coelho, fabio ulhoa. para entender kelsen. saraiva, 4 ed, 2001

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  • Ano da Ia edio: 1995

  • F b i o U l h o a C o e l h o

    P r o f e s s o r d a P o n t i f c i a . U n i v e r s i d a d e C a t l i c a d e S o P a u l

    PARA E N T E N D E R K E L S E N

    P r l o g o d e T r c i o S a . aa.p a i o F e r r a z J r .

    i

    4 E D I O , R E V I S T A .

    2 0 0 1

    EditoraSaraiva

  • ISBN 85-02-03292-5

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Coelho, Fbio Ulhoa, 1959-Para entender Kelsen / Fbio Ulhoa Coelho; prlogo de Trcio Sampaio

    Ferraz Jr. 4. ed. rev. So Paulo : Saraiva, 2001.

    1. Direito - Filosofia 2. Direito - Teoria 3. Kelsen, Hans, 1881-1973 I. Ferraz Junior, Trcio Sampaio. II. Ttulo.

    01-2036 CDU-340.11

    ndices para catlogo sistemtico:1. Direito '. Teoria 340.112. Teoria geral do direito 340.11

    E ditora\ ^ J P SaraivaAvenida M arqus de So V icente , 1697 CEP 01139-904 Barra Funda So Paulo - SP Tel.: PABX (11) 3613-3000 Fax: (11) 3611-3308 Fone Vendas: (11) 3613-3344 Fax Vendas: (11) 3611-3268 E ndereo In te rn e t: h ttp ://w w w .e d ito ra s a ra iv a .c o m .b r

    Rliais

    AMAZONAS/RONDNIA/RORAIMA/ACRERua Costa Azevedo, 56 Centro Fone/Fax: (92) 6334227/6334782 ManausBAHIA/SERGIPERua Agripino Drea, 23 BrotasFone: (71)381-5854/381-5895Fax: (71) 381-0959 SalvadorBAURU/SO PAULORua Monsenhor Claro, 2-55/2-57 CentroFone: (14) 234-5643 Fax: (14) 234-7401BauruCEAR/PIAU/MARANHOAv. Flomeno Gomes, 670 Jacarecanga Fone: (85)238-2323/238-1384 Fax: (85) 238-1331 Fortaleza DISTRITO FEDERALSIG QD 3 BI. B - Loja 97 Setor Industrial Grfico Fone: (61) 344-2920/344-2951 Fax: (61) 344-1709 Braslia GOIAS/TOCANTINSAv. Independncia, 5330 Setor AeroportoFone: (62) 225-2882 / 212-2806Fax: (62) 224-3016 GoiniaMATO GROSSO DO SUL/MATO GROSSORua 14 de Julho, 3148 CentroFone: (67) 382-3682 Fax: (67) 382-0112Campo Grande

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  • Laufet, Brder, eure Bahn, Freudig, wie ein Held zum Siegen

    (,Schiller, em Beethoven)

    Para Teresa, Flvio e Fernando.

  • NDICE

    Prefcio............................................................................................. IXPrlogo: Por que ler Kelsen, hoje (Trcio Sampaio Ferraz Jr.) XIII

    CONCEITOS BSICOS1. Princpio metodolgico fundamental................................... 12. Sistema esttico e sistema dinm ico.................................... 33. Norma jurdica e proposio jurdica................................... 74. Norma hipottica fundamental.............................................. 105. Positivism o............................................................................... 16

    TEORIA DA NORMA JURDICA6. Estrutura da norma jurd ica................................................... 217. Validade e eficcia................................................................... 298. Sano ....................................................................................... 349. A questo das lacunas............................................................ 37

    10. A questo das antinomias....................................................... 41

    A CINCIA DO DIREITO11. Sentido subjetivo e sentido objetivo dos a tos...................... 4712. Classificao da cincia do direito ....................................... 4913. Princpio da imputao e princpio da causalidade............ 5214. Carter constitutivo da cincia do direito............................. 5415. Hermenutica kelseniana....................................................... 56

    KELSEN NA FILOSOFIA JURDICA16. Concluso........................................................................................... 63

    Bibliografia................................................................................................ 71

    VII

  • PREFCIO

    H dois Kelsens: o da primeira pgina do Teoria Pura do Direito, que todos conhecem, muitos leram e alguns adotam como lio definitiva para a cincia jurdica, e o do restante de sua obra, em que conduziu, com rigor inusual, s ltim as conseqncias o seu prim ado metodolgico. No segundo Kelsen, encontram-se afirmaes difceis de se sustentar, mas absolutamente compatveis com os fundamentos de sua teoria pura, como por exemplo a inexistncia de leis inconstitucionais ou decises ilegais, a efetividade como condio de validade, a multiplicidade de significados vlidos das normas jurdicas etc. A dissociao, assim, se explica pela aparente singularidade do ponto de partida do pensam ento kelseniano contraposto elevada complexidade de seu desenvolvimento.

    Kelsen, nascido em 1881 em Praga (Imprio Austro- hngaro) e falecido em Berkeley (Estados Unidos) em 1973, no autor de leitura fcil. detalhista, minucioso, repetitivo, extraordinariamente lgico. Acompanh- lo pelos diversos rinces da teoria do direito pressupe o gosto pelas elucubraes em nvel elevado de abstrao e alguma pacincia. A genialidade de seu pensamento, no entanto, justifica e gratifica o esforo de estud-lo detida e atenciosamente.

    IX

  • O pequeno e despretensioso livro que o leitor tem s mos visa auxiliar a leitura desse clssico da filosofia jurdica. No se prope a apresentao de toda a vastssima obra de Kelsen que mostra importantes incurses nos campos do direito internacional e constitucional, da teoria do estado e da tica , mas apenas a de sua contribuio ao desenvolvimento da epistemologia jurdica. Nesse captulo da filosofia do direito, situa-se a sua obra mais importante, Teoria Pura do Direito.

    Voltada criao de um mtodo cientfico para o conhecimento jurdico, a teoria pura se desenvolve principalmente nas trs verses do livro Reine Rechtslehre: a da primeira edio alem de 1934, publicada com o subttulo Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematik (introduo problemtica cientfica do direito), a da edio em francs, realizada na Sua em 1953, e a definitiva, da segunda edio alem, de 1960. Para a evoluo e o aprimoramento da teoria, foram tambm importantes o livro General Theory ofLaw and State, de 1945, e a sua obra pstuma Allgemeine Theorie der Normen (Teoria Geral das Normas), publicada em 1979 pelo Instituto Hans Kelsen, de Viena. Em relao a esta ltima, lembre-se que o exame de qualquer obra pstuma deve ser feito com cautelas prprias, pois nunca se pode ter certeza se o seu contedo corresponde formulao final do pensamento de quem a estava elaborando. Alm do mais, Kelsen sabidamente no queria decidir ele prprio se o seu ltimo trabalho mereceria ser publicado, transferindo a deciso para seu amigo e discpulo Rudolf Mtall.

    O texto do presente livro faz parte de um projeto mais ambicioso, ao qual no momento no tenho condies de me dedicar como gostaria. A sua publicao em separado

    x

  • sugesto de um livreiro, preocupado por no poder atender s solicitaes de muitos estudantes de graduao e ps-graduao, que lhe indagavam por uma obra de divulgao do pensamento de Kelsen.

    Desejo registrar o meu agradecimento ao Trcio Sampaio Ferraz Jr., por assentir na reproduo, como prlogo, de seu trabalho Por que ler Kelsen, hoje, publicado no suplemento Cultura, de O Estado de S. Paulo, de l 2 de novembro de 1981 (n. 73, pgs. 12/13), o que, sem dvida nenhuma, em muito enriquece o livro.

    imprescindvel que se registre, desde logo, que no sou kelseniano. Ao contrrio, tenho procurado desenvolver alguma reflexo jusfilosfica em direes diametralmente opostas de Kelsen. O compromisso com a seriedade acadmica, no entanto, deve ser maior que o compromisso terico que possa existir com uma ou outra vertente de pensamento. Se a proposta a de divulgar certo filsofo do direito, impe-se, por evidente, perseguir a maior fidelidade possvel s suas lies. Abstenho-me, pois, de externar a cada passo as crticas que teria a considerar, para, ao final e em grandes linhas somente, apresentar minha viso sobre a epistemologia kelseniana.

    julho de 1994

  • POR QUE LER KELSEN, HOJETrcio Sampaio Ferraz Jr.

    Hans Kelsen faleceu quando faria, em outubro de 1973, 92 anos. Jurista de extraordinrio valor, dele pode-se dizer que foi um divisor de guas para toda a teoria jurdica contempornea. Desde o aparecimento de sua primeira obra de repercusso Hauptprobleme der Staatsrechtslehre em 1911, Kelsen publicou um considervel nmero de trabalhos que, incluindo tradues e reimpresses, alcana mais de 620 ttulos. Por outro lado, os textos que versaram especificamente sua obra superam a cifra dos 1200.

    Terico do direito, filsofo e socilogo, terico do Estado, iniciador da lgica jurdica que tanto lhe deve, Kelsen teve, alm disso, uma vida cercada por experincias difceis que m arcaram de modo geral a in te lectualidade judaica, desde o incio deste sculo, na ustria e na Alemanha. Autor intelectual da Constituio republicana austraca, Kelsen foi juiz, durante 9 anos (1921- 1930), da Corte Constitucional da ustria. Tendo nascido em Praga, publicou sua mais famosa obra Teoria Pura do Direito em 1934, a qual conheceu grande sucesso, tendo sido traduzida em todas as lnguas modernas. Dela apareceu, em 1960, uma segunda edio bastante enriquecida e refundida.

  • Professor de extraordinrios mritos, o advento do nazismo obrigou-o a um exlio nos Estados Unidos, onde, na Universidade de Berkeley, permaneceu at a morte. Trabalhando mesmo nos ltimos anos de sua vida, dele apareceu, em 1979, uma obra pstuma, sob ttulo Allge- meine Theorie der Normen (Teoria Geral das Normas).

    Kelsen pertenceu, inicialmente, ao chamado Crculo de Viena que, no comeo do sculo XX, reunia intelectuais do porte de Camap, Wittgenstein, Schlick, Freud, e do qual ele foi o jurista. Sua, por ele mesmo denominada, teoria pura do direito logo conheceu grande respeito para alm das fronteiras austracas. Assim, por ocasio de seus 50 anos, uma obra contendo ensaios em sua homenagem j podia dar o testemunho da sua importncia em todo o mundo. Nesta coletnea, o coreano Tomoo Otaka exigia que a metodologia kelseniana devesse significar, no futuro (estvamos em 1931), a nica forma possvel de conhecimento autnomo do direito. E o japons Kisaburo Yokota o mencionava, ao lado de Stammler, como o mais significativo filsofo do direito da atualidade (Festschrift Hans Kelsen, Viena, 1931, pgs. 110 e 397). O espanhol Luis Legaz y Lacambra afirmava, no mesmo livro, que o pensamento jurdico do sculo XX teria de ser um permanente dilogo com Kelsen (pg. 173). E de fato, 32 anos depois, em Salzburg, num simpsio sobre O direito natural na teoria poltica, a disputa em tomo de suas idias ocuparia de forma preponderante os participantes.

