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O desenho das energias, John Ruskin e as Pedras de Veneza Claudio Amaral - 3/2013 1 Nascido na metade do caminho entre as montanhas e o mar, aquele menino Jorge de Castelfranco, do bravo castelo, o chamavam de robusto Jorge, o Jorge dos Jorges, um bom rapaz, Giorgione. Você alguma vez pensou qual mundo o seu olhar curioso, cheio de vida, olhar de criança viu? Um mundo com a vitalidade das montanhas, das raízes do mar, de vidas esplendorosa, quando ele chegou tão jovem à cidade de mármore para se tornar ele mesmo. Cidade de mármore, disse isso? Não... mais uma cidade dourada pavimentada de esmeraldas, pois, verdadeiramente, cada pináculo, cada torre, se ergue coberto de ouro. Abaixo sem mácula o mar em pesados respiros de ondas verdes. Majestosos, terríveis como os mares, os homens de Veneza se movimentam na oscilação do poder e das guerras, puros como os pilares de alabastro, mãe desfilando sua nobreza, provedora de forças, de possibilidades, com seus panos vermelho sangue, com seus medos, seus receios, sua paciência, um estado de fé implacável, com honras e esperanças embaladas pelo movimento das ondas que cercam seus sagrados bancos de areia. Um espaço privilegiado no mundo, um mundo em si. Deitada sobre as águas nem tão grande, seus capitães a viam por entre as brumas ao entardecer penetrado por espessos raios solares como se fossem sólidos, cuja força era sentida como embriaguez, como se estivessem navegando num paraíso; um lugar onde todo mal havia sido banido pela dinâmica de uma vida simples. Nada de ruim, nenhum tumulto naquelas estreitas ruas iluminadas pelo luar, com música pulsando, se alterando, silenciando. Nenhum muro poderia cercá-la, nenhum telhado cobri-la, apenas a força das pedras coloridas e preciosas. E ao redor, até onde o olhar avista o doce movimento das águas, numa pureza cheia de orgulho, como flores espalhadas pelos campos, o etéreo dos Alpes, como num sonho, desaparece por trás das costas de Torcello. Acima, ventos livres, nuvens selvagens, o brilho do Norte e o balsamo do Sul, as estrelas ao entardecer amanhecem por entre as luzes por detrás dos arcos do paraíso e do mar revolto. i Por que será que John Ruskin se apaixonou por Veneza? Provavelmente porque Veneza ilustrasse, como nenhuma outra, sua Teoria da Arquitetura, assim como sua Teoria da Pintura e, principalmente, sua Filosofia da Natureza. Veneza é movimento, é energia, é explosão de cores. Veneza é o pulsar de vidas e a Teoria da Arquitetura de Ruskin trata do desenho das energias. ii Ruskin já havia sentido essa atmosfera na pintura de Joseph Turner, iii em que as cores da paisagem se interpenetram criando a sensação da existência de um todo em estado de harmonia. Turner pintou a atmosfera de paisagens naturais.

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O desenho das energias, John Ruskin e as Pedras de Veneza

Claudio Amaral - 3/2013

1

Nascido na metade do caminho entre as montanhas e o mar, aquele menino Jorge de

Castelfranco, do bravo castelo, o chamavam de robusto Jorge, o Jorge dos Jorges, um bom rapaz,

Giorgione. Você alguma vez pensou qual mundo o seu olhar curioso, cheio de vida, olhar de

criança viu? Um mundo com a vitalidade das montanhas, das raízes do mar, de vidas

esplendorosa, quando ele chegou tão jovem à cidade de mármore para se tornar ele mesmo.

Cidade de mármore, disse isso? Não... mais uma cidade dourada pavimentada de esmeraldas,

pois, verdadeiramente, cada pináculo, cada torre, se ergue coberto de ouro. Abaixo sem mácula o

mar em pesados respiros de ondas verdes. Majestosos, terríveis como os mares, os homens de

Veneza se movimentam na oscilação do poder e das guerras, puros como os pilares de alabastro,

mãe desfilando sua nobreza, provedora de forças, de possibilidades, com seus panos vermelho

sangue, com seus medos, seus receios, sua paciência, um estado de fé implacável, com honras e

esperanças embaladas pelo movimento das ondas que cercam seus sagrados bancos de areia. Um

espaço privilegiado no mundo, um mundo em si. Deitada sobre as águas nem tão grande, seus

capitães a viam por entre as brumas ao entardecer penetrado por espessos raios solares como se

fossem sólidos, cuja força era sentida como embriaguez, como se estivessem navegando num

paraíso; um lugar onde todo mal havia sido banido pela dinâmica de uma vida simples. Nada de

ruim, nenhum tumulto naquelas estreitas ruas iluminadas pelo luar, com música pulsando, se

alterando, silenciando. Nenhum muro poderia cercá-la, nenhum telhado cobri-la, apenas a força

das pedras coloridas e preciosas. E ao redor, até onde o olhar avista o doce movimento das

águas, numa pureza cheia de orgulho, como flores espalhadas pelos campos, o etéreo dos Alpes,

como num sonho, desaparece por trás das costas de Torcello. Acima, ventos livres, nuvens

selvagens, o brilho do Norte e o balsamo do Sul, as estrelas ao entardecer amanhecem por entre

as luzes por detrás dos arcos do paraíso e do mar revolto.i

Por que será que John Ruskin se apaixonou por Veneza? Provavelmente porque Veneza

ilustrasse, como nenhuma outra, sua Teoria da Arquitetura, assim como sua Teoria da

Pintura e, principalmente, sua Filosofia da Natureza. Veneza é movimento, é energia, é

explosão de cores. Veneza é o pulsar de vidas e a Teoria da Arquitetura de Ruskin trata

do desenho das energias.ii Ruskin já havia sentido essa atmosfera na pintura de Joseph

Turner,iii em que as cores da paisagem se interpenetram criando a sensação da existência

de um todo em estado de harmonia. Turner pintou a atmosfera de paisagens naturais.

