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Processos de transculturação a partir de vestígios memoriais em Figura na Sombra de
Luiz Antônio de Assis Brasil
Wenderson Pinto Farias
(Universidade La Salle - UNILASALLE)
Resumo: Consideramos o romance como um meio produtivo de constituição de posições-
sujeito em diálogo com Memória e Literatura, levando em conta as condições históricas de sua
produção. Daí a intencionalidade de reconhecer os processos de transculturação a partir do
regate de vestígios memoriais no romance Figura na Sombra (2012) de Luiz Antônio de Assis
Brasil. Tivemos como pergunta norteadora: quais as marcas dos processos de transculturação
a partir de vestígios memoriais encontrados no plano temático de Figura na Sombra? Para
cumprir o objetivo estabelecido, nos fundamentamos em princípios teóricos para discutirmos
a transculturação à luz das ideias de Bernd (2005), Reis (2010), Ortiz (1983), Silva (2000),
Bernd e Imbert (2015); e para analisar a transculturação a partir dos vestígios memoriais
fazemos uso dos pressupostos de Gagnebin (2006) e Bernd (2013). Trata-se de um trabalho de
pesquisa, análise e interpretação de material bibliográfico com enfoque nas passagens
transculturais a partir de vestígios memoriais na obra de ficção. E ao final deste texto
percebemos que a transculturação a partir de vestígios memoriais se dá em um espaço dinâmico
e que as manifestações culturais envolvidas no processo não estão estabelecidas; fundam-se na
problemática de encontros com a alteridade para que surjam novas manifestações culturais.
Palavras-chave: Literatura; Memória; Transculturação; Vestígios Memoriais.
Abstract: We consider the novel as a productive means of constitution of subject positions in
dialogue with Memory and Literature, taking into account the historical conditions of its
production. Then the intentionality of recognizing the processes of transculturation from the
regatta of memory traces in the novel Figura na Sombra (2012) by Luiz Antônio de Assis
Brasil. We had as a guiding question: what are the marks of the processes of transculturation
from the memory traces found in the thematic plan of Figura na Sombra? In order to fulfill the
established objective, we are based on theoretical principles to discuss the transculturation in
the light of the ideas of Bernd (2005), Reis (2010), Ortiz (1983), Silva (2000), Bernd and Imbert
(2015); and to analyze the transculturation from the memory traces we make use of the
assumptions of Gagnebin (2006) and Bernd (2013). It is a work of research, analysis and
interpretation of bibliographical material focusing on the transcultural passages from memory
traces in the work of fiction. And at the end of this text we realize that the transculturation from
memory traces occurs in a dynamic space and that the cultural manifestation involved in the
process is not established; is based on the problematic of encounters with otherness so that new
cultural manifestation arise.
Keywords: Literature; Memory; Transculturation; Memory Traces.
Introdução
Os romances denominados históricos são, cada vez mais, contributivos para as
reflexões sobre a relação entre Literatura e Memória. A literatura sul-rio-grandense não está
isenta deste fato; pelo contrário, é uma das grandes produtoras de romance desta natureza.
Observamos, a partir desta constatação, o aspecto representativo da vida cotidiana, dos
costumes, das tradições, da religiosidade, de revoluções e de guerras, ou seja, da cultura do
povo do Rio Grande do Sul, marca importante que permeia esses romances.
Nesse contexto, consequentemente, notamos a habilidade dos autores em escolher
personagens inspiradas em personalidades do mundo científico, político, artístico, religioso.
Eis que surge a figura do viajante na ficção gaúcha, a imagem do forasteiro, foco da análise
empreitada por nós acerca do Figura na sombra (2012) de Luiz Antônio de Assis Brasil. Este
romance é o nosso objeto de análise cuja temática foca os processos de transculturação por
meio de vestígios memoriais.
Essa obra de Assis Brasil nos chama atenção por alguns motivos: é uma produção que
traz à tona o envolvimento com dados e personalidades historiográficos; executa uma
representatividade da cientificidade do século XIX por meio da ficção; torna-se construção
narrativa que emana riqueza nas descrições do espaço, tempo e personagens.
Vale ressaltar que notamos, nessa obra, a mudança de estilo de Assis Brasil na busca
por uma escrita mais objetiva, entretanto não perdedora da profundidade de suas reflexões
sobre a realidade e as descrições de suas personagens. Ele se moderniza, ficando mais
minimalista.
