado e manipulado neste trin-gulo, emergindo na zona inferior do enquadramento, malconseguindo manter a sua posio, sacudido pelo vento ain-da mais que LaVerne (at mesmo quando, mais tarde nofilme, ela salta de paraquedas). Finalmente, num plano adi-cional aps o ttulo, o patro o tipo associado s vulgaresrealidades do dinheiro, tempo, espao, notcias.

    Por um lado, trata-se de uma exposio narrativa simples

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    e profissional (isto seria o que David Bordwell diria); mas,por outro, muito mais do que isso. O que que h de

    melhor que uma sequncia de crditos com todas as suasrestries e obrigaes contratuais para estabelecer eapresentar um mundo fatal, pleno de hierarquias e jogoserticos de poder? De facto, todas as personagens, em ter-mos dramticos, continuaro a girar sobre estas posiesestabelecidas (como uma procisso figural ritual, medieval)logo desde o incio.

    v

    Prossigo esta minha pequena narrativa de Weimar com umcomentrio sobre o estatuto histrico do pensamento figural(atravs da arte, da crtica e da cultura em geral). Acreditoque h trs maneiras de situar o figural seja como umaforma particular de criao ou como uma ferramenta crticade interpretao artstica.

    Primeiro, podemos situ-la, como fez Auerbach nagrande marcha traada pelo livro Mimesis, como algo quefloresceu e morreu num tempo especfico e num dado lugarhistrico: precisamente como uma cena do drama da litera-tura (europeia ou de qualquer outro stio).

    Segundo, podemos ver a arte figural ou o pensamentofigural, como algo que, para alm do seu momento histrico,permanece sempre latente, possvel, virtual algo queemerge sob novas formas, s vezes surpreendentemente.Creio que foi isso que ocorreu durante o perodo de Wei-mar, em parte em consequncia das fascas lanadas pelaanlise de Auerbach sobre Dante e outros. Algo que pos-

    sivelmente acontece com alguma frequncia (desde que es-tejamos ligados vibrao certa): as passagens de Auerbach,por exemplo, lidas hoje soam como fortes prefiguraes dotrabalho cinematogrfico de Philippe Garrel (ver Martin,2009). Jonathan Rosenbaum (1997) props uma persuasivaanlise de O Desprezo(Le Mpris, 1963), de Godard, como a

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    encenao de um tenso e amargo combate entre dois modos descritos e situados por Auerbach de contar uma his-

    tria, de narrao e de evocao do mundo: o estilo deHomero e o estilo do Antigo Testamento, que Rosenbaumrenomeia, via Godard, de antiguidade e modernidade. SeLe Mpris tem um nico tema, global, sugere Rosenbaum,o da dolorosa distncia entre os dois estilos que Auerbachdelineou e os dois modos de perceber o mundo que estesimplicam (Rosenbaum 2004, 186). E Sirk e Sternberg, co-

    mo vimos, retomaram os seus pesados estilos figurais na d-cada de 1950, com O Meu Maior Pecadopara Sirk, e A Sagade Anatahan(The Saga of Anatahan, 1953) para Sternberg um filme que para Ollier o feito maior e mais radical desterealizador (um filme que, alis, no est legalmente dis-ponvel para visualizao em DVD).

    Depois temos ainda uma terceira possibilidade, vigorosa-

    mente perseguida por Bill Routt no seu extenso texto de2000 sobre Brenez e a ideia de figurao intitulado:For Criticism, um trabalho ao qual eu devo muito. ParaRoutt, a interpretao figural (que tende sempre, na sua pers-pectiva, para um verdadeiro delrio alegrico) absoluta-mente fundamental, essencial e inerente ao prprio acto dacrtica. A crtica o que preenche a obra de arte, elevando-a,

    redimindo-a e tambm completando-a, finalizando-a,fechando-o na concluso do circuito figural que Auerbachprimeiro traou. Porm, este encerramento realmente de-finitivo? Aqui ocorre-me a apresentao de Andrew Benja-min numa conferncia sobre Spinoza, que teve lugar emMelbourne em 2006. Nela, Benjamin entrou empaticamentenaquilo que descreveu (seguindo Walter Benjamin) como a

    nomeabilidade da obra artstica a sua potencialidade ou

    qualidade para ser nomeada, para convocar o seu prprionome e ao mesmo tempo a invocao que dirige ao crticoe ao espectador, para que assumam essa (de forma algumafcil) tarefa. Claro que nenhum dos Benjamins (Andrew ou

