parecer fabio ulhoa coelho
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Parecer
Fábio Ulhoa Coelho Professor Titular de Direito Comercial
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
O Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil – Seção
Rio de Janeiro formula-me consulta sobre questões relacionadas ao protesto de letras
de câmbio sacadas para pagamento em praça situada em lugar diferente do domicílio do
sacado, que são chamadas de “letras de câmbio domiciliadas”.
Informa o consulente que alguns sacados de letra de câmbio
domiciliada têm obtido em juízo a responsabilização do cartório de protesto pelos danos
que o protesto do título lhes acarreta, principalmente em razão do envio da informação
da prática do ato aos órgãos de proteção ao crédito.
Em vista disto, pretende ver aclarada a questão da licitude dos atos
praticados pelos cartórios de protesto relativamente ao envio, para os órgãos de proteção
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ao crédito, da informação da lavratura de protesto por falta de aceite das letras de
câmbio domiciliadas, submetendo-me, então, os seguintes quesitos:
1. O art. 1º da Lei Uniforme de Genebra (LUG) não define o aceite como
requisito essencial da letra de câmbio. Que elementos devem ser
apreciados pelo cartório para lavrar o protesto de letra de câmbio sem
aceite? A letra de câmbio sem aceite deixa de ser letra de câmbio?
2. É válido, à luz do art. 27 da LUG, o saque de letra de câmbio para
pagamento em praça situada em local diferente do domicílio do sacado?
3. Os cartórios de protestos estão obrigados, pelos arts. 29 e 30 da Lei
nº 9.492/97, a informarem as entidades vinculadas à proteção ao crédito
de todos os protestos tirados, inclusive os por falta de aceite?
4. Ao receberem para protesto as letras de câmbio domiciliadas e
procederem à lavratura do ato, os cartórios de protesto estão agindo
licitamente?
5. O cartório de protesto é responsável civilmente pelo protesto das letras de
câmbio domiciliadas sacadas sem causa? Há solidariedade em relação à
eventual responsabilidade do sacador pelo ato?
Este Parecer está dividido em cinco seções, além da presente
introdução. Na primeira, é abordada a questão da facultatividade do aceite da letra de
câmbio, principal diferença entre este título e o mais corrente na economia brasileira, a
duplicata. A segunda seção destina-se ao exame da figura da letra de câmbio
domiciliada, em que o local do pagamento não coincide com o domicílio do sacado. Na
terceira seção, retoma-se a discussão sobre a natureza do protesto, ato praticado pelo
apresentante (em geral, o credor da letra de câmbio), que o cartório de protesto se limita
a registrar. A seção seguinte, a quarta, foca os deveres e responsabilidades dos cartórios
de protestos. Por fim, na quinta seção são respondidos os quesitos propostos pelo
consulente.
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1. Letra de câmbio, esta desconhecida
Em termos relativos ao que se verifica em outros países, no Brasil, a
letra de câmbio é título de crédito de pouquíssima presença. Na França, representa o
instrumento creditício de maior utilização – fato que, aliás, impulsionou o direito
francês à vanguarda da digitalização da circulação do crédito, ao criar, ainda nos anos
1970, a lettre de change-relevé (1), título que, às vésperas da implantação do euro,
instrumentalizava por volta de 140 milhões de operações anuais (2).
A letra de câmbio não é (a rigor, nunca foi) muito utilizada na
economia nacional porque a criatividade brasileira engendrou, ainda durante o Império,
um instrumento de registro e circulação do crédito mais ágil e eficiente. Trata-se da
duplicata, cuja origem se enraíza na obrigatoriedade, nas compras e vendas a prazo, da
emissão de faturas em duas vias instituída pelo Código Comercial de 1850 (3).