    Embora tenha tido muitos adeptos e continuadores, como Robert Walter, na ustria, Norberto Bobbio, na Itlia, Ulrich Klug, na Alemanha, Roberto Jos Vemengo, na Argentina, Fuller, nos Estados Unidos, no faltaram aqueles que o cobriram de crticas. Alguns, mais veementes,

    XIV

  • como Voegelin, preocupados com o carter formalista de sua teoria, chegaram a dizer, no sem um certo sarcasmo, que Kelsen consideraria a substncia poltica do Estado como uma ordem do comportamento humano, em princpio de igual dignidade de uma sociedade de colecionadores de selo (Der autoritaere Staat, Viena, 1956, pg. 41).

    O grande objetivo da obra foi discutir e propor os princpios e mtodos da teoria jurdica. Suas preocupaes, neste sentido, se inseriam no contexto especfico dos debates metodolgicos oriundos do final do sculo XIX e que repercutiam intensamente no comeo do sculo XX. A presena avassaladora do positivismo jurdico de vrias tendncias, somada reao dos tericos da livre interpretao do direito, punha em questo a prpria autonomia da cincia jurdica. Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras cincias humanas, como a sociologia, a psicologia e at com princpios das cincias naturais. Para outros, a liberao da cincia jurdica deveria desembocar em critrios de livre valorao, no faltando os que recomendavam uma volta aos parmetros do direito natural. Nesta discusso, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir cincia jurdica um mtodo e um objeto prprios, capazes de superar as confuses metodolgicas e de dar ao jurista uma autonomia cientfica.

    Foi com este propsito que Kelsen props o que denominou princpio da pureza, segundo o qual mtodo e objeto da cincia jurdica deveriam ter, como premissa bsica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e no como fato social ou como valor transcendente). Isso valia tanto para o objeto quanto para o mtodo.

    x v

  • 1A reduo do objeto jurdico norma causou inme

    ras polmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimenses sociais e valo- rativas, de fazer do fenmeno jurdico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Sua inteno, no entanto, no foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenmeno complexo como o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonoma- mente ao jurista. Sua idia era a de que uma cincia que se ocupasse de tudo corria o risco de se perder em debates estreis e, pior, de no se impor conforme os critrios de rigor inerentes a qualquer pensamento que se pretendesse cientfico.

    A noo de norma de Kelsen tem como premissa a distino entre as categorias do ser e do dever ser, que ele vai buscar no neokantismo de sua poca. A conscincia humana, diz ele, ou v as coisas como elas so (a mesa redonda) ou como elas devem ser (a mesa deve ser redonda). Normas, nestes termos, so prescries de dever ser. Elas conferem ao comportamento humano um sentido, o sentido prescritivo. Assim, levantar o brao numa assemblia pode ter um sentido descritivo (fulano levantou o brao) ou um sentido prescritivo (levantar o brao deve ser entendido como voto a favor de uma proposta). Enquanto prescrio, a norma um comando, o produto de um ato de vontade, que probe, obriga ou permite um comportamento.

    Embora produzida por um ato de vontade, a norma no se confunde com ele nem tem sua existncia dele dependente. Mesmo porque o autor da norma j pode ter desaparecido, sem que o mesmo suceda com a norma. Sua existncia no um fato natural, como a vida do seu autor.

    XVI

  • Normas valem. Sua existncia especfica sua validade. Para que uma norma valha, a vontade do autor apenas uma condio, mas no a razo essencial. Esta se localiza na competncia normativa do autor, competncia esta conferida por outra norma e assim por diante. Deste modo, Kelsen torna a cincia jurdica uma cincia pura de normas, que as investiga como entidades a se, no seu encade- amento hierrquico. Cada norma vale no porque seja justa, ou porque seja eficaz a vontade que a institui, mas porque est ligada a normas superiores por laos de validade, numa srie finita que culmina numa norma fundamental.

    A teoria da norma fundamental de Kelsen sempre provocou muita celeuma. Ela constitui, para ele, o fundamento mesmo da ordem jurdica. Qualquer norma s ser considerada jurdica e legtima se for estabelecida em conformidade com as prescries contidas na norma fundamental. Assim, diz ele, o que distingue o comando de um assaltante que exige uma quantia em dinheiro do comando de um fiscal est na primeira norma de hierarquia. Fonte da jurisdicidade e da legitimidade (o fiscal s no assaltante porque tem competncia legal para exigir), a norma fundamental valorativamente neutra. Todo o universo normativo vale e legtimo em funo dela. Mas dela no se pode exigir que seja justa. Mesmo uma norma fundamental injusta valida e legitima o direito que dela decorre.

    Esta posio de Kelsen custou-lhe at mesmo a crtica no merecida de ter servido, ainda que indiretamente, ao regime nazista. Ele, que fugiu da Alemanha, com sua norma fundamental neutra era obrigado a reconhecer, como de fato o fez ao chegar para o exlio nos EUA, que o direito nazista, por injusto e imoral que o considerasse, ainda assim era direito vlido e legtimo.

    XVII

  • Kelsen, neste sentido, foi um ardoroso defensor da neutralidade cientfica aplicada cincia jurdica. Sempre insistiu na separao entre o ponto de vista jurdico e o moral e poltico. A cincia do direito no caberia fazer julgamentos morais nem avaliaes polticas sobre o direito vigente. Kelsen obviamente, no s por ser judeu, mas por suas posies ideolgicas em defesa da democracia, nunca foi nazista.

    A possibilidade de um juzo de valor sobre o direito vigente depende, para ele, de norma fundamental do ordenamento moral. Como positivista, no entanto, Kelsen sempre afirmou que mesmo esta norma moral ltima seria inevitavelmente uma prescrio relativa, do ponto de vista racional e cientfico. O que ele queria dizer que o estabelecimento de uma regra ltima absoluta, quanto ao seu contedo, era uma questo de f e no de cincia. Do ngulo da razo, o mximo que se pode estabelecer uma norma fundamental absoluta quanto sua forma.

    Neste ponto importante a distino por ele proposta entre norma fundamental no sentido da primeira norma posta (por exemplo, a constituio) e no sentido de primeira norma transcendental, como condio de possibilidade de um ordenamento (jurdico ou moral). Esta absoluta, pois sem ela impossvel pensar um complexo de normas como uma unidade vlida, por conseguinte, dizer se uma prescrio qualquer vale ou no. Mas essa norma no posta por nenhuma autoridade nem prescreve nenhum contedo especfico. Ela apenas obriga o pensador a tomar um contedo prescritivo posto, como o primeiro de uma srie. Ela , como diz Kelsen, um pressuposto formal da razo normativa.

    XVIII

  • Assim, satisfeita a exigncia de se tomar uma norma posta como a primeira, todas as normas seguintes sero vlidas desde que legalmente estabelecidas. A legitimidade delas e do sistema como um todo se reduz, portanto, legalidade. Cham-las de injustas consider-las do ponto de vista de outro sistema, crtica externa que no altera sua validade e legitimidade internas.

    Kelsen, contudo, no nos coloca totalmente merc de um arbtrio incontrolvel. Primeiro, porque no pode o pensador, sob o imprio do pressuposto formal referido, escolher qualquer norma posta como sendo a primeira. S aquela que for dotada de eficcia poder s-lo. Ou seja, a primeira norma posta, a constituio, por exemplo, h de ser posta por um poder eficaz ou no ser a primeira. Isto tem conseqncias para sua teoria da constituio, pois s ser considerada tal aquela que for dotada dos requisitos da efetividade poltica e social.

    Ademais, como o direito uma ordem, est excluda da escolha qualquer norma que instaure uma desordem, gerando incerteza e insegurana. Isto porque, instaurada a primeira norma, o primeiro legislador fica preso sua palavra e s decorrncias que ela provoca. Ele no mais dono do sistema e qualquer modificao subjetiva ou ser ilegtima ou significar uma nova norma primeira. No ltimo caso, se houver uma sucesso arbitrria de normas primeiras, o ordenamento perde sua validade ou se torna uma unidade descontnua, perdendo o carter de ordem. Ou seja, desapareceria o Estado. Isto porque, para Kelsen, do ponto de vista da cincia jurdica, direito e Estado se confundem. Direito um conjunto de normas, uma ordem coativa. As normas, pela sua estrutura, estabelecem sanes. Quando uma norma prescreve uma sano a um com-

    XIX

  • portamento, este comportamento ser considerado um delito. O seu oposto, o comportamento que evita a sano, ser um dever jurdico. Ora, o Estado, neste sentido, nada mais que o conjunto das normas que prescrevem sanes de uma forma organizada. Trata-se, pois, do complexo das normas que comandam punies e das que estabelecem as competncias respectivas. Sem esta ordem normativa, o Estado deixa de existir juridicamente falando. Um Estado que s fora, s poder, s violncia, ainda que eficaz, mas cujos comandos no constituem uma ordem, uma relao orgnica de normas sancionadoras e normas de competncia, no pode ser considerado como tal do ngulo da cincia jurdica.

    A obra de Kelsen ainda o mantm vivo. Suas implicaes para a cincia jurdica, para a lgica da norma, para a aplicao do direito so to fecundas que, por mais que o critiquemos, no deixam de desvendar novos ngulos, novos encaminhamentos.

    Seu sistema cerrado no est isento de objees. Estas, contudo, se postas seriamente, nos mostram como o seu pensamento capaz de nos empurrar para diante, evitando o parasitismo das concepes feitas. Ao contrrio do que se supe, seu esprito polmico nunca revelou um obstinado, tanto que, em diversas ocasies e at mesmo no fim da vida, no teve medo de enfrentar suas prprias convices, mudando-as quando as percebia insustentveis racionalmente.

    Seu compromisso com a verdade cientfica, o nico que no desmereceu nem quebrou, o levou todas as vezes que foi necessrio a rever posies. Isto no significava uma conscincia volvel. Ao contrrio, sempre se defen-

    como pde, desde que a plausibilidade do seu raciocnio no fosse destruda. Mas, foi tambm capaz, como sucedeu no referido simpsio de 1963, de reconhecer, num ponto nuclear de sua doutrina, que estava sendo obrigado a mudar seu pensamento a respeito da norma fundamental, aps inmeros anos de meditao e afirmao de uma mesma teoria. J passava, nesta poca, dos 80 anos. Pois sua obra pstuma veio a confirmar que no parou naquela frase, revendo, efetivamente, aspectos centrais do seu pensamento, dando at o fim o testemunho de uma vida dedicada cincia.

