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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro INTRODUÇÃO AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIAS A Visão do Encéfalo na Grécia Antiga A Visão do Encéfalo durante o Império Romano A Visão do Encéfalo da Renascença ao Século XIX A Visão do Sistema Nervoso no Século XIX Nervos como Fios Localização de Funções Específicas em Diferentes Partes do Encéfalo A Evolução do Sistema Nervoso O Neurônio: A Unidade Funcional Básica do Encéfalo AS NEUROCIÊNCIAS HOJE Níveis de Análise Neurociências Moleculares Neurociências Celulares Neurociências de Sistemas Neurociências Comportamentais Neurociências Cognitivas Os Neurocientistas O Processo Científico Observação Replicação Interpretação Verificação O Uso de Animais na Pesquisa em Neurociências Os Animais Bem-estar dos Animais Direitos dos Animais O Custo da Ignorância: Distúrbios do Sistema Nervoso CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CAPÍTULO 1

Neurociências: Passado, Presente e Futuro

INTRODUÇÃO

AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIASA Visão do Encéfalo na Grécia AntigaA Visão do Encéfalo durante o Império RomanoA Visão do Encéfalo da Renascença ao Século XIXA Visão do Sistema Nervoso no Século XIX

Nervos como FiosLocalização de Funções Específicas em Diferentes Partes do EncéfaloA Evolução do Sistema NervosoO Neurônio: A Unidade Funcional Básica do Encéfalo

AS NEUROCIÊNCIAS HOJENíveis de Análise

Neurociências MolecularesNeurociências CelularesNeurociências de SistemasNeurociências ComportamentaisNeurociências Cognitivas

Os NeurocientistasO Processo Científico

ObservaçãoReplicaçãoInterpretaçãoVerificação

O Uso de Animais na Pesquisa em NeurociênciasOs AnimaisBem-estar dos AnimaisDireitos dos Animais

O Custo da Ignorância: Distúrbios do Sistema Nervoso

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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PARTE I Fundamentos4

INTRODUÇÃO

O homem deve saber que de nenhum outro lugar, mas apenas do encéfalo, vem a alegria, o prazer, o riso e a diversão, o pesar e o luto, o desalento e a lamentação. E por meio dele, de uma maneira especial, nós adquirimos sabedoria e conheci-mento, enxergamos e ouvimos, sabemos o que é justo e injusto, o que é bom e o que é ruim, o que é doce e o que é insípido... E pelo mesmo órgão nos tornamos loucos e delirantes, e medos e terrores nos assombram... Todas essas coisas nós temos de suportar quando o encéfalo não está sadio... Nesse sentido, opino que é o encéfalo quem exerce o maior poder no homem.

– Hipócrates, Da Doença Sagrada (Século IV a.C.)

É da natureza humana sermos curiosos a respeito de como vemos e ouvimos, do porquê de algumas coisas serem prazerosas, enquanto outras nos magoam, do modo como nos movemos, raciocinamos, aprendemos, lembramos e esque-cemos, da natureza da raiva e da loucura. A pesquisa em neurociências está des-vendando esses mistérios, e as conclusões desses estudos são o tema deste livro.

A palavra “neurociência” é jovem. A Society for Neuroscience*, uma asso-ciação que congrega neurocientistas profissionais, foi fundada há pouco tempo, em 1970. O estudo do encéfalo**, entretanto, é tão antigo quanto a própria ciên-cia. Historicamente, os neurocientistas que se devotaram à compreensão do sis-tema nervoso vieram de diferentes disciplinas científicas: medicina, biologia, psicologia, física, química e matemática. A revolução nas neurociências ocorreu quando esses cientistas perceberam que a melhor abordagem para a compreen-são de como funciona o encéfalo vinha de um enfoque interdisciplinar, a com-binação de abordagens tradicionais visando produzir uma nova síntese, uma nova perspectiva. A maioria das pessoas envolvidas na investigação científica do sistema nervoso considera-se, hoje, neurocientista. É claro que, enquanto o curso que você está fazendo pode estar mais ligado ao departamento de psico-logia ou de biologia de sua universidade e pode chamar-se de “psicobiologia” ou “neurobiologia”, pode apostar que o seu professor é um neurocientista.

A Society for Neuroscience é uma das maiores associações de cientistas e também uma das que mais rapidamente crescem***. Longe de ser muito espe-cializada, seu campo é tão amplo quanto o das ciências naturais, com o sis-tema nervoso servindo de denominador comum. Compreender como funciona o encéfalo requer conhecimento acerca de muitas coisas, desde a estrutura da molécula de água até as propriedades elétricas e químicas do encéfalo e a razão pela qual o cão de Pavlov salivava quando uma campainha tocava. Este livro estuda o encéfalo a partir dessa perspectiva, que é bastante ampla.

Começaremos nosso estudo com um breve passeio pelas neurociências. O que têm pensado os cientistas acerca do sistema nervoso ao longo dos anos? Quem são os neurocientistas de hoje e como eles abordam o estudo do sistema nervoso?

AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIAS

Você provavelmente já sabe que o sistema nervoso – o encéfalo, a medula espi-nhal e os nervos do corpo – é crucial para a vida e permite que você sinta, se mova e pense. Como surgiu essa concepção?

*N. de T. SfN – Sociedade para as Neurociências, sediada em Washington.**N. de T. A expressão brain significa, em inglês, “encéfalo” e compreende o cérebro propriamente dito (o prosencéfalo), o mesencéfalo, o cerebelo e o tronco encefálico, ou seja, tudo o que fica ao abrigo da caixa craniana (ver Figura 1.7). No Brasil, é comum traduzir-se brain por “cérebro”, o que está errado; a única situação em que esse descuido terminológico é tolerável dá-se em textos de psicologia humana, uma vez que as principais atividades mentais superiores têm sede no prosencéfalo (i.e., no “cérebro”).***N. de T. No Brasil, existe a SBNeC – Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, que é uma das que mais crescem no rol das sociedades científicas de biologia experimental (www.fesbe.org.br/sbnec).

INTRODUÇÃO

AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIAS

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 5

Há evidências que sugerem que até mesmo nossos ancestrais pré-históri-cos compreendiam que o encéfalo era vital para a vida. Registros arqueológicos incluem muitos crânios de hominídeos, datando de um milhão de anos atrás, ou mais, e que apresentam sinais de traumatismo craniano fatal, provavelmente cau-sado por outros hominídeos. Há cerca de 7 mil anos, as pessoas já perfuravam os crânios uns dos outros (um processo denominado trepanação), evidentemente não com o objetivo de matar, mas de curar (Figura 1.1). Esses crânios mostram sinais de cicatrização pós-operatória, indicando que esse procedimento teria sido executado em indivíduos vivos e não em um ritual ocorrido pós-morte. Alguns indivíduos aparentemente sobreviveram a múltiplas cirurgias cranianas. Não está claro o que os cirurgiões dessas épocas esperavam conseguir, embora se tenha especulado que esse procedimento poderia ser utilizado para tratar cefaleias ou transtornos mentais, talvez oferecendo aos maus espíritos uma rota de escape.

Escritos recuperados de médicos do Egito antigo, datando de quase 5 mil anos atrás, indicam que eles já estavam bastante cientes de muitos dos sintomas de lesões encefálicas. No entanto, também está claro que, para eles, o coração, e não o encéfalo, era a sede do espírito e o repositório de memórias. De fato, enquanto o resto do corpo era cuidadosamente preservado para a vida após a morte, o encéfalo do morto era removido pelas narinas e jogado fora. O ponto de vista que sugeria ser o coração a sede da consciência e do pensamento per-maneceu até a época de Hipócrates.

A Visão do Encéfalo na Grécia AntigaConsidere a noção de que as diferentes partes de seu corpo são diferentes por-que servem a diferentes propósitos. As estruturas dos pés e das mãos, por exem-plo, são muito diferentes, pois realizam funções distintas: podemos andar sobre nossos pés e manipulamos objetos com nossas mãos. Assim, parece haver uma clara correlação entre estrutura e função. Diferenças na aparência predizem dife-renças na função.