1 Newton de Lucca, sem dúvida o pioneiro nas letras brasileiras sobre o tema dos títulos eletrônicos,
leciona: “de todos os países do mundo, a França é, seguramente, um dos que mais se utilizam do saque tradicional para o recebimento dos créditos comerciais. E foi exatamente nesse país, onde a importância da letra de câmbio e da operação de desconto possuem especial relevo, que as críticas dirigidas ao desconto de efeitos de comércio passaram à primeira fila das preocupações. A atividade bancária estava tão sobrecarregada pela gestão dos efeitos comerciais que, em junho de 1966, foi criada a Comissão Gilet, cujo propósito era o de, entre outros, oferecer aos usuários um sucedâneo para o uso largamente repetido dos efeitos de comércio” (A cambial-extrato. São Paulo: RT, 1985, pág. 24).
2 Pascal Bertin, La dématérialisation des moyens de paiement – réalisations et perspectives. Em L’Europe des moyens de paiement a l’heure de l’euro et de l’internet. Paris : Société de Législation Comparée, 2000, pág. 104.
3 Fran Martins narra: “criava, assim, o legislador [por meio do art. 219 do CCom] um documento capaz de garantir o vendedor quanto a um procedimento mais rápido para o recebimento das importâncias relativas às suas vendas a prazo. Presumindo as faturas contas líquidas se não houvesse, em relação às mesmas, reclamações nos dez dias subseqüentes à entrega ou recebimento – uma vez que estivessem devidamente assinadas – dava o legislador ao vendedor o direito de, com elas, ser movida contra o comprador a ação de assinação de dez dias (Reg. 737, de 25 de novembro de 1850, arts. 246 e 247, parágrafo 7º), que consistia no fato de ser citado o réu para pagar, dentro de dez dias, a importância referente à fatura, ou dentro de referido prazo ‘alegar por via de embargos as exceções e defesa que lhes assistirem’ (Reg. 737, art. 249)” (Títulos de crédito. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983, vol. II, pág. 164).
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A diferença fundamental entre os dois títulos – a letra de câmbio, de
um lado, e a duplicata, de outro – diz respeito ao ponto nuclear de interesse do presente
Parecer, isto é, à questão do aceite. Enquanto na letra de câmbio, o aceite é facultativo,
na duplicata, é obrigatório.
A obrigatoriedade do aceite da duplicata dá-lhe configuração original,
possibilitando que o título de criação brasileira sirva aos interesses da concessão e
circulação do crédito de modo mais eficiente que a letra de câmbio. A clara vantagem
da duplicata como instrumento de circulação e realização do crédito, em razão da
facultatividade do aceite que a caracteriza, extravasou os limites do nosso direito (4) e
está na raiz da proibição da emissão de letra de câmbio para o registro de crédito
oriundo de compra e venda mercantil ou prestação de serviços (5).
A existência de um título próprio mais eficiente ao atendimento dos
interesses da concessão e circulação do crédito (duplicata) e a proibição de sua emissão
na compra e venda mercantil (vale dizer, entre empresários, como no caso das vendas
por atacado) explicam, assim, a pouquíssima presença da letra de câmbio na economia
nacional. Naturalmente, em decorrência, ela se tornou um título menos conhecido. É
certo, porém, que, de uns tempos para cá, a letra de câmbio tem sido resgatada como
instrumento de documentação de crédito, e isso tende a mudar o cenário de
desconhecimento de sua estrutura e funcionamento.
4 A criação do direito brasileiro influenciou o de outros países. Para Fran Martins, “apesar de ser o
nosso direito o que melhor regula o assunto, não é o Brasil o único país a utilizar títulos especiais para a cobrança das importâncias relativas às vendas a prazo. Em uns poucos outros, a prática comercial levou à criação de títulos que têm alguma semelhança com a duplicata; e a influência direta do direito brasileiro se fez sentir em determinadas legislações, que transplantaram princípios de nossas leis, instituindo títulos semelhantes aos nossos” (obra citada, pág. 174).
5 “No Brasil, o comerciante somente pode emitir a duplicata para documentar o crédito nascido da compra e venda mercantil. A lei proíbe qualquer outro título sacado pelo vendedor das mercadorias (LD, art. 2º), em dispositivo que exclui apenas a juridicidade da letra de câmbio. Com efeito, a nota promissória e o cheque pós-datado são plenamente admissíveis, no registro do crédito oriundo de compra e venda mercantil, porque são sacados pelo comprador, escapando assim à proibição da lei” (meu Curso de direito comercial. 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, vol. 1, pág. 459).
