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23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Nº 109 | Ano V Director: José Luís Mendonça Kz 50,00 LETRAS PÁG. 4 CHICO COIO VOZ DO SEMBA QUE SE ESQUECE PÁG. 3 ECO DEANGOLA VIDAS DE AREIADE DIVALDO MARTINS PÁGS. 6 LETRAS NA OBRA DE MANUEL RUI TRANSCULTURAÇÃO E ATLÂNTICO

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23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Nº 109 | Ano V Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

LETRAS PÁG. 4

CHICO COIOVOZ DO

SEMBA QUE SE ESQUECE

PÁG. 3ECO DE ANGOLA

“VIDAS DE AREIA”DE DIVALDO MARTINS

PÁGS. 6LETRAS

NA OBRA DE MANUEL RUI

TRANSCULTURAÇÃOE ATLÂNTICO

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2 | ARTE POÉTICA 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e LetrasUm jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 109 /Ano V/ 23 de Maio a 5 de Junho de 2016

E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaSecretária:Ilda RosaAssistente Editorial:Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação:Sandu CaleiaJorge de SousaAlberto Bumba Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Ericleia Vicente, Eugénia Kossi, João N’GolaTrindade, Lito Silva, Mário Araújo, Mário Pereira, PedroÂngelo, Vunge Futa

Portugal: Inácio rebelo de Andrade, Luís MascarenhasGaivão

Normas editoriais

O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12,e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem,ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também numficheiro separado.

POEMA DE VUNGE FUTA(membro do Movimento Litteragris)

UMA CARTA AO VENTOSurgisse num traço férreo o ser não humanizado e vagos vagões de negras correntesNo bailar dos embondeiros surgisse eu nas mulembeiras folhas do Soba Grande predador dos séculos mortos. Descendentes de Bula-Matadi: disse minha mãe de mesma idade que eu numa carta trazia o vento na cor da insípida voz! Ó casualidade de mãe0nde escondes a minha cama de oiroo meu alento de Graçaos meus amuletos de sorte a minha carta de amor de Cristo meninoÓ mãe de mesma idade que eu?Dormisse de séculos minha alma(?) dormisse de cruzes e espadas(?)não coubesse as fúrias dos sonhos das nossas humildes casasde adobe de capinzais Nascesse em pedaços como hojeo kwanza os sisais os bordões carne da Mayombola lavouras ensopadas de sémen das makumbas dos velhos Njimba e Kipacassa caçadores de homens apunhalassem o cordão umbilicalquem gemeu?ó mãe que de nenhum rio nascesse

Conselho de Administração

António José Ribeiro

(presidente)

Administradores Executivos

Victor Manuel Branco Silva Carvalho

Eduardo João Francisco Minvu

Mateus Francisco João dos Santos Júnior

Catarina Vieira Dias da Cunha

António Ferreira Gonçalves

Carlos Alberto da Costa Faro Molares D’Abril

Administradores Não Executivos

Olímpio de Sousa e Silva

Engrácia Manuela Francisco Bernardo

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Cultura | 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 ECO DE ANGOLA | 3

Foi preciso falecer, no passado dia 6 de Maio, o músico ChicoCoio, para ficarmos a saber que foi vocalista, baterista e exímioexecutante da dicanza. Que em vida publicou dois álbuns discográ-ficos, “Sofrimentos” e “30 Anos Depois”, durante 40 anos de carrei-ra. Que deixou fama plantada na Rua do Grémio, no Sambizanga,seu local de residência. Foi preciso morrer o homem, para a imprensa dedicar-lhe o es-paço que em vida merecia. Foi preciso Chico Coio morrer para fi-carmos a saber que entrou para o mundo da música no ano de1965, no agrupamento África Ritmos. Que era natural da provínciade Luanda. Que também integrou os agrupamentos Ndimba DyaN'gola e Angolenses.Que foi autor de sucessos como N' guxi Tuasakidila e N'Dalatan-do e se notabilizou no musical angolano no período de luta anti-co-lonial e pós independência com mensagens que apelavam à resis-tência ao colonialismo e que foi nesta época em que, através da mú-sica, fez história.Não sabíamos nada disso. Chico Coio era uma sombra da Músicaangolana. Fomos à Internet, em busca de dados sobre a vida de Chico Coioe ficamos a saber que não conseguia viver da música. Numa entrevista publicada no Canalsambizanga, Chico Coioesclareceu um dia que “A nova geração pouco sabe quem foiChico Coio.”Para contrapor-se ao esquecimento dele e de seus pares, andouligado à Associação Voz do Artista. “É uma instituição que tem co-mo objectivo apoiar os artistas angolanos desfavorecidos.”Ora, que noção temos nós de “artista angolano desfavorecido”. E o modo como termina a entrevista é bem sintomático da situa-ção que ele e outros cultores da música de raiz angolana, da músicaem língua nacional e ritmada pelos instrumentos como a dikanza eo ngoma, vivem nos dias de hoje: “Viajei por todo o país e no estran-geiro. Tanto na era colonial como depois da independência. Hojeestou reduzido a este espaço”.Foi preciso ele morrer para nos lembrarmos do seu nome. Masse a morte é o destino comum de todos nós, há que abrir os espaçosde actuação dos artistas da geração de Chico Coio, enquanto elesestão em vida. Todos nós sabemos que “mudam-se os tempos, mudam-se asvontades” e que “todo o mundo é composto de mudança”, comobem disse um poeta português.Mas, que mudem os tempos e mudem as vontades, sem deitarpara o lixo a obra dos que, no tempo da opressão colonial, levanta-ram a bandeira do nacionalismo cultural, cantando nas línguas daterra as coisas do dia-a-dia, ao ritmo do coração africano.A nova geração tem de conhecer todos os Chicos Coios que com-puseram música. Tem de conhecer a tradição, o passado, para nãocair no saco global da americanização cultural do planeta, pois ve-mos, com mágoa, grande parte da juventude virada para o Hip Hop,

o House, o RNB, o Rap e o Pop e bué deles a cantar em inglês. Aqui no jornal Cultura, ainda somos dos que fazem finca pé nosprincípios fundamentais da Carta do Renascimento Cultural Afri-cano que, no seu Artigo 13º, destaca: “1. Os jovens representam agrande maioria da população africana. É no seio deles que se en-contra o recurso essencial da criação contemporânea; 2. Os Esta-dos comprometem-se a dar o justo valor às expressões culturais dajuventude e a responder às suas expectativas, em conformidadecom a cultura e os valores africanos.” Por seu turno, o Artigo 17ºdestaca que “A formação profissional dos artistas criativos deveser melhorada, renovada e adaptada aos métodos modernos, semque seja rompido o cordão umbilical com as fontes tradicio-nais da cultura.”Por acreditar nestes princípios traçados pelos sábios da Culturado Continente, é que somos contra o esquecimento do Semba e dosseus cultores mais puros. Apelamos para que os órgãos de Comu-nicação Social estatais e privados passem muito mais música deÁfrica e dos autores da linha de Chico Coio, várias vezes ao dia, comtoda a normalidade, sem fazer deste género e dos seus cultores fi-guras de museu mediático, onde o utente só os vê e só os escuta emprogramas especiais.

CHICO COIOVOZ DO SEMBA

QUE SE ESQUECEJOSÉ LUÍS MENDONÇA

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4 | LETRAS 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

Com Pelo Sul se faz Caminho: An-gola, Transculturação e Atlânti-co na obra de Manuel Rui pre-tendi estudar, no âmbito dos estudospós-coloniais, o percurso transcultu-ral que Angola vem realizando, na re-presentação do autor. E, juntamentecom as origens étnico-culturais africa-nas, reconhecer que o Atlântico Sul é oespaço geográfico do percurso daconstrução da angolanidade. Com base nesta angolanidade poli-fónica e sul-atlântica passei à investi-gação da questão primordial que é a desaber se é possível induzir a existênciae a identificação de um “pensamentosulano”, detectado na obra do escritor?Atrevo-me a afirmar que sim. Este englobaria os povos do hemis-fério Sul onde Angola e África, Brasil eAmérica Latina, América Central e Ca-raíbas, arquipélagos atlânticos e tam-bém as duas nações ibéricas Portugale Espanha, criaram e desenvolveram aporosidade de mil zonas de contacto einterinfluência cultural. Estes contributos culturais nas geo-grafias do Atlântico Sul terão criado ummodo de ser que partilha muitas carac-terísticas identitárias: trata-se de cultu-ras colonizadas e ou subalternas, perifé-ricas, heterogéneas e abertas, muitasdelas colectivistas e solidárias, commúltiplas formas de expressão das emo-tividades, de cariz geralmente tradicio-nal e afectivo, em que o “sentimento res-taura as formas de vida e sustenta a exis-tência” (Barboza Filho, 2009:136), aomesmo tempo que o desenraizamentoétnico cria o hábito do viajante e pere-grino e/ou o do revoltismo do escravo. De que Sul trata,então, Manuel Rui? A posição geográfica de Angola, doBrasil e América Latina é no Hemisfé-rio Sul. A da América Central, Caraí-bas, Sul dos Estados Unidos bem comodos vários arquipélagos atlânticos eda Península Ibérica, embora no espa-ço convencional do Hemisfério Norte,