Dessa forma, a principal motivação para construção desta análise é identificar as marcas
das passagens transculturais de sua personagem viajante, Aimé Bonpland, a partir de vestígios
memoriais, que tem como destino um novo espaço a conhecer: o Rio Grande do Sul.
Portanto, temos a expectativa de que a partir desta análise surjam contribuições aos
estudos da Memória Social e Literatura, uma vez que se trata de histórias que nos permitem
refletir sobre as experiências de viajantes estrangeiros entre o fim do século XIX e início do
século XX, além de sua convivência com os habitantes do sul do Brasil e seus estranhamentos
manifestados em seus próprios relatos em relação à paisagem e às terras da região sul do Brasil,
causando, assim, mudanças em sua vida.
1 Breves considerações sobre Cultura e suas contribuições para Memória Social e
Literatura
Segundo Tylor (1871 apud LARAIA, 2001, p. 25) cultura seria “o complexo que inclui
conhecimento, crenças, arte, morais, leis, costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo
homem como membro da sociedade”. Isto nos remete ao sistema organizacional de um povo,
seus costumes e tradições transmitidos de geração a geração que, a partir de uma experiência
vivencial comum, se tornam a identidade desse grupo de pessoas.
Ao consultarmos Geertz (2008, p.4), vemos que o autor escreve e ressalta o conceito de
cultura como um conjunto de fenômenos sistêmicos sígnicos, isto é, sistemas de significação:
O conceito de cultura que eu defendo, [...] é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias
e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis,
mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.
E segundo David Schneider (1949 apud MACHADO, 2013, p.63) “cultura é um
sistema de símbolos e significados [...]” criados pelo homem, ou seja, cultura é um fenômeno
social, cuja origem, dinamismo e transmissão estão a cargo dos atores sociais.
Ao detectarmos conceitos sobre cultura à luz de Tylor, Geertz e Schneider, embora se
diferenciem, não se contrapõem, ao contrário as três ideias se completam. Em vista disto,
percebemos a convergência para o domínio transdisciplinar da cultura por meio da
simbologização ao pensar a cultura como um fenômeno social contributivo para Memória
Social e Literatura, como diz White e Dillingham (2009, p. 23):
Homem e cultura são inseparáveis. Por definição, não há cultura sem homem
nem home sem cultura. [...] Definimos o homem como um animal
simbologizador e definimos cultura em termos de simbologização. Por isso,
como dissemos, não há homem sem cultura nem cultura sem homem.
Por definição, portanto, a cultura é realizada pela simbologização [...] uma
concepção de crenças, ideologias, organização social e tecnologia (uso de
ferramentas).
Então, nesse momento podemos nos questionar: palavra “simbologizar” significa a
mesma coisa que “simbolizar”? A resposta é não! “Simbolizar”, explica White e Dillingham,
significa representar por um símbolo (a concretude de algo). Enquanto “simbologizar” é
criar, definir e atribuir significados a coisas e acontecimentos, bem como
compreender esses significados, que não são sensoriais. Portanto, ‘simbologizar’ é
um tipo de comportamento para o qual, até hoje a Ciência não tem nome. Pode ser,
é claro, que este não seja um bom nome, mas até agora nada melhor foi proposto.
Escolhemos ‘simbologizar’, palavra derivada de ‘símbolo’, porque já e uma palavra
bem estabelecida em inglês (WHITE e DILLINGHAM, 2009, p. 13).
A cultura, assim, torna-se um conceito hábil para pensamos sobre identidades e
alteridades nos grupos sociais; um meio para a afirmação da diferença e da exigência de seu
reconhecimento; abordagem também utilizada pela Memória Social e a Literatura. Ao se tornar
um conceito hábil, ou seja, estratégico, vários conceitos passam a derivar do conceito de cultura
e a ser constituídos, empregados, refletidos e debatidos, os quais denominamos neste texto de
aspectos constitutivos da cultura, tal como o fenômeno transcultural, ou simplesmente
transculturação, que iremos abordá-lo mais à frente.