O que podemos prever sobre a função da cabeça observando sua estrutura? Uma inspeção rápida e poucos experimentos (p. ex., fechar os olhos) revelam que a cabeça é especializada para perceber o ambiente com os olhos e ouvidos, o nariz e a língua. Mesmo uma dissecção grosseira pode traçar os nervos a par-tir desses órgãos através do crânio, até entrarem no encéfalo. O que você pode concluir do encéfalo a partir dessas observações?

Se sua resposta é que o encéfalo é o órgão das sensações, então você chegou à mesma conclusão de muitos eruditos gregos do século IV a.C. O mais influente deles foi Hipócrates (460-379 a.C.), o pai da medicina ocidental, que acreditava que o encéfalo não apenas estava envolvido nas sensações, mas que seria a sede da inteligência.

Entretanto, essa visão não era universalmente aceita. O famoso filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) ateve-se firmemente à crença de que o coração era o centro do intelecto. Qual função Aristóteles reservava para o encéfalo? Ele acreditava que o encéfalo era um radiador, cuja finalidade seria resfriar o san-gue que se superaquecia com o coração que fervilhava. O temperamento racio-nal dos seres humanos era então explicado pela grande capacidade de resfria-mento do encéfalo.

A Visão do Encéfalo durante o Império RomanoA figura mais importante na medicina romana foi o escritor e médico grego Galeno (130-200 d.C.), que concordava com a ideia de Hipócrates sobre o encé-falo. Como médico dos gladiadores, ele provavelmente testemunhou as infeli-zes consequências de lesões cerebrais e da medula espinhal. Contudo, as opi-niões de Galeno acerca do encéfalo foram certamente mais influenciadas por suas muitas e cuidadosas dissecções de animais. A Figura 1.2 ilustra o encéfalo

FIGURA 1.1Evidência de cirurgia encefálica pré--histórica. Este crânio, de um homem datando de mais de 7 mil anos atrás, foi aberto para cirurgia enquanto ele ainda estava vivo. As setas indicam dois locais da trepanação. (Fonte: Alt et al., 1997, Fig. 1a.)

Visão superior

Cérebro Cerebelo

1 cm

Visão lateral

FIGURA 1.2O encéfalo de uma ovelha. Observe a localização e a aparência do cérebro e do cerebelo.

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PARTE I Fundamentos6

de uma ovelha, um dos objetos de estudo preferidos de Galeno. Duas partes principais são evidenciadas: o cérebro, na parte anterior, e o cerebelo, na parte posterior. (A estrutura do encéfalo é descrita no Capítulo 7.) Do mesmo modo pelo qual podemos deduzir a função a partir da estrutura das mãos e dos pés, Galeno tentou deduzir a função a partir da estrutura do cérebro e do cerebelo. Tocando o encéfalo recém-dissecado com o dedo, observa-se que o cerebelo é bastante duro, ao passo que o cérebro é bastante suave. A partir dessa observa-ção, Galeno sugeriu que o cérebro deve receber sensações, enquanto o cerebelo deve comandar os músculos. Por que ele propôs essa distinção? Ele entendia que, para memórias serem formadas, as sensações deveriam ser impressas no encéfalo. Naturalmente, isso deveria ocorrer no cérebro, por ser mais macio.

Independentemente de quão improvável esse raciocínio possa ser, as dedu-ções de Galeno não estavam tão longe da verdade. O cérebro está, de fato, bastante comprometido com as sensações e percepções, e o cerebelo é primariamente um centro de controle motor. Além do mais, o cérebro é um repositório da memória. Veremos que esse não é o único exemplo na história das neurociências em que a conclusão geral está correta, mas parte de um raciocínio errôneo.

Como o encéfalo recebe as sensações e movimenta os membros? Galeno abriu um encéfalo e observou que o seu interior era oco (Figura 1.3). Nesses espaços vazios, chamados de ventrículos (de modo similar às câmaras do coração), exis-tia um fluido. Para Galeno, essa descoberta ajustava-se perfeitamente à teoria de que o corpo funcionava de acordo com o equilíbrio entre quatro fluidos vitais, ou humores. As sensações eram registradas e os movimentos iniciados pelo movi-mento dos humores a partir dos – ou para os – ventrículos encefálicos, através dos nervos, o que se acreditava serem tubulações ocas, como os vasos sanguíneos.

A Visão do Encéfalo da Renascença ao Século XIXA visão de Galeno a respeito do encéfalo prevaleceu por quase 1.500 anos. Durante a Renascença, o grande anatomista Andreas Vesalius (1514-1564) adi-cionou mais detalhes à estrutura do encéfalo (Figura 1.4). Contudo, a teoria ventricular da função encefálica permaneceu essencialmente sem questiona-mentos. De fato, esse conceito foi reforçado no início do século XVII, quando inventores franceses construíram aparelhos mecânicos controlados hidraulica-mente. Esses aparelhos apoiavam a noção de que o encéfalo poderia ser seme-lhante a uma máquina em sua função: o fluido bombeado para fora dos ventrí-culos através dos nervos poderia literalmente “bombear” e causar o movimento dos membros. Afinal de contas, os músculos não “incham” quando se contraem?

Um grande defensor dessa “teoria da mecânica de fluidos” para o funcio-namento encefálico foi o matemático e filósofo francês René Descartes (1596--1650). Embora ele acreditasse que essa teoria poderia explicar o encéfalo e o

Ventrículos

FIGURA 1.3O encéfalo dissecado de uma ove-lha, mostrando os ventrículos.

FIGURA 1.4Ventrículos encefálicos de um ser huma-no desenhados na Renascença. Este de-senho foi extraído de De humani corporis fabrica, de Vesalius (1543). O indivíduo pro-vavelmente era um criminoso decapitado. Criação cuidadosamente desenvolvida para uma ilustração correta da anatomia dos ventrículos. (Fonte: Finger, 1994, Fig. 2.8.)

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 7

comportamento de outros animais, Descartes também pensava que ela não poderia explicar todo o espectro do comportamento humano. Ele considerava que, diferente de outros animais, as pessoas possuíam intelecto e uma alma dada por Deus. Assim, Descartes propôs que os mecanismos encefálicos con-trolariam apenas a parte do comportamento humano que é semelhante ao de outros animais. Capacidades mentais exclusivamente humanas existiriam fora do encéfalo, na “mente”*. Descartes acreditava que a mente era uma entidade espiritual que recebia sensações e comandava os movimentos, comunicando-se com a maquinaria do encéfalo por meio da glândula pineal (Figura 1.5). Hoje, algumas pessoas ainda acreditam que existe um “problema mente-cérebro”, e que de alguma maneira a mente humana é distinta do cérebro**. Contudo, como veremos na Parte III, as modernas pesquisas em neurociências apoiam uma conclusão diferente: a mente tem uma base física, que é o encéfalo.

Felizmente, durante os séculos XVII e XVIII, outros cientistas romperam com o foco tradicional dos ventrículos e começaram a examinar a substância encefálica mais cuidadosamente. Eles observaram, por exemplo, dois tipos de tecido encefálico: a substância cinzenta e a substância branca (Figura 1.6). Qual relação estrutura-função foi, então, proposta? A substância branca, que tinha continuidade com os nervos do corpo, foi corretamente indicada como con-tendo as fibras que levam e trazem a informação para a substância cinzenta.

No final do século XVIII, o sistema nervoso havia sido completamente dis-secado e sua anatomia geral descrita em detalhes. Reconheceu-se que o sistema nervoso tinha uma divisão central, consistindo no encéfalo e na medula espi-nhal, e uma divisão periférica, que consistia na rede de nervos que percorrem o corpo (Figura 1.7). Um importante avanço na neuroanatomia veio com a obser-vação de que o mesmo padrão geral de elevações (chamadas de giros) e depres-sões (chamadas de sulcos e fissuras) pode ser identificado na superfície do encé-falo de todos os indivíduos (Figura 1.8). Esse padrão, que permite a divisão do cérebro em lobos, conduziu à especulação de que diferentes funções poderiam estar localizadas nos diferentes giros do encéfalo. O cenário estava armado para a era da localização cerebral.