    Walter) pressupe que haja um nico e simples nome que se

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    possa fixar definitivamente como rtulo em cada obra dearte; a tarefa assumida muito mais rdua, muito mais la-

    birntica que isso. Potencialmente infinita, aberta. Semdvida que abre portas a uma discusso mais detalhada sobrecrtica (a ter numa outra ocasio). Por agora, apenas relem-bremos: Love calls you by your name

    x

    Para encerrar esta cena no drama da figurao reconto umapequena parbola de Giorgio Agamben composta para o seulivro Profanaes. Agamben, como sabido, h muito que seinteressa (atravs de sua perspectiva marxista-materialista)pelos aspectos messinicos do trabalho e do legado de Wal-ter Benjamin em particular pelo conceito-chave de re-deno(ver Agamben 2013). Tomando de emprstimo umafrase de Auerbach, a misso eleita por Agamben encarer e de alguma forma negociar a revelao ou a ilu-minao de uma realidade velada, eterna (Auerbach 1959,60) manifesta no pensamento e nos escritos de Benjamin,sem ser, todavia, inteiramente absorvido pelo seu significadoreligioso particular alcanar a iluminao, compreend-la,capitaliz-la, sem aderir ao sistema de crena especfico.

    Agamben aborda tudo isto indirectamente, at mesmocasualmente, no seu pequeno texto de Profanaes: O dia do

    Juzo Final. Esta meditao persegue a sua noo de queexiste uma relao secreta entre o gesto e a fotografia(Agamben 2006, 33). A fotografia fixa, neste contexto con-creto. Alm disso, Agamben cultiva o pensamento obstinadode que: a fotografia, de certa forma, capta o Juzo Final;

    representa o mundo tal como surge no ltimo dia, no Dia daClera (outro filme clssico, a propsito [Dies Irae (1943),de Carl Theodor Dreyer]) (Agamben 2006, 31). A foto-grafia o olho da eternidade, o juzo do fim dos tempos.Mas o que v esse olho, o que que ele descobre quando asua lente congela o real?

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    Agamben oferece um exemplo admiravelmente artificiale perfeitamente alegrico, aquele com que adorna a capa do

    seu livro: uma imagem tirada em Paris, hoje consideradacomo a primeira fotografia em que aparece uma figura hu-mana (Agamben 2006, 31) Boulevard du Temple, deLouis Daguerre (1838). Apenas uma figura numa rua que,logicamente, deveria parecer agitada e repleta de gente. Noentanto, dado o longo tempo de exposio que os primitivosaparelhos necessitavam para que a luz imprimisse algo na

    pelcula, a rua surge estranhamente vazia exceptuandoessa nica estrela escura, essa massa disforme de um ser hu-mano, situada no canto inferior esquerdo da imagem. Pre-cisamente por estar inadvertidamente quieto, ou esttico, ogesto deste homem acaba por ficar imortalizado na histricafotografia. Mas que gesto este que vem representar, em-blematizar e, na verdade, substituir este indivduo annimo

    de Paris? No os gestos extticos, de dor ou alegria, vida oumorte, perseguidos por Aby Warburg (outra obsesso deAgamben). De facto, um gesto absolutamente banal: ohomem, aparentemente, aguardava enquanto lhe engraxa-

    vam os sapatos.Agamben aprecia esta nada glamorosa apoteose de um

    aleatrio cidado da modernidade; mas responde tambm,

    apaixonadamente, ao seu apelo para ser recordado, para serrelembrado atravs da fotografia. De tudo isto a fotografiaexige que nos recordemos, diz Agamben, de todos essesnomes perdidos as fotografias prestam testemunho, tal comoo Livro da Vida uma imagem bem figural, o Livro daVida que o novo anjo do apocalipse (o anjo da foto-grafia) segura entre mos no final dos dias (Agamben 2006,37, 38).