Dessa forma, constatamos que cultura se configura numa forma comportamental das
comunidades humanas; processa uma criação acumulativa da mente humana, resultado de um
sistema simbólico; torna-se um rizoma de conhecimentos; consiste em tudo aquilo que um
sujeito tem de conhecimento para operá-lo de maneira aceitável dentro de sua comunidade;
concretiza-se a partir do resultado das diversas etapas evolutivas nos grupos sociais; e por fim,
“o papel da cultura é tornar a vida segura e duradoura para a espécie humana” (WHITE e
DILLINGHAM, 2009, p. 29).
Ao entendermos essas constatações temos condições de nos defrontarmos com a noção
de transculturação, a qual é, deste modo, uma ampliação dos conceitos dos aspectos
constitutivos da cultura, anteriormente mencionada.
Por meio dos processos transculturais, temos não só a consciência de nossa cultura, mas
também de que somos diferentes, múltiplos, plurais e estabelecemos inter-relações,
reconhecemos o “Outro” e, obviamente, seus aspectos culturais. E a partir disso se pode gerar
uma nova forma de relações que se dissolvem de quaisquer essências e características
generalizantes e se mostram disponíveis a outras formas de existência cultural. Eis a definição
de transculturação que adiante iremos discutir.
2 Transculturação
Dentre seus muitos sentidos, o prefixo trans remete àqueles de ‘movimento através de’,
‘movimento de ir e vir’, ‘movimento perpétuo’, ‘trânsito’, ‘circulação’, ‘troca’. Embora não
seja a proposta deste texto aprofundar discussões terminológicas, citamos a ideia de
transculturação defendida por Bernd (2005, p. 147):
O prefixo trans, que comporta as noções de ultrapassagem, de passar além,
de sair de si mesmo, gera novas formas de conhecimento e de relação com o
mundo, sendo, portanto, mais performante, no incontornável contexto de
mundialização no qual vivemos, do que inter(cultural), multi(cultural)
ou como em reatualização, proposto por Jocelyn Létourneau, pois o
processo de transculturação parece ser aquele que melhor se ajusta à
realidade da condição pós-moderna onde há trocas, perdas e ganhos nas
passagens de uma cultura à outra.
Lívia de Freitas Reis, por sua vez, nos chama atenção para o tratamento dado pelo
antropólogo Fernando Ortiz ao sistema formativo do povo cubano, o qual “[...] sempre giraram
em torno de um tema principal: Cuba e a dinâmica de sua formação social, econômica e
cultural” (2010, p. 465) e esta formação resulta “[...] os diversos grupos que se mesclaram e
resultaram no que hoje chamamos de cubanos” (p. 467).
Assim, o antropólogo percebeu a necessidade de criar um novo termo que fosse capaz
de abranger e significar o “[...] processo sempre em movimento que é o encontro dos povos e
de suas culturas” (REIS, 2010, p. 467). Daí, em 1940, Fernando Ortiz escreve sua obra mais
importante Contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco na qual menciona pela primeira vez
o termo transculturação. Nela afirma que
el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del proceso
transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste solamente en adquirir
una distinta cultura [...] sino que el proceso implica también necesariamente
la pérdida o desarraigo de una cultura precedente [...] y, además, significa la
conseguiente creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran
denominarse de neoculturación (ORTIZ, 1983, p. 90).
Surge nesse momento o termo transculturação, que segundo o ponto de vista de Reis,
Ortiz ultrapassa “[...] a visão limitada de mestiçagem racial, para significar o movimento que
subjaz ao encontro de culturas [...], deve-se, ainda, ressaltar a extrema contemporaneidade da
reflexão de Ortiz em um trabalho produzido em 1940” (2010, p. 468). O conceito de Ortiz
sobre transculturação tem seu valor confirmado com as inúmeras “redes de discussões,
reapropriações e novas leituras que seguem até a atualidade” (REIS, 2010, p. 477).
A partir desse conceito, o escritor e crítico uruguaio Ángel Rama se apropriou das ideias
do cubano em relação à transculturação para analisar as narrativas latino-americanas do século
XX. Rama ampliou a proposta de estudo de Ortiz, nomeficou sua análise de transculturação
narrativa e a dividiu em três níveis: uso da língua, estrutura literária e cosmovisão. A partir
dessa divisão
fica claro que os produtos que resultam do contrato cultural da modernização
não podem assemelhar-se às criações urbanas cosmopolitas, nem aos do
antigo regionalismo. A mediação alcançada pelos narradores transculturados
foi resultado de séculos de contato e negociação cultural que gerou um
paulatino acrioulamento, ou assimilação, das mensagens culturais europeias
e sua hibridação ao longo da história (REIS, 2010, p. 477).