*N. de T. Esta posição é chamada de dualismo cartesiano.**N. de T. O “problema mente-corpo”, que os autores descartam de forma muito simplificada, é um tema relevante na filosofia atual, sendo estudado pela área conhecida como Filosofia da Mente. Se bem é verdade que grande parte do mistério em torno da natureza material da mente – consistindo principalmente em dificuldades de natureza linguística – já foi respondido pelo avanço da ciência (inclusive pelas chamadas Neurociências Cognitivas), alguns temas, como consciência, imaginação e pensamento abstrato/matemáti-co/lógico, continuam sendo de difícil “tradução” na forma de experimentos científicos palpáveis, e, por isso, nem sempre sua abordagem científica é feita com o devido rigor.

FIGURA 1.5O encéfalo, de acordo com Descartes. Este desenho apareceu em uma publicação de Descartes, em 1662. Esse autor acredita-va que nervos ocos originários dos olhos se projetavam para os ventrículos encefálicos. A mente influenciaria a resposta motora, con-trolando a glândula pineal (H), que trabalharia como uma válvula, controlando o movimento dos princípios vitais animais através dos ner-vos, que inflariam os músculos. (Fonte: Finger, 1994, Fig. 2.16.)

Substânciacinzenta

Substânciabranca

FIGURA 1.6Substância branca e substância cin-zenta. O encéfalo humano foi secciona-do para revelar os dois tipos de tecido.

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PARTE I Fundamentos8

A Visão do Sistema Nervoso no Século XIXRevisaremos como o sistema nervoso era compreendido no final do século XVIII:

• Lesão no encéfalo pode causar desorganização das sensações, dos movi-mentos e dos pensamentos, podendo levar à morte.

• O encéfalo se comunica com o corpo através dos nervos. • O encéfalo apresenta diferentes partes identificáveis e que provavelmente

executam diferentes funções. • O encéfalo opera como uma máquina e segue as leis da natureza.

Durante os cem anos que se seguiram, aprendemos mais sobre as funções do encéfalo do que foi aprendido em todos os períodos anteriores da história. Esse tra-balho propiciou a sólida fundamentação sobre a qual se baseiam as neurociências atuais. Agora, veremos quatro ideias-chave que surgiram durante o século XIX.

Cérebro

Cerebelo EncéfaloTroncoencefálico Sistema

nervosocentralMedula

espinhal

Sistemanervosoperiférico

FIGURA 1.7Subdivisão anatômica básica do sistema nervoso. O sis-tema nervoso consiste em duas divisões, o sistema nervoso central (SNC) e o sistema nervoso periférico (SNP). O SNC consiste no encéfalo e na medula espinhal. As três partes principais do encéfalo são: o cérebro, o cerebelo e o tronco encefálico. O SNP consiste em nervos e células nervosas que se situam fora do encéfalo e da medula espinhal.

Lobofrontal

Loboparietal

Sulcocentral

Fissurade Sylvius

Lobooccipital

Lobo temporal Cerebelo

FIGURA 1.8Os lobos do cérebro. Observe a pro-funda fissura de Sylvius, dividindo o lobo frontal do lobo temporal, e o sulco central, dividindo o lobo frontal do lobo parietal. O lobo occipital situa-se na parte posterior do cérebro. Essas mar-cas podem ser encontradas em todos os cérebros de seres humanos.

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 9

Nervos como Fios. Em 1751, Benjamin Franklin publicou um panfleto inti-tulado Experimentos e Observações em Eletricidade, que levou a uma nova com-preensão dos fenômenos elétricos. Na virada do século, o cientista italiano Luigi Galvani e o biólogo alemão Emil du Bois-Reymond haviam mostrado que os músculos podiam ser movimentados quando os nervos eram estimulados ele-tricamente, e que o próprio encéfalo podia gerar eletricidade. Essas descobertas finalmente derrubaram a noção de que os nervos se comunicam com o encéfalo pelo movimento de fluidos. O novo conceito era de que os nervos eram como “fios” que conduzem sinais elétricos do e para o encéfalo.

O problema não resolvido era se os sinais responsáveis pelo movimento nos músculos utilizavam os mesmos “fios” que registravam a sensação na pele. Uma comunicação bidirecional por meio dos fios era sugerida pela observação de que, quando um nervo do corpo é cortado, geralmente existe a perda simultâ-nea da sensibilidade e do movimento na região afetada. Entretanto, também se sabia que em cada nervo do corpo há muitos filamentos finos, ou fibras nervo-sas, cada um deles podendo servir como um “fio” individual, carregando infor-mação em diferentes sentidos.

Essa questão foi respondida por volta de 1810, por um médico escocês, Charles Bell, e um fisiologista francês, François Magendie. Um fato anatômico curioso é que, logo antes de se ligarem à medula espinhal, as fibras dividem-se em duas ramificações, ou raízes. A raiz dorsal entra na porção posterior da medula espi-nhal e a raiz ventral entra na medula mais anteriormente (Figura 1.9). Bell tes-tou a possibilidade de que essas duas raízes espinhais carregassem informações em diferentes sentidos, cortando cada raiz separadamente e observando as con-sequências em animais experimentais. Ele observou que, cortando somente as raízes ventrais, havia paralisia muscular. Posteriormente, Magendie demonstrou que as raízes dorsais levavam informações sensoriais para a medula espinhal. Bell e Magendie concluíram que, em cada nervo, existia uma mistura de muitos “fios”, alguns deles carregando informação para o encéfalo e para a medula espinhal, e

Medulaespinhal

Raízesdorsais

Raízes ventrais

Músculo PeleNervo

Fibrasnervosas(axônios)

Vértebra

FIGURA 1.9Nervos espinhais e raízes nervosas espinhais. Trinta e um pares de nervos deixam a medula espinhal para iner-var a pele e os músculos. A secção de um nervo espinhal promove a perda da sensação e dos movimentos na região afetada do corpo. As fibras sensoriais que chegam (em vermelho) e as fibras motoras que saem (em azul) se dividem em raízes espinhais nos pontos em que os nervos se ligam à medula espinhal. Bell e Magendie observaram que as raízes ventrais contêm somente fibras motoras, e as raízes dorsais contêm apenas fibras sensoriais.

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PARTE I Fundamentos10

outros levando informação para os músculos. Em cada fibra motora ou senso-rial, a transmissão se dava exclusivamente em um único sentido. Os dois tipos de fibras aparecem unidos na maior parte da extensão do feixe, mas estão anatomi-camente segregados quando entram ou saem da medula espinhal.

Localização de Funções Específicas em Diferentes Partes do Encé-falo. Se diferentes funções estão localizadas em diferentes raízes espinhais, então diferentes funções também poderiam estar localizadas em diferentes re giões do encéfalo. Em 1811, Bell propôs que a origem das fibras motoras era o cerebelo, e o destino das fibras sensoriais era o cérebro.

Como se poderia testar essa proposta? Uma maneira seria usar a mesma estra-tégia que Bell e Magendie utilizaram para identificar as funções das raízes espi-nhais: destruir essas partes do encéfalo e testar a ocorrência de déficits motores e sensoriais. Essa abordagem, na qual partes do encéfalo são sistematicamente destruídas para determinar sua função, é denominada método de ablação experi-mental. Em 1823, o estimado fisiologista francês Marie-Jean-Pierre Flourens uti-lizou esse método em diferentes animais (sobretudo em pássaros) para mostrar que o cerebelo realmente tem um papel na coordenação dos movimentos. Ele também concluiu que o cérebro estava envolvido na percepção sensorial, como Bell e Galeno já haviam sugerido. Diferentemente de seus antecessores, porém, Flourens apoiou suas conclusões em um sólido embasamento experimental.

E o que dizer a respeito das circunvoluções na superfície do encéfalo? Teriam elas também diferentes funções? Essa ideia era irresistível para um jovem estudante de medicina austríaco, chamado Franz Joseph Gall. Acreditando que as sa liên cias na superfície do crânio refletiam circunvoluções na superfície do encéfalo, Gall propôs, em 1809, que a propensão a certos traços de personalidade, como a gene-rosidade, a discrição ou a destrutividade, podia estar relacionada com as dimen-sões da cabeça (Figura 1.10). Para sustentar sua alegação, Gall e seus seguidores coletaram e mediram cuidadosamente o crânio de centenas de pessoas, represen-tando uma grande variedade de tipos de personalidades, desde os muito talento-sos até criminosos psicopatas. Essa nova “ciência”, que relacionava a estrutura da cabeça com traços de personalidade, foi chamada de frenologia. Embora as alega-ções dos frenologistas nunca tenham sido levadas a sério pela comunidade cien-tífica, eles realmente tomaram a imaginação popular da época. De fato, um livro--texto de frenologia, publicado em 1827, vendeu mais de 100 mil cópias.

