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II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010 Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR ISSN 2178-8200 JORGE LUIS BORGES E A EXPERIÊNCIA DE DESLOCAMENTO EM FUNES, O MEMORIOSO VIEIRA, Denise Scolari 1 RESUMO: De que modo os escritores latino-americanosimersos no debate acerca de polarizações tais como tradição/modernidade, público/privado, civilização/primitivismo, Mesmo/Outro, local/universal respondem às questões ainda eficazes da desconstrução enquanto discurso crítico para pensar a tensão entre culturas e o próprio programa estético? Provocação vista como acontecimento vivido, primeiro através da aguda sensibilidade desses autores/atores políticos esforçando-se por traduzir sua preocupação com os aspectos lingüísticos da mudança literária; dessa forma, favorecidos pelas circunstâncias históricas, pelo corte radical de todos os contínuos, tanto político, tecnológico, filosófico, artístico, político como social, em outras palavras, diante da vertigem configuradora de coexistências dessemelhantes, da multiplicação de centros, da interpenetração espaço-temporal, potencializa-se a imagem do mundo fraturado, misto, mutável, em contínua recomposição, o que equivale a reivindicar uma nova cena da escrita, na qual a representação do sujeito, do autor e do texto que ele produz, desconstrói o biografismo. Nesse sentido será analisado o conto de Jorge Luis Borges, Funes o Memorioso a fim de refletir sobre a problemática da interpretação mediada por novos significados em que a escrita é o espaço da indagação, porque rompe com o centro em torno da verdade organizada, desestabiliza o olhar do leitor e abre-se a novas possibilidades de estudo dos elementos da estética contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Argentina; Estudos Culturais; Jorge Luis Borges; Memória. 1 - Introdução De que modo os escritores latino-americanosimersos no debate acerca de polarizações tais como tradição/modernidade, público/privado, civilização/primitivismo, Mesmo/Outro, local/universal respondem às questões ainda eficazes da desconstrução enquanto discurso crítico para pensar a tensão entre culturas e o próprio programa estético? Questão aberta porque ainda faz lembrar que o jargão de nossos tempos „pós‟ não pode indicar seqüencialidade, os termos que apontam para o além só poderão incorporar a energia inquieta e revisionária de transformarem o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de poder (BHABHA, 1998). 1 Professora do Colegiado de Letras da UNIOESTE/Campus de Marechal Cândido Rondon- Doutoranda do Programa de Pós- Graduação em Letras e Linguística da UFBA-UNIOESTE.

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II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

JORGE LUIS BORGES E A EXPERIÊNCIA DE DESLOCAMENTO EM

FUNES, O MEMORIOSO

VIEIRA, Denise Scolari1

RESUMO: De que modo os escritores latino-americanos– imersos no debate acerca de

polarizações tais como tradição/modernidade, público/privado, civilização/primitivismo,

Mesmo/Outro, local/universal – respondem às questões ainda eficazes da desconstrução

enquanto discurso crítico para pensar a tensão entre culturas e o próprio programa

estético? Provocação vista como acontecimento vivido, primeiro através da aguda

sensibilidade desses autores/atores políticos esforçando-se por traduzir sua preocupação

com os aspectos lingüísticos da mudança literária; dessa forma, favorecidos pelas

circunstâncias históricas, pelo corte radical de todos os contínuos, tanto político,

tecnológico, filosófico, artístico, político como social, em outras palavras, diante da

vertigem configuradora de coexistências dessemelhantes, da multiplicação de centros,

da interpenetração espaço-temporal, potencializa-se a imagem do mundo fraturado,

misto, mutável, em contínua recomposição, o que equivale a reivindicar uma nova cena

da escrita, na qual a representação do sujeito, do autor e do texto que ele produz,

desconstrói o biografismo. Nesse sentido será analisado o conto de Jorge Luis Borges,

Funes o Memorioso a fim de refletir sobre a problemática da interpretação mediada por

novos significados em que a escrita é o espaço da indagação, porque rompe com o

centro em torno da verdade organizada, desestabiliza o olhar do leitor e abre-se a novas

possibilidades de estudo dos elementos da estética contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Argentina; Estudos Culturais; Jorge Luis Borges;

Memória.

1 - Introdução

De que modo os escritores latino-americanos– imersos no debate acerca de

polarizações tais como tradição/modernidade, público/privado, civilização/primitivismo,

Mesmo/Outro, local/universal – respondem às questões ainda eficazes da desconstrução

enquanto discurso crítico para pensar a tensão entre culturas e o próprio programa

estético?

Questão aberta porque ainda faz lembrar que o jargão de nossos tempos „pós‟

não pode indicar seqüencialidade, os termos que apontam para o além só poderão

incorporar a energia inquieta e revisionária de transformarem o presente em um lugar

expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de poder (BHABHA, 1998).