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Que significa, pois, essa diferença entre os títulos aqui considerados?
Quando se diz que o aceite da duplicata é obrigatório, isso não importa não possa ser ele
recusado; significa apenas que o aceite só pode ser recusado nas hipóteses listadas em
lei (6). Se o comprador das mercadorias ou tomador dos serviços estiver obrigado ao
pagamento, ele simplesmente não pode se recusar a ter sua obrigação documentada por
um título de crédito (isto é, a documento com circulação sujeita ao regime
jurídico-cambial, marcado pela cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações).
Já a letra de câmbio é título de aceite facultativo. Isso significa que,
em nenhuma hipótese, o sacado está obrigado a aceitar o título. Não está obrigado a
aceitar a letra de câmbio nem mesmo se for devedor da obrigação nela referida. Em
outros termos, ninguém está sujeito à circunstância de ter sua obrigação documentada
por letra de câmbio. Se o devedor recebe do credor, para fins de aceite, uma letra de
câmbio registrando a dívida, ele não está minimamente constrangido a concordar com a
documentação desta num título de circulação sujeita ao regime jurídico-cambial.
O saque da letra de câmbio, deste modo, não implica e não pode
implicar nenhuma obrigação para o sacado. Se alguém emite contra mim uma letra de
câmbio, pede-me o aceite, manda a protesto etc, isso não acarreta absolutamente
nenhuma conseqüência na esfera das minhas obrigações passivas. Pode acarretar, isto
sim, a criação de meu direito à indenização, no caso de o sacador do título ter incorrido
em abuso (por exemplo: porque não havia causa para o saque, o título foi emitido com
valor superior ao devido, etc), mas não de qualquer dívida juridicamente consistente.
6 Em relação à duplicata mercantil, as causas autorizadoras da recusa do aceite estão no art. 8º da Lei
nº 5.474/68: (a) avaria ou não-recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por conta e risco do sacado; (b) vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, devidamente comprovados; (c) divergência nos prazos ou nos preços ajustados. Para a duplicata de prestação de serviços, estão no art. 21: (a) não-correspondência com os serviços efetivamente contratados; (b) vícios, ou defeitos na qualidade dos serviços prestados, devidamente comprovados; (c) divergências nos prazos ou nos preços ajustados.
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A exata compreensão da figura do protesto da letra de câmbio deve
partir necessariamente dessa premissa: como o sacado não tem nenhuma obrigação em
razão do saque da letra de câmbio, o protesto do título também não tem o efeito jurídico
de gerar-lhe qualquer obrigação.
Acentua, nesse sentido, Paulo Lacerda:
Cumpre advertir que o facto de ser tirado protesto contra alguém não
indica sempre que essa pessoa tenha alguma responsabilidade cambiária; e
mais, que o protesto não crea jamais obrigações cambiárias para ninguém.
Os sacados, na letra de cambio a vista, assim como os sacados não-
acceitantes, na letra de cambio a prazo, recebem a intimação do protesto,
porém nenhuma obrigação cambiaria tem e continuam a não ter. (7)
Assim é em qualquer tipo de letra de câmbio, inclusive na
domiciliada, objeto da próxima seção.
2. A letra de câmbio domiciliada
A lei se preocupa em caracterizar com precisão, a partir de elementos
puramente formais, os títulos de crédito. Faz isso para que os sujeitos envolvidos com a
documentação de certa obrigação num título de crédito tenham segurança em relação às
regras aplicáveis à sua circulação (8). Quer dizer, esta submeter-se-á ao regime jurídico
7 A cambial no direito brasileiro. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos Editor, aprox. 1908, pág. 278. 8 Para Tullio Ascarelli: “no título de crédito agiu, de maneira singularmente eficaz, a exigência de
certeza e segurança jurídica [...] É a essa exigência de certeza e segurança que o título de crédito satisfaz; certeza na existência do direito; segurança na sua realização. É justamente por isso que os direitos declarados nos títulos podem, com freqüência, considerar-se equivalentes aos bens e às riquezas a que se referem, o que permite realizar pela circulação de tais títulos a mobilização da
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civil ou ao cambial dependendo da natureza do documento que representa a obrigação.