é assumida como pertencente, meta-foricamente, ao Sul. Os investigadores de ciências hu-manas são unânimes: na sequênciados “descobrimentos” e “conquistas”dos navegadores portugueses e espa-nhóis desde os séculos XV/XVI, esta-beleceram-se entre a Europa, por umlado, e a África e América, por outro la-do, novos paradigmas de relações so-cioeconómicas e político-culturais. Nascia, então, o colonialismo atlân-tico eurocêntrico e a expansão global.O equatoriano Aníbal Quijano refereque acabara de ser criado “um novouniverso de relações de dominaçãosob hegemonia eurocêntrica” (Quija-no, 2009:73-74) Este universo de relações respon-dia aos desafios e necessidades socio-económico-filosóficas duma Europaque deixara para trás o feudalismo eingressava na modernidade. Nessa “primeira modernidade” dosséculos XVI e XVII induzia-se, já, o co-lonialismo triangular que Portugal eEspanha puseram em prática em Áfri-ca e na América Latina: este tornavainterdependentes três continentesatravés do Atlântico e tinha como ba-ses a escravatura e o racismo. Mais de 13 milhões de africanos de-sembarcaram na América (Alencas-tro, 2012: 69-70) entre os séculos XVIe XIX, transportados nos navios ne-

greiros de armadores ibéricos, norte-europeus, brasileiros e antilhanos. Surgiu, entretanto, uma “segundamodernidade”, à qual se costuma dar oepíteto único de “modernidade”. Isso sucedeu quando o iluminismodespertou na Europa com os pensado-res apostando numa racionalidadedepurada e tendencialmente afastadada natureza que era necessário domi-nar e transformar para fazer nascer oEstado liberal e a separação de pode-res [lembro Hobbes, Locke, Montes-quieu] e uma metafísica das luzes[Kant, Hegel] que justificasse, parado-xalmente, os direitos humanos e o ra-cismo como ferramenta ideológica do“eurocentrismo”. Estes considerandos conduziram auma visão economicista do capitalis-mo. O colonialismo tornou-se mais uti-litário e científico e baseava na discri-minação étnico-racial, ou “metafísicada diferença” (Mbembe, 2001), o puroeurocentrismo político-económico. E surgem dois Atlânticos: o já referi-do Atlântico Sul de colonização ibéricae o Atlântico Norte de colonizaçãopropriamente “eurocêntrica”. O Norte da Europa passou, entre-tanto, a chamar “periféricas”, semi-modernas, as colonizações de Espa-nha e Portugal, pois enredavam a prá-tica colonial em considerações de ca-rácter formal étnico/religioso e emo-

cional, enquanto exerciam a ocupaçãometropolitana dos novos territórios. Aqui, embora praticassem um violen-to esclavagismo e racismo (este exercia-se numa dilatada escala entre a cor dapele mais escura e a pureza do sangue),iniciaram uma inevitável miscigenaçãoétnico-cultural entre paradigmas cultu-rais euro-afro-americanos. Estas questões iam contra o purita-nismo ético-protestante que inspiravaum capitalismo rigoroso na parte Nor-te do continente americano. Aqui (em-bora na América do Sul sucedesse algomuito parecido), a ocupação territo-rial levou a cabo uma razia étnica ecultural relativamente aos ameríndiosautóctones (um primeiro holocaustoda modernidade), seguindo o paradig-ma racista e metafísico das luzes queos referiam como inferiores. Foi rápida a implantação dos mode-los “eurocêntricos” nas colónias doNorte, copiando os modelos metropo-litanos do Estado e seus mitos de pro-gresso, europeização e de “igualdade”reservados apenas para os imigranteseuro-descendentes. As culturas ibéricas, entretanto,mesmo que diferenciadas entre a por-tuguesa e a espanhola, católicas, emoti-vas e visionárias contrastavam, pois,com as culturas predominantementecalvinistas, luteranas ou anglicanas doscolonialismos da Europa central. [maiscalculistas, mercantilistas e iluminis-tas, como ordenava a cartilha da mo-dernidade económica, na obra A Rique-za das Nações (1776) de Adam Smith.] Os resultados destas heterogéneasnarrativas coloniais reportam-nosconsequências históricas distintas. Desde logo, há que considerar queem geografias tão extensas e diferen-ciadas, situadas em tempos igualmen-te distintos (Pizarro, 1994:65-67;Mignolo, 2011:21), as identidades dospontos de partida e os respectivosimaginários se viram confrontadoscom as diferenças de muitos “outros”imaginários, à chegada, e elaborados,também, durante as viagens. As trans-culturações sucessivas incluíam inco-mensuráveis desníveis e complexida-des sociológicas, linguísticas, cultu-rais, simbólicas e temporais, que todosesses agentes passaram a trocar unscom os outros, abrindo caminho parauma extraordinária diversidade deculturas atlânticas, agora mestiçadas. Nestes “caminhos do Sul” Angolaganha uma primordial importância. Aobra do escritor Manuel Rui é dissomesmo a representação. Depois de um percurso literário quecomeçou em 1967, [para o ano o cin-

PELO SUL SE FAZ CAMINHOANGOLA, TRANSCULTURAÇÃO

E ATLÂNTICO NA OBRA DE MANUEL RUI

LUÍS MASCARENHAS GAIVÃO

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LETRAS | 5Cultura |23 de Maio a 5 de Junho de 2016quentenário] pela poesia ou prosa, pe-lo conto ou romance, a trajectória deManuel Rui passou pelo anticolonialis-mo antes da independência, e depoisdela, pela afirmação nacionalista e pa-triótica em prol da nação libertada. Seguiu-se, em Quem me dera ser On-da (1982) aquilo que virá a ser o traçomarcante de uma análise reflexiva e crí-tica ao processo histórico-cultural ango-lano e às suas contradições, recorrendoà ironia e ao humor (Pizarro, 1994) co-mo instrumentais importantes.

Três obras exemplaresEscolhi três obras exemplares:Rioseco (1997), Travessia por Ima-gem (2011) e A Trança (2013) para acriação de um observatório/registodas transculturações atlânticas quenelas se denotam. Na primeira, Manuel Rui, em plenaguerra civil angolana, imagina a Ilhado Mussulo [ele nunca mencionaMussulo, mas são evidentes as mar-cas diegéticas] como um espaço deutopia onde as etnias e culturas queperformatizam a angolanidade se ex-primem, se contactam, se mestiçam.Dá relevo à sabedoria ancestral e co-loca no romance também diversospersonagens de outras culturas paraali imigradas, incluindo a portuguesaou a cabo-verdiana. As contradições sociais e os com-portamentos são escalpelizados comironia e a partir da visão inteligentís-sima de Noíto, a mulher umbunda doplanalto. Esta protagonista encontra-se despida dos resquícios de “colo-nialidade” e personifica em si o depó-sito e a reserva duma angolanidadeque, entretanto, se apresentava con-fusa e quase perdida, por efeito dasguerras e do colonialismo. Na segunda obra, Travessia porImagem, o autor vai perseguir, no queforam os territórios da “diáspora es-clavagista” angolana, ou seja, na Amé-rica Latina e Antilhana, os laços epis-temológicos comuns, para ali trans-portados pelos antepassados. Chama-lhes as “subtis, aparentemente sub-mersas, partículas culturais afins”(Rui, 2011: 411) e entrelaçam-se emhibridações constantes, com as epis-temologias ameríndias e ibéricas. O romance desenrola-se entre An-gola e Cuba e Cuba e Angola. A narrati-va, relativamente a Rioseco atlantiza-se, tem habaneras, tango, rum e açúcare reúne diferentes personagens oriun-dos do mundo afro-ibero-americano:cubanos, brasileiros, espanhóis, ar-gentinos, chilenos, mexicanos, húnga-ros (uma excepção) e uruguaios. Maistarde, no fim da obra, irão juntar-se-lhes portugueses, açorianos, navar-ros, catalães e bascos. É neste mundo pós-colonial ibéricoque Manuel Rui expande o interesseficcional e ele sabe muito bem deno-tar as tais “partículas afins” que, ape-sar do implacável comércio e indús-tria esclavagista, conseguiram imple-mentar inúmeras marcas tripartidas

de hibridações, manifestas nas lín-guas, músicas, danças, religiões, ar-quitecturas, gastronomias e outrosmuitos modos de estar e sentir. Surgem, igualmente, novos proces-sos metodológicos da escrita no Sul. Umdos mais notórios e eficientes é o trata-mento aplicado à Língua Portuguesa[na América hispânica sucedeu com aLíngua Castelhana o mesmo fenóme-no], inscrevendo nela as marcas da ora-lidade que afastam o texto do cânonemetropolitano e o revestem de localis-mos (Padilha, 2005), alterações sintác-ticas e prosódicas, entre outras, uma ca-racterística que atravessa a sua biblio-grafia e que é comum as sociedades excolonizadas e orais praticarem comoforma de afirmação identitária, comoapontam Rama (2004), Cardoso(2008), Pizarro (1994) e muitos outros. Na terceira obra, a Trança, ManuelRui leva a cabo um mergulho na tradi-ção africana, quando faz regressar a An-gola a bela Maria, uma mulata loira deolhos verdes que ali vai assistir ao “nas-cimento do seu avô”. Com uma lingua-gem simbólica, percorre os mitos e osritmos de vida africanos que irão inspi-rar Maria que, entretanto, se transfor-ma em Citula, boa feiticeira africana quevolta à Europa recarregada pela energiapositiva do misticismo africano. Através dos três romances observa-se a clara descolonialidade dos perso-nagens principais (Noíto, Zito e Maria,respectivamente) que chocam contraa colonialidade, o neocolonialismo ouo patrimonialismo de muitos perso-nagens tidos por “inconsequentes”, eque contribuem para a desagregaçãoda sociedade através da prática dum“colonialismo interno”. Tudo isto em geografias distintas eem tempos e cosmologias diversas. Conclusão Termino destacando a performativi-dade da hibridação ou a evidência da