Desse modo, presente nos três níveis amplos e globais como sugere Rama, as relações
transculturais levam a uma transformação constante os grupos sociais. Muitas vezes se
estabelecem por meio do contato entre esses indivíduos o intercâmbio de novas formas de
percepção de mundo.
Entretanto, as relações transculturais não se reduzem somente ao seu aspecto
comunicativo, mas permite superar também os limites de espaço, ou seja, uma posição
transcultural que suscita uma dinâmica híbrida e uma representação de manifestações culturais
entendida como uma forma transcultural em determinados contextos geográficos.
Tanto o aspecto da comunicação, quanto o aspecto dos limites geográficos ajudam na
compreensão do conceito de transculturação de forma que dirigem discussões para uma nova
perspectiva de percepção da alteridade.
Nessa nova perspectiva, é possível fazer reflexões entre a “nossa” cultura e a cultura do
“outro” para que a transculturação seja constituída, observando semelhanças ou mesmo
diferenças. É preciso ainda negar estereótipos, ou seja, formas que privilegiam certas culturas
em detrimento de outras, por questões políticas, econômicas, sociais, culturais.
Assim, o termo transculturação, nas perspectivas de Ortiz e Rama, traduz a atual
conjuntura mundial, cujas culturas nos grupos sociais que são mescladas. E isto faz com as
comunidades consideradas culturalmente híbridas levem em consideração os interesses
comuns e não somente o fato de pertencerem a uma mesma raça, a um mesmo país ou a um
mesmo grupo político e/ou religioso.
Silva (2000, p. 78) afirma ainda sobre esse fenômeno que é possível reduzir “[...] o
impacto do choque cultural próprio das situações de intercâmbio nos âmbitos culturais
diversos”, sem que os indivíduos necessariamente renunciem totalmente sua identidade e nem
sua personalidade. Vai além da simples percepção de grupos culturais amplamente diversos;
ultrapassa muros estabelecidos, tanto geográficas como culturais; tem forte repercussão na
formação identitária de grupos sociais, pois é um fenômeno operacional relacionado às
transferências culturais.
Portanto, transculturação considera a formação cultural a partir do híbrido, das misturas,
das mesclas, seja do choque entre culturas ou do resgate de elementos culturais herdados, além
de respeitar a diversidade e autonomia das formas culturais dos grupos sociais.
2 Transculturação a partir dos vestígios memoriais em Figura na Sombra de Luiz Antônio
de Assis Brasil
Ginzburg (2013, p. 11-12) nos alerta para um aspecto importante nas reflexões sobre
Memória e Literatura:
Processos de disputa da memória, em que atuam políticos, ideólogos, intelectuais e
legisladores, elaboram de variados modos imagens do passado. [...] Entre muitos
acessos ao passado, a literatura ocupa um papel importante. Obras literárias podem
ser interpretadas de acordo com ângulos que sustentam potência de reflexão.
Escritores constantemente confrontam o tempo. E com isso, se deparam com perdas,
esvaziamentos, e com enigmas, impasses sem solução.
Dito isso, percebemos que as ideias sobre o processo de transculturação a partir de
vestígios memoriais, inseridas em obras literárias, alcançam análises reflexivas sobre questões
ligadas à memória, tais como: sociais, históricas e políticas; configuram um importante
exemplo nos estudos das transformações culturais de grupos sociais; mostram sua pertinência
na tentativa de compreensão desse processo empreendido na literatura; e não deixam dúvidas
a respeito de sua relevância na atualidade.
Aliado a essas ideias, Bernd nos chama atenção para outro aspecto: “Estéticas
transculturais que emergem da travessia das diferentes culturas e da utilização criativa de
vestígios e rastros memoriais [...] são preenchidas pela força imaginativa dos escritores” (2013,
p.218). Isto podemos constatar nos romances de Luiz Antônio de Assis Brasil, autor de
destaque na literatura do Rio Grande do Sul, conhecido por sua extensa e premiada obra
literária, publicada no Brasil e também no exterior.