Se o documento é formalmente um título de crédito, a circulação rege-se pelas normas
do direito cambiário; não sendo, pelas do direito civil.
Tome-se o exemplo da inoponibilidade das exceções pessoais aos
terceiros de boa-fé, um dos preceitos característicos do regime jurídico-cambial (9). O
devedor da obrigação, estando ela documentada num título de crédito, não pode opor a
terceiros de boa-fé as defesas que porventura tenha contra o credor originário. Neste
caso, a circulação do crédito faz-se por endosso e o endossatário titula crédito
autônomo, que não pode ser contaminado por vícios próprios de outras obrigações,
ainda que também documentadas na mesma cártula (LUG, art. 17 (10)). Se, contudo,
estiver aquela mesma obrigação documentada em instrumento não caracterizado
formalmente como título de crédito, a circulação opera-se por cessão civil e o devedor,
nesse caso, tem o direito de suscitar contra o credor cessionário as exceções que titula
perante o cedente (CC, art. 294 (11)).
riqueza” (Teoria geral dos títulos de crédito. Tradução de Benedicto Giacobbini. Campinas: Red Livros, 1999, pág. 27).
9 O objetivo do regime jurídico-cambial é facilitar a circulação do crédito. Ao instituir a inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, a lei naturalmente torna mais atrativo aos agentes econômicos a aquisição de créditos documentados em títulos cambiais. A propósito, ainda na lição de Tullio Ascarelli: “Que segurança terá o cessionário do direito de crédito baseado na venda de certa mercadoria, se esse direito pode, eventualmente, ficar como que paralisado, já por falta de entrega de mercadoria ou porque entregue tardiamente ou com algum vício; já por existirem entre comprador e vendedor determinadas condições preestabelecidas sobre prorrogação do prazo do pagamento, sobre consertos a fazer na mercadoria, etc.; já finalmente pelo fato de ter, o comprador, um crédito contra o vendedor, compensável com o seu débito a favor deste? [...] Circulação de créditos, vale dizer – o máximo de rapidez e de simplicidade no transmiti-los a vários adquirentes sucessivos com o mínimo de insegurança para cada adquirente que deve ser posto, não só em condições de conhecer pronta e eficazmente aquilo que adquire, mas também, a salvo das exceções cuja existência não lhe fosse dado notar, facilmente, no ato da aquisição” (Obra citada, pág. 30).
10 Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
11 Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.
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A importância, portanto, de a lei estabelecer com precisão as
características formais de cada título de crédito atende à necessidade de as partes, em
especial o devedor, terem segurança jurídica relativamente às regras aplicáveis na
circulação e realização do crédito documentado.
Em relação à letra de câmbio, os requisitos característicos do título de
crédito estão mencionados nos arts. 1º e 2º da LUG:
Art. 1º.
A letra contém:
1. a palavra ‘letra’ inserta no próprio texto do título e expressa na língua
empregada para a redação desse título;
2. o mandado puro e simples de pagar uma quantia determinada;
3. o nome daquele que deve pagar (sacado);
4. a época do pagamento;
5. a indicação do lugar em que se deve efetuar o pagamento;
6. o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;
7. a indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada;
8. a assinatura de quem passa a letra (sacador).
Art. 2º.
O escrito a que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não
produzirá efeito como letra, salvo nos casos determinados nas alíneas
seguintes:
A letra em que se não indique a época do pagamento, entende-se pagável à
vista.
Na falta de indicação especial, o lugar designado ao lado do nome do
sacado considera-se como sendo o lugar do pagamento, e, ao mesmo
tempo, o lugar do domicílio do sacado.
A letra sem indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o
sido no lugar designado ao lado do nome do sacador.
