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EVERTON ALMEIDA BARBOSA A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DE RICARDO GUILHERME DICKE Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL Cuiabá 2006

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EVERTON ALMEIDA BARBOSA

A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DERICARDO GUILHERME DICKE

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMTInstituto de Linguagens - IL

Cuiabá2006

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EVERTON ALMEIDA BARBOSA

A TRANSCULTURAÇÃO NA NARRATIVA DERICARDO GUILHERME DICKE

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudosde Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federalde Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título deMestre em Estudos Literários e Culturais.

Área de concentração: Estudos literários e culturais

Orientador: Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMTInstituto de Linguagens - IL

Cuiabá2006

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DEDICATÓRIA

À minha famíliaDorgival, Maria e Elisângela

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AGRADECIMENTOS

a Aclyse, Marta e Raquel, pela amizade e pelos livrosa Valderez, especialmente, pelo estímulo e confiança em todo meu percurso intelectual

a Cristiane, pela paciência e carinhoÀ Hilda e Célia, pelas sugestões e questionamentos importantes

a Mario, pela orientação

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Peida, justiça de Mato Grosso!(Caieira)

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RESUMO

BARBOSA, Everton Almeida. A transculturação na narrativa de Ricardo GuilhermeDicke

Esse trabalho associa uma discussão acerca do foco narrativo com uma outra ligada à

questão da produção literária na América Latina. Ele caracteriza a questão do foco, nos

romances de Ricardo Guilherme Dicke, como um dos aspectos que o definem como

narrador de transculturação, conceito usado por Angel Rama. Conseqüentemente,

insere seus romances nas questões referentes aos conflitos locais e à produção da

identidade local como forma de resistência ao apagamento cultural devido ao contato

com uma cultura de tendência universalizante e modernizadora, de procedência

européia e norte-americana. O contato entre estas culturas de tendência universalizante

e culturas locais tradicionais gera produtos culturais que aproveitam aspectos tanto de

uma quanto de outra, processo que pode ser consciente ou não. Os livros de Dicke são

exemplos dessa produção. Este trabalho traça uma trajetória cuja intenção é evidenciar

a elaboração de um procedimento narrativo que não se apreende pelas categorias

tradicionais de autor, narrador e personagem, frutos da teoria literária de origem

européia. Essa maneira de narrar concorre para a dissolução do pensamento

maniqueísta, que também caracteriza a cultura ocidental, cujas formulações processam

a apreensão do mundo (e do fenômeno literário) através de oposições como

dominador/dominado, universal/local, regional/nacional etc. A análise dos textos de

Dicke mostra a inaplicabilidade dessas categorias nos textos de transculturação e

estende a discussão à própria elaboração da teoria, notando que na escolha da

tipologia estão também implicadas as relações culturais e identitárias.

Palavras-chave: cultura – identidade – regionalismo – foco narrativo - transculturação

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ABSTRACT

BARBOSA, Everton Almeida. A transculturação na narrativa de Ricardo Guilherme

Dicke

This work associates a discussion about the narrative focus with other inserted in the

question of the literary production in Latin America. It characterizes the question of the

focus, in the romances of Ricardo Guillermo Dicke, as one of the aspects that define him

as a narrator of transculturation, concept used for Angel Rama. Consequently, it inserts

his romances in the questions referring to the local conflicts and the production of the

local identity as a form of resistance against cultural deletion due to the contact with a

culture of universal and modern trend, of European and North American origin. The

contact between these cultures of universal trend and traditional local cultures generate

cultural products that in such a way use to advantage aspects of one as of another one,

process that can be conscientious or not. The books of Dicke are examples of this

production. This work traces a trajectory whose intention is to evidence the elaboration

of a narrative procedure that is not apprehended for the traditional categories of author,

narrator and personage, products of the literary theory of European origin. This way of

tell concurs for the dissolution of the thought manichaeist, that also characterizes the

occidental culture, whose formularizations process the apprehension of the world (and

the literary phenomenon) through oppositions as dominator/dominated, universal/local,

regional/national etc. The analysis of the texts of Dicke shows the unaplicability of these

categories in the transculturation texts and extends the discussion to the proper

elaboration of the theory, noticing that in the choice of the tipology also the cultural and

indentity relations are implied.

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SUMÁRIO

Dedicatória .................................................................................................................... iiiAgradecimentos ........................................................................................................... ivResumo ......................................................................................................................... vi

Abstract ........................................................................................................................ vii1 Introdução ................................................................................................................... 92 O CONCEITO DE CULTURA ......................................................................................... 153 A IDENTIDADE E AS TERMINOLOGIAS ....................................................................... 23

4 LITERATURA E TRANSCULTURAÇÃO ........................................................................ 295 O AUTOR DO ESQUECIMENTO E O ESQUECIMENTO DO AUTOR............................... 376 OS PREFÁCIOS E AS PREVISÕES: REGIONALIDADE E FOCO NARRATIVO ............... 487 A SUPERAÇÃO DO REGIONAL E O ENTRE-LUGAR EM MADONA DOS PÁRAMOS .... 54

8 DICKE E AS MIGRAÇÕES PÓS-60 ............................................................................... 629 TRANSCULTURAÇÃO E FOCO NARRATIVO................................................................ 7710 CERIMÔNIAS DO ESQUECIMENTO ........................................................................... 95

10.1 Tradição e modernização em Cerimônias do Esquecimento ............................ 9710.2 Transculturação e foco narrativo em Cerimônias do Esquecimento .............. 102

11 Considerações finais ........................................................................................................ 115Referências Bibliográficas .................................................................................................... 119Bibliografia .............................................................................................................................. 122

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1 Introdução

Dos primeiros aspectos notáveis nos textos de Ricardo Guilherme Dicke, já

anunciados em prefácios de alguns de seus romances, para além da virilidade da

linguagem, é a maneira como se apresentam os pontos de vista, caracterizada por um

uso aleatório das pessoas gramaticais e dos referentes de tempo e espaço. Essa

característica gera, na leitura, uma indefinição acerca da voz narrativa, que é

transmitida de uma a outra personagem sem marcação (aspas, travessão, mudança de

registro lingüístico etc.). O que seria, no entanto, uma simples questão de distribuição

do ponto de vista entre narrador e personagens, mostrou-se, ao longo das leituras e da

pesquisa, ser um problema acerca do próprio ato de narrar e sua implicação na história

literária e no contexto em que o romancista se insere.

Gilvone Furtado Miguel (2001), sobre um dos romances do autor, Madona dos

Páramos, define o problema como uma espécie de flutuação, uma mudança de ‘centro’

da voz do narrador para a das personagens. A partir dessa constatação da autora, que

pôde ser feita tanto em Madona dos Páramos, quanto em Cerimônias do esquecimento,

o primeiro passo deste trabalho foi conferir se o fenômeno se repetia em outros

romances. Nesse momento, esbarrei na primeira dificuldade que se encontra ao se

estudar Dicke: a falta de acesso a seus romances anteriores, Deus de Caim, Caieira,

Madona dos Páramos e Último Horizonte.

Superada essa dificuldade, constatei que todos os romances, sem exceção,

também apresentam a mesma configuração de foco narrativo, em maior ou menor grau,

o que me levou a querer identificar se havia mesmo um procedimento estilístico

marcado que caracterizasse a narrativa de Dicke. Essa ‘flutuação’ do foco narrativo é

mais tímida em Deus de Caim, seu primeiro romance, mas se mostra como uma

característica bem marcada em O salário dos poetas e, principalmente, em Cerimônias

do esquecimento. Optei, então, por traçar uma trajetória que tem este último romance

como ponto chave da questão do narrador1, porque nele esse procedimento estaria

diretamente relacionado com a própria temática do romance.

1 Cerimônias do Esquecimento não é o último romance publicado, sendo anterior a O Salário dos Poetas.

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A análise do problema, então, partiu da observação dos romances e da

explicação que Gilvone Furtado Miguel dá, na sua análise de Madona dos Paramos,

para a questão do foco narrativo. Ela afirma que a ‘mudança de centro’ é produto da

escolha do autor, através da categoria do autor-implícito, conceito do teórico Wayne

Booth (apud Miguel, 2001), segundo o qual, independentemente do foco que se

expressa na obra, sempre há por trás de todos eles o pensamento do autor que

manipula toda a evolução do romance, se denunciando nas escolhas das palavras, dos

pontos de vista, de todos os aspectos que compõem uma obra literária. Este autor

implícito não é, no entanto, o autor em pessoa, mas uma espécie de alter-ego, um

personagem através do qual o autor fala na obra2.

Associar a palavra ‘autor’ a uma pessoa real e a palavra ‘narrador’ a uma

categoria fictícia é uma prática comum na teoria e na crítica literárias. Nos romances de

Dicke, no entanto, essa relação direta parece não resolver a questão, pois o problema

está, justamente, não nas categorias isoladamente, mas no uso que se faz delas na

elaboração das teorias acerca do fenômeno literário. É fácil aceitar a categoria de autor

quando se fala da ciência histórica, mas essa aceitação não é tão natural quando se

fala de literatura. Por quê essa diferença? Não seria possível responder ou mesmo

abordar essas questões a partir de uma única corrente teórica. A maioria das correntes

que se debruçam sobre o problema do foco narrativo, ou de uma teoria da narrativa,

parte de uma ou de outra categoria para fundamentar as suas considerações. Alguns

casos, ainda, aplicam os dois termos como se fossem um só e não colocam, portanto,

os conceitos de autor e narrador em questão3.

A discussão, então, enveredou pelo reconhecimento de que nas diferenças entre

as teorias sobre o narrador estariam implicadas diferenças culturais. Ao falar de

literatura, a teoria elabora conceitos de acordo com as categorias de pensamento de

2 Sobre o assunto, consultar Dal Farra, 1978, que compara o autor implícito aos heterônimos deFernando Pessoa.3 Alguns trabalhos delimitam bem seu objeto, como os de Barthes, 1984, (sobre o autor), Benjamin, 1994,(sobre o narrador) e Bakhtin, 1992, (sobre o autor). Barthes, como estruturalista, ‘mata’ o autor comoelemento exterior àquilo que escreve, pois a linguagem deve se comunicar por si mesma. Benjamin falado narrador propriamente oral ou daquele que consegue, na escrita, manter propriedades da narrativaoral, diferenciando, assim, o narrador do romancista. Bakhtin fala do autor enquanto categoria dodiscurso e não como indivíduo. Os três distinguem bem o que é propriamente lingüístico ou não e dequem é a ‘propriedade’ do discurso. Suas referências ajudam a esclarecer questões acerca do narradordo romance, especificamente.

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que sua cultura dispõe para tal. Percebeu-se, nesse caso, que as teorias sobre o

narrador não se aplicariam plenamente às obras de Dicke porque estas escapariam às

categorias de percepção do fenômeno literário de caráter não-europeu, ou não

canonizado, o que deve ocorrer com muitas produções contemporâneas. Não se

trabalhou, aqui, no entanto, com toda a produção teórica a respeito do assunto: alguns

textos-chave ajudaram a entender as perspectivas, a partir das quais se observava o

fenômeno literário.

Para escapar aos conceitos europeus acerca do narrador e do autor, não

plenamente aplicáveis nos romances de Dicke, optou-se pela teoria da transculturação,

conceito usado por Angel Rama (1982) para abordar alguns romances latino-

americanos. Ele analisa três níveis da produção literária – o lingüístico, o composicional

e o da cosmovisão do escritor – em que se dão os processos de transculturação. A

questão do narrador faz parte do segundo nível. O teórico utiliza, inclusive, teorias

européias e norte-americanas ao abordar o assunto, mas também não as trata da

mesma maneira. Isso se deve ao fato de que seu interesse é mais crítico do que

teórico, focalizando mais as questões sociais referentes às relações inter-culturais que

ocorrem no seio da cultura latino-americana. Este trabalho inseriu a discussão acerca

do foco narrativo nos mesmos processos de transculturação apontados por Rama,

vendo quais relações culturais estão implícitas também na maneira como o foco se

apresenta nos romances do escritor mato-grossense.

O conceito de transculturação coloca o problema da produção literária em termos

do contato entre duas formas que a cultura toma no ocidente: o particularismo (que

assume nomes como regionalismo, localismo, diversidade), que tende a fixar uma

particularidade ou particularidades culturais, e o universalismo, cuja intenção é de que

alguns de seus valores sejam aplicados para todo ser humano. Rama define três

‘rasgos’ que geram as culturas regionais: o histórico, que leva em conta o fato de que a

localidade à qual pertence o escritor em questão havia sido um centro de cultura; o

geográfico, segundo o qual a região se manteve em isolamento durante um

determinado período; o sistema social imperante, em que um grupo subjugado

socialmente se aferra a seus valores como fator de sobrevivência. Mato Grosso

apresenta todos esses aspectos, se considerarmos as palavras de Póvoas (1982) sobre

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a intensa atividade cultural de Cuiabá, quando comparada a outros grandes centros do

país no século XVIII, sobre seu isolamento até o momento posterior à segunda Guerra

Mundial e sobre o fato de que, em relação aos grandes centros e à invasão pela

migração latifundiária a partir de 1960, a região teve seus valores culturais

profundamente abalados. Esse abalo gerou, em parte dos agentes culturais, o

aferramento a seus elementos identitários, como no caso dos literatos da Academia

Mato-grossense de Letras.

A cultura de caráter particularista é designada por Rama como ‘rural’, ‘regional’,

‘tradicional’ e, às vezes, ‘local’. A de caráter universalista, por sua vez, é designada

como ‘universalizante’, ‘modernizadora’ e, muitas vezes, ‘urbana’. A primeira descende

da cultura dos grupos minoritários, violentados pelo processo de colonização da

América Latina, especialmente os indígenas. A segunda descende das culturas das

potências imperialistas européias, que constituíram o que se conhece como cultura

ocidental. Discutir o foco narrativo nos romances de Dicke sob a lente da

transculturação é identificar como o romancista lida com os dados dessas culturas, no

contexto da produção literária em Mato Grosso e na América Latina. É determinar como

a categoria do narrador se insere nas questões referentes aos conflitos locais e à

produção da identidade como forma de resistência à anulação da cultura local.

Estabeleceu-se, aqui, que os aspectos semânticos, lingüísticos e da cosmovisão, são

diretamente dependentes da composição. A escolha da maneira de narrar define as

opções culturais do romancista em suas produções.

Os dois primeiros capítulos discutem como os conceitos de identidade, de cultura

e de trocas interculturais se relacionam uns com os outros. Acredita-se, aqui, que toda

elaboração identitária e conceitual, inclusive a dos conceitos de identidade, se origina

dos contatos entre grupos sociais. Partindo de autores que fazem uma revisão histórica

dos conceitos de cultura (Cuche, 2002), e da tipologia relativa às trocas culturais

(Burke, 2003), a intenção é definir a ‘transculturação’, dentre diversos outros termos

utilizados ao longo da história da cultura, como o mais apropriado para se aplicar ao

estudo dos romances de Ricardo Guilherme Dicke. É importante dizer que essa escolha

também é, abertamente, uma opção por utilizar para análise o pensamento gerado a

partir do próprio contexto em que o objeto deste estudo se insere: a América Latina.

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O terceiro capítulo desenvolve o conceito escolhido de ‘transculturação’,

aplicando-o à literatura, apoiando-se nas discussões de Angel Rama. Estabelecem-se

os critérios de análise, os níveis (lingüístico, da composição e da cosmovisão) em que

se opera a análise e a configuração do contexto em que a transculturação ocorre na

literatura.

O quarto capítulo, apesar de não tratar diretamente dos textos literários de Dicke,

situa o romancista em relação à produção literária de Mato Grosso. O autor se distancia

de uma produção mais tradicional, vinculada à Academia Mato-grossense de Letras,

cuja temática tende à exaltação do elemento local, ao mesmo tempo em que se

distancia da produção de escritores mais recentes. O capítulo trata, também, de uma

‘redescoberta’ de Dicke no espaço da literatura regional mato-grossense e na

apropriação de sua imagem como ícone dessa literatura.

Os três capítulos seguintes fazem uma revisão de textos que trazem informações

mais aprofundadas sobre a obra de Dicke. Compõem o conjunto desses textos os

prefácios a seus romances e os estudos acadêmicos de duas professoras, Gilvone

Furtado Miguel e Hilda Gomes Dutra Magalhães. Os textos das duas autoras

apresentaram notável compatibilidade com a teoria da ‘transculturação’, pois pensam a

obra de Dicke de maneira a escapar às determinações de uma visão regionalista que

só atribui valor à obra que registra traços locais. A reelaboração mítica, tema do

trabalho de Miguel, e a temática do conflito entre as culturas rurais minoritárias e a

invasão latifundiária, tema do trabalho de Magalhães, são aspectos imprescindíveis

para entender os processos de transculturação dentro da literatura. Os prefácios, de

maneira geral, trazem duas discussões importantes para pensar a transculturação na

obra de Dicke, em particular: a questão da regionalidade e a questão do foco narrativo.

O estudo do foco narrativo nos livros do romancista é o tema principal desta pesquisa.

Ele foi o elemento desencadeador do trabalho e é o elemento chave para a discussão

da transculturação nas obras do autor.

É a esse procedimento que se resumem os dois últimos capítulos. O penúltimo

vai tratar da relação entre transculturação e foco narrativo, exemplificando-a com

trechos dos romances, definindo o foco narrativo como principal aspecto para se

avaliar, em Dicke, as questões referentes às dicotomias regionalidade/universalidade,

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verdade/ficção, autor/personagem, mito/realidade e muitas outras oferecidas pelo

repertório da cultura ocidental. A discussão sobre a transculturação visa, justamente,

relativizar essas dicotomias na literatura. O último capítulo vai operar os critérios

estabelecidos no penúltimo e aplicá-los ao romance Cerimônias do Esquecimento que

é, segundo a perspectiva adotada para este trabalho, o ponto alto dos processos de

transculturação no romancista. Neste ponto, discute-se uma dicotomia fundamental,

que é uma das bases da herança européia e que Dicke, através do peculiar

procedimento narrativo que adota, questiona de maneira profunda: a dicotomia entre o

eu e o outro.

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2 O CONCEITO DE CULTURA

Denys Cuche (2002), etnólogo francês, faz uma revisão histórica do conceito e

do uso do termo ‘cultura’ no âmbito das ciências sociais. Seu texto se inicia com a

evolução do vocábulo ‘cultura’ na França, desde a Idade Média até o século XVIII,

passando pelo debate entre alemães e franceses acerca dos termos ‘cultura’ e

‘civilização’, entre os séculos XIX e XX, com suas aplicações e implicações. O autor

delineia, desde o início, uma bipolaridade que vai percorrer todas as outras discussões

das quais irá tratar em seguida, quando do surgimento da etnografia, da sociologia e da

antropologia:

O debate franco-alemão do século XVIII ao século XX é arquetípico dasduas concepções de cultura, uma particularista, a outra universalista,que estão na base das duas maneiras de definir o conceito de culturanas ciências sociais contemporâneas. (Cuche, 2002: 31)

Inicialmente, a universalidade, implicada no conceito de ‘civilização’, de linha

francesa, e a particularidade, implicada no conceito de ‘cultura’, de linha alemã,

marcam, para Cuche, as duas perspectivas pelas quais irão se dar os estudos dos

grupos sociais posteriormente. Ambas refletem também as características dos próprios

grupos que os cunharam: a unidade política francesa e o fragmentado espaço alemão

do século XIX. No conceito francês de ‘civilização’, está implicado um processo de

evolução ininterrupto do qual todos os grupos sociais participam. Nesse processo,

alguns grupos (como a França) alcançaram um estágio avançado - de intelectualidade,

de estrutura social e política -, ao qual “todos os povos, mesmo os mais ‘selvagens’,

têm vocação para entrar” (2002, p.22). ‘Cultura’, termo escolhido pela intelectualidade

alemã para fazer frente à ‘civilização’ francesa, traz em si a experiência de um grupo

que “não conseguiu ainda sua unificação política” (2002, p.27), cabendo à cultura essa

unificação. Por isso, o conceito de cultura esteve, na Alemanha, vinculado diretamente

ao nacionalismo, à busca pela unidade política, frente a outras nações já constituídas,

como França e Inglaterra (2002, p.27-28). Em França, ainda no século XIX, ‘cultura’ e

‘civilização’ seriam usados como sinônimos e ‘cultura’ acaba se fixando, posteriormente,

como o termo definitivo, aplicável às ciências sociais.

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Outro aspecto importante, nas discussões acerca da ‘cultura’, diz respeito à sua

constituição e estruturação em vista dos contatos culturais, da relação entre grupos.

Cuche, nessa discussão, parte dos primeiros conceitos etnológicos de cultura, de Tylor,

universalista, e Boas, particularista, passando pela antropologia cultural norte-

americana. Uma noção que percorre seu texto como um todo, e que está já na

introdução do seu livro, é a de cultura como um ‘todo coerente’, constituído pelos

modos de vida e pensamento que regulam as relações dos grupos e seres humanos

entre si e com a natureza (2002, p.11). Peter Burke (2003, p.16) usa um conceito muito

próximo, ao tratar de hibridismo cultural, caracterizando a cultura como “atitudes,

mentalidades e valores e suas expressões, concretizações ou simbolizações em

artefatos, práticas e representações”.

Ainda segundo Cuche, de início, a etnologia buscou a originalidade das culturas,

tentando encontrar aspectos, traços culturais intocados e, portanto, não modificados

pelos contatos entre grupos humanos:

A etnologia não somente cultivou a obsessão da busca do aspectooriginal de cada cultura, mas também a da procura do caráterabsolutamente original de cada cultura. Nesta perspectiva, todamestiçagem das culturas era vista como um fenômeno que alterava suapureza original... (Cuche, 2002:111)

Somente com o desenvolvimento de estudos dos contatos interculturais4, numa

perspectiva particularista, é que essa concepção fechada de cultura foi modificada.

Nesses termos, já não se pode considerar a cultura sem se levar em conta que ela se

mantém e se modifica, tanto por movimentos internos quanto pelos contatos com outras

culturas. Um conceito problemático, mas usado de início, foi o de ‘aculturação’, termo

definido pela linha de estudos sociais norte-americana. Ele consiste no:

conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e diretoentre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocammudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos doisgrupos.5

4 Os trabalhos da antropologia cultural norte-americana, de tendência particularista, somados à pesquisade Roger Bastide e outros, intensificaram o campo dos estudos interculturais. Cf. Cuche, 2002.5 Conceito elaborado por um comitê composto por Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits, noMemorando para o estudo da aculturação. (apud Cuche, 2002: 115)

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Note-se que a transformação dos patterns culturais pode se dar nas duas

culturas e não em uma só. O termo ‘aculturação’, no entanto, não manteve inteiramente

esse caráter de imparcialidade, problema contornado por outros termos como

‘hibridismo’, ‘mestiçagem’ e ‘transculturação’. A cultura passa a ser vista como algo

dinâmico, sujeita a alterações, assimilações, influências, ao longo do tempo.

Esta concepção do processo cultural se relaciona com outra discussão que toma

formas análogas: a questão da identidade. A ligação entre cultura e identidade está

vinculada com a nova maneira de se enxergar as relações culturais, pelos contatos

entre os grupos. A ‘moda’ da identidade, segundo Cuche, é:

o prolongamento do fenômeno da exaltação da diferença que surgiu nosanos setenta e que levou tendências ideológicas muito diversas e atéopostas a fazer a apologia da sociedade multicultural, por um lado, ou,por outro lado, a exaltação da idéia de cada um por si para manter suaidentidade .(Cuche, 2002:175)

Esse vínculo ocorre porque o contato intercultural está na origem da concepção

da identidade. Esse conceito também apresenta um percurso que vai desde uma noção

de identidade fechada, original e pura, a outra em que ela só se constitui a partir do

confronto entre indivíduos situados num mesmo contexto sócio-histórico-cultural; entre

indivíduos de diferentes culturas; entre coletividades distintas; entre épocas distintas

etc.6 A partir dessa última perspectiva, a diferença seria base para a constituição da

identidade. A presença de um elemento alheio, de fora, parece ser indispensável para a

constituição de uma interioridade. Essa concepção se aplica tanto ao indivíduo quanto à

coletividade: um grupo de indivíduos também pode conceber uma unicidade coletiva,

fator de coesão interna, diferenciando-se de outros grupos.

No entanto, apesar de andarem juntos, como “conceitos que remetem a uma

mesma realidade, vista por dois ângulos diferentes” (Cuche, 2002:14), ‘cultura’ e

‘identidade’ não têm o mesmo significado. A identidade está vinculada à posição

tomada por cada grupo ou indivíduo na situação de contato. Ela se constitui na escolha

dos elementos culturais que serão eleitos como representantes daquele grupo

específico. A identidade se compõe, portanto, das estratégias usadas pelos grupos ou

6 Este trabalho opta por esta segunda maneira de ver a identidade, de acordo com a opção pela culturacomo sendo constituída pelos contatos interculturais.

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indivíduos, numa situação de contato, com determinados fins relativos à situação social

em que se encontram:

A identidade etno-cultural usa a cultura, mas raramente toda a cultura.Uma mesma cultura pode ser instrumentalizada de modo diferente e atéoposto nas diversas estratégias de identificação. (Cuche, 2002: 201)

Essa maneira de ver a relação entre identidade e cultura se aplica, por exemplo,

ao caso descrito por Woodward (2000, p.8). Trata-se de um episódio da guerra entre

sérvios e croatas, em que a autora destaca as maneiras com que cada lado busca se

diferenciar do outro, em virtude da guerra, mas ao mesmo tempo reconhece

semelhanças entre si. No caso em questão, há uma busca por elementos culturais

(como o cigarro sérvio) que representem uma ‘natureza’, uma originalidade, da qual se

está em busca e que comprove que há uma diferença entre os grupos envolvidos no

conflito. A autora talvez tenha escolhido este caso como exemplo porque, nele, essa

escolha estratégica dos elementos culturais fica mais evidente, já que ambos os lados

são dissidências identitárias de uma mesma cultura inicial. Uma mesma cultura a partir

da qual se constituem identidades distintas7.

O contato entre grupos pode se dar de várias formas e suscitar diversas

variações na formação das identidades e dos produtos culturais. Em geral, ele se dá de

maneira que os grupos envolvidos não possuam as mesmas condições, concorrendo

no contato com diferenças de desenvolvimento tecnológico, contingente demográfico,

autonomia política, superioridade econômica etc. 8 Se pensarmos que no contato um

dos lados possui uma vantagem, exerce uma dominação sobre o outro, a constituição

da identidade já não pode ser vista da mesma maneira, pelo menos para um dos

grupos, o dominado: “a hierarquia cultural resulta da hierarquia social” (Cuche, 2002:

143). Nessa hierarquia, o grupo com menos condições, “em sua evolução, não pode

desconsiderar a cultura dominante” (2002, p.145), o que não quer dizer que ele se

anule, pois o que está em jogo é a cultura e não o grupo: um dos grupos está

submetido, mas suas maneiras de ser e pensar, bem como suas práticas, podem

7 Pelo menos como grupos que buscam se diferenciar de outros, mesmo pertencendo a uma mesmacultura. Aqui, busca-se uma negação, a diferença pela negação de que se é semelhante.8 Roger Bastide estabelece diversos fatores que podem influenciar as trocas culturais. (Bastide, 1960:326)

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modificar a cultura do dominador. Esse processo de dominação e sujeição é permeado

sempre pela constituição das identidades de um e outro.

No contato entre grupos, pode ocorrer, pelo menos aparentemente ou

temporariamente, a anulação das manifestações culturais de um dos grupos envolvidos

no contato. O grupo que possui uma posição de vantagem pode impor sua cultura e sua

identidade como prática de dominação. A imposição, bem como a própria constituição

da identidade, toma a forma de narrativa. A identidade é tratada por muitos teóricos

como um processo de narrativa, em que o grupo elabora um contar algo sobre si

mesmo, formando um conjunto de significantes que constituem um topos de onde se

fala, onde se territorializa:

identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-seé, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo sedefiniria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre simesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência dadefinição implícita na qual esta coletividade se encontra. (Ricoeur, apudBernt, 1992: 19)

A narrativa pode, ainda, ir além da história verbal, utilizando todos os elementos

de uma cultura que possam funcionar como símbolos. Cada grupo, portanto, elabora

sua narrativa e a partir dela reconhece os referentes para a definição de sua identidade.

A identidade é essencialmente uma questão de representação:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemassimbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidospelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquiloque somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicostornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.(Woodward, 2000:17)

No contato entre grupos, portanto, entra em jogo a representação, a narrativa de

cada grupo em questão. Esse contato pode ter várias repercussões para os grupos,

que vão da afirmação da narrativa de um deles como a verdadeira, até a

interpenetração e modificação das respectivas narrativas. Pode ocorrer, ainda, a

formação de uma terceira identidade que se compõe da união dos grupos envolvidos.

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Por exemplo, a desigualdade entre os grupos europeus, no momento de sua

organização como nação, tem papel importante na formação de sua cultura e

identidade9. Já consolidados, no período colonial, e ainda mantendo uma hierarquia

entre si, esses grupos operaram a colonização em outras regiões fora da Europa.

Nesses processos é que muitos tentaram fazer com que suas narrativas, suas

representações, prevalecessem. Sendo eles os ‘superiores’, conquistadores, puderam,

em suas narrativas, excluir a identidade dos conquistados ou, melhor dizendo,

cristalizar algumas polaridades: dominador/dominado, civilizado/primitivo, etc. Até aqui,

é compreensível uma postura essencialista, na medida em que o contexto de conquista

se torna uma extensão do contexto do grupo conquistador. Sua identidade, sua cultura,

se mantém. Funciona a afirmação de Todorov:

A busca identitária, inevitável durante os períodos de crise, corre o risco,contudo, de transformar-se em etnocentrismo, isto é, em erigir, demaneira, indevida, os valores próprios da sociedade à qual se pertence,em valores universais. (Todorov apud Bernt, 1992:17)

Alguns fatores vão contribuir para a alteração desse quadro e para a

problematização do conceito de identidade. Dentre eles, destacam-se a crise dos

estados-nação, nos fins do século XIX e início do XX, e a conseqüente crise da

modernidade:

as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entraramem colapso, cedendo lugar a uma crescente transnacionalização davida econômica e cultural. A globalização envolve uma interação entrefatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões deprodução e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidadesnovas e globalizadas.(Woodward, 2000:20)a desintegração social e política do espaço nacional é cada vez maisevidente. Indicativos como a crescente desigualdade social, a inserçãode instituições financeiras transnacionais que vão substituindo o Estadono planejamento, a deteorização da esfera pública e de mecanismos decoesão política cultural, entre outros aspectos, levam o autor a duvidarda pertinência de categorias como nação e Estado para compreender asexperiências culturais contemporâneas.(Escosteguy, 2001: 158)

9 Veja-se o caso de Alemanha e França, por exemplo.

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É preciso enxergar nos estados-nação a constituição de uma identidade que

pretende à unificação e homogeneização dos indivíduos. “A principal função das

culturas nacionais, que (...) são sistemas de representação, tem sido representar o que

é, de fato, uma amálgama étnica da nacionalidade moderna como a unidade primordial

de ‘um povo’” (Hall apud Escosteguy, 2001: 146).10 O problema é que a estrutura

cerrada dessas sociedades, e conseqüentemente de suas culturas e identidades, se

desestruturou. Nessa desestruturação está implicada, dentre outras coisas, a

manifestação das minorias, constituídas dos grupos das regiões colonizadas e das

próprias classes desfavorecidas pela ‘narrativa nacional’.