1 Professora do Colegiado de Letras da UNIOESTE/Campus de Marechal Cândido Rondon- Doutoranda

do Programa de Pós- Graduação em Letras e Linguística da UFBA-UNIOESTE.

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Assim, as várias configurações da atividade literária ocorridas no decurso dos

últimos anos têm viabilizado amplo questionamento e problematização pelos artistas

cujas práticas refletem sobre a autoria, o leitor, a língua, o valor, etc. controvérsia que

não se restringe à utilização específica desses termos, mas, ao contrário, ao seu sentido

abrangente do próprio estatuto da arte (COMPAGNON, 2003).

Provocação vista como acontecimento vivido, primeiro através da aguda

sensibilidade desses autores/atores políticos esforçando-se por traduzir sua preocupação

com os aspectos lingüísticos da mudança literária, com o experimentalismo em sua

intervenção enquanto jogo, cruzando as fronteiras do realismo rumo ao sonho, ao

devaneio, ao delírio ou de uma cruel hiperconsciência da anomia e alienação da cidade

moderna (SCHWARTZ, 1995).

Mas, pouco a pouco engendrando a passagem a outras possibilidades, com

distintas repercussões na América Latina, ora como fenômeno cultural integrado, ora

como projeto individual de intervenção. Dessa forma, favorecidos pelas circunstâncias

históricas, pelo corte radical de todos os contínuos, tanto político, tecnológico,

filosófico, artístico, político como social, em outras palavras, diante da vertigem

configuradora de coexistências dessemelhantes, da multiplicação de centros, da

interpenetração espaço-temporal, potencializa-se a imagem do mundo fraturado, misto,

mutável, em contínua recomposição, o que equivale a reivindicar uma nova cena da

escrita, na qual a representação do sujeito, do autor e do texto que ele produz,

desconstrói o biografismo; daí a noção de jogo, não como brincadeira, mas como

conceito que vive de remissões, interações surgidas no campo da linguagem; então,

surge o descentramento, com suas sucessivas possibilidades de interpretação, rompendo

a pretensão de objetividade.

Mais do que uma tomada de posição, é provável que o principal aspecto desta

proposta seja o argumento da superação da totalidade da representação clássica e, diante

dela, do critério realista obsessivo da causalidade (princípio, meio, fim) e do posterior

exame positivista minucioso do meio, momento e raça; por certo a preocupação entre o

texto e o contexto não será excluída da significação simbólica de inúmeros autores das

gerações seguintes, contudo, diante da demonstração dos novos postulados e de suas

destrezas interpretativas, a melhor maneira de falar sobre o fracasso do modelo

totalizador de interpretação e da energia sistemática do projeto de autoria vinculado a

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uma possível unidade de ação, à pertinência e à verossimilhança, será esboçar nesse

ensaio as formas da escrita na emergência do simulacro; em sua subversão da história

enquanto representação objetiva de um passado comum, bem como exemplificar uma

reação, sobretudo no processo criativo de um escritor emblemático da cena literária

hispano-americana.

2 - Jorge Luis Borges ex-cêntrico

A partir de ”uma recuperação das mudanças em nossas „instituições imaginárias

de significado‟ ocorridas na segunda metade do nosso século” (SANTOS, 1998, p.199,

grifos da autora), anuncia-se a problematização dos discursos hegemônicos da cultura

ocidental, fruto de mudanças sociais insuperáveis capazes de criar novas circunstâncias

tais como: a pluralização do universo cultural, a destruição da cultura de classes e uma

mudança nas formas de relacionamento intergeracionais (SANTOS, 1998, p.1999).

Como se pode perceber, neste restabelecimento de espaços há uma crítica à

hegemonia do poder institucional e abertura à possibilidade de pensar desde uma

perspectiva da heterogeneidade cultural, já que são contempladas as migrações

conceituais evocando a desterritorialização dos discursos.

Daí que para realizar a (re) significação das heranças coloniais mediante a leitura

comparativa da produção ficcional o pesquisador necessite para subsidiar a reflexão

utilizar-se daqueles teóricos que têm admitido a constituição do saber em seu espaço

nômade (SOUZA, 2002), procedimento atentamente firmado em seu compromisso

desestabilizador da univocidade, no sentido de inserir em novos contextos o

redimensionamento e a recodificação da diferença, portanto:

A identidade do crítico não varia apenas segundo as diferenças

individuais, mas também, e talvez, sobretudo, segundo o lugar em

que opera profissionalmente. A atuação do crítico junto à instituição

o identifica e distingue do crítico que atua marginalmente. A

consciência crítica se perfaz em um ato de reconhecer-se no lugar e

faz aparecer determinações sociais no modo como o sujeito enraíza-

se nele (ZIELINSKY, 2002, p.140).