“mistura das misturas” no Atlântico Sul. A permanência da “colonialidade”,do neocolonialismo ou do colonialis-mo interno bem como do neoliberalis-mo em tantos países ex-colonizados eex-colonizadores torna mais prementea “descolonização” duma epistemolo-gia teimosamente “eurocêntrica” e doNorte, na origem e destino do conheci-mento, da justiça e igualdade reais. “Pelo Sul se faz Caminho” é um rotei-ro do Sul, propositor do resgate de suasepistemologias contra-hegemónicas. Ganha, então, especial interesse,ressaltar a permanência, seis séculosapós as “descobertas”, das línguas por-tuguesas e castelhana nesta muito ex-tensa área geográfica que a obra recen-te de Manuel Rui percorre. As duas línguas representam hojeum crescendo acentuado de valor eco-nómico-cultural e geoestratégico de414 milhões de falantes de espanhol e261 falantes de português, com o totalde 675 milhões (in Observatório daLíngua Portuguesa, consulta em12.04.2016), para além de, nos doisúltimos séculos elas terem sido “ins-tauradoras da nação e disciplinadorasde sociedades multilingues e multiét-nicas” (Pizarro, 2006), na América noséculo XIX e em África no século XX. O potencial cultural e afectivo comume histórico confere-lhe uma proximida-de epistemológica no pensar, ver, agir esentir que distingue o Atlântico Sul e oSul, segundo interpreto em Manuel Rui,como o espaço e o caminho que tem vin-do a ser feito para uma nova contra-he-gemonia, descolonizada e livre. Aqui no Sul todos nos sentimosbem, o que as “subtis, aparentementesubmersas, partículas culturais afins”não desmentem. ___________________________Referências bibliográficas

Alencastro, Luís Filipe (2012), O Tratodos Viventes: formação do Brasil no Atlân-tico Sul: Séculos XVI e XVII. São Paulo:

Companhia das Letras. Barboza Filho (2009), “La Occidentali-

zación Barroca de América” in González,Francisco Colom (ed) Modernidad Iberoa-mericana. Cultura, política y cambio so-cial. Madrid: Iberoamerica. 121-154.

Camacho, Ramón Kuri (2009), “Barro-co y Modernidad. Los jesuítas de la NuevaEspaña”, in González, Francisco Colom(ed) Modernidad Iberoamericana. Cultu-ra, política y cambio social. Madrid: Ibe-roamerica. 183-226.

Mbembe, Achille (2001), “As FormasAfricanas de Auto-Inscrição”, in EstudosAfro-Asiáticos, Ano 23, nº 1. 171-209.

Mignolo, Walter (2011), The Darker Si-de of Western Modernity. Global Futures,Decolonial Options. Durham & London:Duke University Press.

Pizarro, Ana (1994), De Ostras y Cani-bales. Ensayos sobre la Cultura Latinoa-mericana. Santiago: Editorial de la Uni-versidad de Santiago.

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Quijano, Aníbal (2009), “Colonialidadedo Poder e Classificação Social” in Santos,B. S. e Meneses, Maria Paula (org) Episte-mologias do Sul. Coimbra: CES/Almedina.73-117.

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Ribeiro, Margarida Calafate (2004),Uma História de Regressos: Império, Guer-ra Colonial e Pós-colonialismo. Porto: Edi-ções Afrontamento/CES.

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Rui, Manuel (2011), Travessia por Ima-gem. Luanda: Kilombelombe.

Santos, Boaventura Sousa (2009) “Pa-ra além do Pensamento Abissal: das linhasglobais a uma ecologia de saberes” in San-tos, Boaventura de Sousa e Meneses, Ma-ria Paula, Epistemologias do Sul. Coimbra:Almedina/CES. 23-71.

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6 | LETRAS 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

Oescritor Divaldo Martins, apre-sentou, no dia 12 de Maio, noPalácio de Ferro, o seu novo li-vro, intitulado Vidas de Areia. O ro-mance ambienta-se na cidade de Luan-da, que acaba por emergir também co-mo um importante personagem da tra-ma. “Vidas de Areia” é o segundo livrodo autor. O primeiro, “Pedaços da Vi-da”, foi apresentado em 2009. O romance é uma homenagem àsmães angolanas, que durante anospraticaram a venda ambulante no per-curso do musseque até à Baixa deLuanda, para darem uma vida melhoraos filhos e, apesar da guerra, nuncadesistiram dos seus sonhos. O romance descreve, em 432 pági-nas, o quotidiano da capital, a partir dedois pontos de vista, o urbano e o su-burbano. Para ilustrar as duas reali-dades, o autor escolheu os bairros doSambizanga e do Miramar para mos-trar dois ângulos opostos da socieda-de luandense, duas realidades que es-tão bem próximas uma da outra, emtermos geográficos, mas são ao mes-mo tempo tão diferentes. Em entrevista a um órgão da Comu-nicação Social angolana, Divaldo con-sidera esta obra “uma história de amor,não apenas daquele amor entre um ho-mem e uma mulher, mas do amor entremãe e filho, do amor entre amigos, en-fim, do amor entre as pessoas que porvezes se perde no corre-corre da vida.Por isso, o livro fala também de cora-gem e da necessidade do perdão”.“Eu sou da geração que nasceu inde-pendente, mas cresceu com a guerrano presente e no horizonte, e de certaforma acabei por ser vítima desse tem-

po. As minhas referências, os meusmedos, os meus fantasmas, os meuspreconceitos, são fruto desse tempoque vivi. E os personagens do livro re-flectem um pouco as pessoas do meutempo. O modo como víamos as coisas,

o modo como as coisas nos chegavam,o modo como vivíamos”, continuou.Do autorO escritor Divaldo Martins nasceuem Luanda, em 1977. Em 1995, con-cluiu o curso médio de jornalismo etrabalhou na Agência Angola Pressaté 1998.Em 2003, concluiu uma Licenciatu-ra em Ciências Policiais, pelo InstitutoSuperior de Ciências Policiais e Segu-rança Interna de Lisboa, e em 2013obteve uma Licenciatura em Direito,pela Universidade Agostinho Neto.Em 2015 obteve o grau de mestre emComunicação - Assessoria de Imageme Comunicação Política na Universida-de Caminho José Cela, em Espanha, efrequentou o curso superior de LetrasModernas, na especialidade de Portu-guês, no Instituto Superior de Ciênciasda Educação (ISCED), de Luanda.

ERICLEIA VICENTEPrezado amigo...Estou a escrever porque recomeceia ler “Vidas...” Além daquela questão da lingua-gem cuidada que dizias que o “povo”não podia ter, há a questão da imen-sidão de assuntos que decidisteabordar nele. Também já havíamosfalado sobre isso. Embora não tenhadiminuído em nada a qualidade daobra, talvez fosse uma boa reduzir onúmeros de temas a discutir numapróxima vez.Não pretendo elaborar uma críticaformal ao teu trabalho, apenas lem-brei-me dos dias em que, frustrado,reclamavas por te sentires vazio, edas vezes que, a meio de uma conver-sa técnica, gritavas como um louco

“tive uma ideia e vou usá-la no meu li-vro!”... Lembrei-me de outras vezesteres perguntado se as pessoas vãoler, se vão gostar ou mesmo se vão seservir dele para alguma coisa útil...Percebi também que estavas muitopreocupado com as eventuais leitu-ras que o livro pudesse ter... enfim,tantos questionamentos, tanta preo-cupação e agora aí está ele. Lembro-me de ter-te dito para dei-xares que sejamos “nós” a avaliar aqualidade da obra, porque era tantaansiedade, tanto medo, que só visto.É justo deixares essas preocupaçõesde lado e passar para “nós” essa res-ponsabilidade.Sabes, nessas horas eu te invejo...andamos todos tão preocupados, àprocura da felicidade, em vão procu-ramos nos nossos bens ou mesmonoutras pessoas esse algo, quando na

verdade sempre esteve dentro denós. Às vezes questiono a tua felicida-de por estar condicionada a muitosfactores independentes da tua vonta-de mas nós, graças a Deus, temos-te ati. Escreves com tanta paixão que aca-bas por falar para os nossos corações,onde as palavras ditas nem sempreconseguem chegar. Por isso eu digoque quem tem a sorte de encontrar atua doce companhia, pode conside-rar-se uma pessoa feliz.“Vira, revira, como um bebé que so-nha...” assim começas a contar-nosessa história de muitas vidas, pejadade lágrimas e sofrimento mas tam-bém enfeitada com sorrisos e muitoamor, como todas as vidas!Encontrei no “Vidas”, trechinhosmuito engraçados que me trouxeramcrises espontâneas de riso mesmoquando não estava com “ele”, frases

que sinceramente tocaram e admoes-taram o meu, às vezes, duro coração. Uma das cenas mais tocantes paramim foi essa....“Sem dizer nada, a mãe puxou p’racima o lençol que cobria metade domeu corpo e deu-me um beijo na testa.«Já tô a ir.» A voz parecia vir do meusonho inventado «Não tô deixar ma-tabicho» – se desculpa. – «Passa lá napraça antes de ir na escola, ouviste?».Continuei a fingir que dormia e não viquando ela meteu a banheira dechambres na cabeça. «Quando acor-dar vai no chafariz. Aqui já não temnem um pingo d’água. Mas não sai fo-ra até ficar claro, senão kambumbúvai vir te roubar. Ouviste, meu cassu-le? Ouviste, monami?» E daquela pergunta que fingi nãoouvir retirou a nota da canção quesaiu a lamentar.”