    Tdeu

    x xXXI

  • CONCEITOS BSICOS

    1. Princpio metodolgico fundamental

    A grande motivao da teoria pura do direito a de definir as condies para a construo de um conhecimento consistentemente cientfico do direito. , desse modo, um trabalho de epistemologia jurdica, a parte da filosofia do direito voltada exatamente para o estudo do conhecimento das normas jurdicas. A epistemologia no cuida diretamente do direito, nem da interpretao de ordens jurdicas determinadas, mas do meio pelo qual se conhecem essas realidades, ou seja, ela trata do processo de construo daquilo que no Brasil se conhece por doutrina e em outros pases se chama jurisprudncia.

    Kelsen est preocupado basicamente com o conhecimento do direito e os meios, cautelas e mtodos a serem utilizados para assegurar-lhe o estatuto cientfico. Suas lies so dirigidas especificamente aos doutrinadores, aos professores de matria jurdica. A atividade desenvolvida pelos profissionais do direito, como advogados, promotores, delegados, ou pelos rgos de aplicao do direito, como os juizes, legisladores ou administradores, absolutamente distinta da atividade de conhecer de modo cientfico o contedo de normas jurdicas. Somente interessa na medida em que ajuda a esclarecer, por contraposio, os contornos desta ltima. Nenhum juiz, assim como nenhum

  • advogado ou legislador, pode ser kelseniano ou no. Isso simplesmente no tem sentido. Somente aos doutrinadores se pode atribuir ou negar tal condio.

    O princpio fundamental do mtodo proposto, isto , a condio primeira para que a doutrina se tome cincia, diz respeito ao objeto do conhecimento. O cientista do direito deve-se ocupar exclusivamente da norma posta. Os fatores interferentes na produo da norma, bem como os valores que nela se encerram so rigorosamente estranhos ao objeto da cincia jurdica. Caberia sociologia, psicologia, tica ou teoria poltica o exame da conexo entre o direito e os fatos prprios ao objeto de cada uma dessas disciplinas. A teoria pura no nega a conexo, mas a sua importncia ou mesmo pertinncia no estudo do contedo da norma jurdica.

    Por outro lado, o conhecimento jurdico para ser cientfico deve ser neutro, no sentido de que no pode emitir qualquer juzo de valor acerca da opo adotada pelo rgo competente para a edio da norma jurdica (Kelsen, 1960: 305)'. doutrina no caberia discutir em que medida a lei ou a deciso judicial em foco atenderiam aos valores buscados pelo direito. No que haja, ou devesse haver, distanciamento entre a ordem jurdica positiva e a moral. Apenas a preocupao com tal relao refoge totalmente do mbito do conhecimento jurdico-cientfico.

    1. Um anarquista pode, como jurista, descrever um Direito positivo como um sistema de normas vlidas sem aprovar este Direito. Muitos tratados nos quais uma ordem jurdica capitalista descrita como um sistema de normas constitutivas de deveres, poderes, direitos e competncias foram escritos por juristas que politicamente desaprovam essa ordem jurdica.

    2

  • Em outros termos, o princpio metodolgico fundamental kelseniano afirma que o conhecimento da norma jurdica deve necessariamente prescindir daqueles outros relativos sua produo, bem como abstrair totalmente os valores envolvidos com a sua aplicao. Considerar esses aspectos pr-normativos e metanormativos implica obscu- recer o conhecimento da norma, comprometendo-se a cientificidade dos enunciados formulados acerca dela. Note-se que o estudo dos fatores interferentes na produo normativa e a considerao dos valores envolvidos com a norma no so apenas inteis, incuos, dispensveis. O cientista do direito deve ignorar tais matrias no porque seriam elas simplesmente irrelevantes para a definio do sentido e alcance das normas jurdicas em estudo. Mais que isso, deve faz-lo para no viciar a veracidade de suas afirmaes. A desconsiderao pela doutrina dos limites precisos de seu objeto (a norma posta) confere-lhe ou o carter de saber estranho realidade jurdica, ou o de mera aglutinao de proposies ideolgicas. A pureza da cincia do direito, portanto, decorre da estrita definio de seu objeto (corte epistemolgico) e de sua neutralidade (corte axiolgico).

    2. Sistema esttico e sistema dinmico

    O conhecimento jurdico pode considerar as normas integrantes de seu objeto a partir de duas perspectivas diferentes. Pode, por um lado, surpreender as normas jurdicas enquanto reguladoras da conduta humana. Nesse caso, opera a partir de uma teoria esttica do direito, procurando relacionar as normas entre si como elementos da ordem em vigor. Mas pode, por outro lado, surpreend-las no pro-

  • cesso de sua produo e aplicao, hiptese em que opera a partir de uma teoria dinmica. Bem entendida, essa segunda perspectiva tambm cuida exclusivamente de normas jurdicas, mas daquelas que regulam o processo de produo normativa. A teoria dinmica no ultrapassa, certamente, os limites traados pelo princpio metodolgico fundamental e, assim, no se deve entender produo normativa seno em seu sentido propriamente normativo.

    Os temas abordados pela teoria esttica do direito so, nesse contexto, a sano, o ilcito, o dever, a responsabilidade, direitos subjetivos, capacidade, pessoa jurdica etc.; e os compreendidos na teoria dinmica do direito so a validade, a unidade lgica da ordem jurdica, o fundamento ltimo do direito, as lacunas etc.

    Paralelamente, Kelsen distingue duas possibilidades de organizao de sistema de normas: relacionando-as a partir de seus contedos ou a partir das regras de competncia e as demais reguladoras da sua produo. No primeiro caso d-se origem a um sistema esttico e no segundo, a um sistema dinmico. O exemplo para demonstrar essas alternativas, Kelsen o buscou entre as normas no jurdicas (Kelsen, 1960: 269/271)2. Para facilitar a com-

    2. Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo esttico e um tipo dinmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivduos por elas determinada considerada como devida (devendo ser) por fora do seu contedo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo contedo pode ser subsumido o contedo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: no devemos mentir, no devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, no devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade.

    4

  • preenso da formulao kelseniana, adote-se aqui um exemplo pautado em normas jurdicas, ficando desde j ressalvado, no entanto, que Kelsen considera o sistema jurdico essencialmente dinmico (Kelsen, 1960: 273)3.

    Imagine-se um cidado comparecendo repartio competente da Prefeitura, para conhecer o resultado de seu pedido de licena para construir. Digamos, ento, que o despacho decisrio haja indeferido a solicitao, porque o projeto exigido pelo regulamento municipal desobedeceu o recuo obrigatrio. Tomando cincia da deciso, o muncipe, ao indagar da validade da negativa, poderia receber duas respostas diferentes.

    Inicialmente, o indeferimento poderia ser sustentado com a referncia ao texto do Cdigo de Edificaes do Municpio, que fixa as distncias mnimas de recuo. O muncipe poderia questionar a validade dessa norma jurdica. Para sustent-la, ser-lhe-ia exibida a Lei Orgnica do Municpio, com a previso de elaborao do Cdigo de Edificaes, dispondo acerca das posturas edilcias a serem

    (...) O tipo dinmico caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta no ter por contedo seno a instituio de um fato produtor de normas, a atribuio de poder a uma autoridade legisladora ou o que significa o mesmo uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. Um exemplo aclarar este ponto. Um pai ordena ao filho que v a escola. pergunta do filho: por que devo eu ir escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer s ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer s ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obedincia aos pais e ns devemos obedecer s ordens de Deus.

    3. O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurdica tem essencialmente um carter dinmico.

  • respeitadas naquela cidade. Se o muncipe continuasse seu questionamento, indagando agora sobre a validade da Lei Orgnica, a resposta apontaria para a Constituio da Repblica, no dispositivo relativo organizao municipal. Note-se que, nessa primeira forma de sistemati- zao das normas jurdicas, estas se ligam, umas s outras, pelo respectivo contedo. A disposio normativa hierarquicamente superior traz referncia norma de escalo inferior, fundando-se, indiretamente, o despacho denegatrio do pedido de licena de construo na prpria Constituio Federal.

    Poderia, contudo, ser apresentada ao muncipe outra cadeia de sustentao do despacho denegatrio, a partir de referncias s normas de competncia. Nesse sentido, ser-lhe-ia mostrado decreto do Prefeito atribuindo ao chefe daquela repartio a competncia para indeferir pedidos de licena de construo. Posta em questo a competncia do Prefeito para baixar o decreto, ser-lhe-ia apontada a Lei Orgnica, elaborada pela Cmara dos Vereadores, a atribuir ao Chefe do Executivo poderes para organizao dos servios administrativos. Se o muncipe questionar sobre quem teria outorgado poderes aos Vereadores para a elaborao da Carta Municipal, a resposta indicaria os Constituintes que votaram a Constituio Federal, que vem sendo globalmente cumprida. Essa segunda maneira de sistematizao das normas jurdicas liga-as no pelo seu contedo, totalmente abstrado, mas apenas pela trama de competncia. A validade do ato praticado pelo chefe da repartio fundada na obedincia geral aos Constituintes.

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  • 3. Norma jurdica e proposio jurdica

    Uma das distines mais importantes da teoria kel- seniana diz respeito norma jurdica (Rechtsnorm), de um lado, e proposio jurdica (Rechtssatz), de outro. A distino, amadurecida progressivamente, no existia nos primeiros escritos sobre a teoria pura do direito, em que Kelsen se vale indistintamente de ambos os conceitos (p. ex. 1934: passim), e comea a ser formulada no General Theory o f Law and State (1945: 45)4, mesmo assim com algumas imprecises, que foram eliminadas apenas na verso de 1960 do Teoria Pura do Direito.

    Com tais categorias (norma jurdica e proposio ju rdica), pretendeu-se acentuar a diferena entre a atividade de aplicao do direito e a desenvolvida pelo cientista jurdico. A doutrina um conjunto de proposies descritivas de normas. Quando a autoridade com competncia para editar normas jurdicas (gerais, como a lei; ou individuais, como a sentena judicial) formula a sua prescrio, no sentido de que uma determinada conseqncia deve ocorrer em certa situao, ela externa um enunciado. De outro passo, quando o doutrinador interpreta a norma e

    4. It is the task o f the Science o f law to represent the law o f a community, i.e. the material produced by the legal authority in the lawmaking procedure, in the form o f statements to the effect that i f such and such conditions are fulfilled, then a sanction shallfollow . These statements, by means o f which the science o f law represents law, must not be confused with the norms created by the lawmaking authorities. It is preferable not do call these statements norms, but legal rules. The legal norms enacted by the law creating authorities are prescriptive; the rules of law formulated by the science o f law are descriptive. It is o f importance that the term legal rule or rule o f law be employed here in a descriptive sense.