O que ocorre, então, é que as minorias podem também incorrer no mesmo

essencialismo, usando o mesmo método conhecido para constituir sua própria

identidade, se fiando em referentes empíricos como cor, raça e território:

A identidade será, portanto, a princípio, simplesmente reativa, o oposto,uma resposta ao colonizador, o que, conforme Glissant, constitui-se emuma limitação. Porque, motivadas simplesmente pelo revide, asidentidades tendem à busca de uma pureza original que não é maispossível ou a um fechamento da comunidade sobre si própria. (Bernt,1992: 26)

As minorias, por sua vez, também fariam um esforço para criar, novamente, suas

próprias narrativas, buscando uma originalidade cultural que os diferenciaria dos

antigos conquistadores. Se isso acontece, é porque já há nessa cultura,

invariavelmente, elementos da antiga estrutura dos estados-nação. Eles servem de

modelo de constituição de identidade, senão para a coletividade, pelo menos para

quem opera a narrativa. Pode-se pensar, por exemplo, que a estrutura de governo,

jurídica e educacional mantém-se no local sob os moldes do antigo estado colonizador.

Pode ocorrer que já se constituiu aí, dentre outras coisas, uma diferença de classes. A

narrativa da minoria pode ser gerada já no seio de uma elite local.

10 “O conceito (de soberania moderna) funcionou como pedra angular da construção do eurocentrismo.Apesar de a soberania moderna ter emanado da Europa, ela nasceu e se desenvolveu em grande partepor intermédio das relações da Europa com o exterior, e particularmente por intermédio do seu projetocolonial e da resistência do colonizado. A soberania moderna surgiu, portanto, como o conceito dareação européia e da dominação européia tanto dentro como fora de suas fronteiras”. (Hard & Negri,2003, p.92).

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O que acontece é que a condição de ‘ex-dominado’, de ‘ex-marginal’, já estaria

implícita na constituição mesmo da nova identidade que se forma. A relação, neste

caso, entre dominador e dominado, deve ser vista de outra perspectiva, pois já não é o

dominador que facilmente pode excluir ou inferiorizar o dominado em sua narrativa, mas

é o momento de o dominado criar a sua própria. Nesse momento, ele precisa reelaborar

a história de modo que ela pese favoravelmente para si. Como fazê-lo ao mesmo tempo

em que permanece o estigma da derrota? Como fazê-lo quando alguns componentes

da cultura do conquistador (como o pensamento maniqueísta que define a oposição

entre dominador e dominado) foram apropriados? É preciso lembrar que uma elite local

pode tanto assumir o partido das minorias quanto tentar conservar os padrões já

instituídos pelo antigo colonizador.

Esse contexto pós-colonial tem características muito peculiares, que se

configuram a partir de uma nova situação gerada pela decadência dos estados-nação.

Pelo menos dois tipos de cultura se apresentam e fazem lembrar os próprios conceitos

de cultura tratados no início deste capítulo: uma cultura de tendência universalista, ou

universalizante, descendente da cultura européia, ocidental, que se pretende um

modelo para o mundo; e outra cultura, remanescente de grupos nas sociedades

colonizadas que, não tendo o mesmo poder de difusão e influência da primeira,

procuram sustentar sua particularidade. Obviamente, essas culturas não estão isoladas

do contato entre si. Dentro do grupo, elas se manifestam em locais específicos, com

recursos específicos, com maior ou menor poder de disseminação.

Na América Latina, surgem produtos culturais que superam, consciente ou

inconscientemente, essa dicotomia entre culturas. Esses produtos se manifestam em

favor das culturas particulares, pois a universalista mantém seu status de verdade e de

essencialidade.

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3 A IDENTIDADE E AS TERMINOLOGIAS

Um outro contexto se desenha em relação aos estudos dos contatos entre

culturas: além das ciências sociais, surgem também os estudos culturais. As culturas e

identidades transcendem os limites dos antigos estados-nação e se projetam como

‘universais’ e ‘modernizadoras’, operando, sobretudo, pela hegemonia econômica das

sociedades às quais correspondem. Por outro lado, os grupos antes colonizados

reestruturam sua cultura, de diversas maneiras. O contato agora se dá entre essas

culturas universalizantes, descendentes das antigas grandes potências coloniais, como

é o caso das potências norte-americanas, e as culturas particulares (menores, exóticas,

marginais) remanescentes do processo colonial. Essa bipolaridade não reflete, em

todos os casos, o predomínio daquelas sobre estas, mesmo no período colonial. Burke

cita, por exemplo, a ação missionária na China, em que os religiosos europeus foram

obrigados ‘a se adaptar à cultura nativa, a fazer concessões’ (Burke, 2003: 66), porque

eram minoria e não dispunham de recursos para impor a sua cultura. Em outros casos,

como os da América Latina, a situação favoreceu a imposição.

Deve-se ressaltar que, nessa abertura de fronteiras ocasionada pela crise dos

estados-nação e da modernidade, a cultura universalista não é característica de apenas

um grupo. Apesar disso, ela pode ser representada por um, de acordo com o momento

(a exemplo de França, Inglaterra ou Estados Unidos). Ela se constitui de tendências

que se projetam globalmente através dos mecanismos de divulgação disponíveis,

estabelecendo diversos níveis de contato e hierarquia entre os diversos grupos e suas

culturas. O espaço globalizado é o campo fértil dos contatos interculturais. Segundo

Canclini:

Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade modernaquando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro,mensagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nessesprocessos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim com a autonomiadas tradições locais; propiciam mais formas de hibridação produtiva,comunicacional e nos estilos de consumo do que no passado. (2003, p.XXXI)

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Canclini toca num ponto fundamental para tratar dos contatos interculturais num

mundo pós-moderno11: a autonomia das tradições locais está diminuída. Elas já não

estão protegidas pelo isolamento. Este foi vencido pelas estradas, pelo comércio e, por

fim, pelos meios de comunicação em massa. Canclini coloca o ‘hibridismo cultural’

como o conceito mais apropriado para se estudar esse espaço globalizado, se referindo

a outros termos – como mestiçagem, sincretismo e criolização – como “tipologia de

hibridações tradicionais” (2003, p. XXXII). De maneira análoga, Peter Burke (2003), em

vários momentos, usa o termo ‘hibridismo’ (que vai já no título de seu livro Hibridismo

cultural) como termo geral para os processos interculturais, apesar de ressalvar que ele

não se aplica da mesma maneira em todas as situações. Um conceito inicial de

hibridação dado por Canclini é bem amplo:

Parto de una primera definición: entiendo por hibridación procesossocioculturales en los que estructuras o prácticas discretas, queesxistían en forma separada, se combinan para generar nuevasestructuras, objetos y prácticas. (Canclini, 2000)12

Essa definição, apesar da ressalva de Burke, tornou-se mais abrangente e

conseguiu sintetizar a idéia básica das outras terminologias: a formação de um produto

cultural diferente daqueles que o formam. Burke faz uma recuperação histórica do uso

de várias tipologias acerca dos processos interculturais, anotando que “todos os

termos... precisam ser manuseados com cuidado e que é mais fácil fazer isso se virmos

a linguagem da análise como sendo ela mesma parte da história da cultura” (Burke,

2003: 40). Com isso, ele insere a própria discussão teórica na esteira das trocas

11 O conceito de pós-moderno aqui é o sugerido por Canclini na mesma obra, quando diz que “amodernidade não é só um espaço ou um estado no qual se entre ou do qual se emigre. É uma condiçãoque nos envolve, nas cidades e no campo, nas metrópoles e nos países subdesenvolvidos. Com todas ascontradições que existem entre modernismo e modernização, e precisamente por elas, é uma situação detrânsito interminável na qual nunca se encerra a incerteza do que significa ser moderno... A essa altura,percebe-se o quanto tem de equívoca a noção de pós-modernidade, se quisermos evitar que o pósdesigne uma superação do moderno. Pode-se falar criticamente da modernidade e buscá-la ao mesmotempo em que estamos passando por ela? Se não fosse tão incômodo, seria preciso dizer algo assimcomo pós-intra-moderno”. (Canclini, 2003: 356)12 O híbrido é um elemento fundamental para os estudos culturais, no estudo do contato entre asculturas: “Freqüentemente é nas regiões fronteiriças que as coisas acontecem, e hibridez e colagem sãoalgumas de nossas expressões preferidas por identificar qualidades nas pessoas e em suas produções”.(Hannerz: 1997, p.8)

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interculturais. Os conceitos usados para analisar a cultura são, eles mesmos, produtos

de cultura e de identidade.

Em vista disso, e em meio a tantas terminologias conhecidas13, ao analisar uma

situação de contato intercultural, deve-se lançar mão da teoria que se apresente mais

adequada. No caso do romance de Ricardo Guilherme Dicke, objeto deste trabalho, a

teoria mais adequada parece ser a da transculturação. Para falar dela, no entanto, é

preciso tratar também de outro conceito já mencionado anteriormente: o de aculturação;

pois é em oposição a este que Fernando Ortiz, teórico cubano, propõe o uso do termo

‘transculturação’.

‘Transculturação’ foi adotado por Ortiz para substituir expressamente o termo

‘aculturação’. A diferença entre o uso dos dois termos marca a diferença cultural dos

grupos aos quais pertencem os seus elaboradores. A diferença conceitual marca a

diferença entre uma tendência universalista e outra particularista. Cuche, francês, sobre

o termo ‘aculturação’, diz que:

A palavra não designa uma pura e simples deculturação . Emaculturação , o prefixo não significa privação; ele vemetimologicamente do latim ad e indica um movimento de aproximação.(Cuche, 2002: 114)

Este termo é ‘resgatado’ por Burke em sua origem, nos trabalhos com índios dos

antropólogos do fim do século XIX, que têm por idéia fundamental “a de uma cultura

subordinada adotando características da cultura dominante” (Burke, 2003: 44). É o

mesmo conceito que Ortiz usa para criticar o vocábulo, chamando atenção para as

perdas e as reformulações que ocorrem em cada cultura envolvida no contato, e que o

conceito negligencia:

Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor oprocesso de transição de uma cultura para outra, porque este processonão consiste somente em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor,significa o vocábulo anglo-saxão acculturation, porém o processo implicatambém, necessariamente, na perda, no desenraizamento de umacultura anterior, o que se poderia chamar de uma desculturação parcial,

13 Cf. Burke, 2003. Não se quer, aqui, repetir o trabalho de Burke e outros que realizaram essa revisãoteórica dos conceitos. Trata-se, aqui, de, dentro dos processos reunidos sob o conceito de hibridação, verqual se identifica mais com os objetos culturais em questão.

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e, além do mais, significa a criação conseqüente de novos fenômenosculturais, que se poderiam denominar neo-culturação. (Ortiz, 1983)14

Na página 15 do presente trabalho, a definição de ‘aculturação’, no Memorando

para o estudo da aculturação, é bem menos carregada ideologicamente. As aquisições,

nele, se dão em qualquer sentido, em qualquer cultura que esteja envolvida no contato,

seja ela subordinada ou dominante. Cuche, analisando esse conceito, anota que a

dominação social implica uma maior tendência à prevalência da cultura do grupo social

dominante. No entanto, nesse processo, os grupos seriam apenas sustentáculos da

cultura, que pode se mover de um a outro grupo, dependendo da constituição de cada

um (Cuche, 2002: 145). Apesar da definição do Memorando, o vocábulo ‘aculturação’

parece não ter conseguido se desvencilhar do estigma inicial, elaborado no século XIX,

em que o subordinado assimila a cultura do dominador.

A definição de ‘aculturação’ do Memorando revela um caráter higiênico e

universalista, na medida em que, vinda de culturas de grupos hegemônicos,

privilegiados historicamente, não traz em si mesma a marca da derrota e da perda.

Elabora um conceito que se quer aplicável a todos os contatos humanos. A

transculturação surge como categoria para pensar a situação dos povos que antes

foram os dominados, colonizados, e agora são os que sofrem pela diferença econômica

e social, na América Latina e caribenha. É um termo cunhado a partir do ponto de vista

de uma cultura cuja sociedade sofreu perdas ao longo de anos. A elaboração dos

elementos identitários e do próprio conceito, nesse caso, reflete a necessidade da auto-

afirmação e da revelação de uma história das perdas e, principalmente, das conquistas.

A forma de resistir a essa perda não seria a simples conservação ou resgate dos

elementos tradicionais, mas a elaboração de novos, que mantivessem a unidade

cultural e identitária do grupo.

O fator que permite a positivação do processo de aculturação é a desvinculação

conceitual entre cultura, sociedade e identidade. O conceito de ‘cultura’ para a

aculturação guarda uma relativa independência do confronto entre os grupos sociais,

14 Ortiz usa termos como ‘transmutação’, ‘sincretismo’, ‘transmigração’ e ‘mestiçagem’ como equivalentesde transculturação, além de determinar as fases do processo: desculturação, aculturação e, por fim,transculturação. (Ortiz, 1983)

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pois estes são suportes, entre os quais ela pode se transferir. Para a América Latina e

Caribe, no entanto, o processo violento de sua colonização e também de sua libertação

não permite essa abstração da cultura. A sua condição de sociedade subjugada que,

depois, se torna marginal, interfere na percepção de si mesma. A nova cultura, que

surge transculturada, surge também como produto da resistência, consciente ou

inconscientemente, à perda cultural, testemunho da sobrevivência15.

Não se pode considerar, no entanto, para este caso, expressões do tipo ‘cultura

dominada’ como metáforas (como faz Cuche a respeito da análise de Marx e Weber em

Cuche, 2002: 145), pois a dominação é parte constituinte dessa cultura. O que faz com

que o conceito de cultura se contamine pela experiência do grupo é justamente a

identidade16. A identidade constituída de grupo dominado interfere na elaboração do

conceito de ‘transculturação’, assim como a identidade de dominador (e de universal),

interfere na elaboração do conceito de ‘aculturação’. Essa polarização se transmuta,

como já se viu, na dicotomia entre cultura universalizante e cultura tradicional, no

período pós-colonial. Essa dicotomia ainda adquire outras implicações, principalmente

referentes ao desenvolvimento social e tecnológico. As culturas tradicionais carregam o

estigma de atraso, enquanto que as universalistas se apresentam como

modernizadoras. Estas têm como suporte as grandes cidades do mundo, nos países

política e economicamente hegemônicos e nos países em desenvolvimento. Aquelas

estão espalhadas nos espaços rurais ou periféricos. Este estigma se reflete na

constituição da idéia de cidade como símbolo da inovação, da modernização, enquanto

o meio rural assume a representação da tradição. Essa é a correspondência que

Raymond Williams estabelece para as relações entre campo e cidade na Inglaterra:

Por exemplo, é significativo que a imagem comum do campo seja agorauma imagem do passado, e a imagem comum da cidade, uma imagemdo futuro. Se as isolarmos deste modo, fica faltando o presente, a idéiado campo tende à tradição, aos costumes humanos e naturais. A idéia

15 Não no mesmo sentido de sobrevivência utilizado por Herskovits, para quem sobrevivências culturaissão ‘elementos da antiga cultura conservados idênticos na nova cultura sincrética’. (apud Cuche, 2002:120)16 Renato Ortiz, tratando d’O Guarani, de José de Alencar, como a construção de um mito de fundaçãoda brasilidade, diferencia as experiências românticas européias da brasileira: “No entanto, parece-me queexiste uma diferença entre a construção das nacionalidades na Europa... Os países europeus possuíamum passado histórico que servia de alimento para a construção dos românticos.” (1988, p.261)

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da cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento.(Williams, 1989: 397)

Williams trata da constituição dos espaços do campo e da cidade nos discursos

histórico e literário, na Inglaterra. O contraste entre campo e cidade, no entanto, não

resolve o problema. Segundo ele:

num presente vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entrecampo e cidade para ratificar uma divisão e um conflito de impulsosainda não resolvidos, que talvez fosse melhor encarar em seus própriostermos. (Williams, 1989: 397)

A diferença entre esta maneira de ver esse contraste e o ponto de vista da

transculturação é que, no caso da América Latina, o campo não representa somente

uma idéia de tradição, mas é o espaço identitário de grupos sociais de culturas

diferentes da cultura da cidade. O campo e a cidade não são faces de uma mesma

cultura, como no caso tratado por Raymond Williams. Sendo assim, a relação entre elas

será tratada, para o caso posto aqui em questão, sob o termo ‘transculturação’, com as

implicações atribuídas a ele por Angel Rama. Este autor discute algumas produções

literárias latino-americanas a partir da dicotomia entre cultura tradicional (denominada,

também, de rural e regional) e cultura modernizadora (denominada, também, de

universalizante ou universalista), no sentido atribuído a esses termos neste capítulo.

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4 LITERATURA E TRANSCULTURAÇÃO

Essas relações também se encontram na literatura, já que ela é parte da cultura

e pode servir, em muitos casos, de instrumento de constituição da identidade. Quanto

mais a literatura for palco dessas questões, tanto mais importante ela é para a

sociedade e as culturas em questão. Segundo Angel Rama, na América Latina, o

conteúdo cultural das culturas locais:

só por intermédio da literatura alcançara sobrevivência, cancelando-sesua ação eficaz, integradora, sobre o meio nacional, que aparentementenão podia ser cumprida por outros canais pelo menos em seu nívelartístico. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 210)

As relações entre uma cultura universalizante e uma cultura particular via

literatura ganham, quando Rama adota o conceito de transculturação de Ortiz, outra

perspectiva de análise, em que entram a experiência da dominação colonial e da

inferioridade econômica e política. Daí o fato, segundo Rama, de a narrativa latino-

americana ter como aspectos ou intenções fundamentais a independência e a

originalidade:

Siempre, más aún que la legítima búsqueda de enriquecimientocomplementario, las movió el deseo de independizarse de las fuentesprimeras, al punto de poder decirse que, desde el discurso crítico de lasegunda mitad del siglo XVIII hasta nuestros dias, ésa fue la consignaprincipal: independizar-se...El critério de representatividad, que resurge em el período nacionalista ysocial que aproximadamente va de 1910 a 1940, fue animado por lasemergentes clases medias que estaban integradas por buen número deprovincianos de reciente urbanización. (Rama, 1982: 11-15)

Nessa citação, dois aspectos são muito importantes no pensamento acerca da

literatura latino-americana: o desejo de se diferenciar da metrópole colonial e a maneira

como isso foi feito, tendo como aspecto fundamental o que o teórico chama de critério

de representatividade. Antonio Candido declara, na introdução à sua Formação da

Literatura Brasileira, essa mesma tendência que, a princípio, constituiu parte de um

projeto de independência em relação à metrópole e, depois, se desenhou numa

oposição universalismo/localismo. Seu livro “constitui uma história dos brasileiros no

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seu desejo de ter uma literatura”.17 (2000, p.25) Esse desejo de independer-se se

materializa, na literatura de início, na escolha do elemento local como aspecto

representativo fundamental no processo de diferenciação. Esse processo se aplica à

América Latina de maneira geral, incluindo o Brasil:

O regionalismo acentuava as particularidades culturais que haviam sidoforjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir seuperfil diferencial.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 211)

Rama faz, nessa passagem, dois apontamentos importantes: primeiro, que o

regionalismo incidia sobre as particularidades do local; segundo, que essas

particularidades foram forjadas, o que reitera a idéia do projeto de independência

literária, no Brasil e na América Latina, apontado por vários autores. A cor local não é

um dado natural, mas uma seleção de elementos que serão utilizados para representar

uma determinada cultura, para identificá-la. Regina Zilberman escreve que:

A história da literatura consolidava-se em conformidade com a estéticaromântica, e essa se apoiava na noção de cor local.18 (Zilberman, 1999:27)

Essa é a idéia de regionalismo com que se irá trabalhar adiante. O regionalismo,

na perspectiva de Rama 19 , consiste na representação artística de aspectos locais

escolhidos como ícones arquetípicos de uma cultura que se quer manter frente ao risco

do desaparecimento. Essa postura, no entanto, acaba por idealizar a relação entre a

‘cor local’ e a cultura que ela representa. Exemplo disso é o caso do índio no

romantismo brasileiro, que se aproxima muito pouco da realidade que intentava

17 Candido escreve: “Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir umaliteratura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus... Depois daindependência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço deconstrução do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava adiferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los.” (2000, p. 26). Conferir ainda o artigoHistória da Literatura e Identidade Nacional, de Regina Zilberman (1999), assim como o artigo de RenatoOrtiz, já citado.18 Um dos primeiros a colocar em discussão essa idéia de cor local, no Brasil, foi Machado de Assis, noensaio intitulado Noticia da atual literatura brasileira ou instinto de nacionalidade, em que o autor vaichamar atenção para o fato de que a cor local não determina a qualidade literária de uma obra.19 Gilvone Furtado Miguel (2001), estudiosa de Ricardo Guilherme Dicke, aponta em Candido essemesmo conceito de local, para afirmar que o romancista não se enquadra nesse conceito. O local, nessesentido, tem um efeito limitador para a obra artística, funcionando em Dicke apenas como pano de fundo,como espaço inerte, cenário para o desenrolar da intriga. (Miguel, 2001: 9)

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representar. Esse caráter de cor local visa a uma constituição do caráter particular

(neste caso, regional, em oposição ao nacional), em relação a algum valor posto por

uma tendência universalizante.

Em Rama, esse caráter reflete um anseio em afirmar uma identidade baseada na

tradição buscada nos meios interioranos da América Latina. Essa atitude tem como

objetivo confrontar a tradição com a cultura das formações urbanas, cuja tendência é

absorver a tradição, submetendo-a aos modelos universalistas urbanos dos grandes

centros que, por sua vez, enfrentam esse mesmo processo em relação às culturas

vindas das grandes metrópoles mundiais20. A metrópole latino-americana reproduz, na

sua relação com as culturas do interior, sua relação de conflito com as culturas

mundiais, difundindo também o modo de vida urbano:

La cultura modernizada de las ciudades, que se respalda em las fuentesexternas, traslada al interior de la nación un sistema de dominación (queha aprendido de su propria dependencia de sistemas culturalesmundiales) apelando a los nuevos eficaces instrumentos de que la dotala tecnologia reciente, o sea, que no lo asocia a su evolución sino queintensifica su sometimiento. (Rama, 1982: 20)

De maneira análoga, mas estabelecendo uma relação entre opressores e

oprimidos, centro e periferia, desenvolvidos e dependentes, Eduardo Galeano, outro

uruguaio como Rama, enxerga essas mesmas relações, de uma perspectiva político-

econômica:

A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimentoda metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependênciassucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certotambém incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos paísespequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cadapaís, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobresuas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (2002, p.14)

20 A Semana da Arte Moderna no Brasil foi um caso em que a intelectualidade brasileira pensou aconstituição da nacionalidade frente aos padrões europeus de cultura e pensamento, conflito quesuscitou o surgimento de um conceito importante, que se aproxima da idéia de transculturação, que é ode Antropofagia.

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No Brasil, as metrópoles nacionais que representam as culturas modernizadoras

são as cidades de Rio e São Paulo – bastante presentes na narrativa de Ricardo

Guilherme Dicke – representantes ícones do progresso devastador. A superioridade

econômica e tecnológica é imprescindível nesse processo.

Rama estabelece três reações das culturas dominadas em relação ao processo

modernizador vindo das metrópoles: a vulnerabilidade, a rigidez e a plasticidade

cultural. A primeira se caracteriza por uma renúncia às próprias particularidades; a

segunda por uma fixação nos produtos culturais próprios e a terceira, que caracteriza a

transculturação, reelabora o elemento externo a partir do interno e vice-e-versa. O que

Rama vai apontar nas narrativas de transculturação é que nelas os autores ‘resolvem’ o

problema através da assimilação das tradições locais, associando-as às novas

tendências e estruturas artísticas, caracterizando “‘a plasticidade cultural’ com sua

destreza para integrar em um produto as tradições e as novidades” (apud Aguiar &

Vasconcelos, 2001: 214). Essa plasticidade cultural se deu como relativização da própria

linha regionalista, que notou que a resistência radical implicaria em morte cultural,

operando então uma transmutação do regionalismo que salvou seus princípios

dominantes:

Um grupo de escritores viu com lucidez, que se o regionalismo fossecongelado em sua disputa com o vanguardismo e o realismo-crítico,entraria em agonia de morte. Esta interromperia um rico fluxo de formasliterárias, mas também acarretaria a extinção de um conteúdo culturalmuito mais amplo, que só por intermédio da literatura alcançarasobrevivência, cancelando-se sua ação eficaz, integradora, sobre o meionacional, que aparentemente não podia ser cumprida por outros canaispelo menos em seu nível artístico. (apud Aguiar & Vasconcelos: 2001:211)

A tendência dos meios urbanos à universalidade e a tendência às migrações

internas em direção às cidades fazem com que a cultura de tendência universalista se

alastre. A literatura foi o único meio, segundo Rama, que manteve viva a identidade das

tradições rurais na América Latina, ou pelo menos teve essa intenção. Essa

manutenção, no entanto, não está calcada no resgate e preservação das tradições

rurais, senão na reelaboração dessa tradição a partir de elementos híbridos que,

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aproveitando-se de aspectos da cultura universalizante, mantêm-se como material para

criação viva e não para apreciação museológica.

Rama estabelece três níveis para o estudo das narrativas de transculturação na

América Latina: o lingüístico, o da composição literária e o dos significados (ou da

cosmovisão). O primeiro nível caracteriza-se pela:

perda do uso das linguagens dialetais, rurais ou urbanas, e, claro, daslínguas indígenas, e mesmo no campo lexicográfico abandonam muitostermos com os quais os crioulistas salpicavam seus escritos...Compensam isso com uma ampliação significativa do campo semânticoregional e da ordem sintática. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 215)

Os estudos de Rama se centram na língua indígena, pois o contexto que aborda

é o do contato entre o espanhol, principalmente, e o indígena da América. Essa relação

é análoga no Brasil, tanto em relação ao indígena quanto ao negro e, posteriormente,

às comunidades rurais já descendentes de uma primeira transculturação, estabelecidas

no interior do país. Estas já configuraram, no momento em que chega a cultura

modernizadora através das metrópoles ou capitais próximas, suas práticas sociais e

culturais.

A língua forjada pelos romancistas da transculturação não seria nem a língua

dessas comunidades rurais, nem a usada nos centros urbanos. Seria uma elaboração

artística que utiliza ambas para efeito estético e, sem dúvida, ideológico, pois, em geral,

o romancista toma partido da cultura rural, que se vê cercada pela outra, possuidora de

meios de transmissão e manutenção mais potentes. O trecho a seguir, de um dos

romances de Dicke, ilustra bem essa característica. O ritmo da linguagem sertaneja

transcrita com a correção gramatical e pausas de oralidade grafadas em períodos

longos, prosaicos:

Quem sabia o que Damiano Belo pensava? Coisa mais difícil. Sómesmo Deus. Porque das cinco ou seis mortes ou vidas ninguém sabe

das quais era dono, havia uma pobre velha, diabo de homem capaz dematar velha, a verdade dói mais e dói tanto porque é verdade, velhinhaigualzinha à própria mãezinha dele, que morrera a tiro de esmo e deacaso na beira do rio. Vinha diz que porque se fora foi para receber umaherancinha antiga. (Dicke,1978: 10)

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O segundo nível da transculturação é o da composição literária, em que as

inovações se dão no plano da narração. O autor da transculturação foge ao tipo de

composição tradicional do regionalismo, que possuía uma “concepção racionalizadora,

muito rígida, filha do sociologismo e do psicologismo do século XIX”, mas também não

usa o recurso do stream of consciousness, marca de muitas narrativas modernas.

Rama aponta que a saída encontrada para se produzir nessa região de fronteira

também foi buscada na tradição, para isso cita o monólogo interior, em João Guimarães

Rosa 21 e “o contar dispersivo das ‘comadres’, suas vozes sussurantes, em Pedro

Páramo, de Juan Rulfo, também composto de fontes orais, embora possa ser rastreado

até em textos do Renascimento”. (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 221)

Esse aspecto é o mais importante em Dicke, pois é o que diz respeito ao ponto

de vista, ao modo de narrar. O romancista, no entanto, não se enquadra nestes dois

exemplos dados. Sua narrativa, além de se alternar entre diversas formas já conhecidas

de narrar, desenvolve uma manipulação do foco narrativo, investindo na alternância das

pessoas gramaticais e flexões verbais de maneira singular. Sua escrita se torna

labiríntica, dispersiva, exigindo uma atenção um pouco mais açulada.

O trecho a seguir foi retirado de O salário dos poetas, cujo personagem central é

um ex-ditador latino-americano exilado no interior de Mato Grosso, numa fazenda

chamada ‘Anhagá’. El general, como é conhecido, está prostrado numa cama por causa

de um tiro na barriga e, durante essa prostração, relembra seus tempos de governo e

se angustia pela sua incapacidade. Neste trecho, dá-se a passagem da terceira para a

primeira pessoa:

Espero que ninguém mais venha, sumiu, silêncio percorre agora afazenda Anhangá como sempre percorreu, percorrida por miriápodes desilêncio de almas de assassinados que retumbam, aliás mas nem tanto,e o general sente uma lancinante sensação de estar sendo observado,olhos observadores que observam que estão sendo observados, azuis egélidos, alguém que não chega a ser tão familiar com Arbaces, o sempre

21 É importante frisar que há um senso comum de que a obra de Dicke mantém relações com a deGuimarães Rosa. O autor mato-grossense deixa algumas marcas de intertextualidade com o autormineiro e possui um estudo sobre o Grande Sertão: Veredas, além de ter o autor mineiro como jurado deum de seus romances premiados. Apesar disso, acredito que nem mesmo a idéia de ‘sertão’ é a mesmanos dois, pois se em Rosa ele representa a busca existencial, em Dicke ele funciona como o espaçoalternativo para a vivência e resistência do pobre. Nessa medida, Dicke se aproxima muito mais daexperiência latino-americana, pois toma partido pela defesa explícita do oprimido. O seu sertão não éfilosófico como o de Rosa, ou não apenas.