DIVALDO MARTINS LANÇA ROMANCE ‘VIDAS DE AREIA’

Precisamos de mais mães nessa Terra

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ASecretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial (SMPIR) de SãoPaulo (Brasil) abriu inscrições até 17 de Junho, para o “Monumento aZumbi dos Palmares”, que irá seleccionar e premiar o melhor projecto pa-ra a construção de uma escultura, na cidade de São Paulo, em homenagem aoícone da luta negra. O concurso aberto aos nacionais do Brasil tem o objectivo de celebrar, pormeio do símbolo de Zumbi dos Palmares, o papel da população afrodescenden-te no desenvolvimento do país e do município de São Paulo, honrando as suas

contribuições sociais, culturais, políticas e económicas à sociedade. Ainda,busca inserir os cidadãos negros no acesso a recursos públicos para a produ-ção de artes visuais e promover sua participação na construção da cultura ehistoriografia brasileira. O Dia da Consciência Negra, celebrado no Brasil em 20 de Novembro, já virouferiado no País, e relembra o aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, líderda República dos Palmares – também conhecida como Quilombo dos Palmares.Vida de ZumbiA cronologia da morte de Zumbi dos Palmares começa mesmo antes do seunascimento. Em 1600, escravos negros foragidos dos engenhos de açúcar dePernambuco fundam, na Serra da Barriga (CE), o Quilombo dos Palmares – 30mil passam a morar na região.Em 1644, após 14 anos de presença no nordeste brasileiro, os holandesesfalham na invasão ao Quilombo. Em 1654, eles são expulsos pelos portugue-ses do nordeste.Zumbi nasceu em 1655, num dos acampamentos no Quilombo. Ainda jovem,ele foi aprisionado em 1662 e dado ao padre Antonio Melo que o baptizou comoFrancisco. Ele ensinou ao jovem latim e português e, por sua vez, passou a aju-dar o sacerdote nas suas missas.Em 1670, o escravo, agora catequisado, foge e regressa a Palmares.Zumbi, o líder e estratega militarDurante uma batalha entre tropas portuguesas e os escravos no local, em1675, Zumbi surge como líder militar durante os combates.Três anos depois, após 78 anos de resistência, Pedro Almeida, o governadorda capitania de Pernambuco tenta um acordo com outro líder do Quilombo,Ganga Zumba.Em troca da paz entre escravos e tropas, Almeida propõe que o Quilombo sejadestruído. Zumbi rechaça a proposta; ele acreditava que todos os negros deve-riam ser livres, e não deveriam voltar à escravidão.Capítulo FinalDurante 14 anos, entre 1680 e 1694, Zumbi liderou a República dos Palmaresretaliando e afastando os ataques das tropas portuguesas. Porém, em 1694,com apoio da artilharia, os portugueses derrotaram Zumbi e destruíram a Re-pública dos Palmares.Ferido e derrotado na Cerca do Macaco – principal mulambo dos Palmares –Zumbi ainda consegue fugir dos militares portugueses comandados por Do-mingos Jorge Velho e Vieira de Mello.O líder negro ainda conseguiu viver durante um ano, até ser denunciado porum antigo companheiro. Zumbi foi localizado pelos portugueses, preso e dego-lado em 20 de Novembro de 1965.

LETRAS | 7Cultura |23 de Maio a 5 de Junho de 2016

Monumento a Zumbi dos Palmares

Eu nunca vivenciei algo como talmas esta cena remeteu-me para osdias em que a minha mãe não tinhacondições de dar alguma coisa muitoquerida, a mim ou a algum dos meusirmãos, ou mesmo quando as minhaspossibilidades não alcançam os so-nhos dos meus filhotes, por mais su-pérfluos que sejam... mãe que é mãe,sabe a dor que dá. E se, por essas ba-nalidades, sofremos, imagino o queserá deixar a casa antes da auroraatrás de um pão incerto, deixando sófome e recomendações para o filho...é uma dor sem tamanho que jamaisquero experimentar.Podia a Ngola desfazer-se em lágri-mas de derrota, ou mesmo ter desisti-do de tão injusta luta, mas mãe que é,mesmo sem mais armas, mesmo semmais forças, por apenas uma causa,lutou. E ela bem disse, “Mãe que deixao seu filho morrer, não é mais mãe. Énada.” Ela não importava mais, mas, pelofilho, ela lutou.“Não senhor, médica não sou. Massou mãe...” Essa foi outra frase que meapertou o peito. Diante de todo este

cenário, haverá quem vai optar porver neste livro uma série de críticasterríveis... mas eu o li com pureza noolhar e pensei... precisamos de maismães nesta terra. Tem um pouquinho de tudo nele,bem dosificado e bem enquadrado.Factos bem iguais aos que vivencia-mos hoje. E claro que, por isso, mui-tos poderão fazer uma interpretaçãomais belicosa, mas olhar com a cons-ciência é uma decisão que cada um denós pode tomar. Sinceramente, o teu livro ficou óp-timo!! E nem estou a falar de produti-vidade... dá para ver que além de es-forço, investiste paixão nele. Talvezpor isso me inspires tanto. Aliás, ins-piras muita gente.Tudo isso é na verdade resultadode seres tão bom ouvinte e dotado deuma agilidade emocional invejável.És das pessoas mais fortes que co-nheço e tens um coração lindo. Deusbrindou-te com uma sabedoria rara eacredito que, com a tua força de von-tade, fé e foco nos objectivos, conse-gues ir mais longe.

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IZOMBOKO YA MUXIMA - GRACEJOS DA ALMA

Izomboko yami ilenga dikanga ku Muxima - os meus gracejos fogem p longe, paraa MuximaKwene kwala mbutu ingikingila, yene itumba - onde se acha a natureza q me espe-ra, é ela que inchaKidyelelu kyami kya kukala hanji mu kitumba - a minha esperança de ainda estarna florestaKizandesa kuzola kwami kwaditunu kuxixima - que faz florescer o meu amor quese nega ser infelizKuzomboka kwami kwatundu ku muxima - o meu gracejo saiu da almaOmuxima wenyo wabwila kubinga kwa ndumba - essa alma cansada de pedir à moçaMu kifwa kya monandumba, mwene kilumba - essa mocetona, ela, a raparigaWalembwa kungisanjukisa kulaya, kubwima - que não conseguiu alegrar-me o vi-ver, o respirarKala kaswamenu, udisweka dikanga, kudima - como um jogo de escondidas, es-conde-se bem longe, atrásKudima dyami, nda ngimumone mukulumba - atrás de mim, para que não a veja avacilarMbata muxima we uteketa mukwiva dizumba - porque o seu coração treme aosentir o odôrDizumba dyami mwene wixi hanji: dimuxixima - o meu odôr que ela diz que lhedesgraçaOkuzomboka kwe kwa muxima ubaza, ujima - o seu gracejo de alma explode, ex-tingueKamuswinyi ka kuzola kwawisu hanji kazamba - um pedaço de amor ainda verdeque encobreJingongo jami joso jikala kungizuba, kungilamba - todo o m sofrimento que fica aextinguir-me, a enterrar-meMbata wandala kungimona ngazulu, ngidizuwama - porque quer ver-me molha-do, a escorrer-meKuzomboka kwe kwakambe kitulu kyafwama - o seu gracejo carece de uma florque mereceDizumba dya mwenyu ingibangesa kusamba - o odôr de vida que me faça alegrarDingibangesa we hanji kuta ku tandu dizamba - que me faça ainda por sobre mimo chapéuDingikembesa kuzola kwami kyala ku muxima - que me enfeita o amor que seacha na almaKuzomboke mukwenu ulayela kyayiba, uzuwama - não gracejes de quem mal vi-ve e escorreMatoxi matunda ku muxima wabwila malamba - o suor que sai da alma cansadadas desgraças

Mbata kizuwa kyazukama kutula kya kukulamba - porque o dia q está quase achegar, o do teu enterroKyatonginina mwelu ya kubokona kwala hama - espreita a porta de entrada ondese acha a tua camaIzomboko ya muxima ayisanga kuna mu Kisama - gracejos de alma são encontra-dos lá na KisamaKwebi kwala mbutu yawisu ni yama idizamba - onde estão a natureza crua e osanimais que se divinizamNi utudilu wa mwanya wa kamene ni nzumba - com a vinda do sol da manhã e achuvaAkala kumoxi mukukudisa mwenyu sekuzakama - que juntos fazem crescer a vi-da sem nada temerOkuzomboka kyezala unvunji, exi, wene ulemba - o gracejo repleto de ingenuida-de é aquele que ofereceJimwemwe jamuvimba jikembesa, exi, kalumba - plenos sorrisos que enfeitam,dizem, a moçaKana kadisanga moxi ya utalelu wezala ulumba - aquela que se encontra sob oolhar repleto de primaveraKwila umuxisa we hanji ni Kihanji kya masemba - que também ainda a deixa an-siando masembaNgilembwa kubanga jimbundu kyoso ki ngitwama - evito lamuriar quando avan-çoNgixi ngakuzolo mwene anga ungidituna kusemba - e digo: te amo, e ela me negaencantarMuxima wami wabwila kumuzola kuma ungizemba - o coração exausto de amá-la, visto que me odeiaMukwijiya ngalembwa kumutangesa, wixi ngadyama - por saber q não consigoconquistar-lhe e diz q sou um pobretanasItetu ya muxima wami yadisande boxi, sukwama - os escombros de minha almaespalharam-se no chãoKitembu anga ikilula dikanga dyami anga ngidivumba - e o vento soprou-os lon-ge e me enterroMukondo waxikelela, swalu ndondo mu polo ndumba - na negra melancolia, nonegro suor que abunda no rostoAndala kungilamba mu dikungu dyozonge jinguma - juntos me querem enterrarno buraco cavado por quem não gosta de mimYene ingimbumbisa muxima ni kuzola - são eles que tatuam minha alma de amorIngikenzesa ilumininu yangikala hanji ku muxima – que fazem limpar as impure-zas dos rumores que ainda se acham na alma