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A doutrina, em sua maioria, classifica os requisitos dos arts. 1º e 2º da
LUG respectivamente em essenciais e acidentais (12). De minha parte, tenho críticas a
essa forma de sistematizar o assunto, já que, a rigor, apenas a época do pagamento é
requisito acidental. O lugar do pagamento e o do saque podem ser substituídos pela
designação de lugares ao lado do nome do sacado e do sacador, mas se faltarem também
estas designações, o documento não produzirá os efeitos de uma letra de câmbio (13).
Para as finalidades deste Parecer, contudo, a controvérsia é irrelevante, posto interessar
aqui apenas a discussão dos efeitos gerais da aplicação dos dispositivos legais acima
transcritos.
Qualquer documento, para ser letra de câmbio, deve atender aos
requisitos formalmente estabelecidos nesses dispositivos (14). Além disso, o documento
que os atende deverá ser sempre considerado, para todos os efeitos, uma letra de
câmbio. A relação de requisitos dos títulos de crédito tem natureza exaustiva, e não
exemplificativa. 12 Cfr., por todos, Fran Martins: “a Lei Uniforme [...] enumera oito requisitos essenciais para a
validade do título (art. 1º). Acontece, entretanto, que a própria Lei Uniforme esclarece que três requisitos podem deixar de existir (época do vencimento, lugar do pagamento e lugar da emissão), suprindo a lei (art. 2º) a falta expressa dos mesmos” (Obra citada, vol. I, pág. 105).
13 “A letra deve informar o lugar do pagamento ou, pelo menos, mencionar um lugar ao lado do nome do sacado (g), requisitos que a lei considera equivalentes. Similarmente, o título deve trazer a identificação do lugar do saque ou, senão, a menção de um lugar ao lado do nome do sacador (h), elementos também equivalentes. Deve-se acentuar que, faltando ambos os dados da equivalência, o documento não é uma letra de câmbio. A essencialidade desses requisitos, portanto, é a mesma da dos requisitos anteriores. Contudo, importa registrar que a doutrina tradicionalmente classifica o lugar do pagamento e o lugar do saque como requisitos não essenciais da letra de câmbio [...]. Não se justifica, contudo, essa solução, na medida em que a conseqüência para a sua falta e a do equivalente é, tal como em relação aos demais requisitos até aqui examinados, a inexistência de documento cambiário. Na verdade, o único elemento referido na lei como requisito não essencial é a época do pagamento, cuja falta não tem o mesmo alcance; de fato, se a letra de câmbio não especificar o momento em que poderá ser exigida a sua paga, reputar-se-á paga a vista (LU, arts. 1º, n. 4, e 2º, segunda alínea)” (meu Curso de direito comercial vol. 1, pág. 399).
14 “A letra de câmbio é um título formal, contendo uma ordem de pagamento e mais outros requisitos indispensáveis para que a mesma possa produzir os efeitos relativos à mobilização do crédito com suficiente garantia para os seus portadores. Faltando ao título algum desses requisitos legais deixará o mesmo de ser uma letra de câmbio, podendo apenas valer como um meio de prova, não um documento per se stante. É o rigor cambiário uma segurança para a circulação da letra e é graças a ele que esse título tanto vem cooperando na realização das atividades econômicas” (Fran Martins, obra citada, vol. I, pág.104).
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O aceite do título pelo sacado não é requisito da letra de câmbio.
Como visto, o aceite, nesse título, é sempre facultativo e o saque não traz para a pessoa
“que deve pagar” nenhuma implicação patrimonial que lhe acresça o passivo. Desse
modo, seja pela facultatividade do ato cambiário, seja pela inexistência de qualquer
menção a esse requisito na lei, a letra de câmbio de que não consta a assinatura do
sacado é válida, regular e plenamente eficaz. O documento produzirá todos os efeitos
legalmente reservados às letras de câmbio.
A letra de câmbio domiciliada é aquela em que a indicação do lugar
do pagamento não coincide com o domicílio do sacado. Na verdade, para que o
documento seja uma letra de câmbio, como decorre dos arts. 1º, nº 5, e 2º, 3ª alínea,
acima transcritos, basta a menção do lugar do pagamento (“a indicação do lugar em que
se deve efetuar o pagamento”). Havendo esta, dispensa-se o registro do domicílio do
sacado ou mesmo o de um lugar “ao lado do nome do sacado”.