Ao pesquisar sua produção romanesca observamos seu compromisso em ficcionalizar
os episódios mais marcantes da história gaúcha, em que sujeitos de comprovada existência
histórica dividem espaço com personagens ficcionais. Dentre eles, frequentemente têm voz
personagens imigrantes que trazem ao texto sua bagagem cultural e suas diferentes identidades.
Em seu romance Figura na sombra1, objeto de nossa análise, Assis Brasil insere, ainda
que por diversos caminhos, sua personagem-protagonista Aimé Bonpland na região do Rio
Grande do Sul, dimensão espacial na qual vivencia momentos cruciais para sua vida. Assim, é
decisiva a escolha da região Sul como espaço para o permanente trânsito desta personagem.
Também é relevante a dimensão temporal, já que para o protagonista o passado retorna para
impor questões emocionais, construir significados existenciais e delinear variações históricas
e sociais, no ritmo dos seus passos e das recuperações memorialísticas. As dimensões espacial
e temporal nas quais a personagem-protagonista perpassa na obra são molas propulsoras para
a temática frequente em Figura na sombra: o contato entre diferentes culturas e as questões
identitárias decorrentes dele.
Nessa obra é explorado os processos transculturais por meio de vestígios memoriais
observados em diversas instâncias, desde o deslocamento espacial das personagens até as
imigrações no plano imaginário, e suas implicações identitárias.
A partir disso, notamos que a obra Figura na sombra, como toda obra literária é
confeccionada essencialmente sob três planos: o plano da linguagem, o plano da estruturação
e o plano temático. Para não esgotarmos todas as possibilidades de análise, optamos para este
trabalho apenas o plano temático, no qual podemos verificar o processo de transculturação a
partir dos vestígios memoriais. Stephan (1990) fala sobre o plano temático:
El plano temático está jerarquizado, y presenta tres elementos constitutivos:
los personajes, la acción y el médio ambiente (espacio). Estos elementos se
condicionan mutuamente, pero también alguno surge como dominante y los
otros como subordinados. Por ejemplo, el espacio puede ser el elemento
destacado, y los personajes y acciones estarán em función del desarrollo o
presntentación de aquél.
1 Romance que compõe juntamente com O pintor de retratos (2001), A margem imóvel do rio (2003) e A música
pedida (2006) a série Viajantes ao Sul de Luiz Antônio de Assis Brasil.
Outro elemento importante à nossa análise, aliando-se ao plano temático do texto e na
transculturação, é o vestígio memorial; Bernd (2013, p. 98) fala que “a noção de vestígio ou
rastro pode ser definida como a presença de uma ausência”, ou seja, “está, pois, associada à
presença de resíduos das práticas do passado naquilo que chamamos de presente” (p. 99); e nos
faz pensar, ainda, que há três tipos de vestígios memoriais: oral (canções, os rituais religiosos,
os provérbios), escrito (cartas, testamentos, rascunhos, livros de lembrança, manuscritos) e
psíquico (correspondendo ao choque deixado por um acontecimento marcante, prazeroso ou
até mesmo trágico).
Para balizar esta análise, portanto, partiremos da seguinte questão: quais as marcas dos
processos de transculturação a partir de vestígios memoriais encontrados no plano temático de
Figura na sombra?
Vemos que o plano temático é minunciosamente elaborado por Assis Brasil em vários
momentos da narrativa a partir de um importante jogo entre passado e presente que emerge a
transculturação a partir do vestígio psicológico e suas implicações nas questões identitárias:
Alguém se aproxima. A filha de Don Amado Bonpland vem de fora e
apoia-se à ombreira da porta aberta para o campo. [...] Carmem tem rosto
redondo das indígenas. Ela conhece pouco a língua que o pai fala com o
estrangeiro, mas o suficiente.
Ela vigia as lembranças do pai. Ele lhe retribui com o olhar infantil que
pessoas de muita idade destinam aos familiares.
Don Amado Bonpland, depois de sorver um gole de mate, começa a
falar.
[...]
“No dia que nasci, na marítima La Rochelle, reino da França, o sol
deitava-se violáceo no horizonte das águas atlânticas. Os pesacadores saíram
com suas embarcações. Passariam a noite no mar. Era verão” (BRASIL,
p.17).