Do mesmo modo em que ao representar-se a realidade de forma discursiva

leitores sejam convidados a recriar uma rede de reflexão em cada leitura, o que provoca

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a perda do significado de aparição única, irrepetível e, nesse processo infinito de

códigos, signos remetem a outros signos, cópias a outras cópias.

Esta nova perspectiva assinala a fragmentação dos textos, a intertextualidade, a

participação do leitor na construção do sentido, também gera um movimento pela

liberdade no tratamento dos diferentes modos de articulação discursiva, lançando a

narrativa ficcional em surpreendente experimentação da temporalidade, já que o

rompimento cronológico provoca a ruptura da linearidade narrativa.

O cunho reflexivo da prática interdiscursiva como procedimento crítico vai

tornar possível a desarticulação das polarizações colonizador/colonizado,

centro/periferia, global/local dando lugar aos elementos constitutivos da

„transculturação‟, do „hibridismo‟, do „entre-lugar‟. E, a partir das contribuições do

instrumental teórico escrito em línguas diversas, advindo de lugares distintos

compartilha-se a metodologia de investigação vista com base na revisão do cânone e da

própria especificidade da prática literária e cultural, portanto:

Dentro dessa perspectiva, desprovida de caracterização imanentista

dos objetos, em que o exterior constitui a dobra do interior e não a

parte estranha que remete para o fora da relação, comprova-se o

deslocamento como categoria capaz de movimentar o raciocínio

interdisciplinar – derrubando conceitos fixos e verdades consagradas

pela cristalização de lugares e pela atomização dos interiores

(SOUZA, 2002, p.111).

Aqui a estética do escritor argentino Jorge Luis Borges é relevante, desde a

irrupção no ethos do discurso de vanguarda, em que, movido pela cidade febril, pela

rapidez e extensão da modernização da nova urbe e pela expansão da realidade em

escala planetária, mergulha na dimensão utópica enquanto tentativa de renovar as

linguagens existentes, retomando a discussão sobre a vontade de “enfatizar as diferenças

que propõem de maneira enfática uma atitude ativa e transformadora em relação à

língua, a partir de uma perspectiva anticosmopolita em que o criollismo é considerado

como o valor oposto e alternativo aos ditames da cultura européia” (SCHWARTZ,

1995, p.54).

Ainda segundo Jorge Schwartz “tal política do idioma, contudo, não o impediu

de continuar sendo um crítico agudíssimo e irônico de seus conterrâneos e da cena

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cultural argentina, nem constituiu obstáculo para que reconhecesse a realidade do

desaparecimento dos gaúchos” (1995, p.54).

Essas referências apresentam o escritor argentino no espaço cultural atravessado

por inúmeras tradições, histórias, povos, circunstâncias, contraditórios discursos pelos

quais, valores são hierarquizados e, o próprio saber literário está marcado pela oscilação

e pela ambigüidade.

Entretanto, esse território também pode ser o locus enunciativo do combate e da

resistência, o cenário aberto ao paradoxal e inesperado estímulo de novas

sensorialidades e da efetiva intervenção segundo a qual países e autores ex-cêntricos

participam do diálogo crítico enriquecendo os estudos literários comparatistas e

culturais.

Como se vê, não há revisão nem a idealização da estética, nem a supremacia da

teoria, porque, como argumenta Eneida de Souza é preciso “considerar que a função

crítica da literatura é a de não constituir um lugar especificamente literário, mas de

deslocar todos os lugares teóricos e literários (2002, p.111); a conjunção desses

conceitos centrais ao pensamento dessa pesquisadora possibilitará no aspecto

metodológico dos autores „uma prática que se volta para o exame particular do texto,

para os detalhes de construção, para as minúcias de efeitos de linguagem” (SOUZA,

2002, p.41), assim subvertem-se as imagens estereotipadas da criação literária latino-

americana, revitaliza-se a pesquisa comparatista e redimensiona-se o estudo da memória

cultural mapeado sob novas contribuições teóricas.

3 - Funes, o memorioso ‘entre a língua, a letra e o território’

Para mobilizar a análise do conto Funes, o memorioso de Jorge Luis Borges

toma-se de empréstimo a expressão de Walter Mignolo assim sendo, trata-se do

interesse sobre “as relações entre o discurso e a maneira com que este fixa, transmite e

transforma o sentimento e os sentidos de identidade que anima todo grupo humano”

(MIGNOLO, s/d).

Pode-se dizer que é questionado o estatuto da representação literária porque

desaparece o peso da estrutura da univocidade através da qual a narrativa em único

plano não anunciava as tensões, tampouco acentuava os desdobramentos do eu que se

ficcionaliza e se fragmenta.