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fiel, examinado por penetrantes olhos que só podem ser do além , quefendem a alma e lancinam o córtex, e quem terá contas que ver com oalém a não ser eu, quem fez do poder uma cloaca sem fim, num baraçode enviar almas antes do tempo para o Além? (Dicke, 2000: 225)

Aqui, pois, as categorias de personagem, narrador, ou mesmo de personagem-

narrador não se aplicam perfeitamente. Ao mesmo tempo em que a voz que seria a do

narrador apresenta um certo distanciamento, que caracteriza a onisciência, logo em

seguida, na mesma frase, irrompe uma seqüência que claramente é uma fala do

general. As vozes não se fundem totalmente formando um narrador-personagem, mas

também não estão tão separadas para que se possa definir o momento em que cada

categoria exerce sua função. Essa indefinição se reforça pela homogeneidade

lingüística que o trecho e o romance como um todo, apresentam.

O terceiro nível é o dos significados. Aqui os romancistas da transculturação

escapam tanto do racionalismo lógico da narrativa regionalista, quanto da ilogicidade

defendida pela vanguarda. O elemento de descoberta (ou redescoberta), que torna a

produção desses autores inovadora, é o mito. Essa prática, no entanto, não consiste

simplesmente no resgate desses elementos:

mais importante ainda que a recuperação de elementos em estado deincessante emergência é a descoberta dos mecanismos mentaisgeradores do mito, o retorno a essa camada aparentemente sepultada ,mas de enorme potencialidade, na qual se desenvolvem as açõesmíticas.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 224)

O mito não se presta, nessa narrativa, ao resgate para sua apreciação e

preservação. Ele se torna novamente e de maneira nova, estrutura mental (ou pelo

menos literária) segundo a qual se interpreta a cultura modernizadora e mesmo a

tradição. Gilvone Furtando Miguel (2001), aponta a reatualização mítica como uma das

principais características do romancista.

A reatualização e a constituição míticas do pensamento servem como filtro para

se interpretar a relação econômico-cultural e o conflito entre a cultura tradicional e a

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cultura universalista22 , modernizadora. Os autores da transculturação buscam seus

recursos na tradição das culturas às quais pertencem, e só conseguem produzir assim

justamente porque também eles são produto do contato entre as culturas tradicionais e

as culturas universalistas, como se verá no caso de Dicke, adiante.

22 Usar-se-á sempre os termos ‘universalista’ ou ‘de tendência universal’ e ‘modernizadora’ ou ‘detendência modernizadora’, na tentativa de marcar que essas qualidades não são dadas, mas são umdiscurso construído que se pretende universal, pois se alastra juntamente com o sistema capitalista e tema favor de si inúmeros instrumentos ideológicos que reproduzem a cultura de determinados grupos comosendo um padrão para todas as outras culturas.

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5 O AUTOR DO ESQUECIMENTO E O ESQUECIMENTO DO AUTOR

Ao realizar uma breve busca de informações a respeito de Ricardo Guilherme

Dicke na internet, percebe-se que há uma onda de homenagens e apologias ao autor,

que chega a ser considerado um dos maiores romancistas vivos do Brasil23. No entanto,

apesar de sua brilhante história literária, com prêmios para os que, hoje, são

considerados seus principais romances,24 o autor não goza, ou não gozava até pouco

tempo atrás (considerando-se o início de sua carreira em 68), de prestígio, tanto no

meio acadêmico, quanto, e principalmente, no meio editorial e popular. Do que se

escreve ou já se escreveu sobre o autor, destacam-se alguns gêneros de escrita como

notícias da mídia, resenhas ou críticas curtas (incluindo-se aí textos de orelhas de livro

ou resumos de capa), os prefácios das edições de seus livros e trabalhos acadêmicos,

estes ainda poucos.

As notícias e resenhas comprovam dois aspectos acerca de Dicke: o seu

isolamento e, mais recentemente, a sua valorização enquanto intelectual e grande

escritor de romances, acompanhados de pedidos de reedição ou algo do gênero. Há

críticos e artistas, como Leo Gibson Ribeiro e Glauber Rocha25, sempre chamando, ou

sendo citados para chamar, atenção para o autor de grande talento esquecido e isolado

no Mato Grosso, rogando a ‘urgência urgentíssima’ (palavras de Leo Gibson Ribeiro,

segundo Lorenzo Falcão26) de se reeditar os romances de Dicke.

As notícias também dão conta das homenagens e menções que Dicke começa a

receber por aqui, além de todas as premiações que já recebeu. As primeiras

manifestações de interesse por seu trabalho são as dissertações de Gilvone Furtado

Miguel e Hilda Gomes Dutra Magalhães, em 2001. Em 2002, foi criado o Grupo de

Estudos em Literatura e Cultura de Mato Grosso: RG Dicke, coordenado por Mário

Cezar Silva Leite. Em 2004, Dicke recebeu o título de doutor Honoris Causa, pela

23 Cf. site Tribuna da Imprensa, de 17/01/2005. http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2005/janeiro/17/bis.aspbis= estante24 Destaque para Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos.25 Que Lorenzo Falcão, jornalista e escritor, amigo e atual agente de Ricardo Guilherme Dicke, areferência para os assuntos dickeanos no momento, resgata no seu texto sobre O salário dos poetas emFalcão, 2006.26 Lorenzo Falcão é jornalista e escritor em Cuiabá e tem atuado como agente de Ricardo GuilhermeDicke, sendo um dos grandes colaboradores para a sua ‘redescoberta’.

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Universidade Federal de Mato Grosso e uma Moção de Aplauso da Assembléia

Legislativa do Estado de Mato Grosso. Dois filmes foram produzidos a partir de seus

romances: Cerimônias do Esquecimento (do romance homônimo), num roteiro

premiado pelo DOCTV (2004), de Eduardo Ferreira, e Figueira Mãe (adaptação de

Madona dos Páramos), longa de Amauri Tangará, cineastas também mato-grossenses.

Dois de seus textos foram adaptados para o teatro: em 2003, a peça Belarmino e o

guardador de ossos, por Amauri Tangará, baseada no conto Banzo; em 2005, a peça O

salário dos poetas, baseada no livro homônimo, pela companhia portuguesa O Bando,

do diretor João Brites. Por fim, a homenagem na Literamérica I Feira Sul-Americana

do Livro, promovida em setembro de 2005 pela Secretaria Estadual de Cultura e pela

ONG AlimeMTo, Associação dos Amigos do livro Mato-grossense.

Essa mudança de postura em relação a Dicke, claro, reflete uma mudança de

configuração do contexto histórico-literário em Mato Grosso. O fato chama atenção,

principalmente, porque a situação de isolamento de Dicke se dá desde o início de sua

carreira, período durante o qual a produção de literatura em Mato Grosso e a

divulgação de seus autores continuaram funcionando.

O motivo mais aparente, que surge em meio a essa discussão, para esse

‘esquecimento’ do autor, tem a ver com um assunto que a cada dia vem tomando mais

corpo nas discussões acadêmicas e nas políticas culturais e leis de incentivo à cultura

no estado27: o regionalismo, na perspectiva já tratada anteriormente. Os estudos acerca

do regionalismo literário (e cultural) em Mato Grosso tomam grande impulso,

recentemente, com a instituição, pela Universidade Federal de Mato Grosso, do

Mestrado em Estudos de Linguagem, em 2003, que tem como uma das orientações

principais, na área da cultura, lançar um novo olhar para as produções culturais

produzidas em/sobre/por autores de28 Mato Grosso e suas relações com a cultura e a

sociedade local.

27 Na forma de estudos acadêmicos sobre artistas do estado, tanto da Universidade Federal de MatoGrosso quanto da Universidade do Estado de Mato Grosso; na discussão acerca dos critérios paraaprovação dos projetos pela lei de incentivo à cultura e às políticas para o fomento cultural, como aLiteramérica, nas quais se avalia o que é mato-grossense ou não;28 Essas três preposições são um ponto fundamental na discussão sobre o que define a literatura comomato-grossense. Cf. o primeiro capítulo de Hilda Magalhães à sua Historia da Literatura Mato-grossense,de 2001, e o ensaio de Mário Cezar Leite na coletânea Mapas da Mina, de 2005.

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De acordo com a análise que se seguirá, Dicke não se enquadra nos paradigmas

literários elaborados pela produção regionalista mais tradicional (ou de Cuiabá, seu

espaço mais específico). Por outro lado, também não escapa mais, atualmente, a essas

questões acerca da cultura local, porque o espaço de seus romances é

impreterivelmente Mato Grosso, porque já é, há algum tempo, tema de interesse para

acadêmicos das universidades locais e, principalmente, porque, mesmo não se

enquadrando num discurso tradicional regionalista mato-grossense, caracterizado,

sobretudo, pelo ufanismo à terra e pela valorização das belezas naturais e culturais de

Mato Grosso, é tomado hoje como um dos grandes representantes da arte do Estado,

não somente pelos críticos e artistas nacionais, como o provam as referências, mas

pelos agentes culturais e pensadores locais.

Revisando a história literária de Mato Grosso, aparecem duas importantes

instituições, tomadas aqui como representantes de duas tendências que paralelamente

atuam no contexto literário do Estado: a Academia Mato-Grossense de Letras, mais

antiga, e que representa a tradição literária e o “panteão” das letras mato-grossenses; e

a Universidade Federal de Mato Grosso, calcada no estudo científico das relações

culturais29 . Ambas, sob a denominação de Academias, têm, no entanto, papéis e

objetivos muito claros no meio em que atuam.

Mário Cezar Silva Leite, professor de Literatura da Universidade Federal de Mato

Grosso e incentivador dos estudos e produções literárias no Estado, acaba de publicar

um artigo sobre o regionalismo que envolve a Academia Mato-Grossense de Letras e o

movimento modernista em Mato Grosso. A partir de uma revisão dos conceitos de

regionalismo e identidade cultural, que vão desde Machado de Assis, com seu famoso

‘Instinto de nacionalidade,’30 passando por Antonio Candido31 e Lúcia Miguel Pereira

29 Representados pela primeira estão as instituições do tipo Instituto Histórico-Geográfico, a FundaçãoCultural de Mato Grosso; junto à segunda estão as instituições de ensino superior, com destaque àUniversidade do Estado de Mato Grosso, e as instituições e projetos culturais como SESC Arsenal e oProjeto Palavra Aberta. Cf. em nota de rodapé de Leite, 2005: 233.30 Cf. ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade. InCOUTINHO, Afrânio (org.). Machado de Assis. Obra completa. V III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992,p.801-809.31 Cf. Candido em seus livros ‘Literatura e sociedade’, ‘Formação da Literatura Brasileira: momentosdecisivos’ e ‘Silvio Romero: teoria, crítica e história literária’. Candido, procura sempre destacar anecessidade de afirmação do local nas produções brasileiras, colocando o nativismo como um dosaspectos definidores de nosso público leitor. Cf. Candido, 1967: 93-94 e 151.

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(1988), que trata do regionalismo sertanista, Leite, mais do que a uma conclusão,

chega à constatação de uma fragilidade nas manifestações artísticas calcadas num

espírito regionalista, que consiste na concepção do indivíduo como síntese do meio:

Pela necessidade de elaborar uma personagem ou personagens que,em tese, representem de algum modo uma coletividade, que engendremuma possível identidade coletiva relacionada diretamente ao local ouregião ou apenas eleger e exaltar as belezas naturais ou elementoseleitos para tal esta literatura, via de regra, permanece num plano desuperficialidade criando muito mais tipos e estereótipos do quepersonagens em seus traços pessoais e nas suas dimensões humanas.(Leite, 2005: 231)

O regionalismo, aqui, tem a mesma fragilidade do regionalismo definido por

Angel Rama: é aquele que, incidindo sobre elementos culturais selecionados (forjados)

para representar o local, simplifica e reduz a cultura a esses símbolos abstratos. A

identidade cultural, como já se viu, está diretamente vinculada com a discussão sobre o

regionalismo. Ao lançar um olhar sobre textos de representantes da Academia Mato-

grossense e sobre livros de história da Literatura de Mato Grosso (exceto o de Hilda

Gomes Dutra Magalhães, que é apontado como o primeiro onde a ‘questão regional se

apresenta como uma questão a ser pensada’), o teórico destaca o caráter ‘regional’

desses textos a partir daqueles aspectos:

Parece que isto se dava porque seus trabalhos e publicações seinseriam no conjunto de esforços para a construção da grandiosidadedas qualidades literárias e culturais falar sobre a produção local,participar da construção das personalidades proeminentes etc. desdeque isso estivesse ligado e ressaltando as qualidades regionais. (Leite,2005: 235)

E ainda:Para a minha perspectiva nesta pesquisa e trabalho tanto a obra deRubens de Mendonça quanto a de Lenine Povoas também devem serpensadas como fundamentais participantes da criação do discursoregionalista. (Leite, 2005: 233)

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Leite vai mais além, ao pensar na produção dos modernistas, tendo como foco

central a revista Pindorama 32 , que também se insere nesse mesmo discurso

regionalista, pelo elo com a geração anterior através de Rubens de Mendonça, que

‘encabeçava a revista’ e pelo próprio teor ideologicamente regionalista dessas

produções. Ressalta ainda a absorção dos novos escritores pela Academia Mato-

grossense de Letras, sinal de que não haveria um efetivo rompimento entre as

gerações, pelo menos no que diz respeito à ideologia e não à disputa pela renovação

estética (Cf. Leite, 2005: 247-248). A ideologia regionalista continuaria mesmo com os

vanguardistas.

O texto de Leite marca muito bem, na história literária de Mato Grosso, a

distinção entre um discurso regionalista tradicional, que abarca historiadores,

jornalistas, escritores, que têm como objetivo a edificação da grandeza mato-grossense

(cuiabana, mais especificamente) e um outro científico (universitário), que debate

justamente essa postura edificadora. O primeiro está ligado à Academia Mato-

grossense de Letras e o segundo às universidades, entre as quais se destacam à

Universidade Federal de Mato Grosso e à Universidade do Estado de Mato Grosso, em

particular, ao curso de Letras, pois há, na AML, professores das universidades de

outras áreas, como Direito ou Medicina, seguindo uma tradição dos escritores

brasileiros. Ambos os discursos produzem tanto a literatura quanto a crítica e a história

referentes à arte no Estado. Durante muito tempo, esses dois discursos se mantiveram

paralelamente.

Houve, e ainda há, dessa forma, em Mato Grosso, um alheamento entre essas

classes produtivas, pelo menos no que concerne ao discurso científico-histórico. Pode-

se constatar tal ocorrência pelo fato de que um livro recentemente lançado por Carlos

Gomes de Carvalho, da Academia Mato-grossense de Letras, 2004, não cita

referências a trabalhos universitários contemporâneos de outros que figuram nas suas

notas,33 apesar de contar com um texto de Lucinda Persona.

32 E outros periódicos produzidos como Sarã, Ganga e o Manifesto do Movimento Graça Aranha.33 O livro de Carvalho, intitulado ‘Panorama da literatura e da cultura em Mato Grosso’, dá conta de textoshistóricos que são também utilizados em textos como os de Leite (2005) ou Magalhães (2002), mas nãohá referências a trabalhos universitários como o de Hilda, da área de linguagens, em suas consideraçõesiniciais. Cf. Carvalho, 2004: 13-29.

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O ‘lado’ universitário não se mostra tão estanque assim, haja vista os trabalhos

de Magalhães e Leite, talvez porque a questão regional não seja um problema para os

acadêmicos da Academia Mato-grossense. Para estes, o problema (e o objetivo), ainda

segundo Leite, é elevar a ‘legítima’ cultura mato-grossense à esfera representativa

nacional. Mesmo assim, percebe-se também que há uma leva de escritores recentes

publicando literatura por uma também nova leva de editoras, nacionais e locais. Autores

como Lucinda Persona, Aclyse e Gabriel de Mattos, Wander Antunes, a própria Hilda

Magalhães, Marta Helena Cocco, Marilza Ribeiro, Teresa Albues; editoras como

TantaTinta e Cathedral; revistas como a revista eletrônica (hospedada no site da UFMT)

Prosa Virtual e outras como Versoeprosa e Dazibao e, principalmente, a revista Vôte,

instrumentos de divulgação que instauraram uma espécie de boom literário mato-

grossense34. Vinculam-se à ‘cultura mato-grossense’ de uma maneira diferente, menos

apologética e ufanista, daquela mantida pela Academia Mato-grossense.

Apesar disso, mesmo essa ‘nova geração’, de uma maneira análoga ao que Leite

aponta para os vanguardistas, parece também estar ideologicamente absorvida por um

discurso regionalista identitário. A revista eletrônica Prosa Virtual35, hospedada no site

da Universidade Federal de Mato Grosso, se apresenta da seguinte maneira:

Vivemos um grande momento para produção literária em Mato Grosso,resultado obtido em parte pelo uso que os escritores têm feito das leisde incentivo à cultura para publicação de seus livros e revistas, pararealização de projetos de divulgação e intercâmbio com autores deoutros Estados, e do resultado da articulação de uma comunidade deescritores e editores que trançam juntos o tecido de uma nova realidadeeditorial para Mato Grosso... E se essa apresentação vai tomando aresde manifesto, porque é necessário pensar estratégias que superem essaalienação do Mato Grosso em relação a suas obras, temos queconsolidar nosso sistema literário, reforçar essa tríade, que hoje éesquálida, de leitores, crítica e autores. Devemos propor políticaspúblicas para a literatura e formação de leitores que complementem osbenefícios das leis de incentivo à cultura. E esse sítio "Prosa virtual" é oespaço, a arena em que essa discussão deve ser travada, que acomunidade de escritores criou para alçar vôo para além do labirinto, damuralha, da cegueira branca que arruína nosso tempo... Somos o

34 Não se colocará o adjetivo ‘mato-grossense’ em discussão aqui. Leva-se em conta essa denominaçãopois ela é adotada em jornais, encontros, coletâneas de textos literários e científicos etc.35 Esta revista está temporariamente fora de atividade.

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quente desejo de incendiar o cerrado de livros, para fazer nascer aautonomia editorial de Mato Grosso.36

Teríamos então três gerações: a primeira geração da Academia Mato-grossense,

a geração vanguardista posterior, que também fez presença na Academia, e a geração

mais atual. Elas estariam divididas em duas vertentes acadêmicas: a regionalista

tradicional e outra que poderíamos chamar de contemporânea37. Ambas estariam, em

tese, envolvidas num discurso regionalista que busca, ou a afirmação dos valores mato-

grossenses, ou a constituição de um mercado e um sistema literário38 mato-grossense

forte.

Rama descreve uma disputa, no seio da cultura dominante, entre os intelectuais

já afirmados nela e os que ainda estão fora desse círculo dominante da cultura. (1982,

p.205) Não parece ser possível aplicar essa dicotomia em Mato Grosso, pois ambos os

lados tratados acima constituiriam um ciclo dominante da cultura, e ambos possuem o

seu público definido e seus meios de divulgação, cada qual com seu projeto e atuação.

Dicke seria o intelectual que, antes de sua integração a essa cultura dominante, estaria

fora desse ciclo, com a diferença de que não é sua intenção, como é para Arguédas,

segundo Rama, levar à cultura dominante, a experiência do dominado. (1982, p.25)

A ‘ascensão’ de Dicke está associada, não à tradição literária regionalista da

Academia Mato-grossense de Letras, mas àquele novo boom de escritores e editoras.

Seu ‘resgate’ do esquecimento acompanha as ações de outros escritores (como

Lorenzo Falcão e Juliano Moreno). Estaria associada também à busca, dos acadêmicos

e professores das universidades locais (como Hilda Gomes Magalhães, Mário Cezar

Leite, Gilvone Furtado Miguel e Juliano Moreno), por autores ainda não descobertos no

âmbito da crítica literária, no intuito de revelar novas personalidades literárias, sair do

âmbito do cânon nacional já exaustivamente trabalhado (a exemplo de Guimarães

Rosa) e, porque não, incentivar a pesquisa local, e a revelação de qualidades literárias

36 Site Prosa Virtual (http://cgi.ufmt.br/prosavirtual/quem_somos.htm), em que aparecem os nomes dosartistas e intelectuais ligados ao grupo universitário.37 Contemporâneo, aqui, não tem caráter de corrente estética, mas de termo de diferenciação com a linhatradicional da produção literária. Esta linha contemporânea é composta por autores que se aproximam deestéticas mais atuais.38 Entenda-se sistema literário a partir de Candido (1967): formado pela interação entre autor, obra epúblico.

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locais. Dessa forma, inverte-se a situação colocada por Rama, em que o regionalismo

tradicional é que precisou se modificar para sobreviver.

O romancista, apesar de ter seus livros publicados antes de 1970, época de

renascimento das atividades artístico-culturais no Estado, tanto pelo advento da

Universidade Federal de Mato Grosso quanto da Fundação Cultural de Mato Grosso,

correspondentes, respectivamente, aos discursos contemporâneo e regionalista acima

tratados, e sendo ainda premiado em seus romances de 68 (Deus de Caim), 77

(Caieira) e 82 (Madona dos Páramos), só vem ter reconhecimento efetivo e público há

muito pouco tempo. Os motivos desse reconhecimento ainda não se revelaram

totalmente.

Mário Leite, em nota de rodapé (Leite, 2005: 233), aponta que a literatura em

Mato Grosso só veio ter movimentação mais intensa no fim da década de 90, tempo em

que Dicke ganha mais um prêmio nacional, com Cerimônias do Esquecimento, 1995,

publicado pela Editora da UFMT. O autor, depois disso, publica mais três livros (O

salário dos poetas, Rio abaixo dos vaqueiros e Coincidência Opositorum) pela Lei

Estadual de Incentivo à Cultura do Estado de Mato Grosso. Ao que parece, é a partir da

publicação de Cerimônias do Esquecimento que a ‘sorte’ do autor começa a mudar,

auxiliada em parte, pela atividade de seu agente Lorenzo Falcão, intermediário em

todos os processos artísticos/publicitários que envolvem o seu nome.

Recentemente, houve a criação de uma associação de pessoas interessadas em

literatura, preocupadas em discutir uma lei não regulamentada que obrigava as escolas

a oferecem as disciplinas referentes à cultura local:

A AlimeMTo foi criada no dia 15 de abril de 2004, a partir de umadiscussão sobre uma lei que obrigava as escolas ensinarem asdisciplinas de geografia e histórias de Mato Grosso no ensino básico,além de literatura mato-grossense, porém a lei não foi regulamentada.No início, a AlimeMTo foi composta por Mário Cézar Leite, professor daUFMT, Juliano Moreno (poeta), Elizabeth Madureira, também professorae pesquisadora da UFMT, entre outros. Hoje já passam de 50, o númerode pessoas associadas a AlimeMTo e segundo o presidente daAlimeMTo, Gabriel de Matos, qualquer pessoa pode fazer parte dafamília, afinal se tratam de amigos do livro.

(http://www.literamerica.com.br)

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A AlimeMTo é uma criação que sinaliza o novo contexto literário mato-grossense,

pois é uma iniciativa conjunta das duas classes acima mencionadas, contando com a

participação de Carlos Gomes de Carvalho, atual presidente da Academia Mato-

grossense de Letras. A Associação está sediada na Casa Barão de Melgaço, onde

funciona também a Academia. Foi criada com a intenção de fomentar as publicações no

Estado, intentando ampliar o público leitor, estabelecer convênios que favoreçam essa

ampliação e a divulgação da produção mato-grossense, dentro e fora do Estado,

organizando eventos como a Literamérica, Feira Sul-Americana do Livro em Mato

Grosso, junto com o Governo do Estado 39 . Estes objetivos estão muito próximos

daqueles destacados na apresentação da revista Prosa Virtual, com a diferença de que

a AlimeMTo é uma ação conjunta de nomes ligados às duas vertentes acima

trabalhadas. É o momento mais evidente em que as duas vertentes se unem para

compor um novo quadro literário no Estado. A ONG surge tendo como uma de suas

pautas a implantação da disciplina literatura mato-grossense nas escolas. Essa medida

é reforçada pela cobrança da literatura regional no vestibular, fato que obriga os

‘terceirões’ e ‘cursinhos’ a também trabalharem com o assunto.

Pensando em Dicke, que está sendo cada dia mais valorizado no Estado, é

preciso, no entanto, detectar se todas essas medidas garantiriam a formação de um

público leitor, ou se sustentariam um novo sistema literário que se dividiria em dois

grupos: um grupo menor (de escritores e críticos) que entende e admira o volume da

obra de Dicke; e um grupo maior, que conhece o nome, as características do autor, mas

não chega a lê-lo, apesar de aceitá-lo como representante de sua cultura. É o que

ocorre com Silva Freire segundo Mário Leite. Dada a dificuldade de leitura dos poemas

de Freire, Leite se pergunta:

como entender a transformação de um escritor em ícone regional mato-grossense que apresenta, em sua obra, um raro grau de dificuldade deleitura e compreensão para o grande público? (Leite, 2005: 250)

Dicke também apresenta um certo grau de dificuldade de leitura em seus

romances, principalmente em Cerimônias do Esquecimento e O salário dos poetas,

39 Ver estatuto no site da associação: http://www.alimemto.org.br/quem/estatuto.asp?detpage=4

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mais recentes. Ele também está sendo transformado em um novo ícone da literatura

mato-grossense. Deve-se notar se, a exemplo do que Leite já dissera sobre Dom

Aquino, José de Mesquita e Silva Freire, Dicke não seria a nova personalidade regional

capaz de representar a literatura de Mato Grosso, mesmo sem ser lido ou entendido

pelo grande público mato-grossense40. Alguns aspectos podem contribuir para isso:

elementos locais como a fala do sertanejo ou o espaço mato-grossense que aparecem

nos seus textos; o fato de que ele é essencialmente romancista, gênero que reflete

mais adequadamente o tipo de sociedade em que vivemos e que é, na literatura, o que

possui melhor status; os prêmios que recebeu; o fato de ainda viver em Mato Grosso

etc41.

De tudo isso, resta mais uma pergunta do que uma conclusão: a regionalidade e

representatividade de Dicke vêm calcados (justificados) nas críticas nacionais, nos

prêmios e não por um esforço de valorização ou inserção locais, tanto por parte dele

mesmo, quanto por parte da Academia e dos órgãos relacionados à literatura?42 O que

parece acontecer é que os primeiros apelos (ou pelo menos os mais significativos)

anteriores às homenagens vêm da crítica nacional e não de um esforço local. Dicke

mesmo, vivendo na região, busca guarida em críticos estrangeiros e, ele próprio,

corrobora com as opiniões acerca de seu isolamento e esquecimento. Vejam-se suas

palavras, em entrevista a João Ximenes Braga, do jornal O Globo, sobre o mercado

editorial local:

Sim, aqui a gente pula atrás de editores. Como não há o que fazer,temos que esperar que nos descubram nos grandes centros. Tenho oitolivros prontos para publicar. Nenhum plano porque aqui é a minhaFinisterrae. (Dicke, 2004: 2)

40 Leite se apóia numa citação de Lúcia Miguel Pereira, que diz que faltou ‘um homem de prestígio e decoragem que chefiasse um movimento literário de franca mudança de rumos’ (Pereira, apud Leite, 2005:231)41 Para efeito do que se diz aqui, a Feira de livros Literamérica, já mencionada, homenageiaprincipalmente Manoel de Barros, Wladimir Dias Pino e Ricardo Guilherme Dicke. Dos três autores, Dickeé o que menos possui repercussão nacional e local.42 Abre-se a possibilidade, aqui, de se estudar o consumo de ‘literatura regional’ pelo viés das ações domercado editorial em conjunto com a Universidade Federal de MT, pela exigência da literatura regionalnas escolas e, principalmente, cursinhos, legitimando a literatura pelo vestibular. Quem traz essapossibilidade, ao refazer um percurso histórico do segundo grau (ou tantos outros nomes que esse níveljá adquiriu) no Brasil, é Regina Zilberman, 1991.

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O autor não publicou seus títulos pelos mesmos canais que os da Academia e só

seus romances mais recentes foram publicados com incentivo do Estado, fatos que já

podem ser considerados frutos das mudanças que estão levando Dicke à possível

situação de ícone regional.

Concomitantemente a essas relações político-culturais identitárias envolvendo o

romancista, que dizem respeito à situação do escritor no meio literário local, há ainda a

questão estética da obra de Dicke. Ele não pertence a nenhuma das duas vertentes de

artistas tratadas anteriormente. Não se pode afirmar que ele é um regionalista

tradicional, como os escritores da Academia Mato-grossense, pela ausência dos

elementos apologéticos às belezas e aos tipos da região43, mas ele também não se

insere totalmente na nova geração de escritores, por ser de um outro contexto histórico-

social, que determina sua produção de maneira totalmente diversa. O que o aproxima

do segundo grupo não é propriamente sua estética (que também o distancia do

primeiro), mas a movimentação do meio literário mato-grossense pelo grupo

universitário, que investe na sua redescoberta para a consolidação de um sistema

literário em Mato Grosso.

