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O desenho das energias, John Ruskin e as Pedras de Veneza
Claudio Amaral - 3/2013
1
Nascido na metade do caminho entre as montanhas e o mar, aquele menino Jorge de
Castelfranco, do bravo castelo, o chamavam de robusto Jorge, o Jorge dos Jorges, um bom rapaz,
Giorgione. Voc alguma vez pensou qual mundo o seu olhar curioso, cheio de vida, olhar de
criana viu? Um mundo com a vitalidade das montanhas, das razes do mar, de vidas
esplendorosa, quando ele chegou to jovem cidade de mrmore para se tornar ele mesmo.
Cidade de mrmore, disse isso? No... mais uma cidade dourada pavimentada de esmeraldas,
pois, verdadeiramente, cada pinculo, cada torre, se ergue coberto de ouro. Abaixo sem mcula o
mar em pesados respiros de ondas verdes. Majestosos, terrveis como os mares, os homens de
Veneza se movimentam na oscilao do poder e das guerras, puros como os pilares de alabastro,
me desfilando sua nobreza, provedora de foras, de possibilidades, com seus panos vermelho
sangue, com seus medos, seus receios, sua pacincia, um estado de f implacvel, com honras e
esperanas embaladas pelo movimento das ondas que cercam seus sagrados bancos de areia. Um
espao privilegiado no mundo, um mundo em si. Deitada sobre as guas nem to grande, seus
capites a viam por entre as brumas ao entardecer penetrado por espessos raios solares como se
fossem slidos, cuja fora era sentida como embriaguez, como se estivessem navegando num
paraso; um lugar onde todo mal havia sido banido pela dinmica de uma vida simples. Nada de
ruim, nenhum tumulto naquelas estreitas ruas iluminadas pelo luar, com msica pulsando, se
alterando, silenciando. Nenhum muro poderia cerc-la, nenhum telhado cobri-la, apenas a fora
das pedras coloridas e preciosas. E ao redor, at onde o olhar avista o doce movimento das
guas, numa pureza cheia de orgulho, como flores espalhadas pelos campos, o etreo dos Alpes,
como num sonho, desaparece por trs das costas de Torcello. Acima, ventos livres, nuvens
selvagens, o brilho do Norte e o balsamo do Sul, as estrelas ao entardecer amanhecem por entre
as luzes por detrs dos arcos do paraso e do mar revolto.i
Por que ser que John Ruskin se apaixonou por Veneza? Provavelmente porque Veneza
ilustrasse, como nenhuma outra, sua Teoria da Arquitetura, assim como sua Teoria da
Pintura e, principalmente, sua Filosofia da Natureza. Veneza movimento, energia,
exploso de cores. Veneza o pulsar de vidas e a Teoria da Arquitetura de Ruskin trata
do desenho das energias.ii Ruskin j havia sentido essa atmosfera na pintura de Joseph
Turner,iii em que as cores da paisagem se interpenetram criando a sensao da existncia
de um todo em estado de harmonia. Turner pintou a atmosfera de paisagens naturais.
Ruskin pintou a atmosfera de Veneza, uma composio do azul do cu com o branco
das nuvens, surpreendente a cada hora, com as luzes coloridas difusas entre as brumas,
o amarelo-avermelhado pelos raios solares e o verde das guas da lagoa, com sua
arquitetura que parece flutuar, com o colorido dos mrmores e o frescor dos terraos
esculpidos por pilares e arcos gticos, com o movimento apressado das pessoas e o
nervosismo das guas agitadas pelo intenso trfico de barcos e os ventos selvagens.