  • procura examin-la, sob vrios ngulos, com vistas a fixar os seus contornos, ele tambm externa um enunciado.

    Tanto na primeira como na segunda hiptese, o enunciado afirma que algo deve ser. A norma jurdica prescreve a sano que se deve aplicar contra os agentes de condutas ilcitas. A proposio jurdica, juzo hipottico, afirma que, dada a conduta descrita na lei, deve ser aplicada a sano tambm estipulada na lei. A forma de exteriorizao do enunciado, entretanto, no essencial; o que importa, realmente, o seu sentido. A norma jurdica, editada pela autoridade, tem carter prescritivo, enquanto a proposio jurdica, emanada da doutrina, tem natureza descritiva. Aquela resulta de ato de vontade (a autoridade com competncia quer as coisas de um certo modo) e esta ltima decorre de ato de conhecimento ( verdade que a autoridade com competncia quer as coisas de um certo modo).

    A proposio jurdica descreve uma norma jurdica. Assim, em 1940, ao editar o Cdigo Penal, o legislador enunciou que o homicdio deve ser punido com recluso de seis a vinte anos (art. 121). Desde ento, em cada aula de direito penal sobre os crimes contra a vida, professores tm enunciado que o homicdio deve ser punido com recluso de seis a vinte anos. O primeiro enunciado prescreve condutas, deriva do exerccio da competncia legislativa por quem a titulariza. O outro se limita a descrever o art. 121 do Cdigo Penal, no contexto do conhecimento da ordem jurdica em vigor no Brasil. Aquele norma jurdica e este a proposio correspondente.

    As normas, como derivaes de ato de vontade, no so verdadeiras ou falsas, mas vlidas ou invlidas. Assim como os fatos com os quais se ocupa a cincia natural no

  • so, no podem ser, verdadeiros ou falsos em si, mas apenas existentes ou no. O que pode ter o atributo da veracidade ou da falsidade so as assertivas da cincia natural sobre tais fatos. As proposies jurdicas, como juzo hipottico, so verdadeiras, se descrevem fielmente a norma em foco, ou falsas, na hiptese contrria. Se o dou- trinador processualista assenta em sua obra que o prazo para a resposta do ru, no rito ordinrio das aes cveis, de quinze dias, ele exterioriza uma proposio verdadeira, porque reproduz com exatido o prescrito na lei (CPC, art. 297). Mas se o professor de direito tributrio afirma que a Unio no tem competncia para instituir tributo sobre a renda, essa proposio falsa, porque no descreve com fidelidade a norma jurdica correspondente (CF, art. 153, III).

    Por fim, assente-se que a distino mais relevante entre normas e proposies concerne organizao lgica do sistema jurdico. Para Kelsen, o conjunto de normas jurdicas, a ordem em vigor, no tem lgica interna. As autoridades simplesmente baixam atos de vontade, no exerccio de suas competncias jurdicas. Alis, como as normas podem ser unicamente vlidas ou invlidas, no havendo sentido atribuir-lhes ou negar-lhes funo de verdade, e, por outro lado, a lgica se cinge s inferncias entre enunciados verdadeiros ou falsos, ento no cabe submeter as relaes entre normas de uma mesma ordem jurdica aos preceitos lgicos. Apenas indiretamente, isto , atravs das proposies jurdicas que as descrevem, ser admissvel investigar a logicidade das relaes internormativas. Em outros termos, se entre a proposio jurdica descritiva da norma A e a descritiva da norma B se estabelece contradio, ento essas normas no po

  • dem ser sim ultaneam ente afirm adas como vlidas (Kelsen, 1960: 115/116)5.

    O entendimento acerca da formao do sistema jurdico, de congruncia lgica, unicamente por meio das proposies jurdicas guarda ntima relao com a natureza constitutiva do conhecimento (item 14).

    4. Norma hipottica fundamental

    Positivistas como Kelsen costumam enfrentar a discusso sobre o fundamento de validade do direito procurando abstrair os aspectos polticos, morais, econmicos e histricos envolvidos com o tema. Chegam, assim, a resultados mais ou menos elaborados, mas que essencialmente apenas afirmam que o direito deve ser obedecido porque ele obedecido (Ferraz Jr., 1978: 129)6. A norma

    5. Dado que as normas jurdicas como prescries, isto , enquanto comandos, permisses, atribuies de competncia, no podem ser verdadeiras nem falsas, pe-se a questo de saber como que os princpios lgicos, particularmente o princpio da no-contradio e as regras da concludncia do raciocnio, podem ser aplicados relao entre normas (como desde sempre tem feito a Teoria Pura do Direito) quando, segundo a concepo tradicional, estes princpios apenas so aplicveis a proposies ou enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos. A resposta a esta questo a seguinte: os princpios lgicos podem ser, se no direta, indiretamente, aplicados s normas jurdicas, na medida em que podem ser aplicados s proposies jurdicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser verdadeiras ou falsas. Duas normas jurdicas contradizem-se e no podem, por isso, ser afirmadas simultaneamente como vlidas quando as proposies jurdicas que as descrevem se contradizem; e uma norma jurdica pode ser deduzida de uma outra quando as proposies jurdicas que as descrevem podem entrar num silogism o lgico.

    6. ... se, para Kelsen, uma norma vlida (obrigatria), significa que os indivduos devem comportar-se como a norma estipula, e se a norma

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  • hipottica fundamental a categoria kelseniana criada para solucionar a questo do fundamento ltimo de validade das normas jurdicas (Kelsen, 1960: 304)7.

    Anteriormente, ao se descrever o sistema dinmico de ordens normativas (item 2), considerou-se o exemplo da negativa de licena de construir, proferida pelo chefe de uma repartio da Prefeitura. Fundamentou-se a validade dessa deciso, em ltima anlise, nos poderes constitucionais de que estavam investidos os elaboradores da Constituio Federal. Pois bem, o questionamento de validade poderia claramente ter prosseguimento, no sentido de se indagar pelo fundamento de validade da norma que atribura poderes constituintes aos parlamentares que votaram a Carta em questo.

    Prosseguir-se, no entanto, nesse questionamento significa no alcanar nenhum resultado sensato, pois a competncia para editar normas jurdicas sempre decorre de outra norma, e esta, por sua vez, somente pode ter sido editada por uma autoridade competente. Estamos diante de uma regresso ao infinito, sem sentido racional. Para enclausurar o sistema jurdico, solucionando a questo em

    mesma, pelo seu contedo imediato, expressa o que os indivduos devem fazer, camos, ento, numa curiosa redundncia, segundo a qual, os indivduos devem fazer o que devem fazerl Esta redundncia esconde uma forma de jusnaturalismo, pois significa que a norma no apenas manda que os indivduos se comportem de determinado modo, mas que objetivamente, verdadeiramente devem comportar-se deste modo.

    7. A nenhuma ordem jurdica pode recusar-se a validade por causa do contedo das suas normas. E este um elemento essencial do positivismo jurdico. Precisamente na sua teoria da norma fundamental se revela a Teoria Pura do Direito como teoria jurdica positivista.

  • aberto, Kelsen lana mo de uma norma que deve sustentar o fundamento de validade da ordem jurdica como um todo, mas que necessariamente no tenha sido editada por nenhum ato de autoridade. Uma norma no posta, mas suposta.

    A cincia do direito, para descrever o seu objeto, deve indagar sobre o fundamento de validade das normas integrantes da ordem jurdica em estudo. Ao indagar, contudo, sobre a validade da Constituio a norma jurdica de que decorre a validade das demais , ela deve forosamente pressupor a existncia de uma norma fundamental, que imponha a observncia da mesma Constituio e das normas jurdicas por ela fundamentadas. Ainda que inconscientemente, todo o cientista do direito formula essa pressuposio ao se debruar sobre o seu objeto de conhecimento. A norma fundamental, portanto, no positiva, mas hipottica e prescreve a obedincia aos editores da primeira constituio histrica.

    Para compreend-la, examine-se a seguinte situao. Um comerciante, estabelecido prximo a favela controlada por traficantes, numa cidade brasileira qualquer, procurado por duas pessoas que lhe exigem o pagamento compulsrio de determinada quantia. A primeira representa o crime organizado e ameaa de morte o comerciante e sua famlia, caso a exigncia no seja atendida. A segunda agente fiscal do Tesouro, que lavra o auto de infrao pelo no-recolhimento de tributo devido ao estado.

    Essencialmente, as ordens recebidas, tanto do representante dos traficantes quanto do agente fiscal, so idnticas: exigem ambas o pagamento de uma soma de dinheiro. H, porm, significativa diferena entre elas, pois a ordem do representante do trfico organizado invlida e a

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  • do funcionrio pblico, vlida. A afirmao dessa diferena se baseia na circunstncia de que o mandado pelo representante do crime organizado no se consegue sustentar, sequer indiretamente, na norma hipottica fundamental, ao passo que a ordem dada pelo agente fiscal liga- se, atravs de um complexo de normas atributivas de competncia, a essa mesma norma. Assim, se o comerciante interpela a primeira pessoa sobre o fundamento de validade de sua determinao, , no mximo, reportado vontade do comando central dos traficantes, que no se funda, validamente, em nenhuma outra norma, posta ou pressuposta.

    Mas, se o comerciante questiona o agente fiscal sobre a validade do auto de infrao, reportado imediatamente lei instituidora do tributo e das sanes pelo inadimple- mento. Indagando se os editores da lei tinham poderes para baix-la, ser-lhe-ia apontada a Constituio Federal, no captulo referente distribuio da competncia tributria. Continuando o questionamento e se dirigindo agora competncia dos constituintes que aprovaram a Carta de 1988, a resposta indicaria a Emenda Constitucional n. 26, de 1985, feita Constituio de 1967, pela qual se convocou a Assemblia Nacional Constituinte.

    O comerciante, ento, poderia perquirir acerca da competncia do Congresso de 1985 para emendar a Constituio ento vigente. Apontar-se-lhe-ia o disposto no captulo sobre o processo legislativo, atinente ao poder constituinte derivado, a permitir a emenda ao texto constitucional. Como a nossa Constituio em 1985, na verdade, era a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, promulgada por uma junta militar, o questionamento diria respeito, a rigor, ao fundamento de validade dos poderes dos integrantes

  • dessa junta, para atribuir competncia aos congressistas de emendar a Constituio.