43 Este trabalho corrobora, aqui, com as idéias de Leite:2005.

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6 OS PREFÁCIOS E AS PREVISÕES: REGIONALIDADE E FOCO NARRATIVO

A leitura dos prefácios dos romances de Dicke é bastante elucidativa e

prenunciadora do que posteriormente foi elaborado acerca do autor em trabalhos mais

detalhados. De maneira geral, além da temática específica dos romances que

prefaciam, os prefaciadores parecem sempre querer chamar atenção para a questão da

regionalidade. Eles procuram tratar o assunto de maneira a afirmar que Dicke

representa a vida regional sem possuir, no entanto, uma falsa ‘mato-grossidade’, como

é o caso de Antônio Olinto quando prefacia Deus de Caim, primeiro romance do autor:

Lidando com toda uma simbologia a que ele dá um sopro vital fora docomum, Dicke não deixa coisa alguma de fora. Seu enredo é de vidaprimitiva, com personagens que, revelando uma existencialidade mato-grossense, estão no ar, soltos e livres, não comprometidos com umapossivelmente falsa mato-grossidade, humana e literariamentedisponíveis. (Dicke, 1968: 13)

Além da relação que o autor estabelece entre ‘vida primitiva’ e ‘existencialidade

mato-grossense’, sugerindo um atraso característico da região, há uma outra dicotomia,

não esclarecida, mas também sugerida, que se dá entre uma verdadeira e uma falsa

‘mato-grossidade’. Olinto, citando Marcuse, fala do absurdo como característica da

produção de Dicke. Grosso modo, o absurdo seria a superação da dicotomia entre

oposição e aceitação. Dicke, para Olinto, se posicionando frente à tradição literária

brasileira, ‘não é bem comportado..., ‘não se submete a um estado definido de nossa

ficção’ (Dicke, 1968: 12). Dicke, nesse caso, não aceita nem se opõe à tradição,

produzindo algo para além dessa bipolaridade. Apesar de afirmar a superação de

dicotomias, Olinto, gerindo outra dicotomia (talvez muito mais problemática), afirma que

existe uma falsa mato-grossidade. Ele, no entanto, não está sozinho nessa opinião.

Dante Martins de Oliveira, prefaciando Último horizonte, discorre sobre o mesmo

assunto, falando agora de ‘cuiabanidade’:

O romance retrata o imaginário vivido hoje em Cuiabá, o crescimentoacelerado da cidade, a ocupação dos espaços físicos, onde o cuiabanovê a cada momento a desmontagem de um universo conhecido (e porisso mesmo seguro), para participar da construção de uma novacuiabanidade. (Dicke, 1988)

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Último horizonte, assim como um dos núcleos do romance Deus de Caim, fala

não de Mato Grosso em geral, mas da capital em particular. Sobre a relação com o

local, ao invés de ‘falsa’, no entanto, Oliveira gera uma outra dicotomia, entre ‘nova’ e

‘velha’ cuiabanidade. Ambos, Oliveira e Olinto, falando, respectivamente, sobre

cuiabanidade ou mato-grossidade, supondo a velha pela nova ou a verdadeira pela

falsa, estariam lançando diferenças essenciais entre uma literatura que já existiria em

Mato Grosso, mas cuja relação com o local ou é forjada ou é ultrapassada. ‘Falsa’ e

‘velha’ seriam qualidades de uma literatura que, no mínimo, não corresponderia mais ao

contexto em que é produzida.

Aproximando essa discussão da que realiza Mário Leite, já trabalhada no

capítulo anterior, há possibilidade de que essas duas qualidades destacadas nos

prefácios em questão estejam associadas à literatura que, segundo o teórico, apresenta

aquele regionalismo frágil, que busca ‘falar sobre a produção local, participar da

construção das personalidades proeminentes etc. desde que isso estivesse ligado e

ressaltando as qualidades regionais (Leite, 2005: 235). As antigas e falsas

cuiabanidade e mato-grossidade seriam frutos do projeto de construção da identidade

regional por parte da tradição literária, idealizada pelos autores da Academia Mato-

grossense de Letras, fixando-se, portanto, em apologias, a qualidades mais desejadas

do que existentes. Falsas, porque forjadas voluntariamente, velhas porque tradicionais.

Oliveira dá indicações do que seria o ‘novo’ na literatura de Dicke: a reprodução

do imaginário a partir da modificação dos espaços da capital por um ‘crescimento

acelerado da cidade’; ao contrário de uma produção tradicional, que não traz a nova

realidade como temática e estrutura de suas produções, preservando o espírito ufanista

e encerrando o antigo ‘universo conhecido e seguro’ em si mesmo.

Tomar os conflitos locais como material para a produção estética parece ser o

principal aspecto dessa nova literatura que traz Dicke. Helio Pólvora, também em um

prefácio, escreve palavras análogas às de Oliveira, para falar, não de Cuiabá, mas de

Mato Grosso:

Romance típico de fronteira, de lugares ainda por se desenvolverem,Madona dos Páramos mostra como a terra vai sendo ocupada

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irregularmente, e de que forma a modernização súbita de umasociedade política e culturalmente imatura, em vez do desenvolvimentopausado e normal, cria conflitos. (Dicke, 1981: 6)44

Pólvora reitera a opinião de Olinto, de uma ‘cultura primitiva’, ‘ainda por se

desenvolver’, mas pontua a ocupação desenfreada e acelerada da região. Não se

preocupa com a questão da regionalidade em Dicke, apenas afirma a relação deste,

com o espaço em que está inserido. Esse espaço, renovado, invadido, modificado

rápida e conflituosamente, denunciado por Pólvora, será uma constante em todos os

romances de Dicke.

Depois de Madona dos Páramos, terceiro romance do autor, outra abordagem

parece se desenhar sobre a obra de Dicke. Esta, agora, se preocupa, em contrapartida

à afirmação de uma verdadeira e nova mato-grossidade, em afirmar a superação do

regional e o alcance do universal. Essa abordagem se respalda por uma crítica nacional

não identificada:

O Bem e o Mal, a Ciência e a Reflexão se apresentam neste universodenso, levando o autor a transcender os limites do regional, conformeassegura a crítica literária nacional. (Dicke, 1988)

Esse tipo de comentário, presente posteriormente em praticamente todas as

discussões que se travam acerca de Dicke, vem de uma preocupação (que parece

ainda não estar presente no prefácio de Oliveira) em alçar o romancista à esfera dos

grandes autores do Brasil, ou mesmo da chamada Literatura Universal. Essa

preocupação sugere uma desvalorização do elemento regional através da valorização

do universal, como se a obra artística só tivesse valor quando conseguisse superar os

limites do localismo. A idéia de localismo, aqui, provavelmente é uma reiteração da

idéia do regionalismo frágil já citado, velho e falso. Esse discurso regionalista, no

entanto, parece voltar à tona, quando Dicke é assumido naturalmente como local. Num

44 Pólvora investe nessa relação, estabelecendo a aproximação com os locais de fronteira: ‘Madona dosPáramos é o relato dos jagunços do Mato Grosso do Sul e do Norte, e das regiões fronteiriças com oParaguai e a Bolívia.’(Dicke, 1981: 7) Apesar do deslize geopolítico, Pólvora sugere algo que será aquidiscutido: a relação entre a produção de Dicke e a produção latino-americana, dada a grande recorrênciade elementos hispano-americanos e seus romances.

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prefácio mais recente, de O salário dos poetas, Amorim trata Dicke da seguinte

maneira:

Enfim chega ao público a obra que pode ser saudada como o maisseguro para se penetrar no vasto e complexo universo literário do autormato-grossense Ricardo Guilherme Dicke...O escritor Ricardo Guilherme Dicke é o principal autor mato-grossenseno terreno da ficção. (Dicke, 2000)

Assume-se Dicke como mato-grossense, não pelo viés da sua relação com a

modificação do espaço local, da repercussão dos conflitos locais em seus textos, mas já

por um discurso regionalista assimilado, que naturalmente identifica o autor com a

região, sem problematizar essa relação, como fazem mais abertamente Olinto e

Pólvora.

Todos esses aspectos acima relacionados aparecem, de uma maneira ou de

outra, nas críticas mais especializadas acerca do romancista. Sugere-se aqui, desde já,

pelas informações do capítulo anterior e pelas impressões dos autores dos prefácios,

que, enquanto há um discurso regionalista apologético em Mato Grosso, calcado no

ufanismo à natureza local, há outro que está mais sintonizado com as modificações em

todo contexto social.

Outro aspecto recorrente, e talvez o elemento estético mais relevante, na

produção literária de Ricardo Guilherme Dicke, consiste na maneira como o autor

manipula os pontos de vista e os narradores em suas narrativas. Os prefácios de seus

romances também sinalizam sobre esse ponto diferencial. No prefácio a Deus de Caim,

Antonio Olinto diz:

Como seus personagens se misturam sem causar confusão ao escorrerda história, os ângulos da narrativa também mudam sem que o leitorperceba que tudo se transformou. É a primeira pessoa e não é, éterceira e não é, numa boa loucura de narração em que avulta umacompleta comunicabilidade. (Dicke, 1968: 14)

Curiosamente, Hélio Pólvora, em prefácio a Madona dos Páramos, também

chama atenção para a configuração da maneira de narrar dickeana:

Este romance é parente distante do Grande Sertão: Veredas. A exemplode João Ubaldo Ribeiro, em Sargento Getúlio, Dicke utiliza também o

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monólogo rosiano, aquele fluxo típico de uma narrativa onisciente, masque não passa de falsa primeira pessoa, tamanha a sua objetividade e opoder de transmutação de personalidades. Ou vice-versa, falsa terceirapessoa, como acontece aqui. (Dicke, 1982: 5)

O que se constata nesses dois trechos é a impressão volúvel dos dois autores

acerca dos ângulos da narrativa, ou do narrador. Apesar de as pessoas gramaticais não

serem imprescindíveis para a definição do ponto de vista, ou do ângulo 45 , como

denomina Olinto, é basicamente a partir da observação desses elementos nos

romances que se pode depreender em quê o processo narrativo de Dicke se torna

diferente de uma narrativa mais tradicional. Pólvora, associando o romancista mato-

grossense a João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa, no que diz respeito ao

procedimento narrativo, qualifica como monólogo aquilo que acontece em Dicke.

O que ocorre, no entanto, no caso de Rosa, é que, apesar das digressões e falas

de outros personagens que Riobaldo apresenta na sua narrativa, ele é o narrador

definido e definitivo da história. Não se perde de vista a presença tanto dele quanto do

ouvinte de sua narrativa, o ‘senhor’ a quem ele dirige suas palavras. Em Dicke, por

outro lado, acontece com o narrador exatamente o que afirmam (ou não conseguem

afirmar) Pólvora e Olinto em seus textos: o falseamento ou, ao menos, uma

desorientação na definição do foco narrativo. Não se pode definir claramente se os

romances são de terceira ou primeira pessoa, nem que uma destas predomina sobre a

outra.46

Nas seções seguintes, abordar-se-ão esses dois aspectos no decorrer da obra

de Dicke: a temática que abrange as alterações sócio-culturais na região por causa do

grande fluxo migratório em direção a Mato Grosso após os anos 60 e a elaboração de

um procedimento narrativo diferenciado, que indetermina, através da alternância das

45 Vários teóricos que tratam sobre o assunto não vinculam o ponto de vista ao uso da pessoa gramatical.O que sugere, por exemplo, uma visão ‘com’, no caso de Pouillon, ou a ‘dramatização’, de Lubbock, bemcomo as diferentes formas de narrar de Friedman e outros, não são as pessoas gramaticais, mas váriosaspectos que se inter-relacionam. Uma narrativa de terceira pessoa, por exemplo, pode tanto se dar navisão ‘com’, como na visão ‘de fora’, se ela perscruta a mente do personagem ou somente o descreveexteriormente. Essas posições são medidas, por exemplo, pela apresentação do personagem, por aquiloque ele consegue perceber à sua volta, pelo grau de conhecimento que ele tem de si e dos outros nahistória etc. (Cf. Sallenave:sd)46 Hilda Magalhães afirma que Caieira é um romance de terceira pessoa, justificando que esseprocedimento aumenta o alheamento em que os personagens se encontram no romance. Caieira, noentanto, apresenta também o mesmo uso das pessoas gramaticais que aparece nos outros romances.

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pessoas gramaticais que marcariam o tipo de narrador, o ponto de vista inscrito nos

textos.

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7 A SUPERAÇÃO DO REGIONAL E O ENTRE-LUGAR EM MADONA DOSPÁRAMOS

Gilvone Furtado Miguel (2001), se insere nessa mesma discussão acerca do

regionalismo literário. O foco central de seu trabalho, analisando o romance Madona

dos Páramos, é a reatualização mítica dos arquétipos na literatura (p.18), em que

demonstra como Dicke rearticula histórias conhecidas no mundo ocidental, pagãs e

cristãs – em especial a história de Maria e dos apóstolos -, invertendo, no entanto, sua

qualidade e conclusão. Para isso, a autora opera um estudo estruturalista, descrevendo

os processos composicionais de foco narrativo, personagens, espaço-tempo, enredo e

linguagem, somados a um estudo acerca da polifonia e do imaginário na obra.

Dois livros de Hilda Gomes Dutra Magalhães também abordam o mesmo

romance: a História da literatura de Mato Grosso (2001), já citado, e As relações de

poder na narrativa da Amazônia legal (2002). Nesses livros, a autora não trata somente

do romance Madona dos Páramos, mas traz, em ambos, informações importantes

acerca da questão regional. O segundo livro, de caráter menos geral que um livro de

história como o primeiro, aborda os dois romances mais conhecidos de Dicke: Caieira e

Madona dos Páramos. Junto com estes, seu estudo ainda abrange outros autores da

região: Teresa Albues, Dom Pedro Casaldáliga, José Vilela, de Mato Grosso; e Márcio

Souza, do Amazonas. Sua preocupação é mostrar como a literatura da década de 60

refletiu o processo de ocupação da região norte do Brasil, fato já brevemente

denunciado em Dicke na seção anterior, tanto por Oliveira como por Pólvora, como se

viu.

As duas autoras procedem a análises distintas: enquanto Miguel realiza um

trabalho descritivo do romance, numa perspectiva especificamente literária, Magalhães

vai, em seus trabalhos, abordar a produção de Dicke de uma perspectiva mais

sociológica, na qual os romances estabelecem relação direta com o contexto sócio-

histórico em que são produzidos.

O trabalho de Miguel reitera parte da discussão feita anteriormente, em que a

relação entre regional e nacional se dá através da tentativa de superação dos aspectos

regionais na literatura como elemento limitador. Ao mesmo tempo, busca a valorização

da literatura regional no âmbito nacional. Na apresentação de seu trabalho, Miguel se

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isenta da discussão acerca da regionalidade, procurando delimitar o conceito de

regional com que vai trabalhar em sua obra, afirmando que o regionalismo não seria a

questão principal do seu texto.

Os procedimentos estabelecidos para o cumprimento deste projeto deestudo não visam à incursão nos campos teórico-críticos que discutem aliteratura regional ou o regionalismo na literatura; antes, porém, traçamcaminhos para, ao adentrar a obra, revelar o valor da construçãoestrutural e temática. (2001, p. 11)47

Apesar disso, coloca Dicke como representante local no nível nacional, da

mesma forma que o fazem algumas notícias e resenhas, como já foi mostrado. Nesse

intuito de superação do regional, há uma marcada preocupação da autora em afirmar

que Ricardo Guilherme Dicke é um autor que, apesar de mato-grossense e de usar o

espaço e os tipos mato-grossenses, tende à universalidade, por conta dos temas,

personagens e, principalmente, da presença do elemento mítico em suas obras.

O objetivo que, mais diretamente, norteará a realização deste estudocrítico pretende-se à intenção de desvendar a arquitetura da tramanarrativa do romance Madona dos Páramos cujo autor, RicardoGuilherme Dicke, deve preencher, com méritos, o espaço darepresentatividade da literatura regional, produzida em Mato Grosso, nocenário nacional. Dicke, em sua escritura, ultrapassa o território regionalde Mato Grosso e abarca outras diversas regiões, considerando-se quehá, nas mitologias, o registro dos aspectos culturais particulares deoutras regiões do mundo. (2001, p.8)

Em Dicke, segundo a autora, há modificações textuais nas histórias, porém com

a manutenção dos valores religiosos, afetivos e angustiantes dos homens ‘em todos os

tempos’. A autora cita Mielietinski como referência para falar de mito:

Mielietinski define uma poética da mitologização na literatura do séculoXX, dissecando este método artístico de criação semelhante ao mito. Aconstituição simbólica do mito permite à literatura alcançar arepresentação dos valores universalmente humanos; o mito se firma

47 Na seqüência, cita Helio Pólvora para reiterar a idéia de que o romance tem identidade de épico dosertão, assim como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Pólvora, no entanto, ‘resguarda-o(Dicke) de ficar à sombra dos já consagrados autores citados’ (Rosa, João Ubaldo Ribeiro e Euclides daCunha), novamente demonstrando uma preocupação com o valor nacional de Dicke.Cf MIGUEL: 2001 P11.

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como fonte de formação da narrativa. A este processo Mielietinskichama de remitologização. (2001, p.89)

A remitologização é o processo pelo qual o escritor, mesmo que usando a cor

local, consegue alcançar a representação dos valores universais. Nessa cor local é que

consiste o conceito de regional que a autora leva em consideração na sua análise. Ela

cita, em nota, Antonio Candido para definir esse conceito que consiste na presença da

‘cultura, descrição geográfica, social e da ocupação da terra, além dos tipos humanos’

(Candido, 2000: 15). Dicke, segundo a autora, ‘arregimenta esses elementos,

transformando-os em ‘patamar’, em pano de fundo para histórias que poderiam se

passar em qualquer lugar’:

Em sua narrativa, os limites da região, do sertão mato-grossense, seperdem como dado local , ou melhor, são transladados para aimensidão do mundo, adquirindo facetas universais e integradas naconcepção do imaginário universalizante. Também o homem deixa deser o jagunço forasteiro, típico de Mato Grosso, para se conformar nosmoldes gerais e comuns de todo ser da humanidade, dacoletividade sem fronteiras... A arregimentação dos elementos locais caracterizadores da região de Mato Grosso relativamente à cultura,à descrição geográfica, social e da ocupação da terra, além dostipos humanos é fator que viabiliza a abordagem dos valoresunversalizantes que sobressaem na inquietação que a condição humanaprovoca no ser do escritor. Assim, os elementos locais/regionaisformam o patamar sobre o qual se assentam, no trabalho dacriação literária, as angústias, as dúvidas, as aflições que atingem auniversalidade dos homens ao experimentarem situaçõesconflitivas. A ficção romanesca de Dicke privilegia o local ao situar seuspersonagens na região de Mato Grosso e, especialmente, naspeculiaridades do sertão mato-grossense, ao mesmo tempo queconsegue, com mestria, dar relevância incondicional aosquestionamentos existenciais da humanidade revelados num imagináriosingular,que vai se manifestar em feixes simbólicos. (grifo meu. 2001,p.9)

Mais adiante, a autora cita Helio Pólvora em seu prefácio ao romance,

escrevendo a seguinte sentença: ‘Este é o cenário do relato das desventuras dos

jagunços, homens matadores, de índole indomável, homens típicos da região do Mato

Grosso’(2001, p.17). A informação, que no prefácio de Pólvora se dá como sinalização

de uma característica dos romances de Dicke, e que Hilda Magalhães vai destacar

como ponto fundamental na narrativa do romancista, em Miguel é reduzido como

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simples dado local. Além disso, tem-se a impressão de que Miguel concorda com

Pólvora na afirmação de que os jagunços são típicos de Mato Grosso, o que contradiz

sua afirmação anterior, de que os personagens superam essa condição.

Por outro lado, a própria autora acaba incidindo sobre um sentimento

regionalista, quando procura alçar a produção local a um nível mais ‘elevado’. Ela

evoca a própria presença no local, bem como a do romancista, e destaca o

desconhecimento da literatura da região, aspectos já mencionados acima:

A escolha desse autor, bem como a seleção da obra centralizada nacrítica a ser desenvolvida, fazem parte dos objetivos mais amplos quesão a expressão do desejo de contribuir com a produção crítica doestado de Mato Grosso, desenvolvendo a pesquisa voltada para osvalores regionais, ainda escassamente estudados. A determinaçãodestes objetivos está ligada à condição de professora da UniversidadeFederal de Mato Grosso, o que tem possibilitado perceber, na prática doensino do Curso de Letras e nos estudos paralelos, a necessidade depriorizar a construção da fortuna crítica dos autores de Mato Grosso,vencendo as barreiras impostas pelo desconhecimento da obrafora do estado48. Dessa forma, os critérios que guiaram a escolha doautor são justificados pelo fato de ser Ricardo Guilherme Dicke nascidoe residente no estado de Mato Grosso, sendo, assim, vivenciador eparticipante da realidade local, além de, principalmente, produziruma literatura que procura dar conta dos valores peculiares àregião, ao mesmo tempo que faz pulsar mais forte a expressividadedo universal do ser humano. (grifo meu. Miguel, 2001: 10)

É sobre esse sentimento e vontade de produção e constituição de um contexto

literário local desenvolvido que Candido fala em seus textos, tanto na Formação da

Literatura Brasileira quanto em Literatura e Sociedade. O regionalismo, ou nativismo, no

caso de Candido, é fruto de um desejo de se diferenciar e, nesse desejo, a opção pela

cor local se apresenta como uma das soluções mais imediatas.

Em seu texto, Miguel estabelece sempre o contraponto entre a presença de

elementos da cultura regional/local e a superação desses elementos em direção à

universalidade, fato que se apresenta como um aparente paradoxo: ao mesmo tempo

em que define o regional como limitação, pois a função deste é ser um patamar para a

realização do universal, procura contribuir para a elevação e o reconhecimento dos

valores regionais, para vencer as barreiras impostas pelo desconhecimento da obra

48 Idéia reforçada pelo próprio Dicke em várias entrevistas.

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fora do estado. Segundo Candido, na passagem citada por Miguel, a presença de

elementos regionais denota uma resistência da intelectualidade brasileira frente aos

padrões universalizantes europeus (2000, p.15). A dicotomia universal/local não

estabelece, neste caso, uma hierarquia de valores, mas uma diferença de poder.

Assim também pensa Angel Rama, quando afirma que, no contato com as

metrópoles modernizadoras, que tendem a uma universalização da cultura (ou de uma

cultura), os escritores partidários das culturas regionais, marginais, buscam (elegem)

seus elementos locais como uma forma de resistência e sobrevivência. Essa busca se

dá através de, pelo menos, duas formas: uma apologética, cujo objetivo é encerrar a

cultura local num invólucro paralisante e conservador; outra dinâmica, de

transculturação – conceito tratado acima-, em que se produz, a partir de procedimentos

estéticos recebidos pela cultura universalizante, uma nova forma de elaboração estética

do elemento e do contexto regional. (Cf. Candido, 1967:147)

Diferentemente de Miguel, Hilda Magalhães enfoca o local como aspecto

fundamental para entender e ver a produção de Dicke, pois sua temática circula, como

se verá melhor na seção seguinte, num contexto de conflito entre os moradores da

região amazônica da década de 60 e o grande fluxo migratório com instalação dos

grandes latifúndios, alterando significativamente as relações sociais na região.

Magalhães, no entanto, realiza sua análise, em Caieira e Madona dos Páramos, a partir

de uma discussão sobre o absurdo e não na perspectiva da transculturação.

Olinto também, em seu prefácio a Deus de Caim, caracteriza Dicke como um

autor do absurdo, numa perspectiva marcusiana, segunda a qual, o autor foge à

apreensão por um sistema de oposição/situação, que força o sistema a ruir e se

modificar, estabelecendo um não-lugar, ou um entre-lugar:

Acha ele que, diante da irracionalidade da sociedade industrialcontemporânea, a única atitude certa é a de provocar a desordem nessasociedade e contribuir, com isso, para que ela caia. A fim de atingir essepropósito, não poderá pessoa alguma assumir gesto que signifiqueaceitação. E oposição seria aceitação.(Dicke, 1968: 11)

Olinto usa o conceito de absurdo para falar da posição de Dicke frente à tradição

literária brasileira, afirmando que o autor tenta destruir, até certo ponto, a situação da

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literatura no Brasil, estética e ideologicamente, sem fazer oposição, mas sim escapando

a essa dicotomia, propondo algo novo e independente. Exemplo disso é o que aponta

Miguel em Madona dos Páramos, quando diz que a narrativa dickeana supera, nos

temas pelos quais circula, dicotomias do tipo bem/mal, real/sobrenatural,

material/sonho, (Miguel, 2001:15-16).

Magalhães considera o absurdo por outro viés, a partir dos conceitos de Camus

e José Fernandes. Para ela, o absurdo é uma resignação que impede a ação do

marginalizado frente a seu opressor, quando não consegue defini-lo. Diz, ainda que,

dificilmente, um personagem consegue ter a consciência de sua opressão e, quando a

tem, torna-se ainda mais absurdo, pois conhece também a amplidão de sua impotência

(2002, p.47). É dessa forma que a experiência do absurdo, na perspectiva de

Fernandes, que é a teoria pela qual, por fim, a autora parece optar, é vivida antes pelo

leitor que pelo personagem. Como este não tem consciência de sua situação, é o leitor

quem compõe, pela leitura, a imagem de absurdez do mundo. (2002, p.17)

A partir daí, Magalhães define duas posturas distintas na literatura da Amazônia:

uma que condena os personagens a uma eterna letargia, mesmo quando, ao final, o

elemento mítico pune o opressor, instaurando o irracionalismo (2002, p.50) - nesta

postura se inserem Dicke, Teresa Albues e José Vilela; outra que traz uma visão mais

consciente e revolucionária, pois não sujeita seus personagens à situação de absurdo.

Desta fazem parte Dom Pedro Casaldáliga e Márcio Souza. Os autores da primeira

linha apenas se ‘contentam em ilustrar os dramas da exploração, sem empreender um

debate sobre os problemas’, ao passo que os da segunda não ilustram a mesma

inconsciência dos personagens em relação aos opressores, nem a do leitor em relação

ao contexto em que se insere, no caso, o de subdesenvolvimento local e exploração

pelas grandes empresas do capitalismo. (Magalhães, 2002:131) Importante, no entanto,

é entender que, para Magalhães, algumas produções literárias, incluindo a de Dicke,

não escapam a uma discussão acerca do local, pois os conflitos que nele ocorrem são

materiais para a elaboração estética e, em última instância, definidores de sua

estrutura.

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Apesar de concordarem em alguns pontos49, Miguel e Magalhães apresentam

conclusões diferentes. A segunda se aproxima das idéias de Candido e Rama, apesar

de não usá-los como referência, quando se debruça sobre a obra de Dicke, enfocando

aquilo que nela se pode detectar do conflito entre culturas. Magalhães não destaca, em

seu texto, a qualidade dos ‘jagunços’ em Madona dos Páramos. Miguel os coloca como

lutadores, positivamente (Miguel, 2001:17), enquanto Magalhães os pinta como

assujeitados sem rumo e sem força para escapar ao domínio do poder desconhecido

(representado pela fazenda do Batovi, ou O Desolado). (Magalhães, 2002:17)

Essa diferença de opinião, talvez a mais evidente na comparação, vem da

diferença de postura das duas autoras em relação ao aspecto regional. Ambas não

colocam o problema em foco, apesar de seus trabalhos estarem permeados por esse

assunto. A diferença entre as autoras é que Miguel não se propõe voluntariamente a

essa questão e Magalhães não chega a discuti-la porque, segundo sua perspectiva, a

relação dos romances de Dicke com o contexto sócio-histórico é um pressuposto e sua

análise, dessa forma, escapa ao maniqueísmo entre o regional e o universal. Em

Magalhães, o que compõe o aspecto regional são critérios ou características que

marcam a opção dos produtores em relação ao jogo de poder entre as culturas. Neste

caso, o aspecto local é mais ativo e menos superficial do que em Miguel, que o

considera apenas como patamar para o desenrolar dos fatos.

Mesmo Antonio Candido, quando trata das relações entre localismo e

universalismo, afirma que, no Brasil, as produções mais significativas são aquelas em

que estas relações estão implicadas (Candido, 1967:151). Angel Rama, por sua vez,

afirma que o regionalismo veio para ficar na América Latina (apud Aguiar &

Vasconcelos, 2001: 137) e se torna elemento indispensável para análise. Rama ainda

observa que, no confronto entre as culturas rurais do interior e as culturas

modernizadoras das grandes metrópoles nacionais, o discurso frágil do regionalismo

tradicional serve à prática de dominação da cultura pois, ao conservar puros os

elementos dessa cultura, impede o seu desenvolvimento (Rama,1982:169).

49 Concordam em alguns aspectos. Miguel, citando Magalhães, se refere à consciência que opersonagem tem de sua fragilidade, de sua incapacidade frente à opressão ou ao mistério da vida e dosofrimento. (Miguel, 2001:15-16)

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Em Dicke, o local se traduz na reelaboração literária (e mítica) do conflito social

e, portanto, é indispensável na análise, pois, mesmo tratando-se de temas

universalizantes (e não universais), estes só ganham materialidade e sentido quando

incorporados à cultura local, quando reelaborados por ela.

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8 DICKE E AS MIGRAÇÕES PÓS-60

O processo de contato entre a cultura tradicional e a modernizadora se desdobra

em dois processos: um entre os camponeses e indígenas do interior do Estado com a

capital; outra da capital com as metrópoles nacionais. A produção literária em Mato

Grosso pode ser pensada em dois momentos: antes e depois da intensa migração que

o Estado sofre no meio do século XX, entre os anos 60 e 70, quando da instauração de

programas de incentivo agroindustrial, fomentando o latifúndio na região (Magalhães,

2002: 21). No primeiro período, de maneira geral, a arte busca a exaltação da riqueza e

da grandeza mato-grossenses, no intuito de alcançar, através das letras, o status

universal e uma equiparação aos níveis dos grandes centros do país50. Nesse período,

Mato Grosso gozava de uma vida cultural intensa. Durante o século XVIII, o Estado era

considerado ‘a Capitania em que mais peças teatrais foram encenadas’ (Carvalho,

2005: 18). E ainda, ‘embora houvesse uma exploração intensiva e predadora, típica das

características do sistema colonial... as atividades culturais não deixaram de ter relevo

na ação dos governantes’ (2005, p.19). Ainda no século XX, essas impressões se

mantêm:

Enquanto Cuiabá esteve isolada dos grandes centros do país... vive elaa fase mais brilhante de seu desenvolvimento literário...A partir da Segunda Guerra Mundial, justamente quando a maiorfacilidade de comunicações e transporte, pelo rádio, pelo telefone, pelasrodovias e pela via aérea colocaram Cuiabá mais próxima dos grandescentros, segue-se um período de estagnação em suas atividadesculturais.( Póvoas, 1982:16)51

Cuiabá, por estar na rota da migração para a Amazônia – onde se estabeleceram

os grandes latifúndios que trouxeram consigo a marca da modernização – e ser a

capital do Estado, também sentiu as influências da cultura modernizadora. Mesmo não

50 Nesse sentido foram criados o Centro Mato-grossense de Letras e a Academia Mato-grossense deLetras, já mencionados anteriormente, cuja formação e papel na formação da identidade mato-grossensejá foram comentados por Leite, 2005.51 Rama, fala também do isolamento do centro do Brasil, comparando-o com o que Arguédas tambémencontrou em seu meio: ‘del mismo modo que ocurrió com Claude Lévi-Strauss, quien fue uno de losúltimos antropólogos em percibir, a la altura de 35, el aislamento em que estaban las regiones internasDel Brasil antes de que fueran subvertidas por los planes carreteros, Arguédas conoció la epoca deencierro defensivo y su transmutación. Rama, 1982: 168. As estradas são um elemento importante emCerimônias do Esquecimento.