Notamos que a transculturação a partir do vestígio psicológico e suas implicações nas
questões identitárias é uma reflexão crucial no comportamento do indivíduo, pois nessa
passagem percebemos o quanto a “Memória Social no âmbito das sociedades, com ênfase para
a importância do resgate dos vestígios (resíduos, rastros, fragmentos, traços) do passado
permitem iluminar nosso presente (BERND, 2013, p.27).
Em Figura na sombra, o viajante, frequentemente à margem do discurso histórico
tradicional, é o foco principal; ele passa de uma posição periférica à de protagonista e, nesta
passagem, carrega consigo conflitos identitários e culturais. O contato entre culturas incita as
passagens transculturais decisivas na constituição identitária da personagem-protagonista da
obra, lembradas por meio dos vestígios memoriais:
Don Amado Bonpland interrompe o pensamento de Avé-Lallemant:
“Minha viagem com Humboldt foi errática, comandada pelas pestes,
pela política, pela paixão, pela geografia, pela boa ou má disposição dos
capitães de navios. O gênio de Humboldt deu sentido a uma aventura dirigida
pelo acaso. A viagem, para ele, foi um meio para comprovar sua teoria. Ele
buscou a totalidade meio à confusão dos seres. Ele morrerá com a certeza de
havê-la encontrado. Quanto a mim, encontrei a solidão, a malária e o amor.
Depois disso, encontrei o pesar, o remorso e, por fim, a remissão e a
sabedoria. E quanto mais vivo, mais constato que tudo é diverso, tudo é frágil,
tudo é múltiplo e surpreendente” (BRASIL, p.19).
Esse desabafo de Bonpland nos remete a ideia de Gagnebin (2006, p.118):
Ao juntar os rastros/restos que sobram da vida [...] não efetuam somente um
ritual de protesto. Também cumprem a tarefa silenciosa, [...] mas
imprescindível: reunião paciente e completa de todas a s almas do Paraíso,
mesmo das mais humildes e rejeitadas, segundo a doutrina teológica. [...]
Hoje não existe mais nenhuma certeza de salvação, ainda menos do Paraíso.
No entanto, podemos – e talvez mesmo devamos – continuar a decifrar os
rastros e a recolher os restos.
Detectamos em Figura na sombra a questão da posteridade, em jogo na trajetória do
protagonista, que mais tarde ele iria compreender que “uma posteridade só existe quando a vida
é contada a alguém” (BRASIL, p.209), ou seja, narrar o vivido a alguém a partir dos vestígios
memoriais se torna importante na trajetória de um indivíduo.
Aimé Bonpland escrevia seu diário na cabine repartida com
Humboldt: “O viajante não vê o conjunto, mas o pormenor imediato. E, ainda,
ele tudo avalia segundo seu próprio interesse e suas paixões. A imparcialidade
é a menor de suas virtudes”.
[...]
“- Eu, portanto, serei incompleto e imparcial”.
Entendo, Aimé. Ser parcial e incompleto é a única forma de realizar
algo que fique na memória das pessoas. Você pensa na Posteridade, aquilo
que virá depois de você?
Aimé voltou-se:
-Não. Não entendo sua pergunta, Alexander. Sou muito jovem para
pensar nessas coisas.
-Considere este barco. Todos, exceto nós, estão aqui por razões
imediatas e úteis. Ninguém pensa na Posteridade (BRASIL, p. 55-56).
Ao destacar a complexidade da figura do Outro – tão intrinsecamente relacionada a
qualquer processo de construção identitária – nos chama a atenção à necessidade de se pensar
a questão da alteridade de maneira mais ampla, sem necessariamente categorizá-lo de forma
fixa neste ou naquele grupo social.
A questão vai muito além, e é fundamental que se pense o encontro das alteridades nas
mais diversas instâncias para melhor compreensão dos processos de construção da
personagem-protagonista na obra estudada por meio da transculturação a partir dos vestígios
memoriais. Esta experimenta não só, em diversos momentos, sensações de estranhamento em
relação ao Outro marcadamente diferente, como também compreende que deve passar a
“reconhecer os autóctones como sujeitos e a viver a alteridade como relação com o outro no
diverso” (BERND, 2013, p.86).