Um dos críticos mais acirrados da frenologia foi Flourens, o mesmo homem que havia demonstrado experimentalmente que o cerebelo e o cérebro reali-zavam diferentes funções. Suas críticas eram bem fundamentadas. Para come-çar, o formato do crânio não se correlaciona com o formato do encéfalo. Além disso, Flourens realizou ablações experimentais, mostrando que determinados traços não estão isolados em porções do cérebro especificadas pela frenologia. Flourens também defendia, contudo, que todas as regiões do cérebro partici-pam igualmente de todas as funções cerebrais, uma conclusão que posterior-mente se mostrou errônea.

A pessoa a quem é geralmente atribuído o mérito de influenciar a opinião da comunidade científica em relação ao estabelecimento da localização das funções cerebrais foi o neurologista francês Paul Broca (Figura 1.11). Broca foi apresen-tado a um paciente que compreendia a linguagem, mas era incapaz de falar. Após a morte do paciente, em 1861, Broca examinou cuidadosamente o encéfalo deste e encontrou uma lesão no lobo frontal esquerdo (Figura 1.12). Com base nesse caso e em muitos outros casos semelhantes, Broca concluiu que essa região do cérebro humano era especificamente responsável pela produção da fala.

Experimentos consistentes realizados a seguir ofereceram suporte à ideia da localização das funções cerebrais em animais. Os fisiologistas alemães Gustav Fritsch e Eduard Hitzig mostraram, em 1870, que a aplicação de uma pequena

Naturez

ahu

mana

Com

para

ção

Ind.

Caus

alida

deBenevolência

Veneração Firmeza

Cor

Forma

Linguagem

Tamanho

OrdemCálculo

Peso

TempoLoca

lizaç

ão

Imitação

Idealismo Sublimidade

Espiritua-lidade

Consciência

Cons

trutiv

idade

Amor parental

Esperança

Percepçãode música

Amor

conju

gal

Com

bativ

idade

Autoestima

Amor

pela vida

Desejo sexual

Mem

ória

de e

vent

os

Coerência

Amab

ilidad

eGanância

Patriot

ismo

CautelaAlegria

Amizade

Fomee sede

Propensãopara destruir

Discrição

Vaidade

FIGURA 1.10Um mapa frenológico. De acordo com Gall e seus seguidores, diferen-tes traços do comportamento humano estariam relacionados com o tamanho de diferentes partes do crânio. (Fonte: Clarke e O’Malley, 1968, Fig. 118.)

FIGURA 1.11 Paul Broca (1824-1880). Estudan-do cuidadosamente o encéfalo de um homem que perdera a capacidade de falar depois de uma lesão cerebral (ver Figura 1.12), Broca convenceu--se de que diferentes funções podiam estar localizadas em diferentes partes do cérebro. (Fonte: Clarke e O’Malley, 1968, Fig. 121.)

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 11

corrente elétrica em uma região circunscrita da superfície cerebral exposta de um cão podia promover movimentos específicos. O neurologista escocês David Ferrier repetiu esse experimento com macacos. Em 1881, ele mostrou que a remoção dessa mesma região do cérebro causava paralisia muscular. Da mesma forma, o fisiologista alemão Hermann Munk, utilizando o método da ablação experimental, apresentou evidências de que o lobo occipital do cérebro estava envolvido especificamente na visão.

Como veremos na Parte II deste livro, hoje sabemos que existe uma clara divisão de trabalho no cérebro, com diferentes partes realizando funções bem distintas. O mapa atual da divisão de funções cerebrais rivaliza mesmo com o mais elaborado dos mapas produzidos pelos frenologistas. A grande diferença é que, ao contrário dos frenologistas, os cientistas de hoje exigem evidências experimentais sólidas antes de atribuir uma função a uma porção do encéfalo. Ainda assim, Gall parece ter tido, em parte, uma ideia geral correta. É natu-ral nos questionarmos por que Flourens, o pioneiro da localização das fun-ções cerebrais, foi levado a crer que o cérebro agia como um todo e não podia ser subdividido. Esse talentoso experimentalista pode ter perdido a ocasião de observar a localização cerebral por muitas diferentes razões, mas parece claro que uma das razões era seu desdenho visceral por Gall e pela frenologia. Ele não podia concordar nem remotamente com Gall, a quem considerava um lunático. Isso nos recorda que a ciência, para o melhor ou para o pior, era e ainda é um tema sujeito tanto aos dons quanto às fraquezas da natureza humana.

A Evolução do Sistema Nervoso. Em 1859, o biólogo inglês Charles Darwin (Figura 1.13) publicou A Origem das Espécies. Esse trabalho seminal articula uma teoria da evolução: cada espécie de organismo evoluiu de um ancestral comum. De acordo com essa teoria, as diferenças entre espécies surgem por um processo que Darwin denominou seleção natural. Como resultado do meca-nismo de reprodução, os traços físicos dos filhos algumas vezes são diferentes dos traços de seus pais. Se esses traços assegurarem uma vantagem para a sobre-vivência, a própria prole apresentará maior probabilidade de sobreviver e repro-duzir, assim aumentando as chances de que os traços vantajosos sejam passa-dos para as próximas gerações. Ao longo de várias gerações, esse processo levou ao desenvolvimento de traços que distinguem as espécies hoje: nadadeiras nas focas, patas nos cães, mãos nos guaxinins, e assim por diante. Essa simples com-preensão revolucionou a biologia. Hoje, evidências científicas em muitos cam-pos, da antropologia à genética molecular, apoiam de forma esmagadora a teo-ria da evolução pela seleção natural.

Darwin incluiu o comportamento entre os traços herdados que poderiam evoluir. Por exemplo, ele observou que muitas espécies de mamíferos apresen-tam as mesmas reações quando amedrontadas: aumento das pupilas dos olhos, aumento dos batimentos cardíacos, piloereção. Isso é verdadeiro para o ser humano assim como para o cão. Para Darwin, as similaridades nesse padrão de resposta indicavam que essas diferentes espécies evoluíram de um ancestral comum, que possuía o mesmo traço de comportamento, o qual era vantajoso, presumivelmente porque facilitava a fuga de predadores. Como o comporta-mento reflete a atividade do sistema nervoso, podemos inferir que os mecanis-mos encefálicos que formam a base dessa reação de medo devem ser similares, se não idênticos, entre as espécies.

A ideia de que o sistema nervoso de diferentes espécies evoluiu de ances-trais comuns e que, portanto, pode apresentar mecanismos comuns é o racional para relacionar os resultados em experimentos em animais com os realizados em seres humanos. Por exemplo, muitos dos detalhes da condução do impulso elétrico ao longo de fibras nervosas foram descobertos primeiro na lula, mas hoje se sabe que se aplicam igualmente para seres humanos. Grande parte dos

Sulco central

FIGURA 1.12O encéfalo que convenceu Broca da localização de funções no cérebro. Esse é o encéfalo preservado de um paciente que perdeu a capacidade de falar antes de morrer, em 1861. A le-são que produziu esse déficit está in-dicada no círculo. (Fonte: Corsi, 1991, Fig. III, 4.)

FIGURA 1.13Charles Darwin (1809-1882). Darwin propôs a Teoria da Evolução, explican-do que as espécies evoluem por um processo de seleção natural. (Fonte: Arquivo Bettman.)

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PARTE I Fundamentos12

neurocientistas atuais usa modelos animais para examinar processos que eles querem compreender em seres humanos. Por exemplo, os ratos mostram claros sinais de dependência química se lhes for dada a chance de autoadministrarem cocaína repetidamente. Como consequência, ratos são excelentes modelos para estudos que visam compreender como as drogas psicoativas exercem seus efei-tos sobre o sistema nervoso.