Ruskin pintou a atmosfera de Veneza, uma composição do azul do céu com o branco

das nuvens, surpreendente a cada hora, com as luzes coloridas difusas entre as brumas,

o amarelo-avermelhado pelos raios solares e o verde das águas da lagoa, com sua

arquitetura que parece flutuar, com o colorido dos mármores e o frescor dos terraços

esculpidos por pilares e arcos góticos, com o movimento apressado das pessoas e o

nervosismo das águas agitadas pelo intenso tráfico de barcos e os ventos selvagens.

Ruskin misturou essas sensações e pintou a energia, uma sensação de embriaguez que o

fez devanear, uma tontura que o levou ao êxtase. Sensações parecidas às que havia

sentido ao admirar as paisagens dos Alpes suíços, uma mistura de montanhas, lagos,

céus, nuvens que nunca descansam, arvores frondosas e animais na tranquilidade dos

pastos, movimentando-se e misturando-se ao desenho de um todo em estado de

equilíbrio instável.iv

Ruskin buscou a explicação para o que sentiu com a Filosofia da Natureza. Essa

filosofia teria por princípio uma ética na qual tudo se relaciona com tudo, todos a viver

em estado de harmonia sob a égide da política da ajuda mútua.v Sob essa concepção

de ética,vi Ruskin criou sua noção de estética cuja problemática foi: como sentimos essa

ética no espaço?vii

Foi pela visão da arquitetura bizantina e gótica

de Veneza que ele conseguiu enxergar o

desenho dos movimentos das energias que

compõem o espaço. Para tratar de São

Marcosviii e do Palácio Ducal,ix ele nos conduz

em um passeio pelas ruas estreitas de Veneza

até a Bocca de Piazza, quando em um único

instante, o olhar explode em mil cores frente ao

clarão das luzes vindas das aberturas

proporcionadas pela Praça de São Marcos e, repentinamente, avista-se a fachada de

arcos simétricos de São Marcos a contrastar e, não obstante, compor com as

irregularidades das vielas percorridas momentos atrás. Apesar de majestosa, São Marcos

parece flutuar: os inúmeros e esqueléticos pilares coloridos e arcos de sua fachada são

de uma delicadeza extrema ao descansar sobre o chão, parecendo sequer tocá-lo.x Do

mesmo modo, o Palácio Ducal, com seus pilares e arcos sobrepostos, dá-nos a

impressão de levitar sob a pesada caixa sustentada, criando uma sensação de

instabilidade aos olhos do observador.xi

Se fora de São Marcos, tudo é movimento alucinado,

dentro da Basílica, a vida é movimento lento. Depois de a

vista se acostumar com a escuridão inicial para quem

adentra, percebe-se um silêncio assustador no interior do

templo, interrompido apenas quando raios de luzes, com a

intensidade de canhões de energia, despencam das

aberturas das cúpulas anunciando um ornato. Em

determinado instante, as luzes externas focam esse ornato

para logo em seguida escondê-lo na penumbra, surgindo outro em seu lugar, e assim

sucessivamente. Esse movimento, lento, segue o ritmo do caminhar da luz do sol.xii

Dessa qualidade estética, Ruskin extraiu dois

importantes conceitos para sua Teoria da Arquitetura: a Verdade das Estruturas e a

Verdade dos Materiais.xiii

Para Ruskin, o fenômeno estético é a qualidade de sentir o

espaço, mais precisamente, o fluxo das energias circulantes

no espaço. A estética arquitetônica seria o desenho dessas

energias a compor a edificação.xiv Para constituir o

conceito, Ruskin considerou o desenho dos elementos

estruturais que controlam esses fluxos, absorvem,

conduzem, redirecionam e transmitem energia, traçando

linhas de forças. A chuva, a neve, os ventos, o peso próprio

da construção, o peso das pessoas, enfim, as forças naturais

e artificiais materializam-se em desenhos de linhas de

forças.xv Ruskin pesquisou o desenho dessas linhas de forças para as construções em

pedra, definindo seus elementos estruturais: a fundação (base); a parede ou coluna; a

cornija ou o capitel; os arabescos; e os contrafortes.xvi Explicou o surgimento de colunas

para não engrossar as paredes sob maiores solicitações de pressões verticais: a coluna

seria a concentração da parede em um único ponto, assim como os capitéis derivados

das cornijas concentradas em um único ponto. Os arabescos seriam desenhos delicados,

transmissores de energias verticais e laterais, localizados geralmente nos vitrais ou no

interior de arcos. Os desenhos de arcos servem para receber as forças verticais e logo

direcioná-las às colunas que, por sua vez, conduzem essas forças à base, que as distribui

pelo chão. Os contrafortes são apoios para desviar as forças laterais.xvii São esses os

elementos estruturais das construções em pedra, desenhados para funcionar em

conjunto: um transmitindo a força recebida ao outro e assim sucessivamente, até a

energia tocar o chão e dissipar-se completamente. Ruskin chamou a atenção para o fato

de esses elementos não serem, de forma alguma, ornamentaisxviiie sim estruturais,

podendo ser decorados após a definição de sua forma; e que a criação da coluna, do arco

e do capitel, assim como da cornija, não servem a símbolos religiosos exclusivamente:

estão em igrejas como poderiam estar em qualquer outra edificação, na qualidade de

desenhos estruturais para a matéria pedra.xix Ruskin explicitou seu conceito de Verdade

das Estruturas pelo desenho da arquitetura gótica, na qual a “ossatura” da edificação se

expõe à visão do observador.xx O sistema estrutural é visto, sentido e compreendido,

justamente o que dá sentido a sua concepção de estética,xxi

[...] que em última instância, seria sentir a energia que ocorre pela diferença na justaposição de

forças. Essa diferença desloca o tempo por continuidade do desenho que se torna virtual e o

observador acompanha com os olhos e o corpo. Pode ser mais fina, veloz, elegante, mais densa,

forte ou ruidosa. Isso faz com que o espaço vazio, porém sensível, vibre. O usuário, habitante

comum, de sensível corpo, sente o entendimento dessas forças, sua visualização transformada em