    Isto soa como uma redeno, uma consumao figuralbem familiar, bem clssica. Mas h aqui, nesta ltima frase,nas suas ltimas palavras, uma bela e subtil inverso de lti-ma hora. Pois aps escrever no final dos dias, imedi-atamente acrescenta (redimindo a ideia num sentido total-

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    mente diferente): no final dos dias, ou seja, todos os dias(Agamben 2006, 38). Todos os dias a mesma ordinria,

    banal, todavia mgica e apaixonada, esfera do dia-a-dia que,como Siegfried Kracauer discerniu nos escritos de WalterBenjamin, aguarda agora um destinatrio (Agamben 2006,38).

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    zPOST SCRPTUM,JANEIRO DE 2012DAR A BRENEZ A LTIMA PALAVRA

    Esta palestra foi apresentada, pela primeira vez, em Julho de2008, num colquio sobre Siegfried Kracauer tendo sido,mais ou menos, escrita em poucos minutos, depois de vrios

    anos, tal como testemunhou o poeta brasileiro Paulo An-tnio de Paranagu no final do seu Manifesto por um cine-ma violento, de 1966. As actas desse animado colquio naMonash University (Austrlia) nunca foram, alis, publica-das. Quando Nicole Brenez (alguns anos depois) leu o texto,discordou com um aspecto central da minha apresentao. Asua resposta, comunicada por correio electrnico, foi a se-

    guinte:

    Tens muita razo e tudo extremamente revelador, meucaro Adrian, excepto que eu no sinto, de todo, que figu-raseja algo misterioso e obscuro. Pelo contrrio, cada vezprocuro ser mais clara: a anlise sobre o processo elabo-rado pelo filme no sentido de construir o seu prprio tipo

    de figura. Polissemia e diversidade no significam faltade claridade. Deixa-me explicar porqu e como.Quando comecei a conceber a minha tese de dou-

    toramento (de 1985, soutenuem 1989), ainda no tinhalido Figura, de Auerbach. Mas a estrutura da palavra

    figura era muito clara para mim e ensino-a nas mi-nhas aulas muitas vezes como introduo, de maneira a

    dar ferramentas aos estudantes: trata-se da explicao dotermo latino Figura presente no dicionrio Le Gaffiot(esse maravilhoso e velho dicionrio que temos para asnossas verses latinas). Aprendi Latim desde o segundoano do Lyce Exprimental de Svres, desta forma oGaffiotfoi sempre de uso e leitura semanal, estava sempre

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    na minha secretria assim como o Bailly, o dicionriofrancsgrego antigo e assim continuam, mesmo atrs

    de mim, porte de main, como dois pilares, ainda queagora raramente os abra.

    Graas ao Gaffiot(que cito extensivamente na intro-duo da minha tese de doutoramento), quando li Figu-ra de Auerbach, na sua verso em ingls (que me foidado por Jean Clay, editor da ditions Macula quetambm o deu, anteriormente, a Yve-Alain Bois e a

    Georges Didi-Huberman, tendo tido em ambos igual-mente uma grande influncia), este no foi uma reve-lao, mas antes uma excelente confirmao, extenso econtextualizao histrica. Pode at ser que Auerbachtenha igualmente encontrado inspirao num dicionrioequivalente em alemo.