Em contrapartida, muitos traços comportamentais são altamente especiali-zados para o ambiente (ou nicho) que uma espécie ocupa. Por exemplo, maca-cos que saltam de galho em galho têm um sentido de visão muito apurado, ao passo que ratos andando furtivamente em túneis subterrâneos têm uma visão fraca, mas um tato altamente desenvolvido por meio de suas vibrissas. Essas adaptações se refletem na estrutura e nas funções do encéfalo de cada espécie. Comparando as especializações dos encéfalos de diferentes espécies, os neuro-cientistas foram capazes de identificar quais partes do encéfalo eram responsá-veis pelas diferentes funções comportamentais. Exemplos em macacos e ratos são mostrados na Figura 1.14.O Neurônio: A Unidade Funcional Básica do Encéfalo. O refinamento do microscópio no início do século XIX proporcionou aos cientistas sua pri-meira oportunidade de examinar tecidos animais em magnificações maiores. Em 1839, o zoólogo alemão Theodor Schwann propôs aquilo que viria a ser conhecido como teoria celular: todos os tecidos são compostos por unidades microscópicas, denominadas células.

Embora as células no encéfalo tenham sido identificadas e descritas, na época ainda havia controvérsia e era discutido se a “célula nervosa” individual

(a)

(b)

7 cm

Encéfalo de macaco

Encéfalo de rato

3 cm

FIGURA 1.14Diferentes especializações encefálicas em macacos e ratos. (a) O encéfalo de um macaco rhesus possui um senso de visão bastante evoluído. A região no quadro em destaque recebe informações dos olhos. Quando essa região é seccionada e corada para que se possa visuali-zar o tecido metabolicamente ativo, um mosaico de “bolhas” aparece. Os neurônios dentro das bolhas são especializados para a análise de cores no mundo visual. (b) O encéfalo de um rato possui um senso tátil altamente evoluído na face. A região no quadro em destaque recebe in-formação das vibrissas. Quando essa região é seccionada e corada para mostrar a localização dos neurônios, um mosaico de “barris” aparece. Cada barril é especializado em receber sinais de uma única vibrissa na face do rato. (As fotomicrografias são cortesia do Dr. S.H.C. Hendry.)

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 13

era de fato a unidade básica para a função encefálica. As células nervosas comu-mente têm um determinado número de projeções ou processos finos, que se estendem a partir de um corpo celular central (Figura 1.15). Inicialmente, os cientistas não eram capazes de decidir se os processos de células diferentes se fundiam, como fazem os vasos sanguíneos no sistema circulatório. Se eles se fundissem, o termo “rede nervosa” de células neurais conectadas poderia repre-sentar a unidade elementar da função encefálica.

O Capítulo 2 apresenta uma breve história de como essa questão foi resol-vida. É suficiente dizer que, por volta de 1900, a célula nervosa individual, hoje chamada de neurônio, foi reconhecida como a unidade funcional básica do sis-tema nervoso.

AS NEUROCIÊNCIAS HOJE

A história moderna das neurociências ainda está sendo escrita, e suas desco-bertas, até aqui, formam a base deste livro. Serão discutidas as descobertas mais recentes nos próximos capítulos. Antes, porém, veremos como a pesquisa em neurociências é conduzida atualmente e a razão pela qual ela é tão importante para a sociedade.

Níveis de AnáliseA história demonstrou claramente que compreender como o encéfalo funciona é um grande desafio. Para reduzir a complexidade do problema, os neurocien-tistas o fragmentaram em pedaços menores para uma análise sistemática expe-rimental. Isso é denominado abordagem reducionista. O tamanho da unidade de estudo define aquilo que é frequentemente denominado nível de análise. Em ordem ascendente de complexidade, esses níveis são: molecular, celular, de sistemas, comportamental e cognitivo.Neurociências Moleculares. O encéfalo tem sido considerado a mais com-plexa porção de matéria no universo. A matéria encefálica consiste em uma fantástica variedade de moléculas, muitas das quais são exclusivas do sistema nervoso. Essas diferentes moléculas têm diferentes papéis, os quais são cruciais para a função do encéfalo: mensageiros que permitem aos neurônios comuni-carem-se uns com os outros, sentinelas que controlam quais materiais podem entrar ou sair dos neurônios, guias que direcionam o crescimento neuronal, arquivistas de experiências passadas. O estudo do encéfalo nesse nível mais ele-mentar é realizado pelas neurociências moleculares.Neurociências Celulares. O próximo nível de análise é constituído pelas neurociências celulares, que abordam o estudo de como todas essas moléculas trabalham em conjunto para conferir aos neurônios* suas propriedades espe-ciais. Entre as perguntas formuladas nesse nível temos: quantos diferentes tipos de neurônios existem e como eles diferem em suas funções? Como os neurônios influenciam outros neurônios? Como os neurônios se interconectam durante o desenvolvimento fetal? Como os neurônios realizam as suas computações?

Neurociências de Sistemas. Constelações de neurônios formam circuitos complexos que realizam uma função em comum, como a visão ou o movimento voluntário. Assim, podemos falar no “sistema visual” e no “sistema motor”, cada um possuindo seus próprios circuitos dentro do encéfalo. Nesse nível de aná-lise, chamado de neurociências de sistemas, os neurocientistas estudam como diferentes circuitos neurais analisam a informação sensorial, formam percep-ções do mundo externo, tomam decisões e executam movimentos.

*N. de T. E às células gliais, que, junto com os neurônios, são as duas principais classes celulares no encéfalo (ver Capítulo 2).

AS NEUROCIÊNCIAS HOJE

FIGURA 1.15Um desenho antigo de uma célu-la nervosa. Publicado em 1865, este desenho do anatomista alemão Otto Deiters mostra uma célula nervosa, ou neurônio, e suas muitas projeções, de-nominadas neuritos. Por um tempo, acreditou-se que os neuritos de diferen-tes neurônios podiam se fundir, como os vasos sanguíneos do sistema circulató-rio. Agora, sabemos que os neurônios são entidades distintas, que se comu-nicam utilizando sinais químicos e elé-tricos. (Fonte: Clarke e O’Malley, 1968, Fig. 16.)

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PARTE I Fundamentos14

Neurociências Comportamentais. Como os sistemas neurais trabalham juntos para produzir comportamentos integrados? Por exemplo, existem dife-rentes sistemas para executar diferentes formas de memória? Onde, no encé-falo, agem as drogas que alteram a mente e qual é a contribuição normal desses sistemas para a regulação do humor e do comportamento? Quais sistemas neu-rais são responsáveis pelos comportamentos específicos de cada gênero? Onde são criados os sonhos e o que eles revelam? Essas são questões estudadas pelas neurociências comportamentais.Neurociências Cognitivas. Talvez o maior desafio das neurociências seja a compreensão dos mecanismos neurais responsáveis pelos níveis mais elevados de atividade mental humana, como a consciência, a imaginação e a linguagem. Pesquisas nesse nível, chamadas de neurociências cognitivas, estudam como a atividade do encéfalo cria a mente.

Os Neurocientistas“Neurocientista” é uma designação que soa tão impressionante quanto “cientista espacial”. No entanto, todos nós, como você, já fomos estudantes um dia. Por algum motivo – talvez porque quiséssemos saber a razão pela qual nossa visão era fraca, ou porque algum familiar tenha perdido a fala após um acidente vascular encefálico (AVE) –, começamos a compartilhar de um desejo de saber como fun-ciona o encéfalo. Talvez você também venha a compartilhar conosco esse desejo.

Ser um neurocientista é muito gratificante, mas não é algo fácil de alcan-çar; são necessários muitos anos de treinamento. Pode-se começar ajudando a realizar pesquisas em um laboratório de pesquisa durante ou após a faculdade e, então, seguir para a pós-graduação e obter um título de mestre ou doutor (ou ambos). Em geral, isso é seguido por anos de pós-doutorado, nos quais se aprendem novas técnicas ou maneiras de pensar, sob a supervisão de um neuro-cientista estabelecido. Por fim, o “jovem” neurocientista está pronto para iniciar seu trabalho em uma universidade, instituto ou hospital.

De maneira geral, a pesquisa em neurociências (assim como os neurocientistas) pode ser dividida em três tipos: clínica, experimental* e teórica. A pesquisa clínica é principalmente conduzida por médicos. As principais especialidades médicas dedicadas ao sistema nervoso humano são: a neurologia, a psiquiatria, a neuro-cirurgia e a neuropatologia (Tabela 1.1). Muitos dos que conduzem as pesquisas clínicas continuam a tradição de Broca, tentando deduzir as funções das várias re giões do encéfalo a partir dos efeitos comportamentais de lesões. Outros condu-zem estudos para verificar os riscos e os benefícios de novos tipos de tratamento.