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Neste caso, os elementos tais como forma, ordem e precisão compartilham a

finalidade e o propósito de imitar o real, compreendidos em seu esforço para traduzir e

fixar a narrativa determinada por formas racionais superadas, em que os pressupostos da

Semelhança e do Mesmo, e a agonia da influência são abalados.

E, ao ser admitida a impossibilidade de totalização, cria-se outra rede de reflexão

pela qual o autor será criador e teórico-crítico, nos dois casos começam a se desenhar

questões da experiência e da memória justamente desde outro ponto de vista, reforçando

a diferença, atravessando territórios, assumindo diversas máscaras.

Leia-se o fragmento de Funes, em que é possível aludir ao aniquilamento da

unidade, da experiência marcada pela tenebrosa sensação de sobrevivência de viver nas

fronteiras do „presente‟ [...] (BHABHA, 1998, p.19, grifo do autor):

Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes de

costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e

cada moldura das casas distintas que o rodeavam (Repito que o

menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais

vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento

físico) Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia

casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas,

feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir.

Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e

anulado pela corrente Havia aprendido sem esforço o inglês, o

francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito

capaz de pensar, Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.

No mundo abarrotado de Funes não havia detalhes, quase imediatos

(BORGES, 1972, p.3)

O personagem é afetado pela torrente do efêmero, privado do esquecimento, do

sono, da distração, encontra-se como o indivíduo contemporâneo em sua contraditória

incapacidade de modificar o âmbito de sua experiência; Funes, de prodigiosa memória

conhece as teses da civilização ocidental, mas figura em seu território de pertencimento

unicamente como espectador, contemplativo, anestesiado, paradoxalmente entre o

excessivo conhecimento racional e a sua mais absurda imobilidade e ignorância. O

personagem-narrador descreve o abatimento de que padece Funes, sufocado pela

memória de detalhes fúteis tais como:

De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de

cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido

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ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas

a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras.

Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era

interminável, a consciência de que era inútil [...] (BORGES, 1972,

p.2).

Fatigado de navegar pelos rastros da história, Funes expõe o esgotamento desta

pluralidade de saberes supérfluos, bem como a sua total incapacidade de reação aos

valores culturais, parece estar oprimido na presença da compreensão total das causas do

mundo, assim, sua existência dramática, incômoda insólita, é anunciada pelo campo

semântico da obscuridade, do pesar, como é possível observar em algumas descrições

do personagem:

[...] Recordo-o o rosto taciturno e indianizado e singularmente

remoto, por trás do cigarro [...] (p.1)

[...] Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal

de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora [...] (p.1)

Considerações descritivas comuns aos semblantes endurecidos pela vivência

angustiante; sua proverbial memória e imaginação, sua consciência do paradoxal devir

instalam a incerteza, a forma da experiência coletiva diante da passagem inexorável do

tempo e das modificações do espaço, Funes antes era „orillero antigo‟ agora tem

„assobios italianos‟, numa clara alusão do desaparecimento de uma época e a imposição

de outra.

Funes, solitário espectador do mundo multiforme parece evocar a existência do

homem contemporâneo diante dessa „linha fina que separa a construção territorial da

construção cognitiva‟ (MIGNOLO, p.10).

Portanto, restaurar o passado em tempos de Deslocamento equivale a

provisoriamente alimentar-se da problemática da interpretação mediada por novos

significados em que a escrita é o espaço da indagação, porque rompe com o centro em

torno da verdade organizada, desestabiliza o olhar do leitor e abre-se a novas

possibilidades de estudo dos elementos da estética contemporânea.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Porto

Alegre: Globo, 1972. Disponível em <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.html >

Acesso em 21/05/2010.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria. Literatura e senso comum. Tradução

de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora

da UFMG, 2003.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São

Paulo: Perspectiva, 1974. (Estudos, 35)

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza

da Silva. 2ªed. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Coleção Debates)

MIGNOLO, Walter. A língua, a letra, o território (ou a crise dos estudos literários

coloniais). Tradução Tatiana Capaverde. <Disponível em

http://www.ufrgs.br/cdrom/mignolo/index.html > Acesso em 21/05/2010.

SANTOS, Eloína Prati. Estratégias de afirmação da identidade americana nas

literaturas brasileira, canadense e estadounidense. In: BERND, Zilá. (Org.) Escrituras

híbridas: estudos em literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, 1998.

SCHWARTZ, Jorge Vanguardas Latino-Americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos

Críticos. São Paulo: EDUSP/Iluminuras/FAPESP, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

ZIELINSKY, Mônica. A crítica de arte contemporânea nos contextos em

transformação. In: América Latina: territorialidades e práticas artísticas. Organização

por Maria Amélia Bulhões e Maria Lúcia Bastos Kern. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, 2002.