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sendo uma cultura autóctone, indígena (assim como não o são boa parte das classes

mais diretamente ligadas ao conflito social e cultural gerado pela instalação latifundiária,

como os colonos e posseiros), os intelectuais e artistas locais pensam na sua própria

cultura como pura, legítima.

Esses contatos, curiosamente, têm como resultado aquilo que Rama coloca para

o caso peruano: as culturas mais resistentes se anulam e se entregam à aculturação52

de maneira muito mais efetiva, em que há uma redução da produção dada a presença

dos elementos da modernização; as outras, menos resistentes por diversos motivos53,

não apagam totalmente características próprias, não se anulando por completo frente à

cultura modernizadora.

En esas condiciones, las culturas más tradicionales, más puras, eran lasque se revelaban más inermes para defenderse, las que se entregabanal proceso de aculturación que las despojaba de su identidad,celosamente custodiada por siglos. (Rama, 1982:169)

O primeiro caso ocorre, em Mato Grosso, com as produções que tem como

referente a cultura da capital e não a do interior. As produções que têm como centro a

capital Cuiabá, diminuem e são suprimidas pela modernização, como podemos

depreender pelo texto de Póvoas, acima, ao passo que as produções que remetem ao

espaço do interior do Estado (obviamente, nem todas elas), adquirem significativo

material estético. O que vai acontecer na Capital, num período posterior, é uma ação de

cunho regionalista, na tentativa de resgate e preservação de um patrimônio cultural

original. Esse fato colabora mais com o sistema de dominação da cultura

modernizadora, que se transfere dos grandes centros para as pequenas cidades do

interior, do que com a resistência dessa cultura resgatada:

A cultura modernizada das cidades, que se apóia em fontes externas,transfere seu sistema de dominação para o interior da nação, o que nãoquer dizer que o associe ao seu desenvolvimento, senão que o submete.Em termos culturais, consente o conservadorismo folclórico tradicional,

52 ‘Aculturação’, neste caso, tem o sentido que lhe é dado por Burke: a aquisição, pela culturasubordinada, dos valores e características da cultura dominante. Cf. p. 24 deste trabalho.53 Hilda Magalhães lembra, ao tratar da amazônia legal, a ‘ausência de tradição de luta de classes noBrasil, a falta de formação dos antigos cultivadores, o isolamento geográfico desses últimos e dosindígenas’ (Magalhães, 2002: 26) A esses aspectos, poderia se acrescentar a falta, no caso dos colonosda região, de uma identificação mais efetiva de si enquanto grupo.

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ao menos por um tempo, o que já é uma maneira de matar a cultura,ao dificultar sua criatividade e renovação, para depois substituí-la pelahomogeneidade urbana. Normalmente propõe às regiões internas umaescolha macabra: ou retroceder ou morrer.(Rama apud Aguiar &Vasconcelos, 2001:191)

O resgate folclórico coisifica a cultura e enfraquece a possibilidade de

plasticidade cultural. Ele capitaliza, nos moldes das culturas modernizadoras, o

elemento regional, de maneira que este perde sua significação cultural para servir como

discurso que favorece uma determinada classe, ou é usado para determinados fins,

como a captação de recursos para a produção de livros, álbuns musicais, bens culturais

de maneira geral, no processo eleitoral etc. A cultura tradicional, quando ‘resgatada’,

não possui o mesmo caráter representativo de antes do conflito com a modernizadora,

pois já está absorvida pelo sistema desta.

Escapa a esse ‘resgate’ o grupo dos autores trabalhados por Hilda Magalhães

(2001) em seu livro: Ricardo Guilherme Dicke, Teresa Albues, Dom Pedro Casaldáliga e

José Vilela, mato-grossenses; e Márcio Souza, do Amazonas; tem como tema as

relações de poder surgidas com a invasão da Amazônia pelo capitalismo latifundiário,

revelando focos de resistência cultural não num movimento de resgate e

conservantismo estático, mas num movimento que evidencia as alterações sociais que

prejudicam a organização local e suprimem suas manifestações. O fluxo modernizador

gera, nesses casos, uma agitação e não uma estagnação na produção artística.

A resistência cultural se caracteriza como um protesto estético, de um grupo de

artistas que toma partido das culturas marginalizadas no conflito. Esse protesto toma

uma forma diversa em cada escritor. No caso da análise de Hilda Magalhães, ela opõe

o romance O fim do terceiro mundo, de Márcio de Souza, e os poemas de Dom Pedro

Casaldáliga, aos demais textos trabalhados em seu livro. A diferença entre eles é a de

que ambos revelam uma atitude revolucionária mais consciente do que os restantes,

frente aos problemas locais. O primeiro põe em cheque o uso do discurso ressentido do

terceiro mundo acerca de seu subdesenvolvimento, acusando o uso desse discurso

para a obtenção de privilégios pelas classes dominantes. O segundo, cujo autor é

missionário católico da Teologia da Libertação, transforma seus poemas em denúncia

social e protestos contra a opressão.

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Para Magalhães, Dicke, assim como os autores restantes, pára na ‘constatação

das moléstias’ locais, nacionais ou humanas (Magalhães, 2002:125), não abordando

criticamente o problema. É possível, no entanto, tomar o fato por um outro viés: o da

resolução através do mito. Dicke, em seus romances, ‘pune’ os opressores através da

narrativa mítica, em que os capitalistas, os estrangeiros, a cultura modernizadora das

metrópoles nacionais, os donos de fazenda, os padres, os ditadores sofrem as

conseqüências de seus atos opressores através da atuação de um elemento sobre-

humano. Em Deus de Caim, Caieira, Cerimônias do Esquecimento e O salário dos

Poetas, o que prevalece ao fim é sempre a superioridade dos setores marginalizados,

cuja representação da consciência do mundo não se dá pelo pensamento lógico-

racional54, mas pelo mítico. O mito é a forma pela qual pensa o oprimido. É a maneira

pela qual ele percebe e entende o conflito. Nesse sentido, o trabalho de Miguel também

coincide com o de Rama, quando aponta a reelaboração mítica como um dos principais

aspectos da obra de Dicke55.

No conflito entre a cultura modernizadora e a tradicional, em Mato Grosso, um

dos principais aspectos a ser levado em conta é o econômico. Toda questão aqui se dá

por causa do estabelecimento do grande latifúndio capitalista com apoio do governo,

que toma as terras dos colonos e indígenas. Esse aspecto é, em Magalhães,

indispensável para pensar a produção cultural na região da Amazônia legal, no que

concerne à questão da terra. Como o próprio título de seu estudo assinala, as relações

de poder na região, a partir da migração em grande escala, e de grandes latifúndios, na

década de 60, vão marcar profundamente a literatura de alguns escritores56. O objetivo

da análise da autora é, a partir de alguns textos de escritores dessas regiões,

Identificar não apenas os agentes do Poder, como também a visão demundo dos dominados e suas reações diante das transformaçõessocioculturais de seu ambiente. (Magalhães, 2002: 9)

54 É o que predomina nos dois autores destacados pela autora: Pedro Casaldáliga e Marcio Souza.55 Cf. Miguel, 2001.56 Assim como Magalhães trabalha com autores de Estados distintos (Amazonas e Mato Grosso),agrupando-os numa mesma região cultural, Rama supera os limites entre América hispânica e lusa peloprocesso de colonização que, apesar de suas diferenças, situa as duas Américas no plano de colôniaexplorada. A cultura extrapola os limites da divisão política.

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A questão incide sobre a mudança da perspectiva a partir da qual se conta, se

narra a história. Enquanto tradicionalmente o ponto de vista se detém no olhar do

dominador, o tipo de literatura analisada por Magalhães reflete a perspectiva, ou do

próprio dominado, ou de alguém que toma partido de seu sofrimento e de sua situação,

e usa a literatura como arma de denúncia, como espaço para a punição ou caminho

para a libertação. A autora, mantendo essa postura, chama atenção para a

recaracterização do espaço amazônico e a reflexão desse processo na literatura

produzida na região, indicando os participantes dos conflitos sociais. Na segunda seção

do primeiro capítulo, Magalhães percorre a trajetória de ocupação da região por

grandes latifundiários subsidiados pelo governo e as conseqüências dessa ocupação.

Enormes pedaços de terras indígenas ou devolutas eram vendidos ougrilados e se encontravam em mãos de grileiros ou de grandesfazendeiros e empresários. Os antigos proprietários ou habitantes eramexpulsos ou transformados em mão-de-obra quase gratuita. (Ianni, apudMagalhães, 2002: 25-26)

É o que Dicke expõe claramente na voz do índio Bernal dos Beovulfos,

personagem de O salário dos poetas, que canta, da perspectiva do oprimido, a

colonização/exploração no norte de Mato Grosso que o obrigou a uma vida errante:

O índio Bernal dos Beovulfos contava como viera do Xingu:- Fazendeiros incendiaram as aldeias, morreram crianças e velhos, osque não morreram foram enchidos de balas, hoje são apenas caveiras,ficaram donos das terras, como eles sempre fazem. Aproveitaram-sedas moças, enchendo-as de doenças, nós que éramos sem contato como homem branco, só com os nossos deuses, hoje sem pátria, sem terra,sem deuses, sem nada, como todos nosso irmãos do Brasil, do planeta,os perseguidos, os desaparecidos sem que se dê nos jornais e na TV. Obranco é a grande maldição da Terra, a maior maldição de todas asmaldições, sua cultura mata, reduz tudo a latas vazias e a sucata deplástico velho, sujo. Hoje estou aqui, falando a língua de vocês, não meimporta se me matam ou não como fizeram com os hippies queprotestavam à sua maneira, que me importa a civilização branca? Morreré melhor do que perder a identidade e ficar vagando perdido pelo mundoque outrora foi nosso e que agora é deles, com sua merdosa civilizaçãosem nome... Alma suja e tecnológica que se apossou do mundo...(Dicke, 2000: 371)

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Na voz do índio desterrado, a cultura do branco é marcada pelo progresso

tecnológico de tendência universalizante (”que se apossou do mundo”), mas, em

contrapartida, pela degradação e morte que espalha por onde passa. Todos os

romances de Dicke dão testemunho e ênfase a esse aspecto deturpado e deturpador

da civilização. São os valores que sufocaram a tradicional maneira de ser dos

habitantes locais.

Da mesma forma, em um trecho de Caieira, a viúva de um sertanejo emite um

legítimo grito de excluído, cuja vida foi ocupada e transformada pelo latifúndio

estrangeiro:

Estou em minha terra. Terra minha sim, senhor. Este terreno é meu,meu finado marido Cachambão foi me deixou de herança e esse malditoamericano vindo não sei de onde, que as piranhas lhe comam os ossosum dia, vindo do inferno de sua riqueza foi que nos fez a nós, pobres,mais pobres ainda. Esse doutor coisa nenhuma doutor em desgraça dosoutros, doutor em maldição... esse doutor de fel e sangue nos rouboutoda essa terra que ele diz que é dele, porque é americano e mora lá nacidade, amigo do governador e de toda essa gentaria importante, passasua vida no bom aproveitando a miséria de todos nós. (Dicke,1978: 30)

A cultura universalizante que entra em choque com a cultura local, nos romances

de Dicke, é a americana, de maneira mais significativa do que a Européia, que talvez

seja a referência maior em Deus de Caim, em que os personagens mais ricos viajam ou

já viajaram a diversos países daquele continente. A TV, nesse processo, é a grande

difusora dessa cultura, em contrapartida aos cantadores, poetas, ciganos, que

compõem os canais transmissores e sustentadores das informações e narrativas de

uma cultura local. O processo de exploração da cultura local gera seus contingentes:

No decorrer dos anos, colonos e indígenas são explorados emarginalizados e, sem saída, procuram a cidade, onde viverão empéssimas condições sociais, na promiscuidade ou na criminalidade.(Magalhães, 2002: 26)

As obras analisadas pela autora em seu livro trazem, além do próprio conflito

entre latifundiários e antigos ocupantes, na década de 60, a prostituição, a

marginalidade, a promiscuidade e a violência, que permeiam as novas relações sociais

vividas pelos participantes do conflito. Pensando na produção de Dicke, seus

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protagonistas podem ser vistos, em grande parte, como provenientes da massa

marginalizada resultante desse processo. Essa massa se tornou mão-de-obra para o

grande capital, como em Caieira, por exemplo, em que os empregados da caieira Nova

Esperança são mantidos num regime de semi-escravidão por um empresário

americano. Ela compõe o grupo excluído dos privilégios do sistema – bêbados, loucos,

professores desempregados, ciganos, trabalhadores braçais, jagunços, prostitutas,

bandidos, garimpeiros, índios, peões de gado e tantos outros estereótipos da

marginalidade, na cidade grande ou em áreas rurais. Esses estereótipos estão

presentes, sem exceção, em todos os livros de Dicke.

Há, ou houve nesse momento, portanto, em Mato Grosso, uma divisão básica

entre o grande capital que chegava, trazendo com ele a modernização das técnicas

agrícolas, dos transportes, com as estradas57, da vida em geral, e as populações que

aqui já se encontravam antes dessa migração. Em Dicke, as estradas, como pontes que

ligam o interior às grandes metrópoles, são representativas da cultura universalizante, e

marcam novas relações espaciais. Veja-se esta passagem de Deus de Caim, que

descreve o espaço da cidade em que se situa o palacete de Isidoro, que é uma das

personagens centrais:

(o palacete de Isidoro) Um pouco afastado do centro da cidade, ficavaentretanto numa rua que dava para a estrada real rumo de CampoGrande e cidades do sul, transitada por toda sorte de veículos que iam evinham. Por ali também era o passo para Coxipó, o balneário elegantedos cuiabanos, sobre o rio Coxipó, e aos domingos era um ir e vir decarros neuróticos que bem atestava a novel importância da nova viaaberta ao movimento. (Dicke, 1968: 91)

Note-se que o espaço das personagens urbanas também é afastado do centro, o

que a torna mais próxima do interior, mas não a distancia do contato com a cultura

universalizante. O palacete de Isidoro, estando no subúrbio, traz elementos da cultura

européia, as novidades da moda, acompanhando as maneiras de pensar lançadas

pelos centros hegemônicos. As estradas são um canal importantíssimo de difusão da

cultura modernizadora, pois reorganizam as relações interculturais e as noções de

espaço e tempo. José Maria Arguédas escreve que, no Peru:

57 Rama também fala das estradas como elemento importante no contato entre as culturas rurais emetropolitanas nos países da América Latina.

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Hace apenas unos veinte años que las antiguas áreas culturales quefueron respetadas durante la admnistración colonial, están siendodestrozadas y reordenadas por las carreteras... (apud Rama, 1982:168)

Com as estradas, o acesso a lugares antes isolados se torna mais viável e as

trocas culturais mais intensas:

La modernización se había instalado, por asalto, dentro de los antiguosbastiones de los Andes. Ya las montañas no preservaban la llegada delas avanzadas de la cultura occidental ni servían para reducir el tiempoque la separaba de la indígena, a los efectos de una progresivaapropiación de elementos nuevos. (Rama, 1982:169)

Junto com as estradas, a TV, elemento presente em muitos dos romances de

Dicke, também é o veiculador das novas referências culturais, assim como das

catástrofes que estas trazem consigo. Ela também realiza, no seio da cultura rural, a

difusão da cultura universalista. Nos romances de Dicke, ela está no bar (também muito

freqüente nos textos) em que os personagens se reúnem dia a dia:

Será mesmo a noite mais fria do ano, como a televisão do bar Nínivesempre mastigando sua pirada perversão de anúncios sobre tratores,moto-serras, facões e machados anunciou? (Dicke, 2000: 81)a TV desilusionada do bar Nínive ia vomitando tratores, motoserras emachados e facões e outros monstros, entre caras de aureoladospresidentes e governadores e os capotes se faziam surdos da surdezdas imagens que se desilusionavam na TV do bar Nínive, tudo erapossessa surdez extraordinária... (Dicke, 2000: 427)

Segundo Magalhães, o processo de ocupação se deu com a mesma

agressividade com que se deram as migrações anteriores a 60, desde os tempos do

Brasil colônia, mas em proporções diferentes e conseqüências diferentes58. A migração

de 60 está mais relacionada à implantação do sistema capitalista modernizador das

58 Se nos primeiros tempos da Colonização a ocupação da Amazônia estava diretamente ligada ànecessidade de se garantir a soberania da Coroa Portuguesa sobre as terras do Norte brasileiro, noSéculo XX as políticas de integração da Amazônia visam, de um lado, a afirmação da soberania brasileirasobre a Amazônia, ameaçada pelos projetos de internacionalização apresentados principalmente pelosEstados Unidos, e, de outro, elevar a taxa de exportação de produtos agropecuários a partir daimplantação na Amazônia Legal das chamadas ‘fazendas-empresas’. Cf. Magalhães, 2002: 20-21.

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metrópoles nacionais que, por sua vez, reproduzem, no contato com metrópoles

regionais ou com culturas rurais, a sua relação com as metrópoles mundiais. São os

processos de transculturação entre a metrópole nacional e a cidade interiorana que

permitem maior plasticidade na elaboração local do material estrangeiro:

el segundo (processo de transculturação) el que habría de proporcionarlas mayores garantías de uma construcción com más notasdiferenciales, además específicamente americanas, em aquellos casosem que por obra de la plasticidade cultural se consiguiera integrardentro de las estructuras próprias rearticuladas, las incitacionesmodernizadoras que las ciudades habrían mediatizado. (Rama, 1982:210)

Assim como na região andina, na Amazônia, a intensa migração para a região

gera conflitos e apropriações, pois traz novas maneiras de se relacionar com a

produção social, cultural, bens de consumo etc. Magalhães descreve a situação da

seguinte maneira:

Para o empreendedor, a terra tem um valor de acumulação, quantitativo,enquanto que para o posseiro, ela tem um valor qualitativo. Para ocapitalista recém-chegado na Amazônia, a terra vale o que ela podeproduzir para fins de exportação. Aos olhos do colono ou indígena, aterra e o instrumento que garante sua sobrevivência. (Magalhães,2002:80)

É como aparece o personagem Mr. Filler, latifundiário americano no romance

Caieira, quando enxerga, na sua maneira de lidar com a terra, a superioridade em

relação ao trabalho do sertanejo:

Terras que rendem, terras que são dinheiro... essa gente não prestava,não trabalhava, para que queria terra. Ele não, estava ali, pronto paratrabalhar, fazer aquilo tudo crescer, para fazê-la parir frutos e frutos semfim, cornucópia inestancável. Lá estava ele, e todas as terras eram dele,todas, todas, o mundo se possível, o orbe todo, só sua raça sabiapenetrar o segredo alquímico delas, só ele era homem, e mais quehomem, uma espécie de super-homem com o qual ninguém podia, povonenhum, muito menos estes famintos, podres, rastejantes, miseráveis,hediondos, os ignorantes, os indesejados de terras...(Dicke, 1978: 31)

Magalhães ainda arremata:

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Ora, duas concepções econômico-culturais tão distintas não podemcoexistir sem choques. Instaura-se na Amazônia então uma espécie decrise da significação, advinda de um violento choque cultural. (2002,p.80)

Os grandes latifúndios se inserem bruscamente no seio de culturas tradicionais

estabelecidas na região que, pela falta de elementos que as ligassem direta e

significativamente às culturas modernizadoras das grandes metrópoles do país, como

as estradas, haviam se mantido em condição de relativo isolamento, como bastiones

amazônicos 59 . Essa oposição – reiterada nas dicotomias do tipo rico e pobre,

trabalhador e patrão, sertanejo e citadino, local e estrangeiro – é bem marcada no

conteúdo dos romances.

Deus de Caim trata da trajetória de uma família que está dividida entre o campo

e a cidade, respectivamente, entre pobres e ricos. É evidente o tratamento dado a cada

um desses contextos, em que a cidade se apresenta como palco para a libertinagem e

para a deturpação dos valores morais. Os familiares da cidade têm contato direto e

freqüente com a cultura modernizadora da Europa enquanto que os do interior se

mantêm afastados dela. Esses contatos se revelam nas orgias, incestos, corrupções de

toda a ordem que apresentam os habitantes da cidade. O interior também apresenta

problemas, mas não da mesma ordem, e não tão abertamente. Só um elemento destoa

nesse campo de relações: Jônatas, um dos gêmeos protagonistas da história. Sua

discussão com o irmão Lázaro e a tentativa de enganar Minira, se passando por

Lázaro, tem como conseqüência uma fuga para a cidade e o seqüestro de Minira que,

ao final, acaba se entregando a ele e mantendo uma linhagem de “Cains”. Por fim, o

incêndio queimando a mansão é a purificação e punição que dá termo aos elementos

corruptos, inclusive Jônatas. Isidoro, personagem urbano, por outro lado, passa pelo

processo inverso, em que passa de uma decadência (marcada por uma deficiência

física) a uma pureza de espírito, no amor por sua sobrinha, não morrendo no incêndio.

Em Caieira, as personagens vivem num espaço em que o contato que travam

com uma cultura modernizadora se dá pelos passeios de lancha do empresário

americano e pelas notícias que recebem por diversas vias. Os países estrangeiros são

59 Isolamento relativo aos grandes centros e à forma de produção econômica e cultural destes centros, éimportante frisar.

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vistos como mundos muito distantes e imaginários, ou se formam no imaginário dos

trabalhadores da Caieira através da pouca informação a que têm acesso. Faz-se uma

imagem tanto positiva como negativa do estrangeiro, de acordo com a relação que se

têm com ele. A visão negativa é a do explorador, como já se viu, o que consome as

forças e as vidas dos indivíduos em função do acúmulo de capital. A visão positiva é a

do progresso:

O doutor bem que podia melhorar um pouco, modernizar, ele que é de ládaquelas bandas famosas, daquelas terras modernas de onde vem tudoquanto é bom, onde os homens são mais inteligentes e de onde vem anatural dominação do mundo pelo talento pessoal. (Dicke, 1978:111)

No romance, Mr. Filler, o americano explorador, dono da caieira, morre pelas

mãos de Pignon, personagem negra, das Guianas, que se configura como um mito

representante da liberdade e da força da natureza local em contrapartida à civilização

tecnológica estrangeira (o cipoal prende o barco a motor e as cobras matam Mr.

Filler)60.

Em Madona dos Páramos, as personagens são bandidos que fogem da cadeia e

partem em busca de uma terra prometida onde não há desigualdade ou preconceito.

Essa terra fica no interior que, a princípio, está ainda a salvo dos problemas e das

corrupções da civilização urbana. No entanto, no meio da viagem, as personagens se

defrontam ainda com o elemento estrangeiro, representado pelos protestantes da

fazenda Batovi, ou o Desolado. Aqui, assim como em Caieira, a presença do americano

(cultura com a qual se estabelecem os conflitos) está marcada pelos vestígios de

opulência ou opressão mais do que pela própria presença (em Caieira, Mr. Filler

aparece no final). O preso, o marginal da cidade, tenta se auto-afirmar quando sai dela,

com outros valores, estabelecendo uma diferença entre si e os opressores:

- Sim, vejamos. O esquecimento deles que é? Esquecimento da lei,titica. E o nosso? Ecos dos oprimidos, mundo revoltado, guerraperpétua, céu furioso, insurreição. Eles são os bons, que valor tem oesquecimento deles? Urros de onça, perigos fortes, mortes e roubos, orisco sempre, céus e loucuras, o desafio, o mar, o Demo, o mundo dosinícios. Rugidos de onça parida, gritos dos diabos esquecendo-se deque não existe nem bem nem mal: nós. (Dicke, 1982:106)

60 Cf. Magalhães, 2002.

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Nessa oposição, marca-se o americano como o outro, assim como em Caieira,

como o opressor capitalista, representado pelos protestantes da fazenda Batovi, os

sucessores de Cristo que se aproveitam de sua situação:

- Cristo hoje mudou de casaca. É cabra capitalista...- Meu irmão, Cristo era carpinteiro, amigo de pescadores, nunca tevenem em que descansar a cabeça.- Mas seus sucessores, representantes ou o que lá sejam, têmtravesseiros de outro, riquíssimo. (Dicke, 1982: 81)

O enredo de O salário dos poetas destoa um pouco dessas relações para se

aproximar de uma problemática latino-americana61, em que um ex-ditador - Augusto

Barahona - de um país imaginário da América do Sul - o Chileraguay - se refugia,

depois de ser derrubado do poder, numa região denominada Portos de Cabras. O

general sofre um atentado e passa o longo romance de mais de quinhentas páginas

refletindo suas ações passadas, sofrendo o medo da morte, a dor e o incômodo da bala

alojada na barriga. O texto evidencia a sua relação com o restante dos países da

América Latina, numa seqüência de nomes de romances e autores latino-americanos

que têm como personagem principal a figura do ditador:

Eu o Supremo, como me chamou Augusto Roa Bastos, eu o Outono doPatriarca como se me insinuou Gabriel Garcia Márquez, eu o TiranoBanderas de Valle-Inclán, eu A Morte de Artêmio Cruz de CarlosFuentes, eu o Recurso do Método de Alejo Carpentier, eu em CabezasCortadas de Glauber Rocha ou eu em El Papa Verde de Miguel AngelAsturias... (Dicke, 1999: 155)

Neste romance, também, as personagens se dividem entre marginais, pobres

moradores e trabalhadores dos Portos de Cabras, e a elite que acompanha o general.

O padecimento deste se dá pela mão dos pobres, como uma vingança por todo o

tempo de opressão e pelas injustiças cometidas durante o governo em seu país.

61 Aliás, Dicke se aproxima do universo latino-americano através de seus temas, de personagensparaguaios, bolivianos, índios etc., cantigas que fazem referência a países da América do Sul, que estãosempre presentes nos seus romances. Essa relação é sugerida por Aclyse de Matos, num contochamado Tigres de Borges, Tigres de Cortazar, que tem Dicke como personagem, no site Prosa Virtual.

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Pode-se perceber, a partir daqui, que a oposição entre pobres e ricos, que

corresponde à oposição entre o local e o estrangeiro, o tradicional e o moderno, é um

elemento recorrente nos textos de Dicke. À exceção de Madona dos Páramos, em

todos os outros há a punição – pelo fogo em Deus de Caim, pelo ataque mítico da

natureza em Caieira e pela bala de prata em O salário dos poetas. Em Cerimônias do

Esquecimento, ela se dá pelo próprio esquecimento – do elemento modernizador,

aquele que transfigura a realidade para algo decadente ou se mostra como grande

ameaça à sobrevivência da cultura local.

A ‘cultura rural’, termo usado por Rama para indicar as culturas locais,

autóctones, seria, no caso da Amazônia, representada por índios e camponeses, de

forma análoga à situação andina:

Y no existian em esas regiones sino dos fuerzas casi nitidamenteenfrentadas: la comunidade indígena, integrada por analfabetostenazmente mantenedores de sus antiguas costumbres o el hacendado,dueño de índios colonos que trabajaban em forma practicamentegratuita para el terrateniente, que no tiene ambición mayor que la dereducir a la condición de colonos a todos los índios de las comunidades,colindantes o no colindantes suyas. El mestizo y el pequeño proprietárioson mínimas fuerzas, necessariamente aliadas o al servicios de loshacendados, pues no tienen otra forma de continuar subsistiendo.(Rama, 1982:166-167)

Têm-se, dessa forma, três classes diferentes neste espaço: o índio, o fazendeiro,

o mestiço e os pequenos proprietários, estes dois últimos formando uma só classe. Vê-

se que as idéias de Rama e Magalhães se aproximam, pois ambos procuram sinalizar

quais produções literárias se inserem nesse conflito entre as culturas modernizadoras e

as tradicionais e que indicações elas trazem dele. Rama trata da questão de como

alguns autores, a exemplo de José Maria Arguédas62, trazem à tona a linguagem, a

cultura tradicional, mesclada, e não resistente ou rígida, à cultura modernizadora,

universalizante. Arguédas não se mantém resitente ao processo de modernização, mas

busca nele também elementos que façam perdurar a cultura rural. Seu elemento central

é o índio que, no Brasil, também aparece como importante material para a elaboração

estética, ao lado do sertanejo, do trabalhador do campo e outros tipos.

62 José Maria Arguédas, peruano, antropólogo, no romance Los Rios profundos.

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Resta saber como Dicke realiza essa hibridação entre a cultural local e a cultura

modernizadora. A partir dos trechos dos romances já citados, o que se pode

depreender é que eles defendem o local atacando a cultura estrangeira, denunciando

seus desvios e a decadência que trouxe à comunidade local. A opção pela defesa da

cultura do marginalizado é clara. Esta postura não constitui, no entanto, a

transculturação. Ela ocorre, em Dicke, principalmente nos níveis da composição literária

e da cosmovisão mítica.

Quanto ao nível lingüístico, em que a transculturação incide sobres os aspectos

sintáticos e morfológicos da língua, aparecem palavras, expressões locais, bem como

estruturas sintáticas que buscam simular aspectos da fala local. Apesar disso, o que

predomina é uma linguagem de aspecto culto, formal, mas entremeada de expressões

coloquiais que denotam uma ascendência local sem ser exoticizante. Pela linguagem,

às vezes, é possível identificar um narrador que não seja personagem. No entanto, a

maneira como o foco narrativo é operado faz com que a linguagem culta se mescle à

linguagem sertaneja por serem, a momentos, pertencentes textualmente a um mesmo

personagem, embora possamos identificar ou supor aspectos que seriam ou só do

narrador (como a linguagem culta e o eruditismo) ou só do personagem (como as

expressões coloquiais e a cosmovisão mítica).

Quanto ao nível da cosmovisão, essa alternância acontece da mesma maneira

nos romances iniciais (como Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos) em que

um tipo de narrador mais tradicional ainda se mostra com nitidez em alguns momentos.

Nos últimos romances (Ultimo Horizonte, Cerimônias do Esquecimento e O Salário dos

Poetas), no entanto, a visão mítica prevalece em toda a narrativa. Em relação a esse

nível, em que o mito como forma de apreender a realidade é expressão da cultura local,

o trabalho de Miguel, 2001, é bastante expressivo, mostrando como Dicke se apropria

da tradição e dos mitos ocidentais reintroduzindo-os no espaço de seus romances.