Apesar do óbvio valor da pesquisa clínica, os fundamentos de todos os tra-tamentos médicos do sistema nervoso foram, e continuam sendo, baseados nas

*N. de T. Respectivamente referindo-se às ciências aplicada (“clínica”) e básica (“experimental”).

TABELA 1.1 Especialidades Médicas Associadas ao Sistema Nervoso

Especialista Descrição

Neurologista Um médico treinado para diagnosticar e tratar de doenças do sistema nervoso

Psiquiatra Um médico treinado para diagnosticar e tratar transtornos do humor e do comportamento

Neurocirurgião Um médico treinado para realizar cirurgia em encéfalo e medula espinhal

Neuropatologista Um médico ou outro profi ssional treinado para reconhecer as alterações no tecido nervoso que resultam de patologias

Especialista Descrição

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 15

neurociências experimentais (ou básicas), as quais podem ser realizadas por médicos ou doutores em ciências, não necessariamente formados em medicina. As abordagens experimentais utilizadas para se estudar o encéfalo são tão amplas que incluem quase qualquer metodologia concebível. As neurociências são alta-mente interdisciplinares; expertise em uma determinada metodologia, contudo, pode diferenciar um neurocientista de outro. Desse modo, há neuroanatomistas, que usam microscópios sofisticados para traçar conexões no encéfalo; neurofisio-logistas, que utilizam eletrodos para avaliar a atividade elétrica no encéfalo; neu-rofarmacologistas, que utilizam fármacos para estudar a química da função ence-fálica; neurobiólogos moleculares, que sondam o material genético dos neurônios, buscando informações acerca da estrutura das moléculas no encéfalo; e assim por diante. A Tabela 1.2 lista alguns dos tipos de neurocientistas experimentais.

A neurociência teórica é uma disciplina relativamente jovem, na qual os pesquisadores utilizam ferramentas matemáticas e computacionais para com-preender o encéfalo em todos os níveis de análise. Na tradição da física, os neu-rocientistas teóricos tentam extrair um sentido das vastas quantidades de dados gerados pelos cientistas experimentalistas, com o objetivo de ajudar a focar os experimentos em questões de maior relevância e estabelecer os princípios mate-máticos da organização do sistema nervoso.

O Processo CientíficoNeurocientistas de todas as disciplinas se esforçam para estabelecer fatos a res-peito do sistema nervoso. Independentemente do nível de análise que esco-lham, eles trabalham de acordo com o método científico, que consiste em qua-tro etapas essenciais: observação, replicação, interpretação e verificação.Observação. As observações são geralmente realizadas durante experimen-tos desenhados para testar determinada hipótese. Bell, por exemplo, hipote-tizou que as raízes ventrais continham as fibras nervosas que controlavam os músculos. Para testar essa ideia, ele realizou o experimento no qual seccionou essas fibras e observou se resultava alguma paralisia muscular ou não. Outros tipos de observação derivam de um atento olhar ao mundo a nosso redor, ou da introspecção, ou de casos clínicos de seres humanos. Por exemplo, as observa-ções cuidadosas de Broca o levaram a correlacionar uma lesão no lobo frontal esquerdo com a perda da capacidade de falar.Replicação. Qualquer observação, seja experimental ou clínica, deve ser repli-cada. Replicação simplesmente quer dizer repetir o experimento em diferentes

TABELA 1.2 Tipos de Neurocientistas Experimentais

Tipo Descrição

Neurobiólogo do desenvolvimento

Analisa o desenvolvimento e a maturação do encéfalo

Neurobiólogo molecular

Usa o material genético dos neurônios para compreender a estrutura e a função das moléculas no encéfalo

Neuroanatomista Estuda a estrutura do sistema nervosoNeuroquímico Estuda a química do sistema nervosoNeuroetólogo Estuda as bases neurais de comportamentos animais

específi cos de cada espécie no seu hábitat naturalNeurofarmacologista Examina os efeitos de fármacos sobre o sistema nervosoNeurofi siologista Mede a atividade elétrica do sistema nervosoPsicobiólogo (Psicólogo

biológico, Psicólogo fi siológico)

Estuda as bases biológicas do comportamento

Psicofísico Avalia quantitativamente as capacidades de percepção

Tipo Descrição

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PARTE I Fundamentos16

indivíduos ou fazer observação similar em diferentes pacientes, tantas vezes quantas forem necessárias para se descartar a possibilidade de que o fato obser-vado tenha ocorrido apenas por acaso.Interpretação. Uma vez que o cientista acredite que a observação é correta, ele a interpreta. A interpretação depende do estado de conhecimento (ou ignorância) naquele momento histórico e das noções pré-concebidas que o cientista tenha. As interpretações, portanto, nem sempre resistem ao teste do tempo. Por exemplo, no momento em que fez sua observação, Flourens não sabia que o cérebro de um pássaro era fundamentalmente diferente do de um mamífero. Assim, ele concluiu erroneamente, a partir de ablações experimentais em pássaros, que não existia a localização de certas funções no cérebro de mamíferos. Além disso, como dis-semos antes, seu profundo desprezo por Gall certamente influenciou essa inter-pretação. A questão é que a interpretação correta frequentemente não é feita até muito tempo depois das observações originais. De fato, grandes avanços às vezes ocorrem quando antigas observações são reinterpretadas sob uma nova luz. Verificação. A última etapa do processo científico é a verificação. Essa etapa é distinta da replicação que o pesquisador original realizou. A verificação significa que a observação é suficientemente robusta para que qualquer cien-tista competente, ao seguir precisamente os protocolos do observador original, poderá reproduzi-la. Em geral, uma verificação bem-sucedida significa que a observação é aceita como fato. Entretanto, nem todas as observações podem ser verificadas, algumas vezes, devido a imprecisões no artigo original ou a uma replicação insuficiente. Contudo, geralmente insucessos na verificação se devem ao fato de que inúmeras variáveis adicionais, como a temperatura ou a hora do dia, contribuíram para o resultado original. Assim, o processo de veri-ficação, se afirmativo, estabelece novos fatos científicos e, se negativo, sugere novas interpretações para a observação original.

Ocasionalmente, lemos na imprensa leiga o relato de algum caso de “fraude científica”. Os pesquisadores precisam competir duramente por fundos de pes-quisa limitados e sofrem considerável pressão para “publicar ou morrer”. Por conveniência, uns poucos pesquisadores publicaram “observações” que, de fato, nunca foram feitas. Esses casos de fraude, porém, são raros, graças à própria natureza do método científico. Em pouco tempo, outros cientistas percebem que são incapazes de verificar a observação fraudulenta e questionam como ela pode ter sido feita. O fato de este livro ter sido preenchido com tanto conhe-cimento acerca do sistema nervoso testemunha o valor do processo científico.

O Uso de Animais na Pesquisa em NeurociênciasA maior parte do que sabemos sobre o sistema nervoso vem de experimen-tos realizados com animais. Na maioria dos casos, os animais são mortos para que o encéfalo possa ser examinado pela neuroanatomia, neurofisiologia e/ou neuroquímica. O fato de que os animais são sacrificados para o conhecimento humano levanta questões a respeito da ética da pesquisa com animais.Os Animais. Inicialmente, coloquemos o assunto em perspectiva histórica. Ao longo da história, os seres humanos consideraram os animais e os seus pro-dutos como fontes renováveis de recursos que podem ser utilizados para ali-mento, vestimenta, transporte, recreação, esporte e companhia. Os animais utilizados para pesquisa, educação e testes foram sempre uma pequena fração daqueles utilizados para outros propósitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de animais utilizados em todos os tipos de pesquisa biomédica é muito pequeno, se comparado ao número de animais mortos para servirem de ali-mento. O número usado especificamente para a pesquisa em neurociências, por sua vez, é muito menor.