Quitandeiras Tapeçaria da artista Marcela Costa

MÁRIO ARAÚJO

8 | LETRAS 23de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

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O passeio à zona dos Congolensestinha o duplo objectivo de reviver o al-voroço daquele mercado e revisitar oCine Ngola. Natalício constata que o Mercadodos Congolenses, em meritório estadode conservação, se expandiu para umtípico centro comercial africano, a céuaberto. No espaço anexo ao edifício,em bancas tradicionais ou improvisa-das, é vendida uma variedade de pro-dutos para o lar, desporto, construçãocivil, automóveis, áudio, lazer, vídeo,etc. Além dos costumeiros produtosde horticultura, peixaria, padaria,mercearia e de talho, a nave centraldisponibiliza uma castiça zona de res-tauração e bancas para a venda decomponentes de informática. Na en-trada principal, os artigos de ourivesa-ria sobressaem dos restantes. A passeata prossegue, agora pelasruas adjacentes ao mercado. Dum ladoe doutro dos passeios, vendedores, se-diados ou ambulantes, exibem merca-doria e alimentos diversificados: cai-xas de carne, denominadas “fresco”,acabadas de comprar nos armazéns:«Vem, paizinho, tem aqui carne de pei-to alto!» Uma senhora, com a criançaàs costas, agacha-se e amontoa o feijão“espera-cunhado” na bacia. Adiante,uma tísica mulher chama a atençãodos passantes para as sandes de isca,cujos nacos borrifa com ketchup. Aoreparar que Natalício espreita para oconteúdo do tacho, interpela-o: «Gos-ta?» Um jovem roboteiro transportacaixas donde cai um frango, para ochão. Mais à frente, uma cliente discu-te com a vendedeira, em kimbundu, opreço dos quiabos; outra mulher pas-sa apregoando a água fresca que ven-de em sacos de plástico transparente,transportados numa bacia trazida àcabeça sobre uma rodilha. À entrada dos armazéns de venda agrosso, dois moços interceptam-no:um deles impingindo as listas e preçá-rios do peixe e da carne vendidos nacorrenteza de armazéns de frescos, naesperança de alugarem a sua força bra-çal. O mais audaz, disputando o pas-sante, reclama energicamente: «Deixaprimeiro o pai chegar ao armazém!»Colados aos muros dos armazéns defrescos, vendedoras utilizam parte dacarne retalhada em pinchos que gre-lham mesmo ali, em toscos fogareiros. O passeante observa, então, uma

vendeira transportando à cabeça umabacia com torresmos, uma caneca commolho, outra caneca-medida e palitos;outra apregoando: «Mata carraça, ma-ta piolho, seca impinge!», referindo-seaos pequenos frascos de carracida quecarrega numa pequena bacia esver-deada; uma senhora, com uma idadejá avançada, transporta uma panelonade comida, num cangulo, que vai ven-dendo aos transeuntes. À porta do WC, pergunta, ao ver oidoso funcionário com algumas notasna mão:- Tio, paga-se alguma coisa para nosservirmos da casa de banho?- Pra uriná, o pai paga 30 kwanzas;mas si fó pra fazé maiores é 50 kwanzas. - Não entendi, tio. O que é isso de“fazer maiores?”O ancião, não contando com a inter-rogação, mostra-se atrapalhado, esco-lhendo, mental e cuidadosamente, aspalavras para a imprevista explicação.Natalício mantém-se, especado, obser-vando-o a contorcer-se no, também,velho banco. Finalmente, o guarda le-vanta-se e faz o jeito de baixar as calças!- Tio, vou entrar. – Diz Natalício, en-tregando uma nota de 100 kwanzas.No entanto, as condições encontra-das lá dentro fazem-no desistir dopropósito por que entrara. À saída:- Mais-velho, só urinei.- Toma os teus 70 kwanzas, pai. – Es-tica a nota, o velho responsável. - Deixe estar, tio; não é preciso. –Responde o passante, observando oletreiro onde também está escrito:«Crianças, 20 kwanzas.»Vindos dos lados de Viana, os can-

dongueiros vão encostando à bermado passeio, largando e carregandopassageiros, bradando os seus desti-nos: «Zamba 2!»; «Éroporto!»; «Ca-lemba!»; «Rocha!»; «Padaria!», etc.Daí a instantes, chega um táxi mini-bus e, dentre outros passageiros,saem duas senhoras com outras tan-tas trouxas com leguminosas. Discu-tem com o cobrador:- Você és um aldrabão! – Atira a moça,mal poisara o fardo de hortaliças no chão.- Vocês é que num querem pagá etão-ma chamá aldrabão a mim? – De-fende-se, raivoso.- Nós já te entregámo os 500 kwan-zas que você pedistes no Mercado doTrinta! – Acrescenta a senhora, demeia-idade, com os olhos esbugalha-dos pela contrariedade. Entretanto, vão-se aproximandotranseuntes atraídos pela cena, en-quanto o motorista e demais passagei-ros aguardam, no táxi, pelo desfechoda contenda, para prosseguir viagem. - Mas o preço de cada bilhete é 800 enão 500! – Insiste o chamador, avançan-do energicamente para as senhoras.- Porquê você não falastes isso lá nomercado? Iscolhíamo outro táxi! – In-terpela-o a jovem zungueira, de ancaslargas e faces magras. Impaciente, o condutor buzina e ocobrador recolhe ao mini-bus, nãosem antes avisar as vendedoras de le-gumes: «Da próxima vez vou cobrá odinheiro adiantado!»Deambulando pela zona periféricado mercado, Natalício passa por doisroboteiros, ainda adolescentes, esta-cionados num espaço ermo e afastadodo reboliço do comércio. Vestidos e

calçados andrajosamente, despentea-dos, mas descontraídos, partilhammacarrão com feijão e pedaços de car-ne que tiram dum saco de plástico. En-quanto mastigam, acenam a um amigoque vai passando, empurrando umcarrinho com produtos de desinfesta-ção, apregoados por um altifalante co-locado por cima dos mesmos: «Matarato, mata barata, mata mosca, matamosquito, comeu, morreu, secou!»O caminhante segue em direcção ao ci-nema N`gola, uma das razões do seu pas-seio. Finalmente, encontra o cine procu-rado. A sua alma “cai-lhe aos pés” ao con-templar o desconhecido estado de degra-dação daquele que fora um dos íconesculturais que povoaram a sua infância. Do outrora lindo edifício, poucomais resta que a fachada na qual, mila-grosa e verticalmente, permanece apalavra “N`gola.” Levado pela inconti-da curiosidade, Natalício transpõe ogradeamento enferrujado. Repara nosdois postigos da desactivada bilhetei-ra, e essa visão traz-lhe à memória oano de 1972 e o episódio em que, na-quele mesmo local, lhe fora negada acompra do ingresso para o filme Trini-tá, O Cowboy Insolente, com TerenceHill e Bud Spencer, porque, conformeargumentou o vendedor de bilhetesapontando para o enorme e apelativocartaz: NÃO ACONSELHÁVEL A ME-NORES DE 16 ANOS.Retomando o passeio de regresso acasa, vem-lhe à memória o projecto de oGoverno restaurar os cinemas históri-cos, que se encontram deteriorados. Na-talício sorve a medida governamentalcomo catalisadora da restauração desteemblemático bairro da capital angolana.

LETRAS | 9Cultura |23 de Maio a 5 de Junho de 2016OS CONGOLENSES

Antigo Ngola Cine, junto ao mercado dos Congolenses

MÁRIO ARAÚJO

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10 | LETRAS 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

RESUMO

Dia 21 de Fevereiro é o DiaInternacional das Línguas Ma-ternas que serve de móbil parauma conversa entre Kossi e Pe-dro Ângelo.

A lembrança deste dia servepara fazer uma breve reflexãosobre a problemática linguísti-ca em Angola.

Desde a Língua Portuguesa, ti-da como língua veicular no sen-tido de ser a língua oficial de An-gola, língua de ensino, língua derelacionamento interno e exter-no, ao Lingala, língua hoje já fa-lada por número considerávelde crianças como língua pri-meira, até às diversas Línguasditas Nacionais que timidamen-te vêm sendo estudadas e intro-duzidas no Sistema de Ensino, asituação linguística de Angola étudo menos clara.

1. Angola país multicultural?Esta narrativa tem como centro asditas Línguas Nacionais e vem a pro-pósito de no passado dia 21 de Feve-reiro se ter comemorado o Dia Inter-nacional das Línguas Maternas o quenos levou a tentar fazer um modestohistorial sobre a atenção que este te-

ma tem merecido em Angola. (Estetrabalho é um trabalho que resulta deuma reflexão conjunta de Kossi e Pe-dro Ângelo, ambos investigadores douniverso da Universidade Jean Piaget.Talvez por isso a sua apresentação, co-mo primeiro trabalho de escrita emconjunto, tem ainda muito de ser me-lhorada. Pelos atropelos na narrativapedimos desde já a vossa paciência.)(Oh Kossi)Não consigo situar este tema sempensar na vida que as línguas ganha-ram (ou perderam) com a introduçãoda escrita o que me leva a reler um tex-to de Paulina Chiziane, escritora Mo-çambicana recentemente homena-geada no quadro da literatura dos PA-LOP, para dele reter a seguinte frase apropósito do surgimento da escritaem Moçambique, “Não há nada debom senão esta bênção que se tornaránuma maldição, uma vez que dividiu omundo em letrado e iletrado”. Paraque se possa chegar ao entendimentodesta dicotomia, letrado/iletrado, te-remos de rever o conceito de analfabe-to que transporta consigo a carga ne-gativa que o leva a conotar com “a es-tupidez, a grosseria, a vulgaridade, aincultura” como o diz Calvet A respeito desta questão transcreve-mos do mesmo autor o seguinte trecho:“Essa visão puramente ideológica

das relações entre o conhecimento e aescrita pesa bastante sobre as nossassociedades, e, […], é importante afas-tarmo-nos dessas simplificações. O paranalfabetismo/escolarização não sedeixa, com efeito, definir senão numquadro de uma sociedade de tradiçãode escrita, mas é outra situação em so-ciedades sem escrita, nas quais a noçãode analfabeto é uma noção importada,desprovida de sentido local.”