Pois bem, o sacador é livre para indicar qualquer lugar de sua
preferência como sendo o do pagamento da letra de câmbio. Se ocorrer de não
coincidirem este e o do domicílio do sacado, nada há de irregular ou abusivo, desde que
seja mesmo da conveniência do credor a designação constante da letra. A figura da letra
de câmbio domiciliada (15) está fundada no art. 27, 1ª alínea, da LUG (16) e conta com a
aceitação unânime da doutrina (17).
15 Não se confundem a letra de câmbio domiciliada e a letra de câmbio de aceite domiciliado. A
primeira se caracteriza pela menção como lugar de pagamento de uma praça não coincidente com o Município do domicílio do sacado (LUG, art. 27, 1ª alínea), ao passo que a última é a letra de câmbio em que o local do pagamento foi alterado pelo aceitante (LUG, art. 27, 2ª alínea).
16 Art. 27. Quando o sacador tiver indicado na letra um lugar de pagamento diverso do domicílio do sacado, sem designar um terceiro em cujo domicílio o pagamento se deva efetuar, o sacado pode designar no ato do aceite a pessoa que deve pagar a letra. Na falta dessa indicação, considera-se que o aceitante se obriga, ele próprio, a efetuar o pagamento no lugar indicado na letra.
17 Cf., por todos, Fran Martins, obra citada, vol. I, págs. 197/198. Também na doutrina estrangeira, não há dissenso quanto à regularidade e licitude da emissão da letra de câmbio domiciliada: “oltre che al domicilio del trattario, statuisce la legge, la cambiale può essere pagabile in altro luogo, o al domicilio di um terzo. In quet’ultimo caso si parla di cambiale <domiciliata> e, più precisamente, di
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Mas – e aqui chegamos ao ponto central da questão objeto do
Parecer –, o cartório de protesto, quando recebe para protesto uma letra de câmbio
domiciliada, não tem o dever de investigar se a indicação de lugar de pagamento diverso
do domicílio do sacado é ato da legítima conveniência do sacador ou configura alguma
forma de exercício abusivo de direito. Em primeiro lugar, porque é incompatível com a
função registral de que está incumbido; em segundo, porque não detém poder
jurisdicional para julgar a licitude ou ilicitude do saque; em terceiro, porque não dispõe
minimamente dos meios para fazer a verificação do fato. O protesto, convém enfatizar,
é ato da parte; o cartório de protesto apenas o registra. É este o tema da próxima seção.
3. A natureza do protesto
A lei define o protesto como sendo o “ato formal e solene pelo qual se
prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros
documentos de dívida” (Lei n. 9.492/97, art. 1º).
Esse conceito de protesto, embora legal, não é o correto. Há protestos
que nele não se podem enquadrar, como, por exemplo, o objeto de estudo neste Parecer:
protesto por falta de aceite da letra de câmbio.
Como visto, o sacado desse título (ao contrário do que se verifica em
relação à duplicata) não está obrigado a aceitar a ordem de pagamento que lhe é
dirigida. Ao recusar o aceite, ele não descumpre obrigação nenhuma, e, ainda assim,
cambiale domiciliata propria, se il pagamento deve essere effettuato dallo stesso domiciliatario. Qualora invece debba provvedervi l’obbligato principale presso il domicilio del terzo si tratterà di cambiale domiciliata impropria” (Mia Callegari, Gastone Cottino, Eva Desana e Gaspare Spatazza. Trattato di diritto commerciale. Volume settimo. Padova: Cedam, 2006, pág. 310).
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caberá o protesto por falta de aceite, como condição indispensável ao vencimento
antecipado da letra.
Na verdade, o protesto deve-se definir como ato praticado pelo
credor, perante o competente cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a
prova de fato relevante para as relações cambiais (18).