    E, claro, em Latim h um campo inteiro que deriva

    das palavras seminais fingo, figuro(verbo) e figura(subs-tantivo):figuralis,figuraliter,figuratio,figurative Todaa terminologia dos estudos cinematogrficos figurativos

    vem da, dessas pginas do Gaffiot. esta a sua estrutura.E depois h que construir o edifcio da metodologia e dateoria, e ento o edifcio aberto quer dizer: so osprprios filmes, nas suas singularidades, que esto a en-

    riquecer o mtodo assim quanto mais singulares enicos forem, mais tero a oferecer ao conhecimento dafiguralidade.

    Portanto, nunca se deve reduzir a riqueza de um filmea uma palavra, mas sim enriquecer a noo com todas asinvenes concretas devidamente analisadas.

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    Avatares do Encontro

    Adrian Martin

    um prenncio. Um mau prenncio.Le tempestaire(Jean Epstein, 1947)

    Espinosa escreve o seguinte na seco da sua ticadedicadaaos afectos:

    As coisas que por acidente so causas de esperana ou demedo so chamadas de bons ou maus prenncios. Alm

    disso, da mesma forma que estes prenncios so causasde esperana ou de medo so-no, na mesma medida,causas de alegria ou de tristeza; consequentemente, amamo-los ou odiamo-los, e esforamo-nos por us-los comomeios de alcanar aquilo que mais esperamos, ou por repeli-los como obstculos ou causas de medo. (Spinoza 1996, 95)

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    Esta sua evocao dos prenncios como detonadores deaces encontra um eco curioso no cinema contemporneo.

    Num certo nmero de filmes recentes, incluindo Maria An-tonieta (Marie Antoinette, 2006), de Sofia Coppola, Sexta-Feira Noite (Vendredi Soir, 2002), de Claire Denis, e O

    Novo Mundo (The New World, 2005), de Terrence Malick,temos a experincia de cenas singulares ou pontos de vira-gem na narrativa, por vezes at mesmo passagens inteiras,em que os pressgios chamemos-lhes tambm prennci-

    os, pressentimentos, disposies, estados de alma, atmosfer-as importam muito mais do que a tradicional lgica nar-rativa de causa e efeito, ainda que estes estejam relacionadoscom as prprias personagens fictcias ou com os ambientesque os rodeiam.

    Em Maria Antonieta, por exemplo, h um idlico inter-ldio que sucede longe da dissoluo da corte no qual,

    de repente, o sol brilha, Kirsten Dunst, como Maria, correatravs das ervas altas e os ces brincam. No h nada deespecial que justifique esta cena, nada que nos conduza atela, para alm da alterao do cenrio e da mudana do temana banda sonora. A cena no tem sequer uma verdadeirarepercusso na trama; uma ilha suspensa de atmosfera, um

    good vibe.

    Yes(2004), de Sally Potter, oferece a ambiciosa variaoNew Age disso mesmo: num mundo pleno de misria, decontradies e negaes a todos os nveis de cultura, nao,sexo, raa e classe social, Potter literalmente move cus eterra para chegar a um desenlace positivo. O que, de formaimprovvel e pouco convincente para alguns espectadores,nos conduz at ao final do filme acaba por ser um crescendode ondas do mar, uma graciosa dana de movimento, umasbita delicadeza de luz e de ar, a leveza do Ser. Descrevoisto como sendo algo um tanto New Age porque reflecte

    justamente uma certa poltica do estado de espirito (politics ofmood) contempornea: se conseguires sentir-te bem dentrode ti mesmo, se conseguires alinhar as tuas energias e os teus

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    estados interiores, ento o mundo externo talvez teacompanhe rumo paz e harmonia.

    Mas deixemos em suspenso qualquer juzo antecipadosobre esta poltica do estado de espirito, de forma a procurarentender em profundidade o funcionamento deste intrigantefenmeno cultural. Mencionei acima que a resoluo de Yes, para alguns, improvvel e pouco convincente oscomentadores de cinema adoram discorrer sobre se um filmerealmente mereceu o seu feliz ou trgico final , mas tudo

    isto pode no ser mais do que uma mera limitao, umafalha no modo padronizado como apreendermos o fun-cionamento de uma narrativa cinematogrfica. Creio quesempre existiram duas tradies de lgica narrativa em cine-ma, uma massivamente mais dominante que a outra.