Este trabalho tem como objeto o foco narrativo, que se inclui no nível da

composição literária, pois acredita que a análise do processo de transculturação nos

níveis lingüístico e da cosmovisão dependem fundamentalmente do nível da

composição. É ele, através do foco narrativo, que irá indicar em que medida, nas

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personagens e no narrador, o romancista se torna um escritor de transculturação,

apresentando um híbrido da cultura local com a universalizante.

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9 TRANSCULTURAÇÃO E FOCO NARRATIVO

Gilvone Miguel (2001), em sua análise de Madona dos Páramos, faz

observações acerca do foco narrativo no romance e destaca o seu procedimento

estético, que consiste basicamente em alterar o ponto de vista da terceira para a

primeira pessoa ou vice-e-versa. O primeiro caso é mais freqüente e caracteriza um

movimento constante em que, iniciando-se o texto com o narrador, este não se sustenta

em terceira pessoa. O personagem, então, assume a primeira pessoa e toma os

diversos procedimentos do próprio narrador, como narrar, comentar, fazer uma

introspecção etc. Esse procedimento, colocado dessa forma, parece um tanto comum.

Leia-se, no entanto, a seguinte passagem, do romance Madona dos Páramos:

Nas perneiras as pernas, na cabeça o quepe sem resguardo, no corpo afarda pegajosa e suada, os cardados de Djanira, e o corpo sob a osseirado cavalo a trotar... e o peso por cima, José Gomes, derreado, aspernas trançadas sobre a barriga que mostra as costelas magras, comoeste cavalo anda tanto, meu Deus do céu, se me contassem eu nãoacreditava, a estradinha arcaica que nem é estrada mais, a adustão semfim, as cigarras tontas de calor, os casançãs que se queimam... (grifomeu. Dicke, 1982:14-15)

O que acontece nesse trecho é a passagem, no mesmo período, do foco

narrativo da terceira pessoa, em que José Gomes é uma personagem observada à

distância, para a primeira, em que a mesma personagem fala. Não há diferenças

notáveis entre a linguagem de um (narrador) e de outro (personagem), não há

travessões ou quaisquer outras marcas gráficas para indicar que houve a passagem.

Esse fato só permite identificar a personagem que fala algum tempo depois, a não ser

que já se esteja habituado à linguagem de Dicke.63 Um outro aspecto que dificulta a

identificação do personagem que fala (ou, em contrapartida, a identificação do narrador)

é o fato de que essa mudança não ocorre, na maioria das vezes, em um intervalo

relativamente curto de texto, como é o caso da citação acima. O que acontece é que,

após um longo trecho em terceira pessoa, à qual o leitor se habitua, essa primeira

63 Ainda assim, em muitos casos a identificação não é imediata.

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pessoa irrompe na narrativa sem nenhuma preparação, sem nenhum índice gráfico,

sintático ou semântico, o que gera um estranhamento. As primeiras considerações de

Miguel sobre o assunto não são acerca do foco narrativo especificamente, mas das

relações que se estabelecem, a partir dele, entre narrador, leitor e personagem:

A narrativa de Madona dos Páramos é estruturada de forma a aproximaro leitor, o narrador e os demais personagens, pois, por intermédio donarrador, o leitor é levado a infringir os limites da intimidade ou daconsciência dos personagens. (Miguel, 2001: 5)64

A categoria do narrador, aqui, representa tanto a categoria textual, quanto a voz

do ‘ficcionista’, Dicke, como se verá adiante. Segundo Miguel, então, o foco narrativo

em Madona dos Páramos mantém escritor e leitor num movimento de aproximação ou

distanciamento da consciência da personagem ou do narrador/personagem, processo

que se dá de maneira variada, de acordo com a necessidade da narrativa:

O ficcionista escolhe e constrói uma forma de narrar, deixando, àsvezes, implícita ou explicitamente na narrativa, a sistemática que, paraele, melhor se adaptou à sua ficção. O processo narrativo expressa aconsciência do ser, exposta pela intromissão da onisciência possibilitadapela criação literária, na opção feita pela pessoa verbal utilizada pelonarrador. Dentre as várias possibilidades que se oferecem ao ficcionista,a narrativa em terceira pessoa é um tanto destituída de vida, por suaimpessoalidade e distância. Por outro lado, a narrativa estruturada emprimeira pessoa permite ao narrador-personagem evocar as suasrecordações e lembranças, reviver, pelos artifícios da memória,acontecimentos do passado, introduzindo as reflexões, os pensamentose meditações sobrevindos da experiência (re)vivida. O narrador deterceira pessoa pode permanecer constantemente no exterior daspersonagens, descrevendo somente o visível externo, ou pode penetrarno interior do personagem, limitando-se a perceber somente o aspectoque esse personagem percebe. (Miguel, 2001: 28)

Miguel dá explicações intratextuais para o foco narrativo do romance em

questão. A alternância entre as vozes do narrador e dos personagens explica a

necessidade da expressão interior dos personagens em Madona dos Páramos, a

64 Fraçois Guyon diz: “A propósito da ausência ou da presença do autor na narrativa (pois o narrador queaqui se analisa deve ser identificado com o autor implícito de Booth), são ainda as mesmas questões quese põem: comunicação com o leitor,... diferenças entre os modos de apresentação, papel das visões oucentros de orientação no interior da narrativa, etc.” (Sallenave, sd: 36). Perceba-se que, aqui, assim comoem Miguel, o narrador é a representação do autor, é a manifestação direta do autor implícito.

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conseqüente aproximação do leitor com a consciência de cada um deles, a expressão

de seus sentimentos e suas dúvidas acerca da personagem denominada “moça sem

nome”, cuja figura misteriosa é a referência para as reflexões dos jagunços.65 Nas duas

passagens a seguir, José Gomes, que no romance também se chama Urutu, sendo

personagem referida em terceira pessoa, assume a primeira para falar de si:

José Gomes continua pensando em Tabita. Mais esta velha. Todas sãoirmãs de sua mãe. Podem estar onde estejam e serem o que forem,todas as velhas são irmãs de minha mãe, e a razão delas não tem fim.(Dicke, 1982: 45)

Aqui, há o jogo referencial entre os pronomes ‘sua’ e ‘minha’, que são os

elementos indicadores de que se trata, nas duas frases, da personagem em questão.

Na primeira frase, sua referência é a terceira pessoa, na segunda, a primeira. Este

outro trecho se refere ao aspecto levantado por Miguel, em que o personagem Urutu

(José Gomes) realiza a introspecção a partir da visão da moça sem nome:

Urutu sente um desgarrar-se no peito ao espreitar a moça sem nome ereparar nos desenhos da calcinha, as formas exuberantes e sumarentasno vestido de seda, as carnes que transparecem no vestido, como que ocorpo transcende a roupa, na mulher que é bela logo de seda, meuDeus. Aqui neste mundo do diabo, essa moça exibindo tudo isso queDeus e o Demo lhe deram impunemente, essa coisa perigosa, proibida,pecaminosa, enigmática, assombrosa, monumental, que é a beleza docorpo feminino... Esse sexo que tão pouco te custou, moça... E a gentetem de agüentar. Por que fui escolher um vestido de seda para dar-lhe.(Dicke, 1982: 300)

Elementos fundamentais para discutir a questão do foco narrativo em Dicke são

três: o uso das pessoas verbais66, dos tempos verbais e dos dêiticos referentes a lugar.

No caso destes últimos, há uma predominância do presente sobre o passado e do

“aqui” sobre o “lá”. Dessa forma, muitos dos textos apresentam um narrador que parece

65 ‘O uso da primeira pessoa na voz narrativa contribui para o efeito da credibilidade aos olhos do leitor -ninguém sabe melhor de sua própria história do que aquele que a viveu -, portanto, o autor faz de seuspersonagens narradores dignos de confiança: “[...] segundo ele mesmo, porque aqui ninguém sabe nadade ninguém a não ser o que a pessoa mesma diz, que fica sendo a sua verdade. A gente tem queacreditar no que dizem com sua própria boca...” (Dicke, 1982: 41-2)66 É importante porque, em alguns críticos como Percy Lubbock, o ponto de vista não depende da pessoaverbal utilizada. Cf Lubbock, 1976: p.49.

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estar presenciando os fatos narrados, apesar de não marcar sua presença enquanto

personagem diferente das que já existem. Em Caieira, mesmo sendo o único romance

que parece não apresentar a oscilação entre as pessoas verbais, mantendo um foco de

terceira pessoa em todo o romance, há passagens como a seguinte:67

Hoje, sábado, com dinheiro do salário semanal recebido, alguns delesnão voltarão tão cedo às suas casas, foram-se, debandaram-se.... Alimesmo na Esperança foi que se passou. Não faz lá muito tempo.... Masé verdade porque aconteceu. Que aqui, verdade que foi verdade que foiaqui... (Dicke,1978: 8)

O narrador, mesmo estando em terceira pessoa, se situa no presente e

espacialmente próximo em relação aos personagens. Note-se ainda, a relação entre os

dêiticos “aqui” e “ali” designando o mesmo espaço da caieira Nova Esperança. O

romance Caieira não apresenta oscilação marcante de pessoas verbais, mas de índices

espaço-temporais. Há casos em que, apresentando a narrativa um aspecto mais

tradicional, o narrador, cujo foco está em terceira pessoa, se denuncia através de

opiniões em primeira, como acontece, dentre outros, no romance Deus de Caim:

Mas ele sabia, o Cardeal não fizera nada de mais, simplesmente, eleJônatas havia enchido as tipas de pinga e nesse estado depois da briga,não havia visto nada, pensando como estava, que Lázaro morrerairremediavelmente... Era um caso de choque, de catalepsia, de não sei oquê... (Dicke,1968: 82)

Esse tipo de intervenção pode ser visto em romances tradicionais do século XIX,

em autores como Machado de Assis. Da mesma forma acontece em Madona dos

Páramos, em que a primeira pessoa se apresenta no plural através da locução a gente.

A personagem referida em terceira pessoa, aqui, é José Gomes:

quando a tocara ao ajudá-la a subir ao cavalo, sua pele se arrepiaracomo quando a gente vê uma sucuri de perto, saindo da água... Lembra-se do dia ainda hoje, ao passar por um córrego, viu na outra margem umtuiuiú pensativo, numa perna só... (Dicke, 1982:226)

67 Hilda Magalhães diz: “O personagem absurdo não é consciente de si mesmo no tempo e no espaço,não pode também exercer o poder da palavra, motivo pelo qual a narrativa é realizada em terceirapessoa” (Magalhães, 2002: 43). Caieira, apesar do apontamento de Hilda Magalhães, apresenta, emmenor grau, a mesma característica narrativa tratada aqui.

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A alternância do foco narrativo entre a primeira e a terceira pessoas é uso

comum na narrativa ocidental, pois, de acordo com o desenrolar da trama, o narrador

onisciente pode passar, por diversos motivos, a narração para algum personagem. Em

Dicke, essa problemática não consiste somente na narração, mas na diferenciação

entre a narração e o diálogo, em que, muitas vezes, o que ocorre é não a transmissão

da voz narrativa para o personagem, mas apenas a sua fala inserida diretamente no

período narrativo, sem marcação gráfica. A afirmação de que há mudança de foco vem,

na verdade, do fato de que essa fala em primeira pessoa pode se estender por muitas

páginas, narrando ou não.

A mudança de foco narrativo em um texto é sentida de várias maneiras, seja pré-

anunciada, ou vindo separada da fala do narrador por quaisquer sinais de pontuação

(ou mesmo pela ausência deles), ou marcando-se na diferença de linguagem entre

narrador e personagem, ou ainda pela própria estruturação sintática e uso do tempo

verbal e dos dêiticos que permitem, mesmo sem marcação, a identificação das

fronteiras entre personagem e narrador. A diferença entre esse tipo de procedimento e

o que ocorre em Dicke é que a mudança, muitas vezes, não está marcada e ocorre no

fluir de uma mesma oração. Na seguinte passagem, o general Augusto Barahona, de O

salário dos poetas, vem designado por terceira pessoa até que irrompe falando em

primeira:

o filho coronel Gustavito se foi, sua mulher Filomela se foi em silêncio,as criadagens e seguranças castrenses se foram... fica finalmente a sós,sob a lua amarela que difundem as lâmpadas alimentadas pelosgeradores que zumbem nos fundos da casa... luz que segundo ele temqualquer doença, por exemplo, parece maleita, ou talvez luz sifilítica quepousa na pele e amarfanha os nervos como uma descicatrizaçãopurulenta, sim, esta luz doente tem qualquer coisa da pulverulência dosvermes negro-amarelos daquele cavalo morto sobre o qual tombeiquando aquela bala de prata me atingiu, e ele sente um ingurgitamentointransitável na boca do estômago... (Dicke, 2000: 223)

Note-se que as pessoas oscilam, deslocando-se o ponto de vista da terceira

pessoa do narrador para a primeira do personagem e deste para o narrador novamente.

O interessante nesse processo é que essa passagem se apresenta de maneira natural,

quase imperceptível na fluência do texto, a não ser justamente pela alteração da

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pessoa verbal. Vários elementos permitem esse deslocamento natural: a não diferença

entre as linguagens do narrador e do personagem, que faz com que se leia a narração

como se fosse de uma só voz; a maneira prosaica e hipotática da escrita, que une

orações e períodos que, a princípio, poderiam estar separados graficamente por pontos

finais, dois pontos ou travessão (como acontece em muitas outras passagens), e que

vêm, no entanto, separados apenas por vírgula. Tal característica estimula uma leitura

corrida, unindo todo o conteúdo num mesmo período mais longo, sob a primeira

referência de pessoa, tempo e lugar, que se altera para uma outra. A leitura de trechos

como esse carecem de atenção maior. Essa alternância de pessoas pressupõe uma

alternância de vozes no romance cuja identificação, nem sempre imediata, cabe ao

leitor. A explicação de Gilvone Miguel para tal fenômeno é a seguinte:

Há que se considerar a dupla relação, implícita ou explícita, estabelecidana estrutura da obra narrativa, de um lado, entre o autor e o leitor, deoutro, entre um narrador onisciente e um narrador personagem. Esteprocesso possibilita o jogo de alternância verbal da voz da narrativa, oraem primeira pessoa, ora em terceira pessoa, cabendo ao leitor, emmuitas situações, decifrar a quem pertence aquela voz, se ao narradorem terceira pessoa ou ao personagem num monólogo interior. Essesdeslocamentos do foco narrativo marcam os indícios da presença doautor implícito que opta por apresentar, na voz do narrador onisciente,os personagens externa e internamente, ou conferir a um personagem avoz da narrativa para que apresente a si mesmo e aos outros numavisão interior. O autor pode até usar de artifícios para fazer parecer queos personagens são autônomos e vivem por si mesmos, porém o quefica patente ao leitor atento é a tentativa de [...] controle constanteexercido pelo autor . São manifestações das várias vozes do autor notexto. (Miguel, 2001: 29)

Essa passagem evidencia a opção teórica de Miguel para explicar o fenômeno

que ocorre em Dicke. A teoria do autor implícito foi proposta por Wayne Booth (1961)

como uma crítica às colocações de Henry James (1964) e Percy Lubbock (1976), que

afirmavam que o autor deveria ao máximo se afastar, se imiscuir da obra, buscando

uma dramaticidade e não deixando indício de que há uma mente por trás da narrativa e,

principalmente, das personagens. Booth, em contrapartida, afirma que, invariavelmente,

o autor está implícito em todas as ações, falas, arranjo de intrigas etc. que venham a

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compor uma obra literária.68 É nessa perspectiva que a narrativa, não estando a cargo

de uma personagem, será a representação direta do autor na obra:

Nas remembranças de cada um, vê-se traída a voz do autor que serevela de forma intensa nas meditações, nas considerações e análisesque brotam no pensamento dos personagens quando revivem os fatospassados de sua vida. (Miguel, 2001: 31)

A presença do autor, aqui, é medida pelas observações e palavras expressas

por alguma personagem. Para Gerard Genette, 1976, isso se resolve pensando na

distinção entre discurso e narrativa, em que o primeiro responde pelas referências

externas – de lugar, de tempo etc. – ao texto, e o segundo consiste no desenrolar da

ação. Para o teórico estruturalista, nem se discute a questão do autor na obra, este é

um dos referentes externos que compõem o contexto em que ela é produzida. O texto

prescinde, dessa forma, do autor, pois, no momento em que este o termina, já não

possui domínio sobre ele. Citando Benvenieste, ele define a presença ou não de

‘alguém’ no texto de acordo com o gênero em questão:

No discurso, alguém fala, e sua situação no ato mesmo de falar é o focodas significações mais importantes; na narrativa, como o diz Benvenistecom força, ninguém fala, no sentido de que em nenhum momento temosde nos perguntar quem fala (onde e quando, etc.) para receberintegralmente a significação do texto. (Genette: 1976, p.270)

Em Dicke pesa o fato de que, ao se medirem quantitativamente os gêneros

discurso e narração nos seus romances, o primeiro supera em muito o segundo,

estando ele a cargo do narrador ou do personagem. Nesse sentido, já que predomina o

discurso, a presença de “alguém”, para usar as palavras de Genette, é pressentida e,

para Booth e Miguel, esse alguém é sempre o autor:

Na retórica de Madona dos Páramos, nenhum fato chega ao leitor semmediação. Dicke, na composição de sua narrativa, conduz o narradorque, no exercício da onisciência, vai, gradativamente, sendodramatizado, tornando-se personagem e, vice-versa, o personagemtornando-se narrador na terceira pessoa. (Miguel, 2001: 32)

68 Cf. Sallenave: sd, p.31.

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A idéia de que há um autor por trás do texto, ou de que existe a possibilidade de

o autor marcar, de uma maneira ou de outra, sua presença no texto69, é produto de uma

corrente de pensamento que tem como fundamento a linguagem como expressão do

pensamento. Roland Barthes, estruturalista assim como Genette, associa a idéia de

autor a uma perspectiva racionalista/positivista, cuja ênfase recai no indivíduo. O autor

também é uma criação, surgida num determinado contexto social:

O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossasociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Média, com oempirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, eladescobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se diz maisnobremente, da pessoa humana . É pois, lógico que, em matéria deliteratura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologiacapitalista, a conceder a maior importância à pessoa do autor. (Barthes,1984: 49)

Barthes faz uma crítica à importância dada à noção de autor exterior ao texto,

enquanto pessoa, enquanto indivíduo. Como estruturalista, ele dá mais ênfase à

linguagem em si do que a um sujeito externo a ela. Na verdade, o sujeito para Barthes

está situado dentro da própria linguagem, como categoria da enunciação, discriminada

no discurso e não na realidade, ou melhor, a realidade do sujeito é uma realidade

lingüística:

Lingüisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele queescreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagemconhece um sujeito , não uma pessoa , e esse sujeito, vazio fora daprópria enunciação que o define, basta para fazer suportar alinguagem, quer dizer, para a esgotar. (Barthes, 1984: 51)

Barthes, no entanto, não elimina simplesmente o autor da narrativa. Ele elimina a

instância produtiva que se situa fora dela e que influencia a sua recepção. Uma

perspectiva que leva em conta a presença do autor na narrativa, orienta a leitura para a

descoberta desse autor, para sua decifração, para uma interpretação fechada e

69 E boa parte da crítica acerca do foco narrativo, compreendendo principalmente as linhas inglesa efrancesa, trabalha nessa perspectiva. Jean Pouillon (sd), com as visões narrativas, também se enquadranesse mesmo psicologismo, que consiste na representação da mente do autor ou do personagem. Nessaperspectiva, o narrador onisciente sempre será uma representação do pensamento do autor, da figuraque ele mentalmente elabora para criar suas histórias.

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acabada. Barthes vai, então, substituir o autor por uma outra instância que denomina de

scriptor, que seria um sujeito presente na enunciação, que se constitui no momento

mesmo do acontecimento do discurso:

o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está demodo algum provido de um ser que precederia ou excederia a suaescrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria opredicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo otexto é escrito eternamente aqui e agora. (Barthes, 1984: 51)

Barthes, através de sua percepção do autor como pessoa, esclarece certos

‘equívocos’ das teorias do ponto de vista que conhecia até então, associando a fonte da

narrativa à essa noção positivista que contamina a percepção da categoria do narrador

pela pessoa do autor:

ver no narrador e nos personagens pessoas reais, vivas (é conhecida aindefectível potência desse mito literário), como se a narrativa sedeterminasse originalmente em seu nível referencial... (Barthes, 1976:48)

O teórico quer esclarecer, para efeito da análise estrutural, o que pertence e o

que não pertence à linguagem, o que compete ao lingüístico e ao não-lingüístico:

Ora, ao menos em nosso ponto de vista, narrador e personagens sãoessencialmente seres de papel ; o autor (material) de uma narrativa nãose pode confundir em nada com o narrador desta narrativa; os signos donarrador são imanentes à narrativa, e por conseguinte perfeitamenteacessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir que o próprioautor (que se mostre, se esconda ou se apague) disponha de signoscom os quais salpicaria sua obra, é necessário supor entre a pessoa esua linguagem uma relação signalética que faz do autor um sujeito plenoe da narrativa a expressão instrumental desta plenitude: a isto a análiseestrutural não se pode resolver: quem fala (na narrativa) não é quemescreve (na vida) e quem escreve não é quem é. (Barthes, 1976: 48)

O estruturalismo defende a conscientização de que, apesar de tudo, a narrativa,

principalmente na forma de texto escrito, está separada, como linguagem que emana

de uma fonte. O que se encarna no papel (e a presença da escrita é fundamental nesse

processo) não pertence mais ao ‘emissor inicial’. Essa separação é fundamento para a

elaboração das categorias da análise estrutural, que pretende, ao descrever a língua

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como sistema e o texto como parte dela, identificar a função de suas partes. O narrador,

neste caso, é uma delas, e o autor é exterior ao seu funcionamento. Idéia semelhante

nos dá Dal Farra em seu texto O narrador ensimesmado, cujo intuito, dentre outros, é

provar a existência do autor implícito, teoria de Booth, referindo-se praticamente ao

mesmo momento da história da teoria do ponto de vista, o momento de James e

Lubbock:

Todo o mal-entendido nascia da convicção de que, no romance, a vozque detém a narração seria a do autor a do poeta objetivo quesubscreve os originais. Mas a voz, a emissão através da qual o universoemerge, se desprende de uma garganta de papel, recorte de uma daspossíveis manifestações do autor. Como narração, ela emana de um sercriado pelo autor que, dentre a galeria das suas posturas aspersonagens elegeu-a como narrador. Máscara criada pelo demiurgo,o narrador é um ser ficcional que ascendeu à boca do palco para proferira emissão, para se tornar o agente imediato da voz primeira. (Dal Farra,1978:19)

Há, aqui, uma aproximação aparente entre as idéias de Barthes e as de Booth.

Segundo a interpretação de Dal Farra: em ambos, o termo ‘autor’ se refere ao

ficcionista. O ‘autor’ de Barthes está fora da narrativa, assim como o ‘autor’ de Booth. A

diferença entre os dois está relacionada, basicamente, à interferência ou não desse

autor na obra. Booth opta pela interferência, através da categoria do autor-implícito, e

Barthes não. Neste caso, a crítica que Barthes faz à teoria do século XIX, que supõe

que no texto haja um referente (psicológico) identificador do escritor, se aplica também

a Booth. A corrente estruturalista dos estudos literários estabelece essa diferença, essa

independência entre uma pessoa externa e uma categoria interna ao texto. Esse

contraponto de opiniões acerca da relação entre autor e obra e, mais especificamente,

entre autor e narrador (a dúvida se este é ou não a representação do autor), pode

explicar, por exemplo, a confusão que alguns autores demonstram ao usar as duas

categorias de maneira indiferenciada, para designar o mesmo referente, textual ou

extratextual.70

70 Leia-se, por exemplo, textos como os de Lígia Chiappini (2002) e Fraçoise Guyon (sd.) que,percorrendo a discussão acerca do foco narrativo na literatura ocidental, em vários momentos usamindiferenciadamente as categorias autor e narrador para designar a mesma coisa.

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Bakhtin (1992 e 1997) elabora uma teoria que abre outras possibilidades de

olhar a questão do foco narrativo. Ele não trabalha com essa relação entre autor e

narrador, abordando o texto literário a partir da relação entre autor e herói. Nesse caso,

o narrador se configura, diretamente, ou como voz do autor ou como voz do

personagem. O narrador é uma instância discursiva assumida de acordo com as

necessidades do romancista71. Essa maneira de ver o processo narrativo não coincide,

como poderia parecer, com a teoria do autor implícito, pois no caso de Bakhtin, o autor

não consegue captar a plena consciência de mundo do herói. A noção de autor implícito

marca a predominância de uma só voz camuflada, metamorfoseada em outras,

estabelecendo o que Bakhtin chama de monologismo. Para o teórico russo, isso

caracteriza apenas um certo tipo de produção, que ele chama de monológica e que

representa uma estética e uma filosofia específicas, que são o idealismo e o

positivismo:

Os princípios do monologismo ideológico encontraram na filosofiaidealista a expressão mais nítida e teoricamente precisa. O princípiomonístico, isto é, a afirmação da unidade do ser, transforma-se, nafilosofia idealista, em princípio da unidade da consciência. (Bakhtin,1997: 79)

A relação entre autor e herói se dá de maneira com que um não possa captar

plenamente a completude, a totalidade do outro, de sua consciência. Essa totalidade só

consegue ser estabelecida pela atividade estética, que consiste em visualizar o outro

lhe dando um pano de fundo, uma moldura que permita criar uma completude estética

exterior, mas que não corresponderá nunca à totalidade do ser e não compreenderá

totalmente a visão e a consciência desse outro. O que o positivismo fez foi reduzir, pelo

olhar monocular, pelo discurso monológico, “definitivamente a um denominador comum

o eu e o outro...” (Bakhtin, 1992: 76)

Essa distância, que na literatura se configura na distância entre autor e herói,

caracteriza o que Bakhtin (1992, p.34) denomina de exotopia. Obviamente, as idéias de

Bakhtin estão impregnadas do socialismo (do marxismo) que caracteriza a linguagem

71 Para Cristóvão Tezza, o narrador em Bakhtin consiste no ponto de vista gramatical que estabelece anarrativa e pode, portanto, ser assumido por qualquer uma das duas categorias passíveis de assumirema voz narrativa, autor ou narrador. Cf. Tezza, 2003: 206.

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não como expressão do ser, mas como um produto das interações humanas, como

espaço para interação social. Dessa forma, sua análise não coincide com a

estruturalista de Barthes, pois esta está calcada na separação sistemática entre língua

e indivíduo, e, por outro lado, também se torna incompatível com a idealista monológica

de Booth. Apesar disso, consegue mostrar, como Barthes, que a teoria que procura

discutir a presença ou não do autor na obra é específica de um determinado contexto

sócio-histórico, que não limita outras possibilidades de interpretação do fato literário.

A presença do autor para Bakhtin é ponto passivo, com a diferença de que esse

autor não tem pleno conhecimento do seu herói, estabelecendo com ele uma relação

de diálogo, dialógica e não monológica, e com a diferença de que este também não é

um autor real. Segundo Faraco, Bakhtin diferencia o autor criador do autor real, em que

o primeiro é uma instância do discurso estético que o segundo pode ocupar:

Ele é entendido fundamentalmente como uma posição estético-formalcuja característica básica está em materializar uma certa relaçãoaxiológica com o herói e seu mundo. (Faraco: 2005, P.38)72

Dessa forma, ele destaca dois tipos de produção, a monológica e a dialógica,

cuja diferença exemplifica na maneira de narrar de dois autores:

Liéskov recorria ao narrador em função do discurso social de um outro eda mundividência social de um outro, e, já pela segunda vez, em funçãodo skaz verbal (tendo em vista que estava interessado no discursopopular). Já Turguiêniev fazia o contrário; procurava no narradorprecisamente uma forma verbal de narrativa, porém em função daexpressão direta de suas idéias. É-lhe de fato inerente a orientaçãocentrada no discurso falado e não no discurso de um outro. (Bakhtin,1997: 192-3)

A teoria do autor implícito, de Booth, bem como a de Lubbock, Pouillon e outros,

que busca identificar e justificar a presença ou ausência do autor na obra, tendo como

referência a autoconsciência, o psicologismo do autor, se aproxima muito dessa

segunda maneira de organizar o discurso.

72 Cf. ainda Bakhtin, 1997: 184.

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Ao que parece, nenhuma dessas correntes em particular - a idealista, a

estruturalista e a marxista – servem isoladamente para entender a narrativa de Dicke.

Os romances, por momentos, se alternam entre estas três maneiras (e outras) de

narrar. Por vezes, os textos apresentam caráter monológico e, em outras, um caráter

dialógico. Essas alterações se dão, no caso de Dicke, com as alterações do foco

narrativo pela mudança das pessoas e tempos verbais durante a narrativa.

Na tentativa de identificar qual é a voz do narrador e qual é a do personagem,

observa-se, como já foi dito, a predominância de uma indiferenciação lingüística entre

ambos. Ela é cada vez mais predominante a cada romance do escritor. Ao observar a

relação entre os tempos verbais e os dêiticos utilizados, como referência para a

diferenciação, ver-se-á que é possível esboçar uma separação que, no entanto, pela

maneira como o fato acontece, é fugaz, efêmera. As pessoas verbais, ao se alterarem

num mesmo parágrafo e, por vezes, num mesmo período, instauram uma dúvida não

sobre a personagem, pois ela, afinal, deterá a voz em primeira pessoa, mas sobre o

narrador. A partir do momento em que a voz da personagem (ou o que seria a voz da

personagem) irrompe no texto, tudo o que ficou para trás fica sob suspeita, seja

narração ou discurso. Em alguns momentos a diferença é um pouco mais evidente

porque os personagens são tratados em terceira pessoa, nomeados, para, em seguida,

falarem, como é o caso de alguns exemplos já citados. Para Bakhtin:

Do ponto de vista da lingüística pura, entre o uso monológico epolifônico do discurso na literatura de ficção não se devem ver quaisquerdiferenças realmente essenciais. Por exemplo, no romance polifônico deDostoievski há bem menos diferenciação lingüística ou seja, diversosestilos de linguagem, dialetos territoriais e sociais, jargões profissionaisetc. do que em muitos escritores de obras centradas no monólogo...(Bakhtin, 1997: 182)

A indiferenciação lingüística, no caso de Dicke, é acompanhada, por vezes, por

uma indiferenciação referencial, em que não se sabe ou, às vezes, se tem dúvida sobre

quem está narrando. 73 Segundo a teoria do autor implícito, essa indiferenciação

indicaria a presença de uma consciência onisciente, a do autor, percorrendo toda a

73 Essa dúvida é um dos temas centrais do romance Cerimônias do Esquecimento, que será tratadoadiante.

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obra. Segundo Bakhtin, ela pode ser entendida como polifonia do discurso, em que,

mesmo havendo recorrências de idéias, palavras, estilos, as consciências do autor e do

personagem não formam uma consciência única e indivisa (como no caso do autor

implícito).