    Ora, os ministros da marinha de guerra, do exrcito e da aeronutica, ao promulgarem a Emenda n. 1, invocaram a competncia estabelecida pelo Ato Institucional n. 5, que centralizava no Executivo todos os poderes legislativos, inclusive os de emenda da Constituio, sempre que decretado o recesso do Congresso Nacional. Em ltima instncia, portanto, receberam competncia dos editores desse Ato. O questionamento no poderia prosseguir. No se encontra, com efeito, na ordem jurdica brasileira, nenhuma norma outorgando poderes para o Presidente da Repblica baixar o Ato Institucional n. 5, em 1968. Tal Ato deve ser considerado, por conseguinte, a primeira constituio histrica brasileira, de que decorre a validade das normas jurdicas em vigor ainda hoje.

    A norma hipottica fundamental prescreve a obedincia aos primeiros constituintes histricos (Kelsen, 1960:11f .

    8. Tratando-se de uma Constituio que historicamente a primeira, tal s possvel se pressupusermos que os indivduos se devam conduzir de acordo com o sentido subjetivo deste ato, que devam ser executados atos de coero sob os pressupostos fixados e pela forma estabelecida nas normas que caracterizamos como Constituio, quer dizer, desde que pressuponhamos uma norma por fora da qual o ato a interpretar como ato constituinte seja de considerar como um ato criador de normas objetivamente vlidas e os indivduos que ponham este ato como autoridade constitucional. Esta norma (...) a norma fundamental de uma ordem jurdica estatal. Esta no uma norma posta atravs de um ato jurdico positivo, mas como o revela uma anlise dos nossos juzos jurdicos uma norma pressuposta, pressuposta sempre que o ato em questo seja de entender como ato constituinte, como ato criador da Constituio, e os atos postos com fundamento nesta Constituio como atos jurdicos. Constatar esta pressuposio uma funo essencial da cincia jurdica.

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  • Note-se, porm, que o conceito de constituio histrica, em Kelsen, no rompe com o princpio metodolgico fundamental. No se trata, pois, de verificar a efetiva anterio- ridade no tempo, material prprio do estudo dos historiadores, que consideram primeira a Constituio Imperial de 1824. O cientista do direito localiza a primeira constituio histrica de uma determinada ordem jurdica exclusivamente a partir das normas positivas. Ser aquele texto fundamental cuja elaborao no se encontra prevista em nenhuma disposio normativa anterior; aquele cujos editores no foram investidos de competncia por nenhuma outra norma jurdica. Para nos valermos da expresso de Kelsen, a primeira constituio histrica deriva de revoluo na ordem jurdica, tendo em vista que no encontra suporte nessa ordem, mas inaugura uma nova.

    O Ato Institucional n. 5 ainda a primeira constituio histrica brasileira porque a ordem jurdica iniciada com a sua edio ainda no foi substituda. Todas as normas hoje vigentes se ligam, mediatamente, a esse ato de exceo, fonte ltima de sua validade. A Carta de 1988 tem seu fundamento na emenda Carta de 1967 e esta foi totalmente reeditada em 1969, com base naquele ato excepcional. A norma hipottica fundamental pressuposta pela cincia do direito brasileira, portanto, no poderia ser outra seno a prescrio de obedincia ao editor do Ato Institucional n. 5.

    Em sua obra pstuma, Kelsen rev o carter hipottico da norma fundamental. Afirma tratar-se de uma fico, no sentido de que contraria a realidade e contraditria em si mesma. De fato, a norma pensada pela cincia jurdica contradiz a realidade normativa, j que no corresponde a nenhum concreto ato de vontade, no existe enquanto norma. E se contradiz internamente, porque descreve a outorga

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  • de poder supremo, partindo de uma autoridade ainda superior. A fico, no entanto, a despeito de suas inerentes contradies, instrumento do saber limitado (Kelsen, 1979: 329)9.

    5. Positivismo

    Como se pode concluir, a norma fundamental pressuposta pela cincia do direito condio de validade de todas as normas componentes da ordem jurdica, mas no de seus contedos. Da determinao pressuposta de que se deve obedecer o primeiro constituinte histrico, no deriva, e no pode derivar, qualquer gnero de ilicitude (Kelsen, 1960: 304)10. Por isso, a teoria pura reputa vlida qualquer ordem jurdica positiva e, em decorrncia dessa concepo, afirma-se como positivismo.

    9. Segundo Vaihinger, D ie Philosophie des Als-Ob, uma fico um recurso do pensamento, do qual se serve, se no se pode alcanar o fim do pensamento com o material existente. O fim do pensamento da norma fundamental : o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurdica ou moral positiva, a interpretao do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porm, com o normas vlidas, e dos respectivos atos como atos ponentes de normas. Este fim atingvel apenas pela via de uma fico. Por conseguinte, de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana filosofia do Como-Se no hiptese como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei , e sim uma fico que se distingue de uma hiptese pelo fato de que acompanhada pela conscincia ou, ento, deve ser acompanhada, porque a ela no corresponde a realidade.

    10. O contedo de uma ordem jurdica positiva completamente independente da sua norma fundamental. Na verdade tem de acentuar-se bem da norma fundamental apenas pode ser derivada a validade e no o contedo da ordem jurdica.

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  • Essa expresso positivismo tem sentidos diferentes na filosofia em geral e na filosofia jurdica, alm de expressar ambigidades em cada uma dessas reas. Inicialmente, foi utilizada na identificao de uma vertente filosfica, representada em especial por Comte, segundo a qual o conhecimento cientfico seria a mais evoluda manifestao do esprito humano, suplantando a metafsica e a religio. Progressivamente, a expresso passou a designar uma postura epistemolgica de busca de rigor nos resultados alcanados pelo conhecimento. A denominao positivismo lgico para identificao da filosofia produzida pelo Crculo de Viena se insere, por exemplo, nesse contexto. H, registre-se, quem proponha o desemprego do conceito, em vista dos equvocos que proporciona (cf. Stegmller, 1960: 20)".

    No campo da filosofia do direito, tambm se constata impreciso, divergindo os autores inclusive na extenso dos desentendimentos. Para Bobbio, por exemplo, haveria trs diferentes modos de entender o positivismo jurdico

    11. O empirismo moderno e a filosofia analtica foram, s vezes, designados tambm com o positivism o lgico. O termo positivism o procede do tempo do antigo positivism o imanente (E. Mach e os seus seguidores), segundo o qual a funo cientfica consiste na descrio mais exata po ssve l do que dado imediatam ente. A maioria dos empiristas atuais considera to inclaro este conceito dado ou algo eivado de tantas aporias at agora no solucionadas, que o rejeitam com o intil. Conseqentemente, o termo positivism o j no pode mais ser aplicado a esta corrente. A nica corrente filosfica, na qual o conceito do dado ainda constitui um conceito central, a filosofia fenom enolgica. Assim , os fenom enlogos seriam os nicos positivistas atuais. Mas, com o este uso do termo positivism o seria muito equvoco, melhor no empreg-lo mais.

  • (1965: 103/104 e 112)12. Mas, de modo geral, positivista tem sido considerado tanto aquele autor que nega qualquer direito alm da ordem jurdica posta pelo estado, em contraposio s formulaes jusnaturalistas e outras no formais, como o defensor da possibilidade de construo de um conhecimento cientfico acerca do contedo das normas jurdicas. Kelsen positivista em ambos os sentidos.

    De sua polmica com a teoria do direito natural, vale a pena destacar dois pontos. De um lado, a idia de que a cincia fundada em postulados jusnaturalistas legitima a ordem jurdica, em vez de simplesmente a descrever; de outro, a proposio de que todo direito natural , em ltima anlise, direito positivo.

    Em relao primeira, Kelsen aponta como implicao necessria do princpio metodolgico fundamental a renncia da cincia do direito relativamente a qualquer manifestao valorativa sobre as normas estudadas. Como a teoria do direito natural sempre contrape ao direito estatudo as normas extradas da natureza humana, nessa comparao inevitvel a apreciao da justia ou injustia da soluo prescrita na norma. Ora, ao dissertar sobre a justia da ordem jurdica e concluir por entend-la justa, a cincia passa a exercer a funo, que no lhe cabe, de legitimar essa mesma ordem. Tal atitude pe em perigo a

    12. Per procedere ad una caratterizzazione dei positivismo giuridico, ritengo possa essere utile distinguere tre aspetti diversi con cui esso storicamente presentato: 1) come um modo di avvicinarsi alio studio dei diritto; 2) como una determinata teoria o concezione dei diritto; 3) come una determinata ideologia delia giustizia. ( . . . ) La distinzione fra questi tre piani o aspetti in cui si presenta storicamente il positivismo giuridico ci consente di sgombrare da molti equivoci il terreno dei 1 analisi storica e delia critica etico-politica de questa corrente, tuttaltro che omogenea ( . . . ) .

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  • r* pureza que deve revestir o mtodo cientfico (Kelsen, 1960: 94 e 107)13.

    No enfrentamento desse tema, Kelsen expressa absoluta rejeio concepo de uma moral absoluta. O entendimento sobre o que justo e sobre o que no , para ele, no tem soluo nos quadrantes do conhecimento cientfico. O relativismo axiolgico isto , a idia de que no existe apenas um nico sistema de valores morais afirmvel por alguma forma de conhecimento uma referncia filosfica das mais importantes para a teoria pura do direito (Kelsen, 1960a: 92/93)14.

    13. A pureza de mtodo da cincia jurdica ento posta em perigo, no s pelo fato de se no tomarem em conta os limites que separam esta cincia da cincia natural, mas muito mais ainda pelo fato de ela no ser, ou de no ser com suficiente clareza, separada da tica: de no se distinguir claramente entre Direito e Moral ( ... ). A tese de que o Direito , segundo a sua prpria essncia, moral, isto , de que somente uma ordem social moral Direito, rejeitada pela Teoria Pura do Direito, no apenas porque pressupe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela, na sua efetiva aplicao pela jurisprudncia dominante numa determinada comunidade jurdica, conduz a uma legitimao acrtica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade.

    14. Uma teoria do direito positivista, isto , realista, no afirma e isto importa acentuar sempre que no haja qualquer justia, mas que de fato se pressupem muitas normas de justia, diferentes umas das outras e possivelmente contraditrias entre si. Ela no nega que a elaborao de uma ordem jurdica positiva possa ser determinada e, em regra, -o de fato pela representao de qualquer das muitas normas de justia. Especialmente, no nega que toda a ordem jurdica positiva quer dizer, os atos atravs dos quais as suas normas so postas pode ser apreciada ou valorada, segundo uma destas normas de justia, como justa ou injusta. Mantm, todavia, que estes critrios de medida tm um carter meramente relativo e que, portanto, os atos atravs dos quais uma e mesma ordem jurdica positiva foi posta podem, quando apreciados por um critrio, ser fundamen-

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  • No tocante ao carter positivo do direito natural, res- salte-se que Kelsen insere tal formulao no rebate crtica de que o positivismo no poderia dar qualquer tipo de segurana, j que todo direito posto, independentemente de seu contedo, reputado vlido. Na verdade, tambm a teoria do direito natural no forneceria pautas seguras para avaliao da justia contida no direito. Se o fundamento de validade da ordem jurdica reside em sua correspondncia com o direito natural, ento haveria tambm uma norma fundamental pressuposta, a determinar a obedincia aos comandos da natureza. Ou, por outra, o fundamento de validade da ordem jurdica, nos quadrantes do jusnaturalismo, a pressuposio de que a ordem natural deve ser obedecida. Ora, esta ltima tambm positiva, no sentido de ser posta por uma vontade supra-humana (Kelsen, 1960: 308)15.

    tados como justos, e j, quando apreciados segundo outro critrio, ser condenados como injustos sustentando ao mesmo tempo que uma ordem jurdica positiva , quanto sua validade, independente da norma de justia pela qual possam ser apreciados os atos que pem as suas normas.