Linguagem Arquitetônica. O observador/usuário navega nesse espaço, desvia de algo sem o

saber, já que inominável para ele é.xxii

Foi assim que para Ruskin, o desenho do gótico exemplificou sua noção de estética

arquitetônica, assim como sua Verdade das Estruturas.xxiii

E por que arquitetura? A arquitetura, para Ruskin,

faz parte da paisagem. Embora seja o desenho de

uma paisagem artificial, a arquitetura deverá compor

com os demais elementos da paisagem naturalxxiv

sem se opor, nem se sobrepor, e sim conviver em

harmonia com ela. A arquitetura, como a natureza, é

para ele um livro aberto à consulta e

experimentação.xxv Percebe-se aqui uma metafísica

por traz do raciocínio ruskiniano, a emergir de sua Filosofia da Natureza: uma

metafísica que entende a natureza como uma composição de elementos em movimento,

como se fizessem parte de uma grande máquina cujas peças funcionam de acordo com

certas leis (Leis da Natureza), em busca de um estado de harmonia e equilíbrio. Ora,

isso não seria Bacon? Newton? A diferença talvez esteja na ética dessa Natureza, que

para Ruskin é a Ética da ajuda mútua, e para Bacon e Newton, motivo de

conhecimento para dominar a Natureza. Ética que também difere da ética de Darwin,

que vê a Natureza pela dinâmica da competição entre seus elementos, vencida pelo mais

forte.

Assim como o espaço a seu redor, a

arquitetura é o resultado da

composição de desenhos de campos

energéticos. Dessa sua constatação,

Ruskin extraiu um método para o

projeto de arquitetura, um método

cuja intenção projetualxxvi seria

integrar as linhas de forças do entorno

às linhas de forças do projeto. Ruskin

recomenda ao arquiteto deitar sobre o

chão do lote para sentir suas energias

e em seguida, desenhar as linhas de forças de seu projeto em consonância com as do

lote e seu entorno. Ele queria, com isso, desenhar um campo de forças em estado de

harmonia, ou seja, todas as energias atuando em comunhão, conectadas: a Ética da ajuda

mútua.xxvii

Outro conceito ruskiniano é o da Verdade dos Materiais,xxviiique, além de se referir às

questões de resistência dos materiais, possui estreita relação com a noção de tempo.xxix

O conceito de Verdade dos Materiais diz respeito às particularidades idiossincráticas de

cada material. Quando Ruskin se refere a uma pedra de mármore, por exemplo, indaga

sobre sua constituição geológica, origem geográfica, quanto trabalho foi necessário para

extraí-la e quanto trabalho para modificá-la, quem foi responsável por esses trabalhos e

quais as técnicas utilizadas. Ruskin evoca e resgata um passado para o presente. Ele

acredita que não existe espaço sem história, não existe espaço sem tempo.xxx Quando o

tempo é apagado, o presente se ressente, perde-se de seu vinculo com o futuro. Passa-se,

então, a vivenciar apenas um agora sem passado e por isso, sem futuro, restringindo-se

às experiências de superfícies sem profundidades. Para Ruskin, isso empobrece a vida,

desqualifica-a. Eis a razão porque Ruskin foi contrário à demolição de edifícios antigos,

o que, segundo ele, seria um passar de borracha sobre a história. Do mesmo modo que o

escritor francês Marcel Proust (seu admirador) reconheceu, no mundo dos objetos

externos a nós, o local onde se encontra nossa memória, Ruskin também refletiu sobre

nossa relação histórica com a arquitetura. O tempo, para ele, é o movimento entre

passado, presente e futuro, fluxo de energias que não se deve interromper.xxxi Ruskin

acreditou não ser possível, nem desejável parar o tempo, porque significaria “a própria

morte”. Segundo ele, a energia da mente humana se alimenta de tempos.

No que diz respeito à restauração de edifícios

antigos,xxxiiRuskin primeiramente recomenda

um processo de constante manutenção, para

nunca ser preciso restaurar. Se a construção

estiver comprometida, ele considera preferível

a demolição para, em seguida, a construção de

um projeto inteiramente novo. Caso seja

necessário promover algumas alterações na

configuração original da edificação buscando

aparentar algo novo, nunca se deve imitar o desenho original, e é nessa perspectiva que

se encontra sua crítica ao arquiteto francês Viollet-le-Duc por ter participado da

demolição das duas torres de St. Oven, França, substituindo-as por cópias das

originais.xxxiii

Ruskin estudou o Dictionnaire Raisonné de l´Architecture Française du Siècle XI au

XVI, de Viollet-le-Duc, e registrou anotações e comentários em suas páginas. Le-Duc

utilizou, para desenhar, a linguagem técnica apoiada na régua, compasso, esquadro,

representada em desenhos de plantas, fachadas, cortes e perspectivas. Uma linguagem

bastante diferente dos desenhos de Ruskin, feitos a mão livre e com o objetivo de

apenas explicitar os detalhes que lhe interessavam no momento, muitas vezes coloridos

com tons fortes de aquarela. A dureza dos desenhos de Le-Duc fez com que Ruskin,

várias vezes, os pintasse de cor-de-rosa, azul, amarelo, provavelmente com a intenção

de imprimir um pouco de vida à frieza do desenho técnico ilustrativo do Dictionnaire.

Embora tenham discordâncias sobre o método, os

dois arquitetos tratam do mesmo assunto – a

arquitetura gótica – e tanto Ruskin quanto Viollet-

le-Duc trabalham com os mesmos conceitos de

Verdade dos Materiais e Verdade das Estruturas.

[…] Os escritórios de arquitetura possuem hoje a seu dispor

muitas possibilidades técnicas inovadoras, mas quando são

chamados a atuar não as utilizam, criando sempre o já visto

[...] Nossos edifícios públicos parecem não ter alma,

reproduzem relíquias do passado, expressam uma linguagem

incompreensível para os dias atuais [...] O século XIX não

possui uma arquitetura própria [...] Por que isso acontece?