Um dos princípios basilares do direito cambiário é o da literalidade,
segundo o qual apenas produzem efeitos jurídico-cambiais os atos que constam do teor
do título de crédito (19). Em razão desse princípio, a literalidade, alguns fatos relevantes
para as relações cambiais devem ser, de algum modo, incorporados ao título, para que
passem a constar de seu teor e, assim, produzam efeitos jurídico-cambiais.
O protesto por falta de pagamento existe para que passe a constar do
teor do título de crédito a prova de que o portador procurou, dentro do prazo legal, o
devedor principal do título (no caso da letra de câmbio, o aceitante) e que este não
honrou a obrigação. Como se sabe, os co-devedores de um título de crédito, assim os
endossantes e seus avalistas, só estão obrigados a pagá-lo no caso de o devedor
18 Acentua Rubens Requião: “É muito importante para o direito cambiário que o cumprimento de
certas obrigações seja formalizado de modo inequívoco. Como os atos cambiários são realizados entre devedor e credor, torna-se difícil, senão impossível, assegurar uma prova de ato que ocorreu reservadamente e sem ostentação. Como provar, na verdade, valendo-nos dos meios probatórios comuns e privados, que o portador, por exemplo, apresentou em determinada data fatal a letra para aceite, ou para pagamento, se o devedor negar a ocorrência? [...] Mas o direito cambiário, como já estudamos, requer celeridade e efeitos instantâneos, nos problemas relativos à circulação da letra. A única solução, portanto, para a comprovação fácil e prática do cumprimento de certos atos é determinar sua realização perante ou por intermédio de serventuário, com fé pública. Somente assim, de forma precisa e segura, pode obter-se a certeza probatória que o direito cambiário requer” (Curso de Direito Comercial. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1976, vol. II, pág. 362). Consultar, também, Waldemar Ferreira, Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1962, 8º vol., pág. 320.
19 De Rubens Requião: “o título é literal porque sua existência se regula pelo teor de seu conteúdo. O título de crédito se enuncia em um escrito, e somente o que está nele inserido se leva em consideração; uma obrigação que dele não conste, embora sendo expressa em documento separado, nele não se integra” (Obra citada, pág. 389).
13
principal ter sido procurado pelo credor dentro do prazo legal e não realizar o
pagamento.
Se o credor do título não procura o devedor principal dentro do prazo
legal, ele perde o direito de cobrá-lo de seus endossantes e avalistas. A prova de que
cumpriu esse dever e que o pagamento não se realizou é o protesto tempestivamente
providenciado, pois, à sua falta, como claramente estabelece a lei (LUG, art. 53 (20)),
ocorre a perda dos direitos de crédito do portador contra “o sacador e contra outros
co-obrigados, à exceção do aceitante” (21). Esta prova deve incorporar-se ao título, por
força do princípio da literalidade, e daí a necessidade de sua formalização perante um
cartório específico.
Note-se que é o credor quem protesta o título. É ele quem, diante do
órgão registral, manifesta seu desagrado pela falta do aceite ou do pagamento da letra de
câmbio. O cartório de protesto apenas reduz a termo a declaração expressa pelo titular
do crédito (ou outro apresentante). Por meio desse ato, o credor formaliza a prova de
fato jurídico, cuja ocorrência traz implicações às relações creditícias representadas pela
cambial.
20 Art. 53. Depois de expirados os prazos fixados [...] para se fazer o protesto por falta de aceite ou por
falta de pagamento [...] o portador perdeu os seus direitos de ação contra os endossantes, contra o sacador e contra os coobrigados, à exceção do aceitante.
21 “Se o credor perde o prazo para a efetivação do protesto (isto é, para a entrega da cambial no cartório), a conseqüência será a inexigibilidade do crédito mencionado na letra, contra os co-devedores e seus avalistas. Se o endossatário, assim, não obedece ao prazo legal para o protesto por falta de pagamento, ele não poderá cobrar a letra do sacador, endossante e seus avalistas (LU, art. 53). Continua, é certo, com o direito creditício contra o aceitante e o avalista do aceitante, devedores perante os quais o desatendimento do prazo não produz efeitos” (meu Curso de direito comercial vol. 1, pág. 427).