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 17

Experimentos em neurociências são conduzidos utilizando várias espécies diferentes, desde caramujos até macacos. Em geral, a escolha da espécie é ditada pela questão sob investigação, o nível de análise e o grau em que o conheci-mento a ser gerado pode ser relacionado com seres humanos. Via de regra, quanto mais básico for o processo sob investigação, mais distante poderá ser o animal escolhido em sua relação evolutiva com seres humanos. Assim, experi-mentos que buscam compreender a base molecular da condução do impulso nervoso podem ser realizados em uma espécie tão distinta de nós quanto a lula. Por outro lado, compreender as bases neurais do movimento e dos distúrbios de percepção em seres humanos requer experimentos em espécies mais próximas de nós, como o macaco. Hoje, mais da metade dos animais utilizados para pes-quisa nas neurociências são roedores – ratos ou camundongos –, criados espe-cificamente para esse propósito.Bem-estar dos Animais. No mundo desenvolvido, a maioria dos adultos instruídos se preocupa com o bem-estar dos animais. Os neurocientistas com-partilham dessa preocupação e trabalham para garantir que os animais sejam bem tratados. A sociedade, contudo, nem sempre valorizou o bem-estar dos animais, como se reflete em algumas das práticas científicas do passado. Por exemplo, nos seus experimentos do início do século XIX, Magendie utilizou filhotes de cachorro sem anestesia (tendo sido posteriormente criticado por essa prática pelo seu rival científico, Bell). Felizmente, uma maior consciência da importância do bem-estar dos animais levou a melhorias significativas na maneira como são tratados os animais na pesquisa biomédica.

Hoje, os neurocientistas aceitam certas responsabilidades morais pelos ani-mais experimentais:1. Animais são utilizados somente para experimentos necessários, que possibi-

litem avanços no conhecimento do sistema nervoso.2. Todos os procedimentos necessários para minimizar a dor e o estresse expe-

rimentados pelo animal (uso de anestésicos, analgésicos, etc.) são realizados.3. Todas as possíveis alternativas ao uso de animais são consideradas.

O cumprimento desse código de ética é monitorado de diferentes manei-ras. Primeiro, as propostas de pesquisa devem passar previamente por um crivo realizado pelo Institutional Animal Care and Use Comitee (IACUC)*, o que é obrigatório por lei federal nos Estados Unidos**. Os membros dessa comissão incluem um veterinário, cientistas de outras disciplinas e representantes leigos da comunidade. Após passar pela revisão do IACUC, as propostas são avalia-das quanto ao mérito científico por um grupo de neurocientistas reconheci-dos. Esse passo garante que somente aqueles projetos que valham a pena sejam realizados. Então, quando os neurocientistas submetem suas observações para publicação em periódicos especializados, os artigos são cuidadosamente revisa-dos por outros neurocientistas para avaliação tanto do mérito científico quanto dos cuidados para com o bem-estar animal. Problemas com qualquer um des-ses itens podem levar à rejeição do trabalho, o que, por sua vez, pode acarretar a perda do financiamento para aquele projeto de pesquisa. Além desses proce-dimentos de monitoramento, leis federais estabelecem normas estritas para os cuidados e o acondicionamento de animais de laboratório.Direitos dos Animais. A maioria das pessoas aceita a necessidade da expe-rimentação em animais para o avanço do conhecimento, desde que seja reali-zada de maneira cuidadosa e com o devido respeito ao bem-estar animal. Entre-tanto, uma minoria ruidosa e bastante violenta quer a abolição total do uso de

*N. de T. No Brasil, Comissão de Ética no Uso de Animais de Experimentação (CEUA).**N. de T. No Brasil, a lei Arouca, de 8 de outubro de 2008, também estabelece essas mesmas obrigações.

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PARTE I Fundamentos18

animais para propósitos humanos, incluindo a experimentação. Essas pessoas apoiam uma posição filosófica, frequentemente denominada direitos animais. De acordo com esse modo de pensar, os animais têm os mesmos direitos legais e morais que os seres humanos.

Se você ama os animais, é possível que simpatize com esse ponto de vista. Considere, porém, as seguintes questões: você seria capaz de privar-se e à sua família de procedimentos médicos que foram desenvolvidos usando animais? A morte de um camundongo é equivalente à morte de um ser humano? Ter um animal de estimação seria a mesma coisa que a escravidão? Comer carne seria o equivalente moral do assassinato? Você acha que é eticamente incorreto matar um porco para salvar uma criança? Controlar a população de roedores nos esgotos ou de baratas em sua casa equivale moralmente ao Holocausto? Se a sua resposta é não para alguma destas questões, então você não se encaixa na filosofia dos direitos dos animais. Bem-estar animal – uma preocupação que todas as pessoas responsáveis compartilham – não deve ser confundido com “direitos dos animais”.

Ativistas dos direitos dos animais têm combatido intensamente a pesquisa com animais, algumas vezes com sucesso alarmante. Eles têm manipulado a opinião pública com repetidas alegações de crueldade nos experimentos com animais, que são distorcidas de forma grosseira ou simplesmente falsa. Vanda-lismo tem sido praticado em laboratórios, destruindo anos de dados científi-cos obtidos com muito trabalho e centenas de milhares de dólares em equipa-mentos (pagos pelos contribuintes). Com ameaças de violência, eles têm levado muitos pesquisadores a abandonar a ciência.

FIGURA 1.16Nossa dívida para com a pesquisa em animais. Este cartaz contra-argu-menta as propostas de ativistas dos direitos dos animais, conscientizando o público dos benefícios da pesqui-sa em animais. (Fonte: Foundation for Biomedical Research.)

Recentemente, uma técnica cirúrgica aperfeiçoada em animais foiutilizada para remover um tumor maligno do encéfalo de uma garotinha.

Perdemos alguns animais de laboratório. Contudo, veja o que nós salvamos.

São os animais que você não vê queajudaram esta menina a se recuperar.

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 19

Felizmente, isso está mudando. Graças ao esforço de um razoável número de pessoas, cientistas e não cientistas, essas falsas alegações dos extremistas têm sido expostas, e os benefícios para a humanidade das pesquisas com animais têm sido mostrados (Figura 1.16). Considerando-se o elevado custo, em termos de sofri-mento humano, resultante de distúrbios do sistema nervoso, os neurocientistas assumiram a posição de que é nossa responsabilidade usar, de maneira sábia, todos os recursos que a natureza proporciona, incluindo os animais, para obter o conhecimento de como o encéfalo funciona na saúde e na doença.

O Custo da Ignorância: Distúrbios do Sistema NervosoA moderna pesquisa em neurociências é cara, mas o custo da ignorância acerca do funcionamento do encéfalo é muito maior. A Tabela 1.3 lista alguns dos dis-túrbios que afetam o sistema nervoso. É provável que sua família tenha sofrido o impacto de uma ou mais dessas doenças. Analisaremos algumas delas, a fim de verificar seus efeitos sobre a sociedade.

A doença de Alzheimer e a doença de Parkinson são ambas caracteriza-das por degeneração progressiva de determinados neurônios no encéfalo. A doença de Parkinson, que resulta em um prejuízo incapacitante do movimento voluntário, afeta atualmente mais de 500 mil norte-americanos*. A doença de Alzheimer leva à demência, um estado de confusão caracterizado pela perda da capacidade de aprender novas informações e de recordar conhecimen-tos previamente adquiridos. Estima-se que a demência afete 18% das pessoas acima de 85 anos**. O número de norte-americanos com demência totaliza mais de 4 milhões. De fato, é reconhecido, hoje, que a demência não é um des-

*Dados do National Institute of Neurological Disorders and Stroke, Estados Unidos “Parkinson’s Disease Backgrounder”, 18 de outubro de 2004. **Dados do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, Agência Americana de Pes-quisa e Qualidade em Saúde Pública. “Aproximadamente 5% dos idosos relatam um ou mais distúrbios cognitivos.” Março de 2011.