Será que falta um método? Hoje temos que considerar duas

verdades para a arquitetura: o Programa Arquitetônico e as

Técnicas Construtivas. O programa diz respeito à função do edifício, e as técnicas construtivas se

referem ao uso correto do material empregado conforme suas qualidades e propriedades de

resistência […] A arquitetura da Índia utilizou a pedra seguindo o desenho estrutural da madeira,

assim também fizeram os Gregos e os Egípcios. Utilizaram desenhos estruturais emprestados de

outros materiais. Temos que respeitá-los, mas repetir isso hoje é ridículo [...] Por outro lado,

temos o exemplo da arquitetura da Idade Média, o gótico, que inventou desenhos próprios para a

matéria pedra respeitando as suas propriedades de resistência, construindo situações de

equilíbrio. Essa experiência deveria continuar nos dias atuais, não podemos abandoná-la, temos

de partir daí. Temos que utilizar os exemplos do passado que possam servir para as novas

possibilidades tecnológicas do presente [...] É de fundamental importância termos um método

capaz de levar essa experiência adiante e esse método é o de Descartes.xxxiv

De modo parecido, Viollet-le-Duc e Ruskin buscam definir uma arquitetura para o

século XIX com base na Verdade dos Materiais e na Verdade das Estruturas. O que os

diferencia é o método. Le-Duc utilizou o método cartesiano, no qual o desenho

arquitetônico é a síntese cartesiana entre as técnicas construtivas e o programa

arquitetônico; e Ruskin, o método extraído de sua Filosofia da Natureza, visto

anteriormente.

A metodologia ruskiniana, diferentemente da cartesiana, agrega variados assuntos para

tratar de um único. Dessa forma, Ruskin, ao falar de arquitetura, abordou suas relações

de trabalho.

Antes de considerar sua noção de trabalho, seria oportuno tratar de outro assunto para

em seguida retornar a esse teórico da arquitetura, bastante criticado pelos pensadores de

sua época por seu caráter religioso, e compreendê-lo como um defensor dos princípios

da Idade Média. Ruskin atribuiu a criação da Natureza a um deus, e desde sempre, sabe-

se que foi educado segundo os princípios da religião Protestante. Contudo, em

determinado momento de sua vida, ele perdeu a crença em toda e qualquer religião,

passando a depositar sua fé única e exclusivamente no trabalho.xxxv Revoltou-se contra o

cristianismo depois de admitir a possibilidade da existência do paraíso na vida e não

apenas no post mortem.xxxvi Ruskin não aceitava as injustiças sociais, muito menos

entendia o sofrimento humano como motivo de orgulho e humildade.xxxvii Sua Filosofia

da Natureza enxergou um mundo em harmonia, e assim, um possível paraíso na Terra, a

ser construído pelo trabalho do homem.

Ruskin jamais se utilizou da arquitetura gótica para exaltar o modo de produção

artesanal do passado. Ele se apropriou do gótico, assim como da história de Veneza,

para ilustrar o que imaginou ser possível no futuro. Mesmo porque é duvidoso que as

relações no trabalho ilustradas por ele tenham de fato ocorrido. Ele criticou o

presentexxxviiivoltando-se ao passado, como tantos outros o fizeram, embora um passado

idealizado e não necessariamente realizado, para logo propor um futuroxxxix diferente do

presente.

Foi nesse sentido que William Morris, aluno e seguidor de

Ruskin, em seu prefácio para A Natureza do Gótico, capítulo de As Pedras de Veneza,

publicado pela Kelmscott House (editora de Morris) em 1892, celebrou esta como uma

das maiores obras já publicadas naqueles tempos, indicadora de um futuro para o

trabalho com prazer. Morris, nesse prefácio, defendeu o avanço tecnológico e previu

um futuro no qual a máquina dispensaria o homem dos trabalhos mecânicos.xl

Para Ruskin, o trabalho feito com prazer é o trabalho no qual o homem se envolve por

completo, de corpo e alma, e nesse sentido ele criticou a moderna divisão do trabalho

entre quem pensa e quem faz:

A humanidade vem aperfeiçoando a divisão do trabalho, no entanto tem dado a ela um nome

falso, pois não foi o trabalho apenas que foi dividido, mas o homem foi dividido em segmentos de

homem, quebrado em fragmentos de vida, exigindo que sua inteligência realize trabalhos

repetitivos sem o menor interesse.xli

A divisão das artes em arte liberal e arte mecânica foi severamente criticada por Ruskin.

Para ele, quem faz deve pensar e quem pensa deve fazer. E àqueles que o acusavam de

ser contra as máquinas e a favor da volta ao modo de produção da Idade Média,

respondeu que o trabalho com prazer nunca foi sinônimo de trabalho manual:

[…] considere o grande número de homens que trabalham na produção de joias. Existe muita

destreza de mão, muita paciência, mas nenhum prazer, nenhuma criatividade apesar de ser feito

com as mãos.xlii

Hoje em dia separamos quem pensa de quem faz, e chamamos quem pensa de cavalheiro e quem

faz de operário; no meu entender, quem pensa deveria também fazer e quem faz deveria também

pensar, e todos deveriam ser chamados de cavalheiro.xliii

O trabalho é, para Ruskin, a atividade mais importante do homem. Pensando assim, ele

criticou a burguesia industrial de seu tempo por não trabalhar e viver às custas da

exploração do trabalho da classe operária, o que considerou um roubo, pelo que

qualificou a burguesia de ladra.xliv

Ruskin buscou no passado o modo gótico de trabalhar, um modo idealizado por ele para

se adequar à ética de sua Filosofia da Natureza. Ele propôs o trabalho com prazer por

entender ser este o trabalho criativo de excelência, e segundo sua concepção, o resultado

do processo de trabalho com prazer, criativo portanto, vê-se materializado na arquitetura

de Veneza: o gótico veneziano se adequa aos princípios de sua Filosofia da Natureza,

sendo propício para representar a noção de estética e de trabalho feitos com prazer.

A essa sua noção de trabalho com prazer, Ruskin associou a necessidade de haver

relações sociais e econômicas propícias, e identificou essa situação no inicio da historia

de Veneza e nascedouro do gótico veneziano. Assim como ele idealizou as relações de

trabalho no passado, provavelmente foi também uma idealização sua a sociedade do

bem-estar-social vista por ele em Veneza.xlv Contudo, isso não era o mais importante

para Ruskin, que propunha uma concepção de futuro e não uma história para diletantes.