Ruskin misturou essas sensaes e pintou a energia, uma sensao de embriaguez que o
fez devanear, uma tontura que o levou ao xtase. Sensaes parecidas s que havia
sentido ao admirar as paisagens dos Alpes suos, uma mistura de montanhas, lagos,
cus, nuvens que nunca descansam, arvores frondosas e animais na tranquilidade dos
pastos, movimentando-se e misturando-se ao desenho de um todo em estado de
equilbrio instvel.iv
Ruskin buscou a explicao para o que sentiu com a Filosofia da Natureza. Essa
filosofia teria por princpio uma tica na qual tudo se relaciona com tudo, todos a viver
em estado de harmonia sob a gide da poltica da ajuda mtua.v Sob essa concepo
de tica,vi Ruskin criou sua noo de esttica cuja problemtica foi: como sentimos essa
tica no espao?vii
Foi pela viso da arquitetura bizantina e gtica
de Veneza que ele conseguiu enxergar o
desenho dos movimentos das energias que
compem o espao. Para tratar de So
Marcosviii e do Palcio Ducal,ix ele nos conduz
em um passeio pelas ruas estreitas de Veneza
at a Bocca de Piazza, quando em um nico
instante, o olhar explode em mil cores frente ao
claro das luzes vindas das aberturas
proporcionadas pela Praa de So Marcos e, repentinamente, avista-se a fachada de
arcos simtricos de So Marcos a contrastar e, no obstante, compor com as
irregularidades das vielas percorridas momentos atrs. Apesar de majestosa, So Marcos
parece flutuar: os inmeros e esquelticos pilares coloridos e arcos de sua fachada so
de uma delicadeza extrema ao descansar sobre o cho, parecendo sequer toc-lo.x Do
mesmo modo, o Palcio Ducal, com seus pilares e arcos sobrepostos, d-nos a
impresso de levitar sob a pesada caixa sustentada, criando uma sensao de
instabilidade aos olhos do observador.xi
Se fora de So Marcos, tudo movimento alucinado,
dentro da Baslica, a vida movimento lento. Depois de a
vista se acostumar com a escurido inicial para quem
adentra, percebe-se um silncio assustador no interior do
templo, interrompido apenas quando raios de luzes, com a
intensidade de canhes de energia, despencam das
aberturas das cpulas anunciando um ornato. Em
determinado instante, as luzes externas focam esse ornato
para logo em seguida escond-lo na penumbra, surgindo outro em seu lugar, e assim
sucessivamente. Esse movimento, lento, segue o ritmo do caminhar da luz do sol.xii
Dessa qualidade esttica, Ruskin extraiu dois
importantes conceitos para sua Teoria da Arquitetura: a Verdade das Estruturas e a
Verdade dos Materiais.xiii
Para Ruskin, o fenmeno esttico a qualidade de sentir o
espao, mais precisamente, o fluxo das energias circulantes
no espao. A esttica arquitetnica seria o desenho dessas
energias a compor a edificao.xiv Para constituir o
conceito, Ruskin considerou o desenho dos elementos
estruturais que controlam esses fluxos, absorvem,
conduzem, redirecionam e transmitem energia, traando
linhas de foras. A chuva, a neve, os ventos, o peso prprio
da construo, o peso das pessoas, enfim, as foras naturais
e artificiais materializam-se em desenhos de linhas de
foras.xv Ruskin pesquisou o desenho dessas linhas de foras para as construes em
pedra, definindo seus elementos estruturais: a fundao (base); a parede ou coluna; a
cornija ou o capitel; os arabescos; e os contrafortes.xvi Explicou o surgimento de colunas
para no engrossar as paredes sob maiores solicitaes de presses verticais: a coluna
seria a concentrao da parede em um nico ponto, assim como os capitis derivados
das cornijas concentradas em um nico ponto. Os arabescos seriam desenhos delicados,
transmissores de energias verticais e laterais, localizados geralmente nos vitrais ou no
interior de arcos. Os desenhos de arcos servem para receber as foras verticais e logo
direcion-las s colunas que, por sua vez, conduzem essas foras base, que as distribui
pelo cho. Os contrafortes so apoios para desviar as foras laterais.xvii So esses os
elementos estruturais das construes em pedra, desenhados para funcionar em
conjunto: um transmitindo a fora recebida ao outro e assim sucessivamente, at a
energia tocar o cho e dissipar-se completamente. Ruskin chamou a ateno para o fato
de esses elementos no serem, de forma alguma, ornamentaisxviiie sim estruturais,
podendo ser decorados aps a definio de sua forma; e que a criao da coluna, do arco
e do capitel, assim como da cornija, no servem a smbolos religiosos exclusivamente:
esto em igrejas como poderiam estar em qualquer outra edificao, na qualidade de
desenhos estruturais para a matria pedra.xix Ruskin explicitou seu conceito de Verdade
das Estruturas pelo desenho da arquitetura gtica, na qual a ossatura da edificao se
expe viso do observador.xx O sistema estrutural visto, sentido e compreendido,
justamente o que d sentido a sua concepo de esttica,xxi
[...] que em ltima instncia, seria sentir a energia que ocorre pela diferena na justaposio de
foras. Essa diferena desloca o tempo por continuidade do desenho que se torna virtual e o
observador acompanha com os olhos e o corpo. Pode ser mais fina, veloz, elegante, mais densa,
forte ou ruidosa. Isso faz com que o espao vazio, porm sensvel, vibre. O usurio, habitante
comum, de sensvel corpo, sente o entendimento dessas foras, sua visualizao transformada em
Linguagem Arquitetnica. O observador/usurio navega nesse espao, desvia de algo sem o
saber, j que inominvel para ele .xxii
Foi assim que para Ruskin, o desenho do gtico exemplificou sua noo de esttica
arquitetnica, assim como sua Verdade das Estruturas.xxiii
E por que arquitetura? A arquitetura, para Ruskin,
faz parte da paisagem. Embora seja o desenho de
uma paisagem artificial, a arquitetura dever compor
com os demais elementos da paisagem naturalxxiv
sem se opor, nem se sobrepor, e sim conviver em
harmonia com ela. A arquitetura, como a natureza,
para ele um livro aberto consulta e
experimentao.xxv Percebe-se aqui uma metafsica
por traz do raciocn