    A primeira destas tradies a que conhecemos melhore que usamos de modo natural e espontneo na maioria dos

    nossos juzos sobre os filmes exige que numa histria hajauma certa qualidade ou processo de prova, de demonstraoe persuaso. O filme deve convencer-nos, atravs da suaprogresso dramtica ou cmica, que chegou a uma con-cluso sensvel e verosmil no apenas nos termos do rea-lismo dos acontecimentos, mas ainda mais profundamente,no que diz respeito sua lgica temtica, sua luta de posi-

    cionamentos morais e valores ticos (Match Point[2005], deWoody Allen, poderia servir como exemplo prtico destetipo de lgica narrativa).

    Mas h outra lgica na histria universal do cinema,menos reconhecida e mais subterrnea, que por comparaotem pouco que ver com provas, demonstraes ou per-suases. Segundo esta lgica, as coisas acontecem e movem-se devido, fundamentalmente, a mudanas ou alteraes deestados anmicos. Estes estados so criados pelo prpriofilme com todo o arsenal estilstico de imagens e sons sua disposio , e so projectados no espao ou universoficcional. A psicologia das personagens j no aqui o quemais motiva ou move o mundo a vontade individual

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    deixou de ser a fora motriz da aco narrativa. Pelo con-trrio, esse mesmo mundo que, de forma intensa, impre-

    visvel e em constante mudana, actua sobre as personagense altera os seus estados de alma, por vezes os seus prpriosdestinos. Por sua vez, as personagens, totalmente imersasnesta lgica contagiosa, aprendem a no confiar em nadaexcepto nos seus prprios pressentimentos e sensaes: nosseus caprichos, nos seus palpites, nas suas inexplicveis mu-danas de humor. Esto constantemente espreita de bons

    ou maus pressgios.Assim, as relaes entre as personagens, os seus laos einteraces intersubjectivas, convertem-se num puro fluxode interaces anmicas, instantneas e efmeras, extticasou txicas, feitas de paixes fulminantes ou fixaes homici-das. E o papel do meio-ambiente e da natureza torna-secrucial na definio de todos estes estados de alma: a luz

    atravs das rvores, os sons da manh, as ondas de calor, ofim do dia, the bad moon on the rise os filmes cheios denatureza que Jean-Luc Godard realizou a partir dos anosoitenta, como Nouvelle Vague (1990), so a vanguarda con-tempornea deste intrincado e antipsicolgico cinema deestados de alma: num comentrio sobre este filme, o realiza-dor alemo Harun Farocki escreve que os protagonistas, o

    homem e a mulher, s encontram o seu caminho juntos umavez tendo participado na falta de regras do Vero (Silver-man e Farocki 1998, 208).

    k

    Este cinema de estados de alma, que hoje se faz sentir cada

    vez mais, tambm tem uma histria. Um dos seus perodosdiz respeito a um estranho desvio na produo de Holly-wood no incio dos anos cinquenta. Um nmero significa-tivo de filmes, incluindo Pandora (Pandora and the FlyingDutchman, 1951), de Albert Lewin e A Condessa Descala(The Barefoot Contessa, 1945), de Joseph Mankiewicz

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    ambos protagonizandos por Ava Gardner, assim o con-struiu-se totalmente a partir de encontros extraordinrios e

    variaes de humor; no de espantar que estes filmes emparticular fossem adorados pelos surrealistas dos anoscinquenta como, anti-literrios, prximos do sonho oumesmo do delrio, na sua progresso. Mas tambm podemosencontrar vestgios desta lgica premonitria, em maior oumenor extenso, em filmes decorridos no confuso perodofinal do film noir: os telegramticos e elpticos psicodramas

    comoA Mulher Desejada (The Woman on the Beach, 1947), deJean Renoir; as improvisaes de baixssimo oramento co-mo A Curva do Destino(Detour, 1945), de Edgar Ulmer; osdiscretos thrillersde Otto Preminger, como Anjo ou Demnio(Fallen Angel, 1945), ouA Ladra(Whirlpool, 1949), Passos na