(CALVET; 2011, pp 8-9).Como muito bem refere Calvet a no-ção de analfabeto em sociedadessem escrita é vazia de sentido por is-so é melhor que o termo sociedadessem escrita seja substituído por so-ciedades de tradição oral o que de-nota que as línguas têm vida muitopara além da escrita.(Oh Pedro)Esta questão do letrado/iletradoapanha-nos a todos desprevenidos,uma vez que defendemos veemente-mente a cultura da escrita em detri-mento das nossas tradições da orali-dade, é, por exemplo, comum entrenós educarmos os nossos filhos paraserem alguém na sociedade compa-rando o indivíduo escolarizado com onão escolarizado. A demanda poruma sociedade perfeita passa poruma “limpeza” do analfabetismo edas culturas que carrega , a que a clas-

se intelectual volta e meia atribui o si-nónimo de criminalidade, assim o jo-vem que não pode estudar é tido co-mo um zé-ninguém, atrasado e po-tencialmente criminoso. É preciso, Pedro, vermos as coisascom um pouco mais de responsabili-dade, o “analfabetismo” é uma ques-tão profunda que mudou a própriaconcepção do africano, especialmentedo angolano, ao fazê-lo olhar para assuas culturas e as suas tradições sem amerecida atenção. Isso propicia umasérie de equívocos que fazem com quea mudança de paradigmas não sejaadaptada aos diversos contextos dasnossas localidades criando uma sériede culturas “marginais”. Essa comparação desigual dasnossas culturas com as da escritatêm uma convivência de submissão,pois o padrão do conhecimento e desabedoria é o ocidental, o que nãonos permite olharmos atentamentepara as origens e essência do nossomodus vivendi. (Kossi) Depois de termos reflectido sobre es-te equívoco (letrado/iletrado), que mui-to tem alimentado a “maldição” a que serefere Paulina Chiziane, passemos en-tão à breve história sobre o conheci-mento das ditas Línguas Nacionais. O Cultura nº 79, de 12 de Abril de

LÍNGUAS NACIONAISPedro Ângelo

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LETRAS | 11Cultura | 23 de Maio a 5 de Junho de 20162015, publica três sérios trabalhos so-bre as ditas línguas nacionais alémdum editorial de José Luís Mendonçaabordando este mesmo tema e advo-gando uma “pedagogia da oralidadecomunitária” que me parece digna deser sistematizada e fortalecida de mo-do a vencer o tremendo preconceitoacima referido e que é alimentado su-bliminarmente porque as línguas na-cionais, como elementos de cultura ,sendo o espelho de sociedades de tra-dição oral (simplisticamenye tidas co-mo “iletradas”), transportarão com oseu estudo, ensinamento e uso co-mum, estímulo para esse estigma, ou“maldição” no dizer límpido de Pauli-na Chiziane. Contudo o seu estudo euso é fundamental para que o conceitode país multicultural, que muito enri-quece Angola, ganhe o sentido que sóa Tradicional Oral pode dar. Vejo, na pedagogia advogada porMendonça, uma proposta para retirardos escaninhos bafientos dos museus,as Literaturas Orais Tradicionais(LOT) e torná-las um alvo do canoncultural do país, alimentando os siste-mas literários em línguas africanas deAngola e dando vida aos contadoresde estórias, os produtransmissores,como bibliotecas vivas, no dizer deHampaté Ba, animando os salões dasoutras bibliotecas (bibliotecas edifí-cios, como lhes chamar, Kossi?).É de se pensar, Pedro. Mas parece-me que antes temos de resolver a con-tradição entre a putativa importânciadada ao poder tradicional local e o fac-to de continuarmos a falar de tradi-ções orais sob o ponto de vista do exó-tico, como coisas próprias do outro, deminorias, que queremos protegercumprindo um dos muitos objectivosdo “Milénio” ou do “DesenvolvimentoSustentável”. (Pedro) O que diferenciaum soba de Luanda de um soba doHuambo? Do ponto vista linguístico,provavelmente nada, pois aparecem afalar um Português que nem domi-nam. Não me parece que se dê a devidaimportância ao papel que estes líderestêm realmente na contribuição para aharmonização do desenvolvimentosocioeconómico com a manutençãolinguística e cultural das suas comuni-dades. Eles são a ponte para a imple-mentação da pedagogia de Mendonça. Pedagogia que não se submete a ummanual, eventualmente escrito emBruxelas com o patrocínio da UNES-CO, mas que se alimente sim da tradi-ção das antigas escolas iniciáticas re-vigorando o uso das línguas vivas paraque os seus falantes se sintam sujeitosda sua própria história. Portanto a ani-mação atrás referida não seria umasimples demonstração de solidarieda-de, mas seriam as próprias comunida-des a animarem aqueles espaços porsi integrados linguística e cultural-mente o que torna vazia a perguntacomo lhes chamar.Mas vamos à breve história que nospropusemos contar.

2. As Línguas NacionaisO professor Lusakalalu na introdu-

ção do seu livro Línguas e UnidadesGlossonímicas, editado em 2005, co-loca-nos perante a seguinte perplexi-dade: em 1994 a linguista alemã Huthafirmava que em Angola existiam cer-ca de 64 línguas mas o linguista ango-lano Vatomene KUKANDA, no seu arti-go publicado no Atlas da Língua Por-tuguesa na História e no Mundo, edita-do em Lisboa pela Casa da Moeda em1992, falava da existência de 9 línguasbantu. Acrescente-se, a estes dois nú-meros tão díspares para contabilizaras línguas africanas faladas em Ango-la, o trabalho do professor MesquitelaLima que em 1970, em edição do Insti-tuto de Investigação Científica de An-gola, publicou um esboço de Carta Ét-nica de Angola, que refere a existênciade 10 línguas bantu (às 9 línguas refe-ridas habitualmente, Kikongo, Kim-bundu, Cokwe, Umbundu, Ngangela(Mbunda), Cihelelu, Olunyaneka, Os-hikwanyama e Shindonga, acrescentaCiluba, letra L) e ainda a existência deassentamentos humanos de origemafricana não-bantu e falantes de lín-guas Khoisan.(Pedro)Antes de prosseguir vamos abrirum parênteses: quando se fala em lín-guas africanas faladas em Angola, ficoconfusa por duas razões: a primeira éque no acto de fala sempre nos posi-cionamos em relação a um referente,no nosso caso parece-me que seja aLíngua Portuguesa (LP). Tomamos en-tão Angola como um país em que se fa-la a LP e é preciso que se tenha em con-ta outras línguas, mas parece-me quedeveria ser o contrário, não nos es-queçamos que Angola é um país afri-cano. Num segundo momento, e sendoAngola um país africano, obrigatoria-mente tem de ter língua próprias des-sa sua posição continental. Extrapo-lando para outras realidades, não sei

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12 | LETRAS 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

se seria aceitável dizer as línguas eu-ropeias faladas em França, mas sim aslínguas africanas faladas nesse país. Pois bem, creio que, seria muitomais natural falarmos, tanto de lín-guas europeias faladas em Angola co-mo o francês, o português ou o inglês,como, as línguas angolanas, que de-vem ser vistas como idiomas próxi-mos ao falante, serem chamadas delínguas nativas (e não africanas, já queestamos em ÁFRICA). A perversidadedeste alinhamento de precedência,sugerido pelos atributos diferencia-dores das línguas (uma é língua e asoutras são ou línguas africanas ou lín-guas nacionais), leva a que, mesmo emmeios académicos, se trate a situaçãolinguística aqui vivida como diglóssicadando a ideia que, nesta situação de biou multilinguismo, a LP é dominante eas outras dominadas.Às perplexidades sustentadas peloprofessor Lusakalalu juntam-se ou-tras o que nos leva a reafirmar que otema não é pacífico e exige um trata-mento sério e rigoroso que, note-se,tem vindo a ser feito.* No fim deste texto apresenta-se cópia dessa car-ta de Mesquitela Lima adaptada por Zavoni.Em sequência dos trabalhos já rea-lizados na era colonial, em 1976 foicriado pelo Governo de Angola, afectoao Ministério da Cultura, o InstitutoNacional de Línguas encarregado doestudo científico das línguas nativasfaladas em Angola bem como do estu-do da tradição oral. Logo em 1980 foiesboçado um sistema fonológico epropostos projectos de alfabetos paraas línguas Kikongo, Kimbundu, Cok-we, Umbundu, Mbunda e Oxikwanya-ma. Em 1985 este instituto passou achamar-se Instituto de Línguas Nacio-nais (ILN) nome que mantem até hoje. A resolução nº 3/87 de 23 de Maiode 1987 aprovou os alfabetos das lín-guas Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Um-bundu, Mbunda e Oxikanyama na se-quência do trabalho que vinha sendorealizado pelo ILN. Esta resolução sur-giu no âmbito de um projecto triparti-do entre Angola, UNESCO e PNUD e foiorientado cientificamente pelo pro-fessor de nacionalidade maliana Bou-bakar Diarra. Este projecto permitiu afixação de um léxico de base e um léxi-co temático para as áreas da saúde,agricultura, pecuária e administração,nomeadamente.O trabalho foi realizado sob prin-cípios gerais com vista a tornar a or-tografia mais simples mas sem abdi-car do rigor.A partir de Dezembro de 1989 osmesmos parceiros, isto é, o ILN e oPNUD/UNESCO, iniciaram o segundoprojecto cujo objectivo principal é autilização das nossas línguas nativasno processo de desenvolvimento so-cioeconómico do país.Desde 1991 o Ministério da Culturatem vindo periodicamente a realizarEncontros sobre as Línguas Nacionaistendo realizado até à data cinco en-contros com a seguinte ordem:1º de 25 de Fevereiro a 2 de Março

de 1991;2º de 1 a 3 de Setembro de 2004;3º de 15 a 17 de Outubro de 2008:4º de 18 a 21 de Outubro de 2010; 5º de 7 a 10 de Agosto de 2014.Este é um trabalho belíssimo quedeveria sair da esfera puramente cul-tural para ser envolvido num âmbitomais científico como ocorre no Brasil,por exemplo, com as línguas indíge-nas. As faculdades de letras das diver-sas universidades têm um papel fun-damental no desenvolvimento dos es-tudos linguísticos ligados a políticasde implementação das línguas nos vá-rios sectores inclusive nas escolas.(Mas, provavelmente, isto merece umoutro artigo.)3. Que Línguas Nacionais? Como

gerir este universo linguístico an-golano?Começámos este despretensiosotexto, que esperamos proporcione umcontraditório saudável como se querem sede de Cultura, com a perplexida-de sustentada pelo professor Lusaka-lalu: 64 ou 9 Línguas Nacionais? Masacrescentemos a essa perplexidade asseguintes reflexões:Em Setembro de 2006, o III Simpó-

sio sobre Cultura Nacional, que tevelugar em Luanda, relança a questãodas “Línguas Nacionais”.Antes de mais porque a própria de-finição mereceu do Presidente da Re-pública, no supracitado III Simpósio, aseguinte reflexão: “Devemos ter a coragem de assumir

que a Língua Portuguesa é hoje a lín-gua materna de mais de um terço doscidadãos angolanos e se afirma ten-dencialmente como língua de dimen-são nacional em Angola.