    15. ... tambm a suposio de que uma teoria do Direito natural poderia dar uma resposta incondicional questo do fundamento da validade do Direito positivo se baseia sobre uma iluso. Uma tal doutrina v o fundamento de validade do Direito positivo no Direito Natural, quer dizer, numa ordem posta pela natureza com autoridade suprema colocada acima do legislador humano. Neste sentido, o Direito natural tambm Direito posto, isto , positivo. Direito posto, porm, no pela vontade humana, mas por uma vontade supra-humana.

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  • TEORIA DA NORMA JURDICA

    6. Estrutura da norma jurdica

    O direito definido, pela teoria pura, como uma ordem coativa, no sentido de que estabelece a imposio de um ato de coao contra as situaes sociais consideradas indesejveis (cf. Bobbio, 1977: 210/211)16. Esse ato (priso, privao de bens etc.), normalmente, recebido como um mal por quem o sofre, e as leis em geral estatuem coaes. A existncia de pessoas para as quais a coao no representa propriamente um desvalor, bem como de normas jurdicas estabelecedoras de incentivos ou prmios, caracterstica excepcional nos homens e nas ordens jur

    16. La ragione per cui K elsen non se preoccupato dei fine delFordinamento giuridico sta nel fatto che egli ha dei diritto, inteso come forma di controllo sociale, una concezione meramente strumentale, la quale, occorre ripeterlo, va perfettamente daccordo con il relativismo etico e 1irrazionalismo dei valori. Una delle affermazioni ricorrenti in tutta 1opera kelseniana che il diritto non un fine ma un mezzo. Come mezzo pu essere usato per raggiungere i fini pi diversi, come la storia dei diritto insegna. Ma prprio in quanto serve a raggiungere i fini pi diversi, unanalisi che parta dai fini o peggio dal fine (come quella dei giusnaturalisti) non permetter mai di cogliere 1essenza dei diritto. Per Kelsen il diritto una tcnica delVorganizzazione sociale'. la sua specificit consiste nelFuso dei mezzi coercitivi per indurre i membri di un gruppo sociale a fare o a non fare alcunch. II diritto un meccanismo coattivo.

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  • dicas. O direito se distingue de outras ordens sociais porque os atos de coao prescritos podem ser aplicados, se necessrio, mediante o emprego da fora fsica. A coao psquica comum a todas as ordens sociais e pode tambm derivar do direito, embora isso no seja essencial.

    As proposies jurdicas descrevem as normas por enunciados denticos, isto , afirmaes de que alguma conduta deve ser. Especificamente, estabelecem a ligao dentica isto , atravs do verbo dever ser entre determinada previso factual e atos de coao. Dado o fato p, deve ser o ato de coao q. A estrutura desse enunciado, portanto, possui o antecedente (p ) conectado deonticamente ao conseqente (q).

    A formulao kelseniana admite, a partir dessa estrutura bsica, duas alternativas: ou se estabelece a ligao dentica entre condutas humanas (atos ou omisses) e sano, ou entre fatos diversos de condutas humanas e atos coativos diversos de sano. Esta ltima possibilidade, no entanto, parece ter significado marginal. Kelsen a considera para tratar de situaes especficas, como a imposio de confinamento ou privao compulsria de propriedade pelo s fato de se pertencer a determinada raa. A definio do antecedente como descrio de comportamento humano e do conseqente como sano corresponde generalidade das normas jurdicas, razo pela qual se limita, aqui, o exame a apenas essa alternativa.

    Em Kelsen, portanto, a estrutura da norma jurdica, pelo menos segundo a descrio dada pela proposio jurdica, sempre a de ligao dentica entre a referncia a certo comportamento p e uma sano q. De modo mais simples, toda a norma jurdica pode ser compreendida como a imposio de uma sano conduta nela considerada

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  • (Kelsen, 1960: 92)17. As normas jurdicas, assim, tm a estrutura de uma proibio, por descrever a conduta tida por ilcita como antecedente e a punio como conseqente. A frmula adotada na maioria dos dispositivos de lei definidores de tipos penais (p. ex., os artigos da parte especial do CP ou os do ttulo II do CDC) generalizada, em Kelsen, como modelo estrutural de todas as normas.

    Para sustentar tal generalizao, contudo, Kelsen no pode furtar-se ao enfrentamento de algumas questes. Em primeiro lugar, a relativa s normas que no probem, mas obrigam determinados atos ou omisses. Tambm deve esclarecer como poderiam ser proibitrias aquelas esta- tuidoras de permisso. E, finalmente, necessrio explicar a situao das normas que especificamente nem obrigam nem permitem, mas se limitam a estabelecer definies, como, por exemplo, a contida no art. 22 da Constituio Federal, que elenca os Poderes da Unio (Legislativo, Executivo e Judicirio). Se o pensamento kelseniano se prope a demonstrar que todas as normas jurdicas se reduzem a imposies de sano, ele deve considerar essas trs situaes, em que aparentemente no existe qualquer forma de penalizao de condutas.

    A primeira objeo resolvida a partir da interdefi- nibilidade existente entre as normas proibitivas e obriga

    17. Visto que uma ordem jurdica uma ordem de coao no sentido que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposies enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurdica), devem ser aplicados certos atos de coero (determinados igualmente pela ordem jurdica). Todo o material dado nas normas de uma ordem jurdica se enquadra neste esquema de proposio jurdica formulada pela cincia do Direito, proposio esta que se dever distinguir da norma jurdica posta pela autoridade estadual.

  • trias. Isto , qualquer proibio se pode traduzir por uma obrigatoriedade e vice-versa. De fato, proibir certa conduta eqivale a obrigar a omisso da mesma conduta, assim como obrigar determinado ato igual a proibir sua omisso. Ou, segundo a formulao kelseniana, existe dever jurdico quando o direito positivo prescreve certo comportamento e tal prescrio se faz mediante a imputao de sano ao comportamento oposto (Kelsen, 1960: 172)18. Desse modo, se a lei obriga a conduta p, a rigor, est sancionando a omisso de p.

    A questo referente s normas permitidoras envolve maior complexidade, at porque a interdefinio entre os modais proibir e permitir no unanimemente acolhida na lgica do direito (cf. von Wright, 1970: 105/107). Kelsen distingue, inicialmente, a permisso negativa da positiva: aquela deriva da inexistncia de proibio enquanto esta ltima se manifesta, especialmente, na limitao de normas proibitrias, como, por exemplo, na previso da legtima defesa entre as hipteses de excluso de ilicitude (art. 23, II, do CP). A permisso negativa, por se configurar na ausncia de proibio (o que no proibido permitido), no pode des- ligar-se da prescrio. J a positiva norma no autnoma, dependente da proibio qual se liga (Kelsen, 1960: 89)l9.

    18. A afirmao: um indivduo juridicamente obrigado a uma determinada conduta, idntica afirmao: uma norma jurdica prescreve aquela conduta determinada de um indivduo; e uma ordem jurdica prescreve uma determinada conduta ligando conduta oposta um ato coercitivo como sano.

    19. Normas jurdicas no autnomas so tambm aquelas que permitem positivamente uma determinada conduta, pois elas apenas limitam o domnio de validade de uma norma jurdica que probe essa conduta na medida em que lhe liga uma sano.

  • A formulao de Kelsen parece aceitar alguma forma de interdefinibilidade entre a proibio e a permisso, na hiptese de outorga de poder ou competncia. Se um indivduo tem o dever de suportar determinada conduta de outro, costuma-se afirmar que a este ltimo o direito permitiu a mesma conduta. Igualmente, diz-se que permitido a algum exigir de outra pessoa certa prestao, quando tal prestao prescrita como dever desta ltima (Kelsen, 1960: 37 e 84)20. Em ambas as situaes, a norma permis- sora se revela mero reflexo de proibies.

    O argumento principal, contudo, para sustentar a reduo das normas jurdicas estrutura de imposio de sanes, Kelsen encontra na afirmao de que certas normas no tm autonomia, mas se ligam intrinsecamente a outras de natureza sancionadora. So normas no autnomas as que apenas prescrevem condutas sem meno da

    20. A palavra perm itir tambm utilizada no sentido de conferir um direito. Quando, numa relao entre A e B, se prescreve a A o dever de suportar que B se conduza de determinada maneira, diz-se que a B permitido (isto , que ele tem o direito de) conduzir-se dessa maneira. E quando se prescreve a A o dever de prestar a B um determinado quid, diz-se que a B permitido (isto , que ele tem o direito de) receber aquela determinada prestao de A. No primeiro caso, a proposio : permitido a B conduzir- se de determinada maneira, nada mais diz que esta outra: prescrito a A o dever de suportar que B se conduza de determinada maneira. E, no segundo caso, a proposio: permitido a B receber determinada prestao de A, no significa seno o mesmo que esta: imposta a A a obrigao de prestar a B um determinado quid. (...) A definio do Direito como uma ordem coercitiva pode ainda manter-se em face daquelas normas que conferem competncia ou poder para uma conduta que no tenha o carter de um ato de coao, ou permitem positivamente tal conduta, na medida em que tais normas so normas no autnomas, por estarem em ligao essencial com normas estatuidoras de atos de coero.

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  • punio cabvel no caso de desobedincia. Se a pena estiver estabelecida em outra norma, as que se limitam afirmao do dever so rigorosamente dispensveis. O Cdigo Civil determina ao devedor pagar o credor, sem se referir s conseqncias da inobservncia de tal conduta, e apenas no Cdigo de Processo Civil se pode encontrar a prescrio de que o devedor inadimplente deve ser sancionado mediante execuo forada. A norma de direito civil intil desacompanhada do dispositivo processual, mas este prescinde daquela.