Ruskin inventou um passado para criticar o presente e propor um futuro. É possível

supor que os desenhos que vislumbrou na arquitetura de pedra, desenhos de linhas de

forças, poderiam ser repensados para outros tipos de materiais. Entendeu que o trabalho

criativo devesse ser regido pela imaginação, pela fantasia, inventando aquilo que nunca

existiu. Da mesma forma que os desenhos estruturais da matéria pedra foram traçados

para a base, coluna, capitel, arabesco, cornija e contraforte, poder-se-ia imaginar outros

desenhos para outros materiais, desde que respeitassem a Verdade das Estruturas e a

Verdade dos Materiais. Para Ruskin, cada edifício é único em seu desenho. Não existe

um único edifício gótico igual a outro, dizia ele. Apesar da existência de uma metafísica

no pensamento ruskiniano, ela passa necessariamente pelo crivo imaginativo do

artista.xlvi E por artista, Ruskin entende todo trabalhador entregue por inteiro a seu

trabalho,xlvii executando-o com prazer.

Sua critica à arquitetura do Renascimento (de não expor seu desenho estrutural à visão

do observador, de dividir o pensar do fazer),xlviii na verdade, foi uma crítica dirigida

principalmente aos arquitetos de seu tempo, que, segundo ele, trabalhavam à maneira

renascentista – em que o arquiteto pensa e o pedreiro faz –, além de os desenhos de seus

contemporâneos serem imitações de desenhos já vistos (neogótico, neorrenascimento

etc.), sem imaginação. Uma mera repetição.xlix

Há de se considerar que a arquitetura do Renascimento se fundamentou em uma

filosofia da Natureza oriunda da Grécia Antiga, por princípio constituída e traduzida em

medidas e números. Trata-se, portanto, de uma visão diferente da filosofia da Natureza

de Ruskin.

Além de uma metodologia para a arquitetura, Ruskin propôs um modo particular de

relacionamento no processo produtivo da arquitetura, no qual se insere o Arquiteto

participativo.l Diferentemente do pensamento renascentista (que separa o pensar do

fazer), no modelo de produção arquitetônica preconizado por Ruskin, o arquiteto

convoca todos os participantes do processo produtivo para redesenharem suas primeiras

idéias, seus primeiros croquis. Essa participação de pedreiros, azulejistas, eletricistas,

engenheiros e demais envolvidos possibilita uma criação coletiva que, segundo Ruskin,

é também educativa: permite a troca de experiências e de saberes, engrandece o

conhecimento de cada um e atribui maior qualidade ao trabalho conjunto final. Isso não

quer dizer que o arquiteto seja dispensável e sim que coordene um processo de produção

coletiva, pensado coletivamente. Esse tipo de arquiteto se encaixa perfeitamente nos

princípios da Ética da ajuda mútua, da Filosofia da Natureza ruskiniana.

É certo que Ruskin “remava contra a maré” ao provocar a ira dos arquitetos ingleses,

que o ridicularizaram por não ser arquiteto e ainda assim, criticar a arquitetura vitoriana

e criar uma metodologia própria:

Ruskin comenta uma crítica feita a seu livro The Seven Lamps of Architecture: O Sr. Ruskin pensa

que São Marcos é bela, nós arquitetos a achamos horrorosa.li

Os arquitetos modernos foram extremante influenciados pelo livro de James Fergusson, “A

História dos Estilos Modernos na Arquitetura”, e comemoraram o estilo “gótico revival” na

reforma do Parlamento Inglês iniciada em 1840. O “gótico revival” foi também muito divulgado

pelos escritos de Pugin [...]lii

Em um jornal de arquitetura, o arquiteto e botânico de nome Wood comentou cartas de arquitetos

franceses, italianos e gregos se posicionando contra a arquitetura de São Marcos em Veneza,

“nunca viram uma arquitetura tão feia”, e acrescenta, “se alguns defendem a irregularidade de

suas formas, eles (os arquitetos), por sua vez, eram da opinião de que toda arquitetura necessita

de princípios rígidos de regularidade”.liii

Nem todos os arquitetos do século XIX o hostilizaram. Em 1873, o nome de Ruskin foi

indicado para receber a Real Medalha de Ouro do RIBA (Instituto dos Arquitetos

Britânicos). Porém, Ruskin recusou a homenagem, justificando sua atitude por não

reconhecer a legitimidade do RIBA para tratar de arquitetura...liv

Do mesmo modo que Ruskin contou com o respeito de alguns arquitetos no século XIX,

outros do século XX como, por exemplo, Frank Llyod Wright e Le Corbusier, sofreram

sua influência.

Em The Arts and Crafts of the Machine,lv Frank Lloyd Wright propôs o abandono dos

estilos históricos com base na defesa dos conceitos ruskinianos de Verdade das

Estruturas e Verdade dos Materiais, assim como do trabalho feito com prazer. Wright

pretendia, com isso, transformar as relações no trabalho fabril, qualificado por ele de

trabalho escravo, em relações que permitissem o trabalho criativo, e propunha

revolucionar a concepção plástica dos produtos industriais adequando-os às novas

possibilidades construtivas e de materiais, de acordo com a Verdade dos Materiais,

estendendo esta sua crítica à arquitetura. Aparentemente, Frank Lloyd Wright deu o

passo adiante na proposta ruskiniana, atualizando o futuro proposto por Ruskin.

A influência ruskiniana em Le Corbusier tem sido objeto de estudo de Jan Kenneth

Birksted,lvi Paul Turnerlvii e Russell Walden.lviii Todos eles concordam que o suíço

sofreu a influência de Ruskin durante sua formação artística em La Chaux-de-Fonds,

graças ao professor L´Eplattenier, que declamava Ruskin em sala de aula, mais

precisamente, sua obra As Pedras de Veneza.

Jan Kenneth enxergou essa influência na tradição maçônica das relações de trabalho em

La Chaux-de-Fonds, que se aproximam da Ética da ajuda mutua de Ruskin,

especialmente nos aspectos de fraternidade e companheirismo durante o trabalho.

Kenneth relacionou esses aspectos à concepção corbusiana de Promenade architectural

e sua proposta de espaços integrados, como por exemplo, o interno com o externo, o

edifício com a paisagem, a arquitetura com o urbanismo, semelhante à proposta

ruskiniana de integrar a arquitetura na paisagem natural, uma a ajudar a outra em sua

existência.