Isso não significa de maneira nenhu-ma, bem pelo contrário, que nos deve-mos alhear da preservação e constantevalorização das diferentes LínguasAfricanas de Angola até aqui designa-das de “línguas nacionais”, talvez inde-vidamente, pois quase nunca ultrapas-sam a região”.

(Pedro) É realmente muito sério este assun-to. creio que é fundamental olharmospara a estruturação da nossa históriado pós-independência, lutou-se muitopara o fortalecimento do ensino semcontudo fazer-se um corte, uma análi-se, pensando nas populações, sobre asdecisões que poderiam afectar negati-

va ou positivamente a sua existênciaenquanto detentores de uma identi-dade. Optou-se por dar continuidadeao legado da colonização: continuar ausar a LP e unicamente a LP como lín-gua de escolarização mesmo em loca-lidades onde aparentemente ninguémusava tal idioma de forma regular e,portanto, não dominada pelos falan-tes que tinham uma outra língua ma-terna, obviamente. Provavelmente, isto tenha contri-buído para o crescimento do senti-mento de estigmatização, uma vez queas línguas locais não eram e não sãousadas num ambiente de prestígio co-mo são os serviços e principalmente aescola, culminando com a secundari-zação destas línguas na vida do cida-dão, sentindo-se ele próprio ostraci-sado (por falar outra língua, tal comoacontecia na era colonial). Além dis-so, os próprios ensinamentos cultu-rais que são essência de cada povosofreram uma mutação por terem si-do destorcidos numa outra língua,digo isto porque a introdução da mo-ral e cívica na escola ensinada em LP,de norte a sul do país, mostrou-nosque até “os bons costumes” ganhammelhor roupagem quando ensinadosna língua herdada, a língua do outro.Então o que resta para as outras lín-guas? Apenas um ínfimo papel de so-brevivência exótica nos bastidoresda nossa vivência. Parece-me que o estatuto do assi-milado não passou, os preconceitoscontra as línguas locais pioraram aoponto de um filho de Angola não sercapaz de falar também a língua de al-guns dos seus ancestrais. O que nosfaltou? A UNESCO, em 2016, escolheuo tema Quality education, language(s)of instruction and learning outcomespara defender o uso da língua maternana escolarização, principalmente nosprimeiros anos de educação, para queas crianças consigam envolver-se deforma plena no processo de comuni-cação, melhorando a compreensão, acriatividade, a aplicação do conheci-mento, primando por uma aprendiza-gem de qualidade. (Creio que a UNES-CO está atenta ao que de bom se temfeito por esse mundo fora em termosdo uso da língua nativa no sistema deensino e, acho eu, que esse tema resul-ta do facto de ter observado que emdeterminada altura no sistema deeducação da nossa vizinha RDC, nainstrução primária, a presença domais velho para contar estórias na sualíngua era prática corrente como pe-dagogo para auxiliar o ensino técnicoministrado pelo professor). Acrescente-se a todas estas ques-tões que deveremos enfrentar que oprofessor Kukanda, no mesmo III Sim-pósio, falou sobre a expansão do Lin-gala que muito para além de ser umalíngua falada correntemente em al-guns bairros (municípios) de Luandae outras cidades do Norte de Angola(regiões que de uma maneira mais in-tensa ou mais moderada recebem in-fluência da muito dinâmica bacia doCongo), aparece em muitas aldeias daEugénia Kossi

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LETRAS | 13Cultura | 23 de Maio a 5 de Junho de 2016

Ernesto interrogava-se frequen-temente sobre a razão de ter deestudar tantas coisas sobre essePuto longínquo, que nem ele nem oscolegas conheciam, e quase nada so-bre África, Angola, o Bié, que eram asua terra.Pôs a questão ao pai:— Porquê?Laconicamente, com duas ou trêsfrases, Abel explicou porquê:— Que querias tu aprender sobreisto? O quê, diz lá? Tirando o rio Cuan-za e a rainha Jinga, não tens mais nadapara saber.Ernesto achou que aquilo não erauma resposta, muito menos umajustificação.Decidido a satisfazer a sua cu-riosidade, pôs a mesma questão àprofessora.Porque era africana, angolana e bie-na; porque era mestiça, com sangue de

negros nas veias, Luísa Amaral como-veu-se com a pergunta. Referiu o rioCuanza (mas ainda o Cunene, o Cuban-go e o Cuando), referiu a rainha Jinga(mas também o pai, Ngola Kiluanje),referiu até o motivo por que o Andulose chamava assim.O soba Chocolongonjo tinha um fi-lho, de que se orgulhava muito. Por ra-zões relacionadas com a sucessão, es-se filho fora envenenado com fel de ca-bra, adoecendo logo gravemente.Ne¬nhum quimbanda, nem erva, nemesconjuro haviam conseguido debelaro mal. A espumar pela boca, contor-cendo-se de dores, o rapaz morrera.Chocolongonjo desesperara com osucedido. Gritara, rasgara as vestesem tiras, arrancara os cabelos, chorarasemanas inteiras o desaparecimentodo seu ente querido. Como qualquersonâmbulo, os braços estendidos paraa frente, levantava-se de noite, va-gueava pela mata aos tropeções, pare-cia perseguir uma sombra que maisninguém via. Velhos e novos segreda-vam entre si que ele tinha perdido ojuízo, que estava louco.Ernesto perguntou:— E estava?A professora julgava que sim.Para lembrar o seu desgosto às ge-rações futuras e denunciar a peçonhacausadora daquela tragédia, o sobamudara o nome da embala onde viviapara Andulo, palavra que queria dizer

fel em umbundo.Sem se conter, Ernesto exclamou:— Uma história linda!Luísa Amaral corrigiu:— Não é história, é lenda.História ou lenda, se verdade oumentira, Ernesto contou tudo o queouvira a Chitembo.

O amigo encolheu os ombros displi-centemente e deu pouca importânciaao assunto. Ora, ora, que novidade!...Sabia isso havia muito tempo.— Sabias?!— Sabia, sim. Meu avó mi farou...(do romance «O Pecado Maior de Abel»)

O MOTIVO POR QUE O ANDULO SE CHAMA ASSIM

INÁCIO REBELO DE ANDRADE

fronteira Norte de Angola já como pri-meira língua das crianças. Entretanto, no decorrer destaprosaica reflexão, vieram à luz osdados do Censo de 2014, os resulta-dos definitivos, donde retiramos oseguinte gráfico:

Como se pode ver pelo gráfico co-piado do documento editado pelo INEem Março de 2016, intitulado Recen-seamento Geral Da População e Habi-tação. Resultados Definitivos, p 14,outras perplexidades se juntam:Os nomes destas línguas não coinci-dem com as estudadas pela autorida-de do País encarregada de o fazer, oILN e o PNUD/UNESCO;ii)Nem em nome nem na sua escrita; iii) Havendo mesmo uma das lín-guas identificada como Outra Línguacom mais de um milhão de falantes eque podemos especular como sendo o

Lingala já que a sua forte presença emAngola já está testada em trabalho in-suspeito apresentado pelo professorKukanda no supra citado III EncontroNacional da Cultura de 2006.A questão então que se põe, paraalém das sensatas palavras de Sua Ex-celência o Presidente da Repúblicaque questiona o termo “Línguas Na-cionais” (se calhar não virá mal aomundo se as chamarmos Línguas Na-tivas, pelo menos seremos absoluta-mente mais rigorosos), tem a ver como facto de se saber se Língua Maternaincorpora ou não o conceito de LínguaPrimeira falada pelas crianças? E se sim como situar também essasduas Línguas no xadrez linguístico deAngola, sabendo que uma Língua é,não só meio de comunicação, comotambém um importante veículo cultu-ral, à luz de um propósito de inclusãoretirando critérios ideológicos exclu-dentes que, sem sombra de dúvida,alimentam uma prática de hierarqui-zação estranha à análise de qualquerproblemática linguística? Ao pôr aquestão nestes termos estamos a dei-xar para outras reflexões a relação daLP com as ditas Línguas Nacionais, re-lação dita diglóssica pelos especialis-tas, o que prefigura tecnicamente a

aceitação de supremacia dessa línguasobre as outras tomadas como dialec-tos. Mas isso são outros quinhentos.Creio que não sejam outros qui-nhetos, Pedro. Vejamos:i) Começo por pôr em causa o factode ainda não termos entendido cienti-ficamente que português materno éeste, pois dependendo da região va-mos ter crianças a falarem o “Portuki-konguês”, o “Portumbundês”, o “Portu-kimbundês”, muitas vezes com umaestrutura fonética e morfossintáticatotalmente modificada sem nos es-quecermos da prosódia, só por não es-tarmos, por exemplo em Cabo Verde, éque não o confundimos com um criou-lo. Convenhamos, as línguas nativasnão desapareceram da cognição des-sas crianças, misturaram-se à LP pro-movendo uma variação linguística, oque a longo prazo, mesmo com a nossaprotecção sentimentalista do “bem fa-lar” português, há-de sofrer mudan-ças nas diferentes regiões; ii) acrescento que, por uma herançacuja precedência é confusa, temos di-ficuldade de aceitação de, no nossoquotidiano, sermos africanos e de fa-larmos línguas da região. Esta herança

confusa é explicada por Ngungi WaThiongo que acredita se deve ao factode haver uma luta entre duas forçasem choque, por um lado, a força da tra-dição imperialista que preside à men-talidade das elites intelectuais e aoprocesso de escolarização que renegao savoir-être e o savoir-faire da nossamatriz africana e por outro, a resistên-cia frontal ou subliminar das tradiçõesafricanas, que ainda alimentam a nos-sa alma bantu, ao avanço dessa tradi-ção recente a que Kizerbho chama amemória do [email protected]@gmail.comAqui recordo-me de um provérbiobambara que Hampaté Ba cita: “não sesemeia em terreno já semeado”.“Les moeurs d’une nation ont un

contre-coup sur sa langue, et, d’autrepart, c’est dans une large mesure la lan-gue qui fait la nation” Ferdinand deSaussure.Na referida resolução a língua fala-da na província do Cunene aparececom esta grafia, mas, posteriormente,e resultante da participação da Namí-bia a língua passou a ser grafada comose segue, oshikwanyama.