    Kelsen denominou as normas no autnomas dessa categoria secundrias e as instituidoras de sano primrias, numa clara referncia importncia atribuda a elas pela teoria pura. A denominao imaginada exatamente oposta de Cossio, com quem Kelsen manteve interessante colquio (Kelsen-Cossio, 1952: 63/64)21. Em sua obra pstuma, ao discutir a formulao de Cossio para a estrutura da norma, Kelsen no revela qualquer disposio para inverter as designaes escolhidas, chegando a diferenciar a estrutura das normas morais e jurdicas a partir dessas categorias (1979: 68; ver tambm item 8)22.

    21. La proposicin de que est prescripto hacer el servicio militar, o, para decir lo mismo, que bajo ciertas condiciones los indivduos deben hacer el servicio militar, no es una regia de derecho porque no contiene indicaciones de sancin. En mis anteriores obras he designado a tal proposicin como una norma secundaria (norma en el sentido descriptivo de la palabra). Pero es suprflua una tal norma secundaria en una descripcin al servicio militar.

    22. Nesta relao (a insignificncia jurdica de opinies manifestadas sobre se a conduta de um indivduo conforme ao Direito ou contrria ao Direito) nada se modifica, se ao lado das normas que, sob a condio de uma determinada conduta dos sujeitos de direito, estaturem a fixao de um certo ato de coao por parte do rgo judicial, aceitem-se normas que

  • Outro gnero de normas no autnomas, a que j se referiu acima, compreende as permisses positivas limitadoras do alcance de normas proibitrias. A lei repressora do trfico e consumo de substncias entorpecentes, capazes de causar dependncia fsica ou psquica, ressalva as hipteses de seu emprego teraputico ou cientfico (Lei n. 6.368/76, art. 22, 22). A rigor, a norma permitidora apenas integra, como exceo, o pressuposto de aplicao da sano. O direito, nesse sentido, estabelece que a comercializao e utilizao de substncias entorpecentes, salvo para fins teraputicos ou cientficos, devem ser sancionadas.

    As normas revogatrias so tambm no autnomas, e somente podem ser compreendidas em sua relao com as prescries estabelecidas, ou eliminadas da ordem vigente.

    No mesmo contexto, no tm autonomia as normas de competncia, as quais apenas estabelecem alguns dos pressupostos de aplicao da sano. As disposies constitucionais referentes competncia dos Poderes Legislativo e Judicirio se unem s normas legais instituidoras de atos de coero, fazendo parte dos pressupostos de aplicao

    pem como devida a recproca conduta dos sujeitos de direito; ou, com outras palavras: se se pressupe que cada norma jurdica geral seja a ligao de duas normas, das quais uma estabelece como devida uma certa conduta e a outra pe como devida a fixao de um condicional ato de coao por parte de um rgo judicial para o caso de violao desta norma. Eu designei a segunda norma como primria, a primeira como norma jurdica secundria. Tambm sob esta pressuposio, a indagao se um sujeito de direito cumpriu ou violou uma norma a norma jurdica secundria apenas pode ser decidida, de modo juridicamente relevante, pelo competente rgo aplicador do Direito.

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  • da norma. A proposio jurdica, formulada de maneira abrangente, acerca das verbas rescisrias, devidas pelo empregador ao empregado despedido sem justa causa, chega a alcanar as disposies constitucionais de competncia. Tal proposio seria: se as pessoas competentes para legislar sobre direito do trabalho aprovaram norma geral, estabelecendo o pagamento de certas verbas, na resciso do vnculo empregatcio sem culpa do empregado, e se a Justia do Trabalho, por seus juizes, considerou, de modo definitivo e atravs do processo apropriado, que um indivduo em particular foi despedido sem justa causa, caber ao empregador o pagamento das importncias previstas em termos gerais, sendo prescrito que, no o fazendo, ento deve ser promovida pelos funcionrios competentes, e de acordo com o procedimento estatudo em lei, a execuo forada de bens do patrimnio do empregador.

    Por fim, so no autnomas as normas meramente conceituais. O art. 32 do Cdigo de Defesa do Consumidor, por exemplo, define fornecedor. Os contornos estabelecidos por essa norma, na verdade, integram o pressuposto de todas as demais disciplinadoras das relaes de consumo. Por exemplo, na referncia atribuio de responsabilidade por defeitos nos produtos, a proposio jurdica a rigor afirma: se pessoa fsica ou jurdica, pblica ou privada, nacional ou estrangeira, ou ente despersonalizado, que desenvolve atividade de produo, fornecer mercadoria defeituosa e no indenizar os danos sofridos pelos consumidores, ento deve ser aplicada a sano da execuo.

    Em sntese, para a teoria pura, o direito descrito pela cincia jurdica como uma ordem coativa, e, desse modo, as normas que no estatuem atos de coero somente podem ser vistas como dependentes das normas de ndole

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  • sancionadora. Ou, por outra, todas as normas jurdicas podem ser descritas como a prescrio de imposio de penalidade contra certa conduta. Essa frmula genrica, reducionista das normas em geral s de carter proibitrio, cria as condies para Kelsen superar diversos dualismos presentes na teoria do direito, como os referentes a direito civil e penal, pblico e privado, subjetivo e objetivo etc.

    7. Validade e eficcia

    A validade da norma jurdica, em Kelsen, depende, inicialmente, de sua relao com a norma fundamental. Ou, por outra, funo da manifestao de vontade de uma autoridade competente. Como as normas jurdicas, pela descrio realizada em proposies, integram um sistema essencialmente dinmico, o seu contedo irrelevante para a definio da validade. Esse um aspecto pouco entendido e pouco difundido da teoria pura do direito. A norma jurdica vlida se emanada de autoridade com competncia para a editar, ainda que o respectivo comando no se compatibilize com disposio contida em normas de hierarquia superior.

    Para a validade da norma, no entanto, no basta o atendimento a essa condio de ligao norma fundamental. E necessrio, ainda, um mnimo de eficcia. Aqui reside uma das mais complexas questes enfrentadas pela teoria kelseniana e, de resto, por toda postura jurdico-positivista: a relao entre validade e eficcia.

    Comea Kelsen por considerar duas diferentes maneiras de tratar o tema na teoria jurdica, rejeitando-as por falsas. De um lado, a afirmao de que a validade no

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  • depende da eficcia de forma alguma; de outro, a de que validade e eficcia se identificam. Sustenta a teoria pura que tanto a norma jurdica singularmente considerada quanto a prpria ordem jurdica como um todo deixam de ser vlidas se perderem a eficcia. incorreto pretender, por conseguinte, que a vigncia no tenha qualquer relao com a eficcia. Por outro lado, h normas jurdicas que no so observadas em determinadas situaes ou durante algum tempo e, nem por esse motivo, so invalidadas. Assim, tambm incorreto postular a validade como sinnimo de eficcia, na linha do sugerido pelo realismo jurdico de Alf Ross.

    importante observar que a teoria kelseniana se desenvolve, nesse assunto, em dois nveis distintos, cuja interpenetrao no simples. Cuida Kelsen da questo da eficcia no plano das normas singularmente consideradas (o art. 500 do CCom, p. ex.) e no plano global da ordem positiva (o direito brasileiro em vigor hoje, p. ex.). A eficcia se revela condio de validade em ambos os nveis. Qualquer norma jurdica totalmente ineficaz invlida. O lembrado dispositivo do Cdigo Comercial (de 1850), acerca das responsabilidades do capito de navio, que deixar de se fazer s velas em razo de problemas na composio da tripulao, no poderia mais ser reputado vlido, pela tica de Kelsen, porque h muito no tem sido aplicado.

    certo que nenhuma norma jurdica positiva perde sua validade por no ter sido aplicada em determinados casos isolados ou mesmo durante algum tempo. A ineficcia episdica ou temporria no compromete a vigncia de uma norma jurdica em particular.

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  • Ampliando-se o foco da anlise para o direito, enquanto uma ordem positiva, tambm a eficcia global deste se mostra uma condio de validade. Anteriormente, mencionou-se a situao do comerciante de quem exigem dinheiro o representante do trfico organizado e o agente fiscal. A exigncia do traficante no juridicamente vlida, na medida em que no se a pode sustentar na norma hipottica, ao passo que a emanada do funcionrio pblico vlida, porque ligada mesma norma fundamental. Ora, assim , unicamente, porque o direito institudo pelo estado se revela, em termos globais, eficaz e considera ilcita a exigncia do crime organizado.

    Imagine-se, contudo, que ocorresse um tal crescimento na estrutura organizativa do trfico, que os comandos gerais e individuais derivados dos rgos integrantes do aparato criminoso acabassem sendo paulatinamente respeitados pelas pessoas a quem tais ordens se dirigem. Ima- gine-se, mais, a progresso desse cenrio a ponto de a ordem estabelecida pelos traficantes, em seu confronto com a ordem estatal, num certo momento chegar a suplantar esta ltima, definindo-a como ilcita. Teria se verificado, na inverso de ilicitudes, o que Kelsen denomina por revoluo.

    Ora, o que deveria considerar a cincia jurdica diante desse quadro? Para Kelsen, ela simplesmente deveria substituir a norma hipottica fundamental, que deixaria de ser obedeam os editores da constituio do estado para se tornar obedeam a organizao dos traficantes. O dado de realidade a forar essa substituio teria sido a perda da eficcia global da ordem jurdica do estado e a correspondente eficcia, tambm em termos globais, da ordem inau

  • gurada pelo trfico organizado (cf. Vilanova, 1977: 220)2. O raciocnio fica mais claro se se considera o confronto do estado com um grupo poltico de objetivos claramente revolucionrios, em vez do crime organizado. Na Rssia de outubro de 1917, o cientista do direito deveria afastar a norma hipottica obedeam o governo provisrio de Kerensky, instaurado em maro com a derrubada do Czar, pela norma obedeam os conselhos populares (soviets).

    A ordem jurdica no perde validade em razo de uma ou mais normas ineficazes. A eficcia indispensvel vigncia da ordem jurdica medida de termos globais; ou seja, o direito positivo brasileiro vigora, ainda que o art. 500 do Cdigo Comercial, ao lado de tantos outros, seja totalmente ineficaz e, portanto, invlido. A validade da ordem jurdica, em suma, no depende da eficcia de todas as normas que a compem.

    J a norma singularmente considerada ser invlida se sobrevier a ineficcia global da ordem jurdica a que pertence (Kelsen, 1960: 298)24. Se ningum mais respeitar o direito estatal vigente, em funo do domnio de outra

    23. O que suprime a norma fundamental no ato legislativo de qualquer espcie: a mudana numa situao factual de poder, a inefetividade, sociologicamente sobrevinda, que desfaz a validade global do sistema. Sem a eficacidade, a hiptese categorial carece de fundamento nas coisas para ser aplicada.

    24. As normas de uma ordem jurdica positiva valem (so vlidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produo pressuposta como vlida, e no porque so eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurdica eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurdica for eficaz. Logo que a Constituio e, portanto, a ordem jurdica que sobre ela se apia, como um todo, perde a sua eficcia, a ordem jurdica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigncia).