TABELA 1.3 Alguns dos Principais Distúrbios do Sistema Nervoso

Doença Descrição

Doença de Alzheimer Doença degenerativa progressiva do encéfalo, caracterizada por demência e sempre fatal

Autismo Um distúrbio que surge no início da infância, caracterizado por prejuízos na comunicação e nas interações sociais e comportamentos restritivos e repetitivos

Paralisia cerebral Um distúrbio motor causado por lesão cerebral antes, durante ou logo após o nascimento

Depressão Grave transtorno do humor, caracterizado por insônia, perda do apetite e sentimento de abatimento

Epilepsia Condição caracterizada por distúrbios periódicos da atividade elétrica cerebral, que podem levar a convulsões, perda da consciência e distúrbios sensoriais

Esclerose múltipla Doença progressiva que afeta a condução nervosa, caracterizada por episódios de fraqueza, perda de coordenação e distúrbio da fala

Doença de Parkinson Doença progressiva do encéfalo que leva à difi culdade em iniciar movimentos voluntários

Esquizofrenia Grave transtorno psicótico, caracterizado por ilusões, alucinações e comportamento bizarro

Lesão espinhal Perda da sensibilidade e dos movimentos, devido a uma lesão traumática na medula espinhal

Acidente vascular encefálico

Perda da função encefálica, causada por interrupção do suprimento sanguíneo, geralmente levando a défi cit sensorial, motor ou cognitivo permanente

Doença Descrição

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PARTE I Fundamentos20

fecho inevitável do envelhecimento, como se acreditava anteriormente, mas um sinal de uma doença encefálica. A doença de Alzheimer progride sem piedade, roubando de suas vítimas primeiro suas mentes, depois o controle sobre as fun-ções básicas corporais e, por fim, suas vidas; a doença é sempre fatal. Nos Esta-dos Unidos, o custo anual para os cuidados de pessoas com demência é maior que 100 bilhões de dólares, e continua crescendo a uma velocidade alarmante.

A depressão e a esquizofrenia são transtornos do humor e do pensamento. A depressão é caracterizada por sentimentos esmagadores de derrota, baixa autoes-tima e culpa. Mais de 30 milhões de norte-americanos irão, em algum momento de suas vidas, experimentar um episódio de depressão maior. A depressão é a princi-pal causa de suicídio, com mais de 30 mil mortes a cada ano nos Estados Unidos*.

A esquizofrenia é um transtorno psicótico grave, caracterizado por delírios, alucinações e comportamento anormal. Em geral, a doença inicia no começo da vida produtiva – adolescência e começo da vida adulta –, podendo persistir por toda a vida. Mais de 2 milhões de norte-americanos sofrem de esquizofrenia. O Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH) estima que transtornos mentais, como a depressão e a esquizofrenia, custam aos Estados Unidos mais de 150 bilhões de dólares por ano.

O acidente vascular encefálico (AVE) é a quarta causa de morte nos Estados Unidos. As vítimas de AVE que não vão ao óbito, mais de meio milhão de pessoas a cada ano, têm grande probabilidade de ficarem permanentemente incapacita-das. O custo anual do AVE nos Estados Unidos é de 54 bilhões de dólares**.

A dependência de álcool ou de drogas afeta quase todas as famílias nos Estados Unidos. O custo, em termos de tratamento, perda de salários e outras consequências excedem os 600 bilhões de dólares por ano***.

Esses poucos exemplos ilustram apenas a superfície do problema. Mais norte-americanos são hospitalizados com distúrbios neurológicos e transtor-nos mentais do que com qualquer outro grupo importante de doenças, incluindo doenças cardíacas e câncer.

Os custos econômicos das disfunções encefálicas são enormes, mas perdem importância se comparados com o custo emocional que atinge as vítimas e suas famílias. A prevenção e o tratamento das doenças mentais requerem a compre-ensão da função normal do encéfalo, e esse conhecimento básico é o escopo das neurociências. A pesquisa em neurociências já contribuiu para o desenvol-vimento de tratamentos efetivamente melhores para a doença de Parkinson, para a depressão e para a esquizofrenia. Novas estratégias estão sendo testadas para se recuperar neurônios que estão morrendo em pacientes com a doença de Alzheimer e naqueles que sofreram AVE. Grande progresso tem sido alcan-çado na compreensão de como as drogas e o álcool afetam o encéfalo e como levam à dependência. O material deste livro demonstra que se sabe muito sobre a função do encéfalo. No entanto, o que sabemos é insignificante se comparado àquilo que ainda temos de aprender.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As fundações históricas das neurociências foram lançadas por muitas pessoas, ao longo de muitas gerações. Hoje, homens e mulheres estão trabalhando em todos os níveis de análise, utilizando todos os tipos de tecnologia para trazer alguma luz ao estudo do encéfalo. Os frutos desse trabalho formam a base deste livro.

*Dados do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos. “Suicide in the U.S.: Statistics and Pre-vention”, 27 de setembro de 2010.**Associação Americana do Coração. “Impact of Stroke (Stroke Statistics)”, 1 de maio de 2012.***Dados dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, Instituto Nacional de Abuso de Drogas, Estados Unidos. “DrugFacts: Understanding Drug Abuse and Addiction.” Março de 2011.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CAPÍTULO 1 Neurociências: Passado, Presente e Futuro 21

O objetivo das neurociências é compreender como o sistema nervoso fun-ciona. Muitas percepções importantes podem ser adquiridas a partir de um “ponto de vista” externo ao cérebro e à própria cabeça. Uma vez que a atividade cerebral se reflete no comportamento, registros comportamentais cuidadosos nos informam acerca das capacidades e limitações da função encefálica. Mode-los de computador que reproduzem as propriedades computacionais do encé-falo podem ajudar a compreender como essas propriedades se desenvolveram. Do escalpo, podemos medir ondas cerebrais que nos dizem algo a respeito da ati-vidade elétrica de diferentes partes do encéfalo durante diversos estados compor-tamentais. Novas técnicas computadorizadas de neuroimagem permitem aos pes-quisadores examinarem a estrutura do encéfalo vivo, dentro do crânio. Utilizando métodos ainda mais sofisticados de imagem, estamos começando a ver quais as diferentes regiões do encéfalo humano que se tornam ativas em diferentes condi-ções. Entretanto, nenhum desses métodos não invasivos, velhos ou novos, é capaz de substituir experimentos com o tecido cerebral vivo. Não podemos compreen-der sinais detectados de modo remoto se não formos capazes de saber como eles são gerados e o que significam. Para compreendermos como o encéfalo funciona, precisamos abrir a cabeça e examinar o que há ali dentro – do ponto de vista da neuroanatomia, da neurofisiologia e da neuroquímica.

O desenvolvimento atual das neurociências é verdadeiramente fascinante e gera grandes esperanças de que, em breve, tenhamos novos tratamentos para uma grande parte dos distúrbios do sistema nervoso, que debilitam e incapaci-tam milhões de pessoas todos os anos. Apesar dos progressos durante as últi-mas décadas e os séculos que as precederam, contudo, ainda existe um longo caminho a percorrer antes que possamos compreender completamente como o encéfalo realiza suas impressionantes façanhas. Isso, porém, é a parte divertida de ser um neurocientista: uma vez que nossa ignorância a respeito das funções do encéfalo é tão vasta, uma nova descoberta surpreendente nos espreita prati-camente a cada volta do caminho.

Q U E S T Õ E S P A R A R E V I S Ã O

1. O que são os ventrículos encefálicos e quais funções foram atribuídas a eles ao longo dos anos?2. Que experimento Bell realizou para demonstrar que os nervos do corpo contêm uma mistura de fibras sensoriais e motoras?3. Quais funções o experimento de Flourens sugeriu para o cérebro e o cerebelo?4. Qual o significado do termo modelo animal?5. Uma região do cérebro é chamada de área de Broca. Que função você acha que esta região realiza e por quê?6. Quais são os diferentes níveis de análise na pesquisa em neurociências? Quais questões os pesquisadores tentam responder

em cada um desses níveis?7. Quais são as etapas do método científico? Descreva cada uma delas.

L E I T U R A S A D I C I O N A I S

Allman JM. 1999. Evolving Brains. New York: Scientific American Library.

Clarke E, O’Malley C. 1968. The Human Brain and Spinal Cord, 2a ed. Los Angeles: University of California Press.

Corsi P, ed. 1991. The Enchanted Loom. New York: Oxford University Press.

Crick F. 1994. The Astonishing Hypothesis: The Scientific Search for the Soul. New York: Macmillan.

Finger S. 1994. Origins of Neuroscience. New York: Oxford University Press.

Glickstein M. 2014. Neuroscience: A Historical Introduction. Cambridge, MA: MIT Press.

Allman JM. 1999.

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