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14 | ARTES 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura

No dia 07 de Maio do ano em cur-so, o Nosso Centro, localizado noBairro Gamek, acolheu a cerimóniada apresentação pública do CD daautoria do grupo musical AngolaGospel Voice’s.

O Jornal Cultura traz na íntegra aentrevista concedida por Nuno Ne-to, um dos integrantes do referidogrupo musical, que falou sobre o re-ferido disco.JORNAL CULTURA - Quando e co-mo surgiu o projecto Angola GospelVoice’s?NUNO NETO - O projecto AngolaGospel Voice’s é um dos vários projec-tos da Produtora Mais Gospel, que temcomo principal objectivos a valoriza-ção e promoção da música gospel emAngola, a descoberta de novos talen-tos dando apoio para a gravação detrabalhos discográficos, caso a pessoao pretenda.JC - Onde foi gravado este disco equantos músicos participaram nesteprojecto?NN - Este projecto foi gravado emAngola, Suíça e Portugal, e tivemos aparticipação de mais de 15 cantores,dentre eles alguns grupos e toda equi-pa de músicos.JC - Quantas músicas tem o disco equal delas dá título ao CD?NN - O CD comporta nove faixas mu-sicais e nenhuma dá título ao álbum,porque não queríamos privilegiar al-guém em particular, mas, sim, o grupoformado por cantores angolanos. JC - Que novo conceito de músicagospel vocês trazem com o AngolaGospel Voice’s?NN - O novo conceito é dar à músicagospel a qualidade que ela merece;que ela tenha qualidade igual ou supe-rior do que aquela que possui a músi-ca secular.JC - Que estilos musicais podem serencontrados nesse CD?NN - Neste CD trouxemos louvor eadoração nos vários formatos [quevão] do pop-rock, kizomba à músicacongregacional.JC - Que objectivos motivou-vos agravarem este disco?NN - O objectivo principal é usar amúsica como uma plataforma para le-var a Palavra de Deus aos ouvintes, eque ela seja ouvida de bom grado.JC - Que mensagens vocês transmi-tem com as músicas que cantam?NN - Trazemos uma mensagemtriangular que personifica a Deus emJesus, e o amor entre nós os homens,paz, amor e esperança.JC - Temos conhecimento de que pa-ra além deste CD vocês gravarm outrodisco. Fale-nos um pouco sobre estedisco (título, músicas, etc.)...NN - Ok. O outro CD está voltado pa-ra a vida conjugal. Por isso, o intitula-mos de “Românticas”, mas a sua men-sagem está fundamentada nos princí-

pios estabelecidos por Deus na Sua Pa-lavra. Uma vez que existe uma grandelacuna [de músicas deste género] nomeio gospel [angolano] - lacuna estaque vinha sendo preenchida com músi-cas vindas do estrangeiro, nomeada-mente Brasil e USA - questionámo-nospor que é que nós não podemos expres-sar aquilo que cada um sente pela suaamada ou pelo seu amado?JC – Em que locais estes discos po-dem ser adquiridos?NN – Os CD´s estão disponíveis naIgreja Comunidade Evangélica Univer-sal de Luanda, localizada na Rua Gagoda Graça, na Terra Nova. Os interessa-dos poderão ainda contactar o jovemArtur ou telefonar para o 924-905859.

JC - Qual é o estado actual da músicagospel em Angola?NN - A música gospel em Angola es-tá em ascensão e evolução ao mesmotempo. Isso exigirá dos fazedores demúsica um pouco mais de tempo naelaboração dos temas em termos decomposição, arranjos e execução, oque é muito bom para a música de An-gola em geral.JC - Quem de facto pode cantar amúsica gospel?NN - Na verdade todos podem [can-tar], desde que estejam preparadospara este fim, tal como noutras áreasda vida que exigem que o indivíduo se-ja dotado de algum conhecimento. É necessário que se viva o que se

canta; que o cantor tenha, acima de tu-do, bom testemunho diante de Deus edos homens, se não seremos apenascontadores de histórias. Disto o mun-do está cheio.JC - Que mensagem tem a transmitiraos músicos seculares que cantammúsica gospel nos seus espectáculos? NN - Se o fazem para Deus, deveriamantes de tudo saber que Deus não se co-move por meras palavras ou canções;Deus não carece de ser adorado, masmerece ser adorado por todos aquelesque reconhecem a penosa obra [reali-zada por Ele] na cruz em resgate da Hu-manidade mergulhada no pecado.Deus julgará a cada um segundo o quetiver feito mediante o corpo.

ANGOLA GOSPEL VOICE’S

Da esquerda à direita: Artur Jorge, Jack, o produtor, e Nuno Neto formam o grupo Angola Gospel Voice´s

JOÃO N’GOLA TRINDADE

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bArrA DO KWANzA | 15Cultura | 23 de Maio a 5 de Junho de 2016

TCHIANZA NGOMBE E MÂMA NYAWEJI

Ilustração de ANTÓNIO OLE

Segundo diz esta lenda, no princípio existia só oTchianza Ngombe ou Yanvua Ngombo e Mâma Nyaweji,a grande serpente que criou o mundo e tudo quanto ne-le existe, incluindo a ‘’menia’’ (água) e a ‘’kahia’’ (fogo).

Aparece depois o Sá Kasanji ‘’Katanga Watangile at-fu eswe nyi moko nyi molo, Yie ma tala atfu eswe, bwa-lo atfu katu matalie’’ (Katanga criou todas as pessoas,os braços e as pernas. Ele olha para todas as pessoas,mas elas não olham para ele, ninguém o vê).

Tchianza Ngombe casou com o ‘’Nzaji (trovão) nyiaya nenye mwilu’’ e foi com ele para cima, para o espa-ço, para o céu, onde permanece com seus filhos.

Também há a crença, entre alguns Tutchokwe, queo Sol é o fogo dos raios e faíscas e que na sua marchadiária aparece, nasce ‘’Nu Ngangela’’ (Oriente) de ma-nhã e ‘’mafwa (morre) Ku Luanda’’ (Ocidente).

Com o ‘’Kakweje’’ (Lua) sucede o mesmo. ‘’Afwa’’(morre) ‘’nyi atetama nawa’’ (e aparece, nasce outravez na Lua Nova). Crêem que a Lua é a companheira danoite, do mal, da doença e da morte, enquanto o Sol é aclara luz do dia, o bem, a saúde e a vida.

Tal como os antigos egípcios, também os Tutchok-we consideram o Oriente como a vida, o bem e tudoquanto há de bom, enquanto o poente é consideradocomo o lado onde morre o Sol e, por isso, de onde vema doença, a morte e tudo quanto é mau.

Também crêem que as ‘’tongonoche’’ (estrelas) se-riam pontos de fogo do ‘’Nzaji’’. Seriam elas quem man-da a ‘’nvula’’ (chuva). Esta seria a urina das estrelasque faz crescer ‘’mitondo mwesue’’ (todas as plantas).

Quanto a Nyaweji ou Tcianza Ngombe ‘’uri mu icheria mavo’’ (está por baixo da terra) é o dono e senhorda terra e de todas as coisas que nela existem, incluin-do todas as águas dos rios, lagos e mares.

Do ventre de Tchianza Ngombe nasceram duas pes-soas irmãs: Sá Mutfu e Ná Mutfu. Como o primeiro erahomem e a segunda era mulher, casaram-se. Destaunião nasceram duas crianças: Kandi Ya Matele e Yala.

Estes, por sua vez, casaram também.Deste casamento nasceram Mwako e Kaweji, que

também casaram e tiveram dois filhos: Yala Mwako ekondi, que também casaram e tiveram um rapaz cha-mado Mwako Ya Kondi, e outro de nome Yala Mwako,ou seja, o nome do

seu ‘’Kaka’’ (avô). Este último foi o pai de Tchinguli

ou Tchinguri Mbangala, de Tchinyama mukwa Luena ede Lweji Ya Kondi.

Era assim que se sucedia em quase toda a África aoSul do Sahara e na África Oriental, incluindo a Etiópia,antes da queda da monarquia, onde o Négus era o im-perador ou rei dos rás, isto é, chefe de todos oschefesde aldeia, clã ou etnia, o senhor dos senhores. Era umaespécie de feudalismo, como sucedia no Império Lun-da, onde também estava consagrado o poder local.

FIM

Esta lenda é da autoria de João Vicente Martins, confor-me dito no site http://www.culturalunda-tchokwe.com/.

LENDA DE JOÃO VICENTE MARTINS

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16| BANDA DESENHADA 23 de Maio a 5 de Junho de 2016 | Cultura