Paul Turner enxerga a influência ruskiniana em Le Corbusier apenas no início da

formação artística, que não mais incide no trabalho do arquiteto suíço após sua partida

para Paris, quando teria ido trabalhar no escritório de August Perret.

Diferentemente dessas duas visões, Russell Walden entendeu o processo criativo de Le

Corbusier mais complexo, e até contraditório, ao utilizar várias teorias

concomitantemente, mesmo sendo uma hostil à outra, no sentido de um raciocínio

arquitetural dialético. Se por um lado, em sua formação inicial, Le Corbusier partiu de

princípios românticos, atribuídos à influência de L´Eplattenier, por outro lado, com

August Perret em Paris, ele sofreu a influência do racionalismo francês. Para Walden,

Le Corbusier não descartou qualquer dessas influências; ao contrário, trabalhou sobre o

choque do encontro entre elas. E seria nessa dinâmica contraditória, ainda segundo

Walden, que se encontra o poder e a qualidade estética da arquitetura de Le Corbusier.

Foi dito que L´Eplattenier apresentou o trabalho de Ruskin a Le Corbusier, do mesmo

modo que August Perret lhe apresentou Viollet-le-Duc. Le Corbusier também se

inspirou no pensamento e nas obras de Friedrich Nietzsche, Ernest Renans e Henri

Provensal, entre outros. Walden constatou que Provensal abriu a visão de Corbusier às

possibilidades das formas puras cúbicas antes mesmo de o movimento Cubista surgir.

Embora Walden encontre divergências entre Ruskin e Le-Duc, ambos utilizam as

concepções da Verdade das estruturas e da Verdade dos materiais, assumidas por Le

Corbusier. O fato de a metodologia ruskiniana agregar vários assuntos para tratar de um,

Walden entendeu ser mais presente no pensamento e trabalho corbusiano do que o

raciocínio cartesiano de Le-Duc.

Segundo Walden, a obra de Corbusier que mais se aproximou do pensamento

ruskiniano foi o monumento da Mão Aberta projetado para Chandigarh, na Índia. Le

Corbusier entendeu ser esse monumento o símbolo de um segundo momento da

civilização maquinista, quando finalmente a harmonia houvesse chegado. Ele viu a

Índia como um país que, por não haver passado pelos primeiros – e mais desafiadores –

momentos da Revolução Industrial e, portanto, entraria na era da industrialização em

sua segunda fase, quando os erros iniciais cometidos já estariam dissipados. Ao abordar

a Mão Aberta, Le Corbusier relacionou vários assuntos, como arquitetura, urbanismo e

escultura; e a ética, para afirmar que a Mão Aberta é a expressão da filosofia e do

urbanismo modernos:

La main ouverte est um geste plastique chargé de contenu profondément humain. Um symbol bien

approprié à la nouvelle situation d´une terre liberée independante. Un geste qui appelle à la

collaboration du monde. Aussi un geste sculptural et plastique capable d´attraper le ciel et

d´engager la terre.lix

A Mão Aberta anunciou um novo momento para a civilização maquinista, quando a

humanidade faria as pazes com a Natureza. Porém, da maneira como Walden entendeu

a produção de Le Corbusier, tudo no arquiteto é dúbio: a Mão Aberta, por exemplo,

também se parece a um pássaro.

Voltando a Ruskin, o fato de não ser arquiteto e, no

entanto, criar uma metodologia para a arquitetura,

despertou a antipatia de muitos arquitetos de sua

época. E como se isso não bastasse, Ruskin conclamou

todos a se revoltarem contra a arquitetura de então,

segundo ele um bem público sobre o qual todos teriam

o direito de opinar e não apenas os especialistas.lx

É mister lembrar que os escritos de Ruskin nunca foram dirigidos a especialistas.lxi Sua

obra, de fácil leitura, é dedicada ao cidadão comum, apoiada em poucos termos técnicos

(quando aparecem, são explicados à exaustão). Seus textos são conduzidos a partir de

uma conversa com seu leitor, durante a qual ele expõe e revê suas opiniões. Por

exemplo, em As Sete Lâmpadas da Arquitetura,lxii Ruskin defende “a arquitetura ser

submissa à pintura e à escultura”, e em The Stones of Venice, vol. 3, muda de opinião

ao dizer que “a arquitetura é a maior das artes.”lxiii Seu discurso é enérgico, tem

movimento, respira, mostra vida. Quando ele trata do desenho das nuvens, por exemplo,

admite não ter conhecimentos científicos para entender o fenômeno, deixando o assunto

em aberto.lxiv

A obra ruskiniana é, na verdade, uma só. Inicia com os quatro volumes de Modern

Painters, nos quais apresenta sua Filosofia da Natureza para tratar da pintura de Joseph

Turner. Sente necessidade de aprofundar a questão estética via arquitetura e escreve The

Seven Lamps of Architecture, considerado por ele a introdução de The Stones of Venice

(três volumes),lxv que por sua vez serviu de introdução a Modern Painters (quinto e

último volume).lxvi Destes trabalhos, surgiram livros paralelos, muitos deles transcrições

de palestras: The King of the Golden Cross; Lectures on Art; The Elements of Drawing;

Ethics of Dust; The Storm of the Nineteenth Century; Unto this Last; The Poetry of

Architectures; Sesame and Lillies; Love´s Meinie; The Queen of the Art; Our Fathers

Have Told Us; e outras publicações.

Ruskin acreditou que a obra de Joseph Turner fosse também uma só. No fim da vida, o

pintor pediu a Ruskin que nunca separasse seus quadros, para que fossem vistos em seu

conjunto, como um todo.lxvii Toda a produção ruskiniana teve por mérito divulgar certa

Filosofia da Natureza juntamente com sua noção de estética, ou seja, como se sente essa

ética no espaço.