    Noite(Where the Sidewalk Ends, 1950) e em particular VidasInquietas (Angel Face, 1952), com os seus temas obsessivos

    sobre fascinao, hipnose e pressgios de todos os gneros efeitios.H pelo menos uma relao de filiao directa entre este

    cinema contemporneo, de estados de alma e atmosferas, e odos anos cinquenta: Nouvelle Vague,de Godard, explicita-mente um remakeradical de A Condessa Descala, redefinidocom vista a focar-se unicamente na nervosa e ertica relao

    entre a Condessa Torlato-Favrini e o seu exrcito de criados.No muito difcil ver porque que o filme de Mankiewicz(tambm protagonizado por Humphrey Bogart) conseguiumanter uma influncia hipntica sobre Godard durante maisde cinquenta anos: trata-se de um notvel trabalho de con-teno e refreamento de atmosferas, onde se ostenta umatrama em que todo e qualquer momento decisivo nasce deum impulso, de um sentimento absoluto de atraco ou re-pulsa (Odeio estar perto de gente doente, anuncia AvaGardner a dado momento), em que as personagens seguem,incondicionalmente, a pista de um pressentimento ou de umsexto sentido entoando sempre o que ser, ser , eem que a grande e mtica engrenagem do estrelato holly-

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    woodesco (a Condessa tambm uma famosa estrela de ci-nema) explicada, seriamente, como uma questo de pura

    aura, de um pblico que ama e que abraa instantaneamenteaquilo que sabe ser realmente especial, apesar da inerente

    vulgaridade e estupidez do studio system e dos seus produ-tores corruptos.

    H uma passagem em particular, uma atmosfera concre-ta, em A Condessa Descala, que s pode ser totalmente apre-ciada se estivermos completamente imersos no filme, em

    plena escurido, visualizando-o num ecr gigante. Aconteceaproximadamente aos oitenta minutos do filme nocomeo do Captulo 12, belissimamente intitulado Elesencontram-se de novo, no DVD da MGM e diz res-peito ao encontro da Condessa com o seu futuro Conde (in-terpretado por Rossano Brazzi). Mankiewicz estende estarequintada passagem por mais de dez minutos, em trs ela-

    boradas cenas que nos conduzem do dia para a noite.Na primeira cena, Ava sai, em segredo, para se juntar aum grupo de ciganos que dana no meio do campo. Nomeio do seu transe coreogrfico repara que o Conde (que,por acidente, interrompeu sua viagem prximo daquele lu-gar) observa-a nesse momento to privado; nenhuma palavra trocada entre eles e ele no faz ideia de quem ela no

    mundo do espectculo. Na segunda cena, num casino daRiviera, Ava, agora interpretando o seu papel pblico e so-cial, na companhia de um enfadonho bilionrio, fica sur-preendida ao ver de novo o Conde surgir na sua frente, co-mo que por magia. Ento, a protagonista rompe com o bi-lionrio, no meio de um ataque de petulncia deste, simples-mente aceitando a mo do atraente estranho que aparece pordetrs do bilionrio e lhe toca no ombro, pregando-lhe de-pois uma bofetada. (Na verdade, se comearmos a contagemdesta sequncia um pouco mais cedo, a partir do primeiroenigmtico vislumbre desta bofetada no rosto, visto de umngulo diferente, dentro de um outro flashback, ento o en-contro inteiro estende-se por catorze minutos completos).