Enxergaram o primeiro índio em suas vidas. Uma gravura ambulante:
trazia um coco em uma das mãos e um ananás na outra. Sorria, como quem
acolhe convidados em sua casa.
Não era o bom selvagem de Rousseau. Cobrou caro pelas frutas. Em
sua fala espanholada, misturava expressões em latim de missa. Vestia-se igual
aos mestiços. Proferia calculadas injúrias aos portugueses.
Nessa tarde, Aimé Bonpland viu-o sentado sobre uma pedra. À sua
frente, Humboldt dirigia-lhe a palavra. O índio o escutava com os olhos
submissos (BRASIL, p. 62).
A partir de uma representação do gaúcho, lhe vieram à mente imagens frias: um gaúcho
tomando mate, apreciando a imensidão do pampa em um quadro invernal, o verde dos campos
contrastando com o azul do céu, poucos elementos formando a paisagem. Estas cenas da
paisagem fria lhe remeteram a mente palavras como rigor, profundidade, clareza, concisão,
pureza, leveza e melancolia, todas relacionadas em um quadro formado por vestígios
memoriais, mas com grande significado:
Ele conhecerá as tonalidades lânguidas e inclinadas da luz na região
meridional da América do Sul.
[...]
Os dias passam a ficar mais curtos. Os pássaros recolhem-se mais cedo.
Aparecem novas estrelas. O cruzeiro do Sul começa a baixar no horizonte. O
ar é nítido. O brilho da via Láctea torna-se mais vivo.
As noites são frias. Nas manhãs, eleva-se uma nuvem de vapor que
passa a errar pelas margens do rio (BRASIL, p. 194).
A análise do espaço é fundamental para que se entenda também a presença das questões
de alteridade na constituição pessoal de Bonpland em terras americanas. O ponto de chegada é
o Sul do Continente americano, uma importância para além de mero cenário; é o Sul um dos
responsáveis pelas transformações identitárias que enfrenta a personagem. Isto quer dizer que
Aimé Bonpland é o sujeito de sua história; ele nos confere visibilidade a uma reelaboração de
imagens do passado e nos alerta sobre o vivido por meio de vestígio memorial que “inscreve a
lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar
definitivamente” (GAGNEBIN, 2006, p.44).
Considerações Finais
Nesse artigo, nos pareceu importante refletir os processos da transculturação a partir
dos vestígios memorias como uma questão que se dá na relação entre Memória e Literatura,
forma comunicativa e interativa, em um espaço de troca que é do outro. Ou seja, analisar estes
processos “é negociar uma relação dialógica em um ato que afirma [...] e dinamiza as interações
grupo/indivíduo em função de uma vitalidade expansiva em que todos merecem ter acesso aos
bens deste planeta” (BERND e IMBERT, 2015, p. 14-15).
Para tanto, inicialmente, procuramos mostra a as contribuições da cultura à Memória
Social e à Literatura e conceituar o termo transculturação. Ao conceituarmos o fenômeno
transcultural a partir das ideias de vários autores citados, percebemos que eles concordam que
os aspectos transculturais se manifestam por identidades atribuídas às identidades de travessia,
pautados em ideias de recomeços e novas partidas.
Assim, essas reflexões são observadas na obra literária Figura na Sombra de Luiz
Antônio de Assis Brasil; romance que se configura como ferramenta para a comunicação entre
Memória e Literatura e no qual, sucintamente, apresentamos as marcas dos processos de
transculturação a partir de vestígios memoriais de Aimé Bonpland, personagem-protagonista.
Constatamos, por fim, na obra de Assis Brasil o pensamento dialógico e a abertura ao
novo, fenômenos de passagens transculturais a partir dos vestígios memoriais que ocorrem ao
mesmo tempo na rememoração de histórias pessoais da personagem Aimé Bonpland e da
história contada sobre o Sul do Continente Americano.
Portanto, Luiz Antônio de Assis Brasil nos alerta que a transculturação a partir dos
vestígios memoriais age em um espaço dinâmico, híbrido, mesclado e que nenhuma das
culturas envolvidas neste processo está verdadeiramente estabelecida. Pelo contrário, fundam
a problemática de encontros com a alteridade para que surjam novas manifestações culturais.
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