O trabalho de Ruskin aconteceu como se tratasse de uma pesquisa em desenvolvimento,

agregando diferentes áreas do conhecimento à medida que evoluía. Sua principal área

de questionamento, entretanto, sempre foi a Estética, foi sobre esse terreno que Ruskin

comentou, por exemplo, a pintura holandesa:

[...] no quadro existe o músico, os dançarinos, a caça, navios, a pesca, o banho de praia, crianças

brincando, água, arquitetura, céu, montanhas, árvores, nuvens. Tudo indica um paraíso, no

entanto nada se relaciona com nada, tudo está solto e isolado, uma sensação de quietude

opressiva. As dançarinas não se interessam pelos caçadores, os pais não se interessam pelas

crianças, ninguém percebe a existência do céu, os banhistas não entram na água [...] Pergunto-

me, será que esse pintor nunca soube o significado da palavra prazer? A pintura, apesar de ter

uma série de possibilidades, é a expressão da morte, não tem vida.lxviii

Em oposição a esse tipo de concepção e composição, o que seria para ele a expressão da

morte, Ruskin sugere a estrutura compositiva da pintura de Joseph Turner, resultado da

interpenetração de todos os elementos desenhados. Turner, diferentemente de Giorgione

– pintor italiano citado no texto que introduz este artigo, vindo da cidade de mármore –,

nasceu na Inglaterra vitoriana dos primeiros anos da Revolução Industrial e suas

desigualdades sociais, condições subumanas de existência para os trabalhadores,

cidades separando ricos de pobres, que viviam como porcos, onde campos haviam sido

destruídos e tudo fora coberto por uma espessa nuvem preta de fumaça, soprada pelas

chaminés das fábricas. Turner, segundo Ruskin, veio das profundezas do inferno,

enquanto Giorgione veio do céu.

As telas de Turner ilustravam a própria concepção do artista, da composição natural

cuja ética afirma não existir na natureza um único elemento a sós. Todos têm a

necessidade de se ajudar mutuamente, para que a existência individual se realize.

Ruskin entendeu que a produção poética não necessitaria de condições ideais para

acontecer. Para ele, artistas como Shakespeare, Tintoreto, Veronese, Corregio, Turner,

Miguel Ângelo, Rubens, possuíam certo instinto de ímpeto animal, instinto este

diferente do que havia imaginado em suas análises anteriores, nas quais dizia ser

necessário reunir caráter, integridade, pureza e tranquilidade para se fazer arte. Ruskin

percebeu que esse lado “animal”, cuja força lateja e extrapola os limites do

convencional, destruindo preconceitos, era o que de fato alimentava a criatividade do

artista, assim como a fogueira que se consome ao queimar. E associado a isso ele

entendeu, também, não serem necessárias condições ideais para surgir a arte, a qual,

muitas vezes, nasce do lixo e do caos – caso de Turner –, fazendo emergir do inesperado

a ordem, a beleza e a esperança.

[...] vindo de uma vida não tão

afortunada, numa tarde de verão, depois

de se perder pelas estradas do Norte, se

viu sozinho sentado numa paisagem das

montanhas de Yorkshire. Pela primeira

vez na vida sentiu o silêncio da natureza

que surgiu como se fosse uma sentença

de liberdade, uma sensação gloriosa

tomou conta de seu corpo possuindo-o.

Paz.

Enfim, nenhuma opressão, mas apenas o

frescor de um estranhamento que mais parecia um prazer. Liberdade afinal, pensou. Paredes

mortas, trilhos sombrios, campos cercados, jardins confinados, tudo isso se dissipou como num

sonho de prisioneiro. Enfim encontrou nesse vale deserto, e não entre os homens de rostos

pálidos, expressões cruéis, a consciência de que poderia se libertar do sofrimento humano e se

dissolver nas nuvens e viver.lxix

Foi isso que Ruskin viu na pintura de Turner, cuja história se desenrolou na escuridão

da Revolução Industrial, à margem de qualquer tipo de privilégio e, no entanto,

produziu luz, cores, vida, energia e poesia para anunciar a possibilidade de futuros

melhores.

Notas

i Tradução livre de Castelfranco, The Stones of Venice vol. 3, p. 212, 1886.

ii The Seven Lamps of Architecture, p. 190.

Ruskin condenou as cidades industriais, como por exemplo, Manchester, pela sua feiura expressa pela pobreza das habitações da classe operária. Contemporâneo a Engels, que expressou o seu repúdio através de

sua obra “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra.” Ruskin, do mesmo jeito repudiou Manchester.

iii The Seven Lamps of Architecture, p. 204.

iv Modern Painters, vol. 5, p. 204.

v Modern Painters, vol. 5, p. 203, 207.

vi The Stones of Venice, vol. 2, p. 24, Library Edition.

vii The Stones of Venice, p. 38, Primeira Edição; p. 242, Library Edition.

viii The Stones of Venice, vol. 2, p. 64, Library Edition.

ix The Stones of Venice, vol. 2, p. 330, Library Edition.

x The Stones of Venice, vol. 2, p. 65, Library Edition.

xi The Stones of Venice, vol. 2, p. 279, Library Edition.

xii Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 2, 1886, p. 64.

xiii Ruskin, J. The Seven Lamps of Architecture, 1890, p. 51, p. 226 e p. 269, Library Edition.

xiv The Stones of Venice, p. 183, p. 369, Library Edition.

xv The Seven Lamps of Architecture, p. 190.

xvi The Stones of Venice, vol. 2, p. 51, Library Edition.

Niemeyer, O., “A leveza arquitetural como vocês veem, até os antigos a procuravam... A melhor lição de arquitetura que conheço é o belíssimo Palácio dos Doges em Veneza. Com suas colunas cheias de ornatos, contrastando com a parede lisa que suportam, ele nos ensina e prova que toda forma capaz de criar beleza tem na própria beleza sua principal função. (Niemeyer, O., Arte no Brasil; São Paulo: Nova Cultural, 1982, p. 23-24).

xvii The Seven Lamps of Architecture, p. 61.

xviii The Stones Of Venice, vol. 1, Primeira Edição, p. 146.

xix Ruskin, J. The Stones of Venice, vol. 1, Primeira Edição, p. 167, e vol. 2, p. 114, Library Edition.

xx The Stones of Venice, vol. 1, Primeira Edição, p. 94.

xxi The Seven Lamps of Architecture, p. 61.

xxii Composição de Sidney Tamai.

xxiii The Stones of Venice, vol. 1, p. 120, Library Edition.

xxiv The Seven Lamps of Architecture, p. 106; The Stones of Venice, vol. 1, p. 343, Library Edition.