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    Eles abandonam a festa juntos e, de facto, nesse preci-so momento, Ava deixa para trs a vida que levava, mesmo

    que no faa a mnima ideia quem seja este cavalheiro entreos cavalheiros. Este tipo de aco repentina, que altera total-mente uma vida, sucede em vrias ocasies durante o filme.A terceira cena ocorre fora da festa, no carro do Conde,onde ambos discutem o estranho destino que os uniu instan-taneamente, sem perguntas, nada para alm de pressenti-mentos e de gestos impulsivos. O que que veio aqui fazer,

    alm de ter vindo por mim?, pergunta ela. No houve ou-tra razo, responde ele. Quando que soube que veio pormim?, pergunta ela. Voc tambm o soube, responde ele,Voc soube assim que eu o soube.

    g

    Este evento em A Condessa Descala constitui mais do queum mero estado de espirito, atmosfera ou simples inter-seco de trajectrias. No seu sentido mais significativo, um verdadeiro encontro um cruzamento acidental quealtera duas vidas para sempre, que as une num destino com-partilhado, numa disposio para o amor [a mood for love]. Ocinema dos estados de alma est intrinsecamente ligado mitologia do encontro. Esta mitologia percorre todo oespectro de clichs da cultura pop do amor primeira

    vista aos olhos que se cruzam atravs de uma sala ou a essasalmas gmeas que foram feitas uma para a outra, at aolivro surrealista de Andr Breton,Nadja (1928), ou mesmo cano de Nick Cave Are You the One That Ive Been

    Waiting For?.Um dos textos modernos que melhor define esta filosofia

    surrealista do encontro A Dupla Chama (La Llama Doble,1993), uma meditao sobre o amor e o erotismo, escritapelo grande poeta mexicano Octavio Paz aos oitenta anos deidade. Paz assevera que,

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    No amor, predestinao e eleio, os poderes objectivos esubjectivos, o destino e a liberdade, cruzam-se. O territ-

    rio do amor um espao magnetizado pelo encontro.(Paz 1996, 27)

    Paz poderia estar a descrever esta passagem de A CondessaDescala que acabei de evocar. De fato, estados de alma eencontro combinam muito bem no cinema. Isto porque aquintessncia do encontro, nas suas coordenadas lricas e

    poticas, profundamente cinemtica. Enquanto Paz fala deum espao magnetizado pelo encontro, o jovem WalterBenjamin, no seu ensaioMetafsica da Juventude(1914), des-creve um encontro com uma estranha no meio de um baileencantado, e interroga:

    Quando que a noite atingiu tal luminosidade e se tor-

    nou to radiante, seno aqui? Quando que o tempo foialguma vez superado? Quem sabe quem iremos encontrara esta hora? (Benjamin 1996, 16)

    Espao magnetizado e tempo superado: a receita perfeitapara o cinema.

    Outro episdio nesta histria do cinema de estados de

    alma e de encontros: Coraes(Coeurs, 2006), de Alain Res-nais um filme com mltiplas personagens e uma trama detrajectrias interligadas, inteiramente filmado numa pai-sagem urbana coberta de neve, construda e estilizada em es-tdio. Resnais descreve o tema do filme da seguinte forma:Os nossos destinos, as nossas vidas, vo sendo sempre guia-dos; o nosso destino pode inclusive depender de uma pessoaque nunca chegamos a conhecer (Marco 2006). Quarenta etrs anos antes desta declarao, o crtico surrealista RobertBenayoun reflectiu sobre as obras-primas de Resnais do finaldos anos cinquenta, princpio dos anos sessenta Hiroshi-ma Meu Amor (Hiroshima mon Amour, 1959), O Ano Passadoem Marienbad(L'anne dernire Marienbad, 1961) eMuriel

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    (1963) , concluindo que Resnais se tornou no poeta tristede um sonho perdido, explorando aquilo que [Benayoun]

    chamou de avatares do encontro:

    Tendemos sempre a esse milagre perdido, essa SierraMadre que a identificao mgica, a fuso de dois seresnum domnio, repentino e compartilhado, do tempo.[] [o encontro em] Muriel furtivo, inconcluso, des-fasado. A iluminao crucial permanece ausente. [] J

    no nos encontramos no tempo em que os surrealistasexorcizavam a noite, convocavam o ser amado e o desti-no. Muriel de alguma forma o negativo do encontro[], mais parecido com o naufrgio da concomitncia, aperda dos plos magnticos da paixo. (Benayoun 2002,131136)

    Ter-nos-emos afastado demasiado de Espinosa, neste per-curso feito pelos estados de alma e pelos encontros? No, sevoltarmos a Espinosa via Gilles Deleuze. No seu seminriode 1978, sobre Espinosa, Deleuze discorre a partir de umapalavra que, como o prprio salienta, aparece escrita apenasuma nica vez na tica, de Espinosa: occursus, ou encontro(Deleuze, 1978). O que Deleuze valoriza em Espinosa o

    vasto terreno de afectos que este traa, as relaes vistas co-mo colises intensivas, as relaes anmicas no sentidoem que aqui tenho utilizado a palavra , relaes que no secentram nem na psicologia nem na vontade individual.Philippe Grandrieux declarou que:

    O meu sonho criar um filme completamente espino-sista, construdo sobre categorias ticas: dio, alegria,orgulho e essencialmente cada uma destas categoriasseria um bloco puro de sensaes que passariam de uma aoutra com enorme rapidez. O filme seria assim uma vi-brao constante de emoes e afectos, e tudo isso nosreuniria, nos reinscreveria no material em que original-

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    mente nos formamos. (Brenez 2003)

    Quando Deleuze retoma o exemplo ilustrativo de Espinosa,sobre os afectos em aco dois conhecidos que, na rua,tropeam um no outro , expande-o para o converter numencontro total. Escutemos a linguagem de sensaes e deimagens que Deleuze emprega:

    Passeio numa rua onde h pessoas conhecidas, e digo

    Bom-dia, Pedro, depois viro-me e digo Bom-dia,Paulo. Ou ento so as coisas que mudam: olho para osol e o sol, pouco a pouco, desaparece e encontro-me emplena noite; trata-se ento de uma srie de sucesses, decoexistncias de ideias, sucesses de ideias. (Deleuze1978)

    Terrence Malick apreciaria esta cenografia: o desapareci-mento do sol ou a obscuridade da noite Pedro ou Paulo como uma sucesso de ideias. Deleuze retorna, num ou-tro momento, histria destes dois homens que se cruzam:

    Passeio na rua, vejo Pedro que no me agrada, e isso emfuno da constituio do seu corpo e da sua alma e da

    constituio do meu corpo e da minha alma. (Deleuze1978)

    A lio desta histria, segundo Deleuze, a seguinte: namedida em que tenho ideias-afeces, vivo ao acaso dos en-contros (Deleuze 1978).

    wO sentido de encontro para Deleuze, o valor que ele lheconfere, tem algo de comum com Breton e com os surrealis-tas. No estou aqui a falar de encontros mundanos, banais,do tipo de encontro que Espinosa descreveria como mera-

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    mente contingente. Ao fim ao cabo, temos dzias desse tipode encontros todos os dias, e eles no mudam as nossas vidas

    ou os nossos destinos pelo menos nunca dessa formaconduzida, abenoada ou maldita, que descrita por Res-nais. Espinosa escreve:

    O afecto relativo a uma coisa possvel mais violento doque o afecto relativo a uma coisa contingente. (Spinoza1996, 122)

    Tanto a possibilidade como a violncia so positivas paraDeleuze.

    Na verdade, Deleuze d mais importncia a occursus doque alguma vez Espinosa lhe deu. Para Deleuze, o encontrocom Pedro e Paulo potencialmente to dramtico, totranscendental, como o encontro do Conde e da Condessa

    Torlato-Favrini no filme de Mankiewicz. O encontro deleu-ziano, em grande medida, uma espcie de tabula rasa. oencontro com o absoluto Outro, a alteri