Angel Rama, ao realizar a análise de Los Rios Profundos, de Arguédas, marca o

distanciamento entre autor e personagem, que assumem cada qual o papel de narrador

a seu tempo, com uma função e características específicas. Esse distanciamento, no

texto, se dá através dos tempos verbais que cada um usa em sua fala, bem como a

postura – de etnólogo de um (Arguédas) e de narrador popular de outro (Ernesto) – que

cada um assume, trazendo elementos da cultura popular quéchua e de uma cultura

erudita. Apesar de usar referências como Benvenieste e Weinrich, a definição da

distância entre autor e personagem é muito semelhante à definição de dialogismo e

exotopia de Bakhtin:

La ficta independência del personaje Ernesto repecto al autor, repercuteem el narrador adulto, sobre cuyas circunstancias, vida, constumbres,educación, Arguédas gurarda estricto silencio. (Rama,1982: 276)

Por outro lado, se em Arguédas há essa diferenciação bem marcada, não é o

que vai acontecer em outros autores e romances abordados pelo viés da

transculturação. Em alguns textos, há uma aproximação entre a linguagem do narrador

e a dos personagens, como acontece em Dicke. Rama aponta as seguintes

características, para os autores da transculturação:

Reduzem sensivelmente o campo dos dialetismos e dos termosestritamente americanos, desentendendo a fonografia da fala popular,compensando-o com uma confiante utilização da fala americana própriado escritor... E além disso se encurta a distância entre a língua donarrador-escritor e a dos personagens, na crença de que o uso dessadualidade lingüística rompe o critério de unidade artística da obra. (apudAguiar & Vasconcelos, 2001: 267)

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Essa reaproximação, o procedimento estético desses autores, vem estabelecer

um contraponto com a estética herdada da burguesia européia pelo regionalismo

tradicional que:

Funcionava, em relação à matéria distante que elaborava, a mesmadistância que a língua culta do narrador mantinha em relação à línguapopular do personagem... Ao se recusar o discurso lógico-racional,produz-se novamente o retorno do regionalismo a suas fontes locais,alimentadoras, e inicia-se o exame das formas dessa cultura segundoseus praticantes tradicionais. (Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001:277)

O afastamento entre o autor e sua produção é uma característica européia

novecentista, lógico-racionalista, cujo fundamento é a observação indiferente e

imparcial da realidade. O que o romancista faz não é um tratado da linguagem local,

como fazem, por exemplo, os românticos no Brasil, forrando suas páginas de glossários

e explicações. A língua não é colocada como objeto observável, mas como material

literário pelo qual se produz a arte.

Dicke reforça essa aproximação em seus romances através da indiferenciação

do próprio foco narrativo, cuja instabilidade entre primeira e terceira pessoas gera uma

confusão sobre as individualidades da obra (inclusive as do narrador), sobre quem

narra ou fala em determinado momento do texto. No momento em que se supera a

relação lógico-racional de distanciamento entre autor e personagem, abre-se espaço ao

mito como forma de apreensão da realidade. Como fruto dessa superação, certas

inverossimilhanças se anulam, principalmente acerca da sabedoria que certas

personagens, sendo estereótipos da marginalidade e da ignorância, demonstram ter. A

língua nos romances, semelhante para o autor e as personagens, é uma reelaboração

que leva em conta a relação mítica com o elemento local, em que pesam uma mistura

entre língua culta (do escritor) e popular (local) e a experiência do próprio escritor, como

indivíduo que também vive a fronteira entre essas duas cosmovisões. Dicke se

enquadra no tipo de intelectual, já filho de culturas distintas (pai alemão e mãe cafuza),

que, vivenciando a experiência local na sua cosmovisão (mítica, tradicional), se forma

nos grandes centros universalistas, modernizadores, de outra cosmovisão (lógico-

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racionalista). Essa situação limítrofe se reflete no texto de um escritor de

transculturação.74

Pensando na relação autor/personagem, portanto, pôde-se perceber que as

palavras de Bakhtin e Barthes concordam no seguinte aspecto: a noção de autor como

uma personalidade externa à obra é produto do pensamento lógico-positivista europeu

do século XIX. O autor, nesta perspectiva, é uma entidade individualizada, separada da

obra, gerada pela necessidade de objetivação do ‘eu’ do pensamento lógico-

racionalista. Esse distanciamento, tanto em relação ao ‘eu’ quanto do autor em relação

à obra (ao narrador e às personagens) é minado pela produção literária de muitos

autores. No caso da narrativa latino-americana, essa ‘proximidade conquistada’ entre o

escritor e seu texto, elaborada esteticamente, coloca-o como parte de um sistema social

e literário, com sua função social e política, que não pode e não consegue se distanciar

das palavras do texto porque são as suas mesmas e refletem a estrutura social

conflituosa que ele vivencia. Daí o fato de que, na narrativa latino-americana de

transculturação, o aspecto biográfico tem caráter natural, necessário à própria estrutura

dos textos.

Nesse ponto, a experiência do escritor na América Latina se contrapõe às

opções destacadas acima, instituindo uma oposição entre América (local) e Europa

(universal), não sendo passível uma aplicação plena daquelas teorias: não pode ser

interpretada pela teoria estruturalista, que vê a obra em si mesma sem a referência do

autor; nem pela diferença que Bakhtin estabelece entre autor real e autor criador, que

também se relativiza, pois a criação de transculturação estaria diretamente vinculada à

experiência pessoal, testemunhal, do escritor; nem pela teoria do autor implícito

também, pois ela também estabelece um espaço entre autor real e autor implícito. No

seguinte trecho de Madona dos Páramos, por exemplo, Miguel abandona a teoria do

autor implícito, pois estabelece, numa leitura biográfica, uma relação direta entre autor

(Dicke) e personagem (Melanio Cajabi):

Melanio Cajabi personifica a voz do autor na ficção de Dicke; foiescolhido para ser reflexo imaginário do autor na obra, na escritura

74 Rama lembra a migração dos intelectuais do interior para as metrópoles. (Aguiar & Vasconcelos,2001: 263).

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literária, inclusive na manifestação das reflexões metalingüísticas.(Miguel, 2001: 40)

Hilda Gomes Magalhães, sobre o romance Último Horizonte, também aponta

uma relação direta entre o escritor e o personagem:

Uma das características mais singulares de Guilherme Dicke é, semdúvida, a sua capacidade de entabular, numa linguagem densa e emtramas fortes, temas caríssimos à literatura... É o que nos informa opersonagem-autor de Último Horizonte. (Magalhães, 2001: 7)

As proposições de Magalhães e Miguel para os romances em questão se

referem ao fato de que o narrador se denuncia explicitamente como narrador e traz

referências incontestáveis da biografia de Ricardo Guilherme Dicke, marcadas em

alguns personagens, como o professor de filosofia formado no Rio de Janeiro e

demitido da universidade em que lecionava – que aparece explicitamente nos romances

Último Horizonte, Cerimônias do Esquecimento e O Salário dos poetas, e veladamente

nas personagens Melânio Cajabi, em Madona dos Páramos, e no Grego de Deus de

Caim. As referências dizem respeito aos pais dos personagens (exceto do Grego de

Deus de Caim) e muitas outras informações que são dados da vida do romancista. Em

Madona dos Páramos, tem-se:

A casa de pedras, o sitio do meu pai, lá na Raizama, perto de Chapadados Guimarães... (Dicke, 1982: 388)O grande cavaleiro alemão, cortês e metafísico e maçon de todos osrespeitos... bem casado com sua mulher cafuza descendente de índios enegros cuiabanos, os sangues perdidos desde os ancestrais dosancestrais dessa grande árvore genealógica... (Dicke, 1982: 391)música que eu me lembro, música da alegria, quando eu freqüentava umcerto bar na cidade, quando voltei do Rio de Janeiro depois de meformar... (Dicke, 1982: 394)

Em O salário dos poetas:

patas que bruacam na tempestade das telhas de barro ainda dostempos da infância dos bisavós vindos dos sertões da Chapada dosGuimarães... (Dicke, 2000: 46)Eu, ex-professor de Filosofia despedido da famosa UniversidadeSelvática, centro propagador de Cultura (dizem), infiltrado pelo maisbaixo clero do mundo e pelo mais ultrajante militarismo, menestrel dascausas da sagrada Poesia: eu: uma idéia madura em mim, maior que as

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próprias idéias: o sonho divino Sonho cuja transmutação metamorfoseiaas feiúras do mundo no outro alquímico dos mistérios que correm daágua viva da fonte da Filosofia Perene... (Dicke, 2000: 182)

A interpretação ‘testemunhal’, biográfica, de Dicke (e, possivelmente, da

narrativa latino-americana de transculturação) nivela as abstrações elaboradas pelo

pensamento lógico-racional europeu: o scriptor barthesiano; o autor implícito, de Booth;

e o autor criador de Bakhtin; como categorias não plenamente compatíveis com o tipo

de relação estética estabelecida entre o escritor e sua obra. A cosmovisão mítica não

compreende o distanciamento entre o artista e sua arte, não abstrai essa relação,

gerando um personagem, uma instância discursiva. O autor de transculturação deve ser

observado da perspectiva a partir da qual escreve, buscando-se o que for possível para

garantir sua interpretação e entendimento,75 cruzando a informação universalista com o

ponto de vista local, em termos específicos, as maneiras mítica e lógica de narrar, com

predominância estrutural da primeira.76

75 Como sugere Antonio Candido em seu prefácio para Literatura e Sociedade.76 Mesmo o marxismo, no caso de Arguédas, é tomado como crença: “El socialismo no fue para élsimplemente una teoría ni un método, sino preferencialmente una creencia sostenida sobre unaexplicación persuasiva del funcionamiento de la sociedad... El socialismo, por lo tanto, funcionó como unmecanismo eficaz para religar los dos hemisferios culturales en que se movió Arguédas. Gracias a élpodía encontrarse una comunicación entre los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferiooccidental y los hombres que seguían viviendo dentro del hemisferio tradicional pero en una situación deatroz sometimiento.” (Rama, 1982: 299)

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10 CERIMÔNIAS DO ESQUECIMENTO

Cerimônias do Esquecimento é, para efeito desta análise, o mais representativo

dos romances de Dicke nos processos acima mencionados. Nele, as relações entre

cidade e interior, entre cultura universalizante e tradicional, são fatores fundamentais e

têm como aspecto mais relevante o foco narrativo. A questão do narrador, de quem

narra a história, é a todo instante colocada. Há uma busca pela fonte da narrativa, pela

voz responsável por ela.

A estrutura do romance é composta de três linhas narrativas que dialogam a todo

o instante no decorrer do livro. Essas linhas são marcadas por índices gráficos. Uma

delas é marcada por parêntesis, outra por aspas e outra não possui marcação. Elas não

aparecem em seqüência no texto, como três partes distintas que se sucedem, mas se

desenvolvem paralelamente, simultaneamente, inclusive porque se autoreferem o

tempo inteiro no romance e se complementam na construção da interpretação, no

sentido de que, às vezes, a informação que falta em uma é dada em outra.

Dessas linhas, duas (a entre parêntesis e a sem marcas) têm como espaço o bar

Portal do Céu, um bar do Coxipó da Ponte, bairro que se situa nos limites entre Cuiabá

e o sertão mato-grossense. A narrativa tem o intervalo de uma noite (que não finda no

romance) em que algumas pessoas se reúnem ali para participar de uma cerimônia de

passagem entre duas eras da humanidade: de uma de decadência e morte para uma

de esperança e paz. No bar, as personagens se entorpecem com cerveja, que funciona

como veiculador de um transe que as leva para um tempo imemorial, em que se

recordam de vidas passadas e se reconhecem como participantes do ritual chamado

Noite da Predestinação, que irá marcar aquela mudança de eras. O ritual se dá na casa

de uma das personagens.

A terceira linha reconta a história do rei Saul, suas conseqüências e sua trajetória

até chegar também àquele bar. Nessa linha, a personagem também se recorda de

tempos passados e de sua missão em relação ao ritual. Este consiste na união sexual

de um casal, já prenunciada no início, quando se fala de uma festa de casamento

ocorrida no dia anterior.

A primeira linha narrativa (entre parêntesis) é centrada na visão de uma

personagem, Frutuoso Celidônio, um professor de Filosofia despedido da Universidade,

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que supostamente ouve uma história contada por um outro personagem, um velho, pai

da noiva de um casamento do dia anterior, chamado Anelinho Abbas. A história

contada por esse velho, e que se passa na segunda linha narrativa, entre aspas, é a

história do personagem bíblico Saul, cuja trajetória atravessa o tempo em encarnações

das quais a última coincide com o tempo dos outros personagens. A segunda é a

narrativa que dá conta das seqüências dos fatos que antecedem e sucedem ao ritual da

Noite da Predestinação. Ela apresenta um grau de linearidade e objetividade maior que

as outras duas. Esta última, junto com a primeira, compõe a narrativa do ritual, de

pontos de vista distintos. A segunda conta a trajetória de Saul.

A narrativa entre parêntesis é uma espécie de ponto de amarração entre as três

linhas, pois, ao mesmo tempo em que reflete sobre os fatos narrados pela narrativa

sem marcas, também o faz acerca da narrativa entre aspas. Ela funciona esclarecendo

ou obscurecendo as informações dadas nas outras linhas. As três narrativas se cruzam,

ao final, quando Saul, personagem da narrativa entre aspas, se torna também

integrante da cerimônia, relatada nas outras duas, em especial pela narrativa sem

marcas.

Um dos problemas colocados desde o início pelo romance é a respeito do

narrador da história de Saul. Problema que, na verdade, vai se estender para as outras

narrativas, já que as histórias se fundem no final. Essa questão constitui todo o jogo

que o romance faz com o foco narrativo e será tratada aqui à luz do exame do uso das

pessoas verbais, como já foi feito anteriormente com os outros romances, e dos

processos de transculturação envolvidos na escrita desse livro.

Os personagens do romance são: João Valadar, um ferreiro; João Ferragem, um

rabequeiro andarilho; João Bergantim, um louco evadido do hospício; João Quatruz, o

dono do bar Portal do Céu; Isabel, a esposa do dono do bar; Rosaura do Espírito Santo,

uma prostituta; Frutuoso Celidônio, um professor demitido da faculdade; Manuel das

Velhas e Manuel dos Velhos, dois índios cegos violeiros; Johannes von Lippe und

Holstein, um príncipe; um Catrumano; rei Saul e Anelinho Abbas, o velho pai da noiva.

Ao longo do romance, algumas identidades vão se confundindo, tanto pela sua

caracterização, quanto pela história contada acerca deles e pela maneira como o foco

narrativo se apresenta.

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10.1 Tradição e modernização em Cerimônias do Esquecimento

Em Cerimônias do Esquecimento, o espaço escolhido para o romance é o

intermédio entre Cuiabá e o sertão de Mato Grosso, não é inteiramente nem um, nem o

outro. O sertão aparece, no romance, como identificador da tradição, da pureza perdida

quando a civilização, representada pelo capital que chega das metrópoles nacionais,

com seu caráter progressista e modernizador, transforma os costumes e os valores da

cultura tradicional. Nesse espaço há tanto elementos representantes do interior quanto

da cidade. Alguns deles são, ainda, elementos dos dois espaços concomitantemente,

acentuando mais o caráter de diversidade e hibridismo. O autor define essa fronteira

em que a história acontece:

Aqui são os chamados limites da cidade...(Dicke,1995: 35)

Diferentemente dos outros romances, o espaço aqui é a fronteira. Nos outros, o

espaço será sempre o interior, que entra em contato com a cultura modernizada através

de determinados elementos (a caieira Esperança em Caieira, a fazenda Batovi em

Madona dos Páramos, o coronel e a comitiva de artistas em O salário dos poetas). No

caso de Deus de Caim, os dois elementos aparecem separadamente e o contato entre

eles se dá pelo deslocamento das personagens, pelo parentesco entre elas ou por

eventos sociais que geram a migração, em geral, do interior para a cidade. Em

Cerimônias do Esquecimento, sertão e cidade não estão separados, unidos pela

constituição dos personagens ou pela presença de elementos de um, no outro: o

espaço, os elementos estão na própria fronteira. Tudo o que se diz é dito a partir dela e

não de um ou outro espaço.

Durante todo o texto, reproduzem-se as relações entre esses dois universos,

representantes da cultura tradicional e da modernizadora, retratando a expansão

urbana universalista que avança para o interior rural. A diferença é que, nessa

reprodução o autor focaliza sempre os elementos negativos do modo de vida urbano,

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assim como também já foi visto nos outros romances, demonstrando revolta contra as

injustiças provocadas por essa cultura:

O monstro da civilização que devora o que não devia ser devorado é oque produz as vertigens nebulosas do sono do esquecimento. O sertãoé recordação ao vivo... (Dicke,1995:.109)Ah, isso de Tirésias e de Homero são coisas da Grécia e nós nãoestamos na Grécia e sim na divisória entre sertão e cidade destaperdida e medíocre civilização que perdeu a Filosofia e a Religião,civilização dessacralizada e moribunda, que antes de morrer de uma vezpor todas vai morrendo devagar, se entornando para a morte e para ofim... (Dicke,1995:121)

Essa expansão é marcada, como já se viu, pelas rodovias, pelo asfalto,

associados no romance a uma ‘serpente negra’ (p.65), representante do progresso que

traz morte e decadência. Em Cerimônias do Esquecimento, a história se desenrola à

beira de uma rodovia, onde se situa o bar Portal do Céu, e o texto, a todo o momento,

refere-se a ela e aos caminhões que passam levando as riquezas do local, deixando

cães e gatos esmagados pelo caminho:

Daqui quase não se ouvem os caminhões que passam carregados deartigos que vão desde toneladas de pacus secos até madeira em torasimensas, da nossa terra rumo a São Paulo e ao Rio de Janeiro, rumo aolucro, com pressa enorme e ruidosa, deixando cães e gatos esmagados,que se desfazem pelas estradas... (Dicke,1995: 51)

Na perspectiva da perda do espaço sertanejo, não corrompido pela civilização

urbana, apela-se para uma abstração que, no fim, tenta associar o sertão não a um

espaço, mas a uma maneira de ser, que pode existir em qualquer lugar, em qualquer

momento. O sertão constitui um aspecto da cosmovisão local, se torna uma maneira de

resistir à invasão urbana que só gera tragédias e desarticulações:

Restam poucos lugares para quem ama a paz para onde se fugir: coisasestranhas e monstruosas estão continuamente invadindo o coração domundo, devorando as cidades, apertando os lugares. O mundo estáficando cada vez mais pequeno. Só sobra o espaço do coração. Lá é osertão. (Dicke,1995: 107)

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Nesse aspecto, novamente, surge a marca da transculturação, quando, no

romance, Cuiabá aparece não como um elemento de apenas um dos lados culturais. A

cidade não aparece apenas como a cidade modernizadora, pois não é uma grande

metrópole como Rio ou São Paulo, mas também não é de todo sertão. É esse o espaço

que Rama define como espaço da transculturação, como espaço mais propício à

plasticidade cultural: a cidade do interior, que mediatiza as incitações modernizadoras

das grandes metrópoles. (Rama, 1982: 210) Cuiabá é o espaço de fronteira entre a

cultura modernizadora universalista, representada em Dicke pelas metrópoles nacionais

Rio e São Paulo, e a cultura tradicional rural, representada pelo interior rural de Mato

Grosso. A cidade aparece, no romance de Dicke, da seguinte maneira:

É o espírito do sertão que não quer abandonar esta cidade de igrejasantigas. E o tempo não passa. Há uma gravitação de instantes perdidos,uma imantação de agulhas de bússolas consumidas. Paz consumidacom tanta reza todo esse tempo sem memória. Profundo silêncio comouma cidade do sertão que vai se tornando estranha cidade moderna.(Dicke,1995:104)

Essa passagem testemunha a posição em que o autor situa Cuiabá. Se nos

outros romances, ela era a capital, vista de uma maneira distanciada pelo sertanejo,

cuja idéia era constituída por um imaginário composto de alguns indícios de civilização

modernizadora e que representava por si já a cultura modernizadora, aqui ela é o ponto

de onde se fala, de onde se enxerga a relação entre o tradicional local e o moderno

universalista77. Essa diferença de representatividade se dá pela diferença de ponto de

vista: em Cerimônias do Esquecimento se fala a partir de Cuiabá e não do interior, o

imaginário que este compõe daquela, não se aplica aqui sozinho.

O que fica da leitura é uma profunda aversão à civilização e ao progresso

tecnológico. Mesmo assim, a opção pelo sertão não implica necessariamente uma

postura resistente às inovações modernizadoras, o que afastaria o autor daquilo que

Rama define como narrativa de transculturação. O fato é que, por mais que haja um

discurso anticivilização, esse discurso é produzido com uma linguagem e a partir de um

ponto de vista que têm também a civilização e o progresso tecnológico, como

77 Em Último Horizonte, Cuiabá também é o espaço do romance. Neste, no entanto, realçam-se osaspectos urbanos e não os de fronteira entre a cidade e o interior.

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referências constituintes do pensamento e da cultura. Ele só é possível no interior do

universo cultural ocidental, cuja tendência é universalizante e não tradicional. O autor

de transculturação não é o sertanejo, mas o erudito que toma partido da cultura

tradicional. É o mesmo que Rama revela em Arguédas:

No constryó su obra para los indígenas, sino para los cuales buscoreinsertar, persuasivamente, un conjunto de valores tenidos porinferiores o espurios... Para eso reinterpreta cada uno de sus actosdentro de la estructura cultural propria, porque sólo em ella pueden serconvalidados, relegando los defectos a la acción pervertidora de losdominadores (terratenientes, gamonales, sacerdotes, autoridades) demodo que asistimos al doble movimiento de justificación y exculpaciónmediante la restauración de la inocencia dentro de la peculiar estructuracultural... (Rama, 1982: 205)

O romancista, a partir dessa linguagem e dessa perspectiva, lança mão do

pensar mítico, nas crenças dos personagens, na percepção cíclica do tempo, em que

as épocas se substituem e se renovam, nas manifestações religiosas, na aplicação dos

elementos míticos a novas situações e novos contextos. Em Cerimônias do

Esquecimento, os elementos míticos são mais explícitos, não estão diluídos na

narrativa ou subvertidos em formas que requerem um desvendamento na leitura, uma

descoberta. Eles estão lá, como Baco e Dionísio, para atuar novamente, não na

sociedade em que funcionavam, e sim para, agora também mudados, transculturados,

influenciarem os homens de um outro momento.

Dicke, em sua obra, deixa em evidência a sua extensa história de leitura, em

especial o seu conhecimento religioso, que vai desde as religiões ocidentais, à Bíblia e

à mitologia grega, passando por seitas gnósticas. Ele tenta atravessá-las com um olhar

que vê, em todas, aspectos elementares como, por exemplo, a crença no sobrenatural

e o sexo. Seu texto é cortado de paralelismos, de analogias sugeridas, que aproximam

culturas que seriam totalmente diversas, criando um produto que, se de início seria

universalista, foi transformado a partir da perspectiva local, para ser aplicável a ela.

Esse efeito é gerado no momento em que ele cria uma zona intersticial, cujos

elementos fronteiriços, são seus próprios conhecimentos:

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Um menino louro, de traços delicados, quase um homem, de formasgentis, onde certamente mora o espírito do Senhor, músico e poeta,segundo as palavras de Samuel o profeta enviado de longes terras peloSenhor. Ou será Merlin? Sim, ele e Merlin são a mesma coisa, ele oespírito abençoado que me dita as palavras com que comporei o meuoutro livro (Dicke,1995:55)era o sagrado pajé morubixaba mais antigo da nossa tribo, o homemsanto, aquele que dividia com Deus os seus segredos, Anhã-Anhagá...(Dicke,1995: 61)doce tabaco a filtrar-se no espírito, assentando-se como limo esedimento de paz nas camadas da alma, convidando-a a sonhar com oimpossível dos gozos sidéreos, onde se erguem os tronos, aspotestades e as dominações, os serafins e os querubins, os arcanjos,formações de nuvens onde se assentam como em profundas poltronasfofas, maravilhosamente macias e suaves Govinda e Brahma e Gopanae Elohim e Tupan e Allah... (Dicke,1995: 101)

Esses trechos demonstram como o pensamento do autor é atravessado de

diversidades, como ele elabora um produto cultural que manipula as referências a favor

do efeito estético. Essa mistura é, notadamente, qualidade de um pensamento que não

funciona e não respeita limites fechados na interpretação cultural e reflete muito da

formação do escritor, bem como da transformação que ele provoca nas informações

assimiladas ao longo de sua trajetória:

pode-se comprovar que os produtos resultantes do contato cultural,nesse plano narrativo, não podem se parecer com as criações damodernização urbana, nem com o regionalismo ou com a narrativasocial, com os quais compartilhava certas raízes. O sucesso doprocesso derivou, parcialmente, das elaborações culturais intermediáriasa que chegara a América Latina, ou seja, do acrioulamento dasmensagens artísticas européias e de sua hibridação ao longo deextensos períodos.(Rama apud Aguiar & Vasconcelos, 2001: 224)

A obra de Dicke reflete um pensamento que flui entre o regional e todos os seus

problemas, mais os conhecimentos adquiridos na chamada literatura universal, que

influenciam fatalmente sua produção. É considerada de transculturação porque só pode

ser produzida por quem vive e vê a partir de uma perspectiva de fronteira, de alguém

cuja formação não se limita ao suposto hermetismo de uma cultura local, mas também

não reproduz inteiramente as imposições de uma cultura universalizante.

Essa condição inexorável está marcada, em Cerimônias do Esquecimento, na

ascendência do narrador da linha narrativa sem marcas. Este, em primeira pessoa, num

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determinado momento assume, por exemplo, a linhagem indígena em contrapartida à

ascendência branca que também possui. Ele também é, portanto, um mestiço, que traz

em seu sangue a experiência da morte. O narrador se dirige a si mesmo usando um ‘tu’:

Lá é a memória da casa onde morava e tua avó cujo sangue vem dosíndios dizimados e espoliados pela civilização dos massacres que a tudoengole e devora e vai formando uma bola de lama fétida que vaidescendo a montanha. No sertão todos sabem sua genealogia. Comona Bíblia, tão velha. Estes são os homizios da civilização dos homens dooutro lado. (Dicke,1995:108-9)

O problema, a partir daqui, é esclarecer que o processo narrativo neste romance

vincula essas características ao próprio Dicke ficcionista. A questão não se resume em

saber se o narrador representa o ficcionista ou não, pois essa é uma impossibilidade da

própria categoria do ‘narrador’. A questão é saber qual a maneira com que o romance

se relaciona com o contexto em que se insere e como a transculturação se dá a partir

do procedimento narrativo adotado nele. Para entender as relações acima, entre a

cultura tradicional e a universalizante, é preciso entender a questão elementar que está

na raiz mesma daquela dicotomia: a dicotomia entre o eu e o outro. Essa última

dicotomia é o cerne do entendimento da produção de cultura e identidade, pois ela

revela o nível essencial do conflito entre grupos distintos: o conflito entre o interior e o

exterior. Essa reflexão deve ser feita sem perder de vista que a dicotomia entre o eu e o

outro é, acima de tudo, uma categoria da linguagem e do pensamento da cultura

universalizante. Isso quer dizer que os romances de Dicke vão, de alguma maneira,

escapar à apreensão por essa categoria. Não é possível, portanto, dizer que o romance

é biográfico, ou que o narrador tem semelhanças com o autor, porque essas

conclusões só podem ser feitas a partir do pensamento dicotômico que separa, dentre

outras coisas, autor e narrador, narrador e personagem, ficção e realidade, eu e outro

etc.

10.2 Transculturação e foco narrativo em Cerimônias do Esquecimento

Salvatori D’Onofrio (1978, p.37) define as diversas variações da noção de foco

narrativo. Basicamente há uma relação dual, em que ele estabelece uma primeira

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diferença “entre romances que apresentam ou fazem referência ao seu narrador e os

que simplesmente o pressupõe”. Embora ele aponte que esses últimos sejam romances

narrados em terceira pessoa, esta não é uma simples diferenciação entre focos

narrativos. Há uma segunda especificação, que diz respeito à onisciência desse

narrador, independentemente se de primeira ou de terceira pessoa. (D’Onofrio,1978:

37)

Quem lê o romance Cerimônias do Esquecimento, de Ricardo Guilherme Dicke,

percebe, logo de entrada, uma diferenciação. Na narrativa entre parêntesis, marcada

nas terminações verbais, está uma fala em que predomina, não a primeira nem a

terceira pessoa, que são as pessoas mais comuns de se encontrar em uma narrativa,

mas pela segunda, um “tu”. Claro que pode se pressupor, a partir desse “tu”, um “eu”

que fala. Comecemos a examinar os trechos do romance:

Vieram da igreja, foste o padrinho da noiva, eles eram meio parentesteus, dizem, acharam que tu eras o homem certo, um professor dauniversidade... (Dicke,1995: 9)quase seria solitário, a ouvir a história que te contava o homem de olhosenevoados: seria o pai da noiva? Ou talvez foste tu mesmo quem ainventaste? Ou foi teu pai? (Dicke,1995:15)

O que se confirma ao longo do romance, neste caso, é que o ‘eu’ que fala, o

narrador dessa linha entre parêntesis, é Frutuoso Celidônio, o professor demitido da

universidade, que fala consigo mesmo utilizando um tu, a respeito de Anelinho Abbas, o

velho pai da noiva, designado pela terceira pessoa, que lhe conta a história de Saul78.

Esse procedimento é um tanto comum em narrativas, quando os personagens se

dirigem a si mesmos, à sua consciência. No entanto, em um dado momento dessa linha

narrativa, as personagens, representadas pelas referências ‘eu’ e ‘tu’, se alteram,

gerando uma dúvida acerca de quem fala e de quem ouve a história:

Quem me conta esta história, és tu, de olhos neblinantes, que olhas anoite como quem vem cansado dela e do seu peso estrelado sobre osombros, peregrino entre as sombras como eu, viandante da noite,escutando a tua história. Deves ser tu. Se não fosses tu, que seria?...