“Uma obra arquitetônica alastra-se de dupla maneira para além de si mesma. É determinada tanto pelo fim a que deve servir como pelo lugar que tem de ocupar no todo de uma conjuntura espacial.” (Gadamar, Hans-George.)

xxv The Stones of Venice, vol. 2, p. 269, Library Edition.

xxvi The Seven Lamps of Architecture, p. 48 e p. 236.

xxvii The Seven Lamps of Architecture, p. 155.

xxviii The Seven Lamps of Architecture, p. 77.

xxix The Seven Lamps of Architecture, p. 224.

xxx The Seven Lamps of Architecture, p. 234.

xxxi The Stones of Venice, vol. 2, p. 39, Library Edition.

xxxii The Seven Lamps of Architecture, p. 248.

xxxiii The Seven Lamps of Architecture, Rodapé p. 244.

xxxiv Viollet-le-Duc, Lectures on Architecture. Nova Iorque: Dover Publication, INC., p. 448, 449, 450, 1987.

xxxv Modern Painters, vol. 5, p. xli.

xxxvi Modern Painters, vol. 5, p. 267.

xxxvii Modern Painters, vol. 5, p. 353.

xxxviii The Seven Lampas of Architecture, p. 25; e The Stones of Venice, vol. 2, p. 235, Library Edition.

xxxix The Stones of Venice, vol. 3, p. 197, Edição 1886.

xl The Stones of Venice, vol. 2, Appendix, p. 462, Library Edition.

Morris, W., “Como me tornei um socialista” em Artes Menores, São Paulo: edt. Antigom.

xli The Stones of Venice, vol. 2, p. 196, Library Edition.

xlii The Seven Lamps of Architecture, p. 265.

xliii The Stones of Venice, vol. 2, p. 201, Library Edition.

xliv Modern Painters, vol. 5, p. 353.

xlv The Stones of Venice, vol. 1, p. lviii, Library Edition.

xlvi The Stones of Venice, vol. 2, p. 199, Library Edition.

xlvii The Stones of Venice, vol. 3, p. 204.

xlviii The Stones of Venice, vol. 3, p. 201.

xlix The Seven Lamps of Architecture, p. 252.

l The Stones of Venice, vol. 2, p. 202, Library Edition.

li The Stones of Venice, vol. 1, p. 32.

lii The Seven Lamps of Architecture, p. 197.

liii The Seven Lamps of Architecture, p. 206.

liv Harris, J., RIBA Journal, n. 70, abril de 1963.

lv Wright, F., L., The Arts and Crafts of the Machine, http:/www.jstor.org/stable/25505640, Brush and Pencil, Vo. 8, n. 2, (May, 1901), p. 77-81, 83-85, 87-90.

lvi Birksted, J., K., Beyond the cliché of the books: Le Corbusier´s Architectural Promenade, Londres: The Journal of Architecture, vo. 2, n. 1, The Bartlett School of Architecture, University of College London.

lvii Turner, P., The beginnings of Le Corbusier´s Education, 1902-07, The Bulletin, vo. 53, n. 2 (Jun., 1971), p. 214-224, Published by College Art Association, http:/www.jstor.org/stable/3048831.

lviii Walden, R., The Open Hand, essays on Le Corbusier, Cambridge: MIT Press, 1977.

lix Walden, R. The Open Hand, essays on Le Corbusier, Cambridge: MIT Press, p. 75, 1977.

lx The Stones of Venice, vol. 1, p. Xi, Library Edition.

lxi The Stones of Venice, vol. 1, p. Xi, Library Edition.

lxii The Seven Lamps of Architecture, p. 11.

lxiii The Stones of Venice, vol. 3, p. 226, Library Edition.

lxiv Modern Painters, vol. 5, p. 151.

lxv The Seven Lamps of Architecture, p. 11.

lxvi The Stones of Venice, vol. 1, p. xlvii.

lxvii Modern Painters, vol. 5, p. 434.

lxviii Modern Painters, vol. 5, p. 366.

lxix Tradução livre, Modern Painters V, p. 388, Library Edition.

Referências

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Ilustrações

1 Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 2, Windows of the Third and Fourth orders: the Casa Sagredo,

Londres: George Allen, p.298, 1904.

2 Foto do autor, Cúpula de São Marcos, Veneza, 2013.

3 Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 2, Londres: George Allen, p. 331, 1904.

4 Bunney, J. W., oil painting in The Stones of Venice, vol. 2, Londres: George Allen, p. 82, 1904.

5 Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 2, Londres: George Allen, p. 300, 1904.

6 Foto do autor, “ossatura” de uma igreja gótica em Paris, 2013.

7 Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 2, Londres: George Allen, p. 58, 1904.

8 Ruskin, J. The Stones of Venice, vol. 1, Londres: George Allen, p. 390, 1903.

9 Ruskin rabiscando sobre o livro de Viollet-le-Duc.

10 Le Corbusier, a Mão Aberta, em Walden R., The Open Hand, essays on Le Corbusier, Cambridge: MITT

Press, p. 76, 1977.

11 Ruskin colorindo o livro de Viollet-le-Duc.

12 Ruskin, J., The Stones of Venice, vol. 1, Londres: George Allen, p. 376, 1903.

13 Ruskin, J, Wall Veil Decoration, comparação entre o renascimento e o romanesco. The Stones of Venice,

vol. 1, Londres: George Allen, p. 348, 1903.

14 Turner, J., S. Giorgio, 1840, in Turners Venice, Stainton, L., Londres: British Museum Pubication Limited,

p.62, 1985.

15 Turner, J., Procession of Boats with distant Smoke, Venice, in Turners Venice, Stainton, L., Londres:

British Museum Limited, p. 92, 1985.

Revisão

Ermenegyldo Munhoz Junior

Agradecimentos

à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp

à Universidade Estadual Paulista – Unesp

e

à Ruskin Library and Research Centre/Lancaster University