  • ordem, inaugurada por antigos criminosos, por revolucionrios ou por estado estrangeiro invasor, a exigncia do agente fiscal perder sua validade. Claro que, normalmente, boa parte do arcabouo legislativo da ordem revogada recepcionada pela nova ordem, mas isto apenas reafirma, por outro ngulo de anlise, a eficcia global da ordem como condio de validade de suas normas. Ou seja, as disposies recepcionadas apenas continuam a vigorar na medida em que a ordem recepcionadora se mostre globalmente eficaz.

    Em resumo, a validade da norma jurdica est condicionada a trs pressupostos: a) competncia da autoridade que a editou, derivada da norma hipottica fundamental; b) mnimo de eficcia, sendo irrelevante a sua inobservncia episdica ou temporria; c) eficcia global da ordem de que componente. Atente-se para a preciso do conceito kelseniano: a validade no se confunde com a eficcia, esta apenas condio daquela (Kelsen, 1960: 123 e 297)25. Ou seja, pode-se sintetizar o pensamento kelseniano sobre o assunto na assertiva de que a ineficcia absoluta compromete a validade da norma ju rdica. Qualquer outra relao entre validade e eficcia no se pode estabelecer prontamente nos quadrantes da teoria pura do direito.

    25. Esta eficcia da ordem jurdica como sempre tem de ser acentuado apenas o pressuposto da vigncia e no a prpria vigncia. (...) A eficcia da ordem jurdica como um todo e a eficcia de uma norma jurdica singular so tal como o ato que estabelece a norma condio de validade. Tal eficcia condio no sentido de que uma ordem jurdica como um todo e uma norma jurdica singular j no so consideradas como vlidas quando cessam de ser eficazes.

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  • 8. Sano

    A antropologia kelseniana considera o homem naturalmente inclinado a perseguir apenas a satisfao de interesses egostas. O estabelecimento de uma ordem social no altera essa realidade natural. Ou seja, a vontade de alguns homens, os responsveis pela definio das normas jurdicas ou mesmo morais, no pode mudar a natureza humana. necessrio que as conseqncias, normativamente estabelecidas para as condutas indesejadas, levem o homem a considerar menos vantajoso, sob o seu individual ponto de vista, a transgresso norma. Desse modo, evitaria se comportar de acordo com a sua primeira inclinao natural, para ponderar as vantagens e desvantagens da obedincia ordem social. Ora essa ponderao tambm exteriorizao de uma inclinao egosta (Kelsen, 1960: 96)26.

    Rigorosamente, Kelsen traa uma inultrapassvel linha de separao entre o mundo do ser, cujos eventos revelam a operao do princpio da causalidade, e o do dever ser. Nem as normas morais ou jurdicas se podem definir a partir da natureza do homem, como pretendem os jusnaturalistas, nem essa mesma natureza se pode modificar pela vontade expressa em padres de conduta. O homem essencialmente egocntrico se deixar conduzir de

    26. O homem pode ter inclinaes ou interesses que mutuamente se contradizem. A sua conduta efetiva depende de qual seja a inclinao mais intensa, de qual seja o interesse mais forte. Nenhuma ordem social pode precludir as inclinaes dos homens, os seus interesses egosticos, como motivos das suas aes e omisses. Ela apenas pode, se quer ser eficaz, criar para o indivduo a inclinao ou interesse de se conduzir em harmonia com a ordem social e se opor s inclinaes ou interesses egosticos que, na ausncia daquela, atuariam.

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  • acordo com as prescries das normas apenas se divisar vantagem ou, pelo menos, menor desvantagem na obedincia ordem social. Ao considerar oportuno com- portar-se conforme o sentido da norma, no entanto, ele ainda continua manifestando seu carter naturalmente egosta.

    Por isso, o direito s pode ser entendido como uma ordem social coativa, impositiva de sanes. Difere da moral no pelo contedo das respectivas normas, mas pela natureza da reao contra a sua desobedincia. Enquanto o direito estatui conseqncias que podem ser imputadas s pessoas com o uso da fora fsica, se necessrio, a moral ou, precisamente, os diversos sistemas de moral apenas recomenda a aprovao ou desaprovao de condutas (cf. Diniz, 1979: 93)27. A diferena, portanto, refere- se maneira pela qual se estatuem as prescries (Kelsen, 1960: 99)28. Em sua obra pstuma, h indicaes no sentido da atenuao da rgida identidade estrutural entre normas jurdicas e morais, chegando Kelsen a cogitar a hiptese de deveres morais no sancionados (1979: 182)29.

    27. Para Kelsen, no h ordem social desprovida de sano e, para ele, a nica distino que h entre as ordens sociais est nas diferentes espcies de sanes que elas impem.

    28. Uma distino entre o Direito e a Moral no pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou probem, mas no como elas prescrevem ou probem uma determinada conduta humana.

    29. ...existe uma diferena essencial entre o Direto positivo e a Moral positiva. No apenas porque as sanes da Moral no tm o carter de atos de coao, como tambm porque a ligao entre a norma moral que impe uma conduta determinada e a norma que, para o caso do cumprimento, estatui como sano a aprovao, e para o caso do no-cumprimento, a desaprovao, no considerada to essencial como a ligao entre ambas as normas em questo no domnio do direito. No se pode dizer da ordem

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  • Para prescrever certa conduta, a norma jurdica estabelece o sancionamento da conduta oposta. Se o valor social prestigiado pela norma o de respeito integridade fsica das pessoas, o mecanismo a se adotar ser o de imputar pena ao comportamento de provocar leses corporais. Se o valor o do cumprimento das obrigaes assumidas em livre manifestao de vontade, em algum tipo de contrato, ento norma cabe prever a execuo forada do patrimnio do devedor, como sano pela inadimplncia. O ilcito, assim, o pressuposto do direito e no a sua negao.

    Conseqentemente, o dever no seno o comportar- se segundo a conduta oposta quela sancionada pela norma. O contribuinte tem o dever de pagar o tributo apenas porque o no-pagamento descrito, no antecedente de uma norma jurdica, como condio da execuo fiscal (Kelsen, 1960: 171)30. Por outro lado, o direito subjetivo de um indivduo apenas o reflexo de deveres imputados norma-

    moral positiva que impe uma certa conduta somente por ligar a esta conduta e a seu contrrio as sanes especficas da aprovao e desaprovao. Uma conduta determinada considerada como contedo de um dever moral sem que, apesar disto, se refira sano que a norma moral estatui para a hiptese do cumprimento e para a hiptese de violao desse dever. Dentro da Moral, a norma que impe uma certa conduta, em todo o caso, a primria, a que estatui a sano apenas uma norma secundria. Tambm uma ordem moral contm normas que estatuem sanes para a hiptese de uma conduta correspondente ou no-correspondente a outras normas morais. Estas normas no formam to inseparvel unidade com outras normas como a unidade que existe entre normas anlogas de uma ordem jurdica.

    30. Se o Direito concebido como ordem coercitiva, uma conduta apenas pode ser considerada como objetivamente prescrita pelo Direito e, portanto, como contedo de um dever jurdico, se uma norma jurdica liga conduta oposta um ato coercitivo como sano.

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  • tivamente a outro ou outros indivduos. O direito ao crdito nada mais que o reverso do dever imposto a quem seria sancionado pelo no-pagamento da prestao pecuniria; ou, em outros termos, o direito subjetivo se reduz ao direito objetivo, positivo.

    9. A questo das lacunas

    A teoria pura no considera a questo das lacunas como pertinente logicidade do sistema jurdico. Trata o tema, situando-o no captulo da estrutura escalonada da ordem jurdica, no tpico reservado jurisprudncia. Ou seja, assunto ligado ao direito positivo, que, segundo Kelsen, no se apresenta necessariamente lgico.

    Normalmente, as lacunas so identificadas pela doutrina tradicional como a ausncia de norma jurdica geral para um caso particular. Digamos que determinado engenheiro gentico consiga multiplicar um vulo fecundado, para implante no tero de algumas mulheres e gestao de clones humanos. Imaginemos que ele contrate, com um milionrio excntrico, a criao de um clone, mas que no receba o pagamento pelo servio. Ao proceder cobrana do valor contratado, o devedor contesta alegando a nulida- de do negcio jurdico. Considerado o assunto, pela tica da legalidade, a doutrina tradicional afirmaria a inexistncia de previso legal sobre o tema e concluiria pela lacuna do direito. Da, passaria discusso acerca dos meios de integrao da ordem jurdica (analogia, costumes, princpios gerais etc.).

    Kelsen mostra, no entanto, que as lacunas, entendidas nesse sentido tradicional, so impossveis. Como a estru-

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  • tura da norma jurdica a de ligao dentica entre a descrio de uma conduta e a sano estatuda, ento de duas uma: ou o comportamento em exame est ligado a certa pena e proibido, ou no est e permitido. A norma geral de permisso das condutas no proibidas (o que no est proibido est permitido) torna a idia tradicional de lacunas inadmissvel. Nunca haver ausncia de norma jurdica, uma vez que, inexistindo especfica sano relacionada conduta em foco, aplicar-se- a ordem jurdica, na permisso geral de tudo quanto no se encontra proibido.

    Para a formulao kelseniana, os rgos judicirios aplicadores do direito, postados diante de ausncia de norma especfica sobre a conduta em julgamento, nem sempre consideram tal ausncia como lacuna. Fazem-no, apenas, se a soluo desenhada em termos gerais pelo legislador no coincidir com os seus valores tico-polticos. Em outros termos, apenas se o juiz no concordar com a falta de sano do comportamento que est julgando, ele ir cogitar da existncia de lacuna, e, ao colmat-la, dar ao caso particular a soluo mais justa segundo o seu entendimento (Kelsen, 1960: 339)31.

    31. E, efetivamente, no se costuma de forma alguma presumir a existncia de uma lacuna em todos os casos nos quais o dever do demandado ou acusado afirmado pelo demandante ou acusador no estipulado por qualquer norma de Direito vigente. Vistas as coisas mais de perto, verifica- se que a existncia de uma lacuna s presumida quando a ausncia de uma tal norma jurdica considerada pelo rgo aplicador do Direito como indesejvel do ponto de vista da poltica jurdica e, por isso, a aplicao logicamente possvel do Direito vigente afastada por esta razo polti- co-j uri dica, por ser considerada pelo rgo aplicador do Direito como no

    ^ eqitativa ou desacertada.

    \

    \ 38

  • Com efeito, o exemplo acima, da experincia gentica de clonagem humana, analisado por um cientista do direito filiado ao pensamento kelseniano, teria contornos diferentes. Para ele, em primeiro lugar, o julgador deveria buscar, na ordem vigente, norma jurdica que sancionasse a conduta de celebrar o contrato de clon