78 ‘Pensas na figura de um velho que te vai contando a história de um homem que vestido de armadurase prepara para uma viagem desconhecida.’ (Dicke,1995: 76)

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Ou serei eu mesmo com esta cerveja enevoada?... Quem me conta essahistória? Só sua voz pesada e sincopada, entre copos de cerveja.... Aspessoas reunidas no pátio do fundo da casa do pai da noiva conversam.(Dicke,1995: 58)

O leitor se habitua, na leitura, a identificar o ‘eu’ e o ‘tu’ como Frutuoso Celidônio

e o ‘ele’ como Anelinho Abbas. O que acontece, nesse caso, é que o ‘tu’ passa a

designar Anelinho Abbas subvertendo, portanto, a ordem de leitura instaurada

anteriormente. É ao pai da noiva que se atribuem os ‘olhos neblinantes’, desde o início

do texto. Nessa passagem, no entanto, o ‘tu’ pode continuar sendo Frutuoso Celidônio,

pois ele também se pergunta se quem conta a história é ele mesmo e não outro. O

velho pode ser, no contexto da noite e do bar, apenas uma miragem, uma imagem

elaborada de sua própria consciência para narrar a história. O romance, de maneira

geral, vai oscilar o foco narrativo entre um e outro procedimento: um procedimento mais

tradicional, em que as referências pessoais se mantêm mais regularmente; e outra em

que esse tipo de processo vai acontecer. Observe o seguinte trecho, que pertence à

narrativa entre aspas:grandes tufos que pareciam enormes púbis de poderosas virgens, deque tinha tanto orgulho: decerto que sou um patriarca, um profetadaqueles tempos, senão não me chamariam de dom Saul... (Dicke,1995:19)

Aqui um procedimento também comum: há uma narrativa em terceira pessoa e

uma fala introduzida por dois pontos. Apesar de não haver travessão, que seria próprio

à situação, a diferença entre as vozes está marcada. A linha narrativa entre aspas

ocorre, a princípio, dessa forma: em terceira pessoa; e as falas, em que aparece a

primeira pessoa, são instauradas ou por travessões ou dois pontos. Mais à frente, no

entanto, a linha se inicia sem marcas e em primeira pessoa:Onde andará o pequeno Davi? Dizem que ele é meu filho, dizem que

fiz filhos em todas as fêmeas que moram nos meus domínios tãovastos... (DICKE: 1995, p.23)

Levando-se em conta que a narrativa entre aspas se iniciou em terceira pessoa,

há duas possibilidades aqui: ou mudou-se o foco narrativo, ou a fala foi instaurada sem

nenhuma marca. Essa segunda opção também se confirmará durante o romance para

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diversos outros personagens. Veja-se que, na mesma narrativa sem aspas, uma fala

em primeira pessoa irrompe sem marcas durante uma narrativa em terceira:

Tomou metade daquele imenso bule de café, um café saborosíssimofeito pelas sábias mãos de Delagracia, que o fazia amar a terra ereconciliar-se com ela, capaz de produzir frutos e filhos como aquelecafé delicioso, negro, doce e quente. Uma planta certamente do Jardimdo Éden, onde corriam os quatro rios fabulosos. As paixões não são daterra? de onde, então, pois, senão da terra negra, como a noite ardente,filha da imensidão cósmica, com estas mesmas tripas que se enroscamcomo sobras em cio dentro dos dédalos do meu profundo ventre,profunda terra das paixões e dos excrementos...(DICKE: 1995, p.26)

Aqui a diferença entre narração e fala não é tão nítida, dando a impressão de

que o que muda é o foco narrativo optado pelo mesmo narrador. Considerando esse

fato como mudança de foco e não como instauração de uma fala de personagem, essa

dúvida vai percorrer todo o romance no interior das três linhas narrativas.

A seqüência narrativa sem marcas (ou seja, sem aspas nem parêntesis), por sua

vez, parece ser predominantemente de terceira pessoa. Nela não há dúvidas acerca do

narrador, pois as passagens em primeira pessoa são facilmente identificadas como

falas. A impressão que se tem é de que há um personagem central da narrativa,

denominado João Ferragem. Um novo elemento surge, sem denominação específica.

Esse outro, sendo o professor Celidônio, aparece designado pela terceira pessoa,

enquanto personagem, mas em primeira pessoa, enquanto narrador. Observe-se este

longo trecho:

Caminha para lá lentamente, que certamente João Ferragem, o homem,estará cansado... Chega, olha as duas sombras que tocam naquelasolidão viva, olha-as nas caras onde dá luz e sombra das lâmpadasmortas... olha o outro sozinho naquele canto que dá para a rua, é umhomem distinto, de barbicha, que bebe, com a cara baixa, cara desombra também, uma solidão comprida como um túnel, ele não espera,senta-se numa cadeira ao lado deles perfazendo um quadrado, tira arabeca para encostar as costas na cadeira, põe-na de pé na sua caixajunto à amurada descascada... fuma, olha os dois, olha o outro, ouve-osque tocam, como que estas vozes apareceram ali de longe, de ondeestava, tão fortes, mas agora que estou aqui junto deles, parecem tãofracas, sumidas, engolidas pela noite...(Dicke,1995: 36)

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Esse “outro” aparece descrito mais adiante, a partir de suas características,

como o professor Frutuoso Celidônio, que é o narrador da narrativa entre parêntesis e

também dessa narrativa sem marcas. O que acontece então: o narrador, em primeira

pessoa, trata de si como um outro, em terceira pessoa, na mesma seqüência. Essa

alteração de pessoas verbais é acompanhada da alteração dos dêiticos de lugar: ali e

aqui. Esse procedimento também não é incomum na literatura, mas ele não se dá de

maneira tão volátil e não a ponto de se apresentar na mesma frase. Isso faz com que

se olhe para a linguagem e, principalmente, para a noção de indivíduo de uma maneira

diferente.

Na narrativa entre aspas há um trecho que traduz muito a incerteza quanto ao

narrador e quanto à própria diferenciação entre fala e narração. Vejamos os trechos a

seguir, que compõem uma seqüência:

Pega um rolo de manuscritos enrolados, em caracteres hebraicos:- Quem foi Ibn Gabirol?...Todos os domingos ele (David) vem. O filho daterra de Belém, e assenta aqui nesta cadeira de alto espaldar, tauxiadade bronze e ferro em lavor da terra de Jerusalém, herança dos meusancestrais de alto poder entre os clãs, além dos mares e das terras, porsobre as águas e por sobre os horizontes, vem David, o pastor, omatador do gigante filisteu, e toca nessa harpa o que eu não sei nemnunca aprenderei a tocar...( Dicke,1995: 54)

Na primeira frase o narrador está em terceira pessoa. O travessão, no entanto,

instaura uma fala que é narrativa, em primeira pessoa, cujo narrador, a princípio, é o rei

Saul. Depois de três falas marcadas com travessão, inicia-se novamente uma narração

sem marcas, tendo aparentemente o mesmo rei Saul como narrador, em primeira

pessoa, já que fala explicitamente de seu filho Jônatas, usando a primeira pessoa.

Convencionalmente falando, essa narrativa deveria dar seqüência àquela que se inicia

com a primeira frase do trecho anterior, em terceira pessoa, mas não o faz:

Ah, o amigo do meu filho Jônatas, aquele que cantará e dançará para oSenhor diante do Arco da Aliança... como eu o odeio, ele vai se casarcom minha filha Micol... (Dicke,1995: 55)

Outra passagem, relativa a outros personagens, mostra a passagem sem marcas

entre pessoas verbais e pontos de vista. A importância dada aos pronomes aqui se

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deve justamente ao fato de não haver outros sinais que possam ajudar a identificar as

categorias do romance. Vejamos o trecho a seguir, pertencente à narrativa sem marcas,

em que o foco passa de terceira para primeira pessoa sem marcação. O trecho é

referente a um dos cegos violeiros. Ele seria o próprio narrador de sua trajetória neste

ponto, mas ao invés de se iniciar a narração já em primeira pessoa, o procedimento

usado nas outras linhas narrativas se repete:

-Dormiu lá entre as vacas e os bois, no alto campo, quase junto à linhado horizonte profundo, perto do circo e dos acampamentos dos ciganosque armavam suas tendas sob as estrela e depois entoaram umacanção muito bonita, com violões de cordas que pareciam de prata eouro, música que me ficou como que gravada na minha idéia...(Dicke,1995: 58)

O ‘me’ indica o próprio cego. Aqui percebemos claramente a mudança de foco no

interior de uma frase. Há uma passagem, ainda na narrativa sem marcas, em que o

autor joga com o uso de dois ‘eus’ distintos numa espécie de diálogo. Um deles é o

interlocutor, tratado como ‘tu’, e o outro é o narrador, que aparentemente também está

em primeira pessoa:

Direis: chegar do sertão, mas onde é isso que eu não compreendidireito? Ah, eu te digo, o sertão não se compreende, se sente...(Dicke,1995: 107)

Não é difícil notar que o primeiro “eu” é o personagem que é tratado por “tu” na

narrativa, enquanto o outro “eu” é o próprio narrador. Há um outro momento ainda em

que o autor usa um recurso em que a fala do interlocutor está inserida na do narrador,

através de perguntas e respostas:

Tem que se aprender as lições, em particular. Se as estrelas sabem?Só a lua ilumina nessas horas? Ah, as estrelas sempre brilharam... Se osol nasce sempre numa beleza imensa? O sol é como um pai, a lua écomo uma mãe...( Dicke,1995: 111)

Aqui a voz do interlocutor aparece citada na sua repetição na voz do narrador.

Num outro trecho da narrativa sem marcas, que se inicia na página 105, há uma

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narração que tem como personagem João Ferragem. Sabe-se que essa narrativa está

em primeira pessoa, dados os trechos anteriores. Se na seqüência da leitura já se está

habituado a identificar o narrador como de primeira pessoa, o que pensar quando no

meio da narrativa encontramos a seguinte passagem:

Isso penso assim, porque eu sou de minhas teologias, não dasteologias calculistas dos homens do outro lado, sou homem que nãopensa duas vezes, uma errada e outra certa, não ponho duas tábuaspara alcançar, ponho uma tábua só para alcançar o que quero.(Dicke,1995: 110)

Ao contrário do que parece, essa fala não é do narrador, mas é uma fala de João

Ferragem, que também foi inserida sem marcas dentro da narrativa que se inicia na

página 105. Essa mudança brusca de referentes causa uma desorientação significativa

na leitura, porque a cada inserção de fala e a cada mudança de foco, pode-se perder o

fio da meada. Na seqüência do trecho aparece, ainda, um interlocutor marcado pelo

pronome ‘vós’, que não é o mesmo indicado pelo pronome ‘tu’, usado para se dirigir

diretamente ao personagem João Ferragem. Provavelmente, o narrador se dirige aos

outros personagens, assim como faz Rosaura, a prostituta, em outro trecho da mesma

narrativa. Aqui, as marcas referentes aos personagens são claras, para cada um sendo

usada uma pessoa:

Deus: ele marca os homens, ele se conserva aqui, no cerne do sertão,onde tudo é água fresca num pote no canto da sala humilde devisitas...que vem vindo como Deus de repente vem andando de muitolonge em grandes passos como esses profetas do Velho Testamento...que vem vindo dentro da Bíblia que se conserva dentro de nós parasempre e se vós perguntais: de onde vindes, Senhor? Ele responderáapenas: do sertão...tão desconhecido como se fosse a primeira vez que o vemos e a últimaque o encontramos, suas sandálias rasgadas, um cansaço que lhedobra a espinha, uma fadiga que lhe recurva os ombros, os olhos que teolham sem dizer nada, apenas procurando em ti as marcas com quenascestes... (Dicke,1995: 111)

Aqui há o locutor falando de João Ferragem (usando ‘ele’, ‘o’ e ‘lhe’) e se

dirigindo a um interlocutor (‘tu’), que também é João Ferragem. Este, no trecho a seguir,

se dirige ao próprio narrador, marcando a presença do mesmo, como um personagem

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da história, e não exterior a ela. Após a fala de João Ferragem, segue-se a narração

sem marcas. Nessa narração, o narrador se denuncia de primeira pessoa e participante

da história:

O sertão é a inocência. Eu olho para noite, eu ouço uma música: mevêm lágrimas porque reconheço o segredo. E vejo chegar o mendigomaltrapilho, andarilhando incógnito, anônimo, o viandante vagabundoque conhece todos os caminhos, e me pergunta com seus olhos desombra: Tua alma é uma cloaca imunda ou é um jardim florido?(Dicke,1995:113)

Um trecho seguinte, da narrativa entre aspas, também insere, sem marcas, uma

primeira pessoa numa narrativa de terceira:

Destino dos reis. Sob o ferro destas armaduras, Saturno premeditando abatalha que se aproxima no cerco das horas da noite. Diziam que Saulera profeta, alguns duvidavam por causa de seus acessos. E não o era,coroado pelo profeta Samuel? Como podia não ser? Pois não foi dito:Eis Saul entre os profetas de Israel? Só não era poeta da talha de David,autor dos Salmos. E se roía. Café e tabaco do meu tabacal e do meucafezal: café superior e cigarrilha superior.(Dicke,1995:115)

Nesse caso, percebemos que os dois pontos marcam uma citação feita pelo

próprio narrador e não uma fala do personagem. Na narrativa entre parêntesis, o

professor Celidônio se denuncia como narrador e interlocutor, numa narrativa que

compõe um complexo jogo de pessoas gramaticais, de perguntas e respostas:

Sem saber pensas numa mulher, sua beleza permanece intocada nofundo de tua lembrança mutável, da tua alma úmida pelo álcool...Voltarei para Pascoal Ramos. Para onde? Para onde Deus quiser.Talvez Rio de Janeiro escrever tua tese de mestrado. (DICKE: 1995,p.120)

Mais à frente, confirma-se definitivamente que ele é um narrador que fala

consigo mesmo usando um “tu”, ao mesmo tempo em que fala de si usando “eu”:

O diretor da universidade de onde fui despedido. (Dicke,1995:121)

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Essa sentença dialoga com uma outra que aparece logo no começo do romance,

que diz que o interlocutor tratado por tu fora demitido pela universidade. Só nesse

momento essa relação é claramente revelada.

Na seqüência, como numa espécie de revelação, a narrativa que sucede é a sem

marcas, que traz logo de início o uso de um “tu”, se aproximando do recurso usado na

narrativa entre parêntesis. Esse tu, no entanto, diferentemente da narrativa entre

parêntesis, designa marcadamente João Ferragem, indicado pelo vocativo. Mesmo

assim fica a sugestão de um paralelismo estético que desorienta o leitor logo que entra

na leitura do trecho, mesmo que essa desorientação seja passageira:

No quintal da casa de tua avó, se tiveste a benção de ter uma avó, umpoço: águas negras, luas verdes...(Dicke, 1995:123)Um carro desconhecido, uma C-10 branca parou do outro lado daesquina, dela saltou um homem pequeno, magro, que veio caminhandoaté o bar onde tu, João Ferragem, falavas sem saber que falavas...(Dicke,1995:125)

À página 171, inicia-se uma narrativa em que o professor parece ser,

definitivamente o personagem principal. Essa fala continua trazendo os mesmos

recursos estéticos do “diálogo interior”, em que o professor se dirige a si mesmo. Um

momento crítico na narrativa entre parêntesis é o momento em que seu narrador, o

professor Frutuoso Celidônio, ao narrar se refere a si mesmo em primeira, segunda e

terceira pessoas ao mesmo tempo:

E pensei de repente: sem saber a razão: eu sabia árabe e esqueci...Te recordaste de um trecho do Deutsches Requiem de Brahms edisseste...E então ele se lembrou do Rio de Janeiro dos tempos em que estudavaFilosofia. E na aula de Estética perguntaste ao professor o que eratiranismo...(Dicke, 1995: 192-193)

Na narrativa entre aspas acontece a mesma coisa: o narrador, se referindo a um

momento em que Saul e David estão ou estarão juntos, se trata em primeira, segunda

(do plural) e terceira pessoas também:

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que horas serão, será já de madrugada, que faz tanto silêncio?, mas quemadrugada tão comprida, meu Deus, nunca nos dias da minha inteiravida, vi uma madrugada assim, mas por que esta preocupação pelo vãoTempo que passa e apenas passa, se ele passa para sempre e não jánecessidade nenhuma de saber as horas, para que saber as horas senão vais sair desta prisão a domicílio... Amanhã de manhã virá o reiDavid tocar-lhe harpa com seus dedos delicados e brancos, e ficarãoum ouvindo o silêncio do outro, ou trocando palavras sem nexo, e entãominha fúria e meu furor que renascem vagamente e turvam a minhafisionomia... (Dicke, 1995: 208)

Há aí um uso concomitante de pessoas gramaticais distintas para indicar a

mesma coisa, a mesma entidade no romance. Ao final deste, e só ao final, o professor

aparece como narrador da narrativa sem marcas. Confirma-se isso pelo aspecto formal

e pelo conteúdo. Ele inicia a narrativa da mesma maneira utilizada na narrativa entre

parêntesis:

Olhavas ou dormias? O mar: será que estou dentro dos preceitosestabelecidos pelo mestre Bachus Dyonisios? Não o sei. (Dicke,1995:273)

E mais à frente, num vocativo que denuncia mais explicitamente:

Pensaste, professor João...(Dicke,1995: 278)

O desfecho da seqüência se dá com o encontro dos dois narradores (o narrador

da narrativa entre parêntesis com o da narrativa entre aspas). Esse encontro se dá na

narrativa entre parêntesis, cujo narrador é o professor, que usa, neste momento, a

primeira pessoa. Para esse professor, pode-se aplicar a mesma reflexão e leitura

biográfica já realizadas, acima, nos outros romances. Quem fala primeiro é Saul:

-Como se tivesse atravessado o Tempo, eis-me aqui, professor.-Olhei: era o rei Saul (Dicke,1995: 255)

Deve-se perceber que há dois cruzamentos: o cruzamento das duas narrativas,

mas também um cruzamento temporal, em que o passado, do rei Saul, se cruza com

um possível presente, do professor. Confirma-se também que dom Saul e rei Saul são

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uma só personagem, que atravessa os séculos para presenciar a cerimônia, e as

lembranças de ambos se confundiam justamente por causa disso. No momento em que

se revela que os dois “Sauls” são um só, e que ele se torna personagem efetivo da

narrativa sem marcas, o livro faz uma ponte entre passado e presente, e outra entre um

“eu” e um “ele” (no caso de Saul), ou entre “eu” e “tu”, condensando todas as pessoas

numa só, dispersando a noção de individualidade e finitude que insiste em prevalecer

na idéia de cada um.

Esse procedimento do escritor escapa à análise lógica e linear da narrativa, que

prevê um narrador ou narradores definidos, delimitados. Há aqui, talvez, a abertura do

discurso a uma voz que vem de todos ou não vem de ninguém, de nenhum “eu”

específico. Para isso, o discurso não pode partir de um narrador em primeira pessoa

somente, nem pertencer a um narrador em terceira, subentendido no texto, e que

muitas vezes não aparece textualmente marcado, mas sabe-se que ele está lá. O

discurso, o mesmo discurso, tem de partir de todas as vozes simultaneamente, como

acontece em Cerimônias do Esquecimento. Um dos grandes esquecimentos do

romance é justamente o esquecimento do “eu”, esse elemento que existe mais (ou

unicamente) como pessoa de discurso do que como fato concreto79. Ele e todas as

outras pessoas gramaticais. E a maneira com que Dicke reflete esse esquecimento do

“eu” na própria linguagem é mostrando que é possível se referir a uma mesma entidade

usando as três pessoas verbais simultaneamente.

Há um momento crítico, dentre outros, desse aspecto, quando o narrador da

narrativa entre parêntesis, o professor, realiza um monólogo interior (que poderia ser

também um diálogo, já que existe um tu) em que diz:

E assim penetrarei no Empíreo e serei Nirvana, na paz do Nada,despido do eu, ausência de presença e presença de ausência, liberadodos desejos e superadas as oposições, tudo de nada e nada de tudo,despido do verbo querer, no Summum Bonum, além do além de todosos contrários vertiginosos, livre da liberdade no Absoluto Eterno... Nada,nada mais quero, estou contentado infinitamente no Vácuo.Compensado de tudo. Nada quero saber, nada, nada. Não sei, masconheço... Todas as sombras da noite se reúnem para fazer a meia-

79 Benveniste é o primeiro e principal teórico a abordar essa noção do “eu” no discurso. Cf.BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. eBENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.

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noite: as horas do lado de cá e as horas do lado de lá, bem no meiopassa uma fronteira: o eu: isso é que é preciso extirpar, fazer secarcomo uma plantinha venenosa. (Dicke,1995: 248-249)

Como proposta estética que corresponde à proposta filosófica do romance, o uso

das pessoas verbais e a falta de marcação distintiva entre personagens e narrador

geram esquecimento e dispersão na própria leitura, na vontade de entendimento lógico

que o leitor geralmente carrega consigo quando se dispõe a ler uma obra literária. Em

outras palavras, há uma vontade de entendimento monológico, para citar Bakhtin, em

que há um investimento no ‘eu’, representado pela primeira pessoa no discurso, como o

organizador que submete o seu texto à sua percepção monoconsciente do outro, do

mundo, representado pela terceira pessoa:

O mesmo que é individual, que distingue uma consciência da outra e deoutras consciências, é cognitivamente secundário e pertence ao campoda organização psíquica e das limitações da pessoa humana. Do pontode vista da verdade não há consciências individuais... Ao indivíduo nãose fixa qualquer juízo verdadeiro; este se basta a um certo contextosistêmico-monológico uno... No ideal, uma consciência e uma boca sãototalmente suficientes para toda a plenitude do conhecimento: não hánecessidade de uma multiplicidade de consciências nem há base paraela. (Bakhtin, 1997: 81)

Essa plenitude de conhecimento é minada nos romances de Dicke, em especial

em Cerimônias do Esquecimento, a partir do momento em que se alteram as pessoas

verbais, que são elementos do discurso que designam a relação entre eu e o outro,

sendo esse outro designado por ‘tu’ ou por ‘ele’. Essa relação entre eu e outro pode se

dar, segundo Bakhtin, de duas formas: uma monológica, em que prevalece a visão e a

consciência desse eu, em que este conhece todos os labirintos da consciência e da

história das personagens; e uma dialógica, em que a perspectiva do outro é levada em

conta, com o mistério que sua visão de mundo guarda para o eu:

É graças a uma percepção da minha vida na categoria do outro que meucorpo pode tornar-se esteticamente significante e não no contexto daminha vida param mim mesmo, no contexto da minha autoconsciência.(Bakhtin, 1992: 77 )

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Quando Dicke dispõe as três pessoas gramaticais para designar o mesmo

elemento da narrativa, ele relativiza a prevalência do eu como fonte do discurso, como

consciência plena, onisciente ou delimitada, fechada e completa em si mesma. O foco

narrativo dispõe o eu se percebendo na perspectiva do outro, em segunda e terceira

pessoa.

Pensando na transculturação, essa opção, a superação do eu, se torna um

processo que, na literatura, se opõe ao legado monológico que o positivismo

novecentista europeu deixou e que repercutiu nas colônias. Se afastar do monologismo

é se aproximar de uma outra maneira de enxergar o mundo, de uma outra cosmovisão,

que dilui o eu num universo coletivo e mítico. A prevalência da individualidade, marcada

no eu, se perde na perspectiva do grupo e, por mais que haja um narrador

declaradamente em primeira pessoa, ele procura se superar, se objetivando em outras

personagens, não tendo plena consciência nem delas, nem do mundo.

Cerimônias do Esquecimento torna-se um texto chave na leitura dos romances

de Dicke como romances de transculturação. Tanto as questões referentes à

cosmovisão mítica, quanto à opção pela marginalização e à situação de fronteira entre

as culturas local e universalista, vinculadas ao foco narrativo que anula o eu como

legado positivista-racionalista da cultura modernizadroa, são colocadas como matéria

central e não secundária no romance. A questão recorrente, ‘Quem narra a história?’,

traz implicadas em si outras questões. É possível afirmar que há, no texto, uma

separação entre uma cultura modernizadora, que traz a decadência e uma cultura local

que guarda valores mais honrosos. É possível afirmar que há uma oposição entre

oprimidos e opressores. É possível definir o que é de domínio do mito e o que é do

domínio do logos. A única coisa impossível de se determinar efetivamente é o quanto

de cada termo dessas dicotomias está presente nas personagens. O que torna isso

impossível é o fato de que a maneira com que o romance é narrado não permite a

determinação das individualidades de maneira absoluta. Não permite a dicotomia entre

eu e outro, que nos instrumentaliza para definir o que é próprio do autor, do narrador,

ou do personagem e quem são eles. Se não se sabe exatamente que palavras são do

narrador ou do personagem, não se pode dizer, como Rama soube dizer de Arguédas,

qual deles é o representante da cultura universalista ou da tradicional. Se não se

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consegue definir, no texto, quem representa os valores universalistas e tradicionais, é

porque essa dicotomia já não tem mais aplicabilidade e já não serve para descrever

esse romance.

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13 Considerações finais

Este trabalho teve como preocupações lançar um olhar sobre o que se tem

produzido acerca da obra de Ricardo Guilherme Dicke e discutir questões culturais

implicadas tanto nos seus romances quanto nas críticas a eles, bem como na própria

teoria usada para a discussão. Ele realiza, também, uma descrição do foco narrativo e

das relações culturais entre a cidade e o interior, de maneira a compor uma espécie de

roteiro de leitura para estes dois aspectos, que são centrais na obra do romancista.

O pouco material disponível atesta o esquecimento a que o autor foi relegado.

Esse fato contrasta com sua recente redescoberta pela intelectualidade local. O terceiro

capítulo tentou, numa análise do contexto literário mato-grossense atual, detectar não

os motivos dessa redescoberta, que me parece ainda não se definiram ou se

declararam, mas a formação dos grupos produtores da cultura e do pensamento mato-

grossense e suas intenções em relação à produção cultural local. A posição de Dicke

no movimento literário atual é a de ícone da literatura regional, graças aos esforços de

uma classe específica que se respalda na premiada trajetória do romancista.

Essas questões me parecem ser mais relevantes do que a própria análise

literária em si, pois um pensamento se insinua como conclusão: esta dissertação

concorre também para a caracterização de Dicke como um ícone literário. É por isso

que é importante dizer que, mais do que ressaltar qualidades do seu trabalho literário, o

objetivo de minha pesquisa foi identificar as relações culturais envolvidas na sua

produção.

A obra de Dicke está inserida em uma cultura que vive constantemente a

questão do regional, a necessidade de afirmação das coisas locais, e que procura

reforçar sua identidade calcando-se em programas de conservação e incentivo às

produções que trazem a cor local. Lendo seus textos, no entanto, não se nota nenhuma

preocupação a esse respeito. Essa é uma evidência de que a produção de Dicke

efetivamente mantém viva a cultura em que se insere, e que não podemos definir nem

como mato-grossense, nem como universal. Essas categorizações têm o único efeito

de limitar a extensão que um texto literário pode alcançar.

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Dicke escapa a essas limitações nos seus textos, mas parece que caminha para

representar a regionalidade que não ostenta e que pode, no entanto, determinar o

destino de sua imagem e mesmo de sua interpretação a partir desse momento. Esse

fato está na base de todas as discussões realizadas aqui: ele revela questões de

identidade cultural vinculada a relações de poder (editoriais, acadêmicas, políticas etc.).

Que sua produção tem evidentes traços híbridos, de transculturação, parece claro. Mas

que produção, em todos os tempos, não os tem? Definições como tradição,

modernidade, local, universal, são, antes de qualquer coisa, categorias de

interpretação, categorias de pensamento. Assim como elas, diversas outras surgem:

dominador/dominado, autor/narrador, narrador/personagem, realidade/ficção e tantas

outras.

Esta pesquisa teve a intenção latente de inserir, na questão que ela discute,

todas as partes envolvidas na discussão. Explica-se: ao debater os efeitos do contato

entre culturas, não só os produtos culturais, como a literatura, mas também os termos

da produção crítica e teórica, como o conceito de transculturação, se tornam objeto de

análise. Essa idéia se fundamenta, por exemplo, na maneira como Rama articula seu

pensamento com a intenção de superar os modelos de análise definidos pela cultura

que ele chama de universalizante. O teórico usa de uma abordagem maniqueísta, entre

cultura modernizada e cultura rural, para tratar de produtos culturais que escapam tanto

a uma, quanto à outra cultura. Talvez, no nível de discussão que ele estabelece, ainda

não seja possível para a crítica lidar com seu objeto sem incidir sobre esse

maniqueísmo, mesmo apontando para algo fora dele.

As elaborações teóricas estão diretamente vinculadas à cultura em que são

produzidas, é o que se depreende das palavras de Cuche, Burke e outros tantos

teóricos. Rama, portanto, escreve de uma perspectiva em que o pensamento

bipolarizado ainda se mostra como ferramenta útil para descrever os objetos que

analisa. Não se pode, no entanto, dizer o mesmo dos próprios objetos, pelo simples fato

de que sua cosmovisão, como bem aponta Rama, já não funciona pela lógica

dicotômica descendente do pensamento ocidental, que pode ser definido como um

pensamento branco judaico-cristão positivista. Será possível o paradoxo de uma teoria

formulada a partir de uma outra modalidade de pensamento que não essa? Pois a

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própria idéia de teoria nasce desse pensamento que separa, dicotomicamente, teoria e

prática, como separa o dominador do dominado, o moderno do tradicional, o regional do

universal etc. Como a academia, produto desse pensamento, pode escapar dessa

categorização do mundo? A análise do foco narrativo em Dicke aponta a saída, mas

ainda não dispõe de categorias suficientes para que seja perfeitamente descrita. Talvez

sejam necessários outros termos, outras palavras, outra categoria de pensamento que

não seja o maniqueísmo e outros conceitos que não sejam produtos direto dele, como é

o de transculturação. A análise dos romances de Dicke mostra que ele ‘deslegitima’ a

força do pensamento dicotômico, como o descreve Santaella:

As tradicionais indagações sobre o nosso continente, oscilando entre abusca e perda da identidade, centro e periferia, nacional e internacional,inclusão e exclusão, autonomia e dependência, enfim, todas essasdualidades que nos foram tão inculcadas e estão tão internalizadas aoponto de terem atingido uma naturalização que torna quase impossívelquestionar a sua legitimidade. (Pinheiro, 1994)

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