14
A lição é antiga e assente na doutrina nacional. Paulo Lacerda, há
cerca de cem anos atrás, já lecionava:
O protesto é direito do portador e rigorosa formalidade cambiária [...] O
Oficial não póde se recusar a tomar o protesto nos casos em que a Lei o
permitte. Não lhe compete examinar a qualidade ou identidade do portador,
e nem corrigir ou supprir as irregularidades ou nulidades da cambial que
lhe for apresentada. O papel do Official é quasi mecânico. Verificando que
o titulo apresentado tem a forma exteriro de cambial, com ou sem
nullidades ou irregularidades, e recebendo do apresentante a declaração de
que quer protestar pro um dos motivos legaes, nada mais elle tem a fazer
sinão tomar o protesto com as formalidades de direito. (22)
Trata-se, aliás, de lição que a doutrina ainda hoje reproduz. De acordo
com Themistócles Pinho e Ubirayr Ferreira Vaz:
O protesto está sujeito ao princípio da instância, o que significa dizer que
não há protesto sem pedido, ou seja, a atuação do Tabelião de Protesto tem
que ser precedida de um ato formal por quem quer fazer o protesto. Quem
formula o pedido de protesto é denominado na Lei de Regência de
APRESENTANTE, e, a este tem que ser entregue recibo, com as
características essenciais do título ou documento de dívida, sendo de sua
responsabilidade os dados fornecidos (art. 5º, Lei 9.492/97). Assim, se
consolida a posição de causa e efeito que rege tal ato, participando nos
respectivos pólos, o APRESENTANTE, no ativo, e o DEVEDOR, no passivo,
cabendo ao Tabelião de Protesto a função de mero executor dos atos
fixados pela lei (art.s 3º e 14 da Lei 9.492/97). Mesmo quando o pedido é
feito por simples indicação da duplicata, o apresentante é o responsável
22 Obra citada, págs. 274/276.
15
pelos dados fornecidos (art. 8º, parágrafo único da Lei 9.492/97). Quanto à
posição do Tabelião de Protesto nesta relação é bem clara, participando
ele do ato, no estrito cumprimento do seu dever. (23)
Ou, segundo a síntese feliz de Rubem Garcia:
Vale lembrar que quem protesta, verdadeiramente, é o apresentante do
título. O Escrivão limita-se a tomar nota desse protesto, vale dizer, registra
esse protesto e dele tira um instrumento, uma prova. É importante a fixação
deste ponto. A responsabilidade pelo protesto de qualquer título é do
apresentante. Só ele pode responder pelo protesto indevido ou de ma fé. (24)
O protesto por falta de aceite tem a função de incorporar ao
documento a prova de que o título foi apresentado ao sacado e este não concordou em
aceitá-lo. Esta prova é necessária para que o tomador possa exercer o direito de crédito,
de imediato, contra o sacador do título (quando, evidentemente, são pessoas distintas).
Como estabelece o art. 43 da LUG (25), a recusa (total ou parcial) do aceite acarreta o
vencimento antecipado do título. Pois bem, se o tomador da letra procura o sacador,
antes do vencimento, e lhe exibe o título sem a assinatura do sacado, exigindo, sob a
alegação de ter se verificado a recusa do aceite, que a dívida seja imediatamente
satisfeita, como poderá o mesmo sacador certificar-se da veracidade desse fato? Note-se
que somente se opera o vencimento antecipado da obrigação, se o título foi apresentado
realmente ao sacado e esse o recusou. Ora, a prova da falta de aceite é o protesto da
letra.
23 Protesto de títulos e outros documentos de dívida. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2007,
pág. 18. 24 Protesto de Títulos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, pág. 27. 25 Art. 43, O portador de uma letra pode exercer os seus direitos de ação contra os endossantes,
sacador e outros coobrigados [...] mesmo antes do vencimento: 1º) se houve recusa total ou parcial de aceite [...].
16
A função primária do protesto corresponde, portanto, a
desdobramento do princípio da literalidade. Ela atende, por consequência, às mesmas
finalidades dos institutos básicos do direito cambiário: criar mecanismos que facilitem a
agilização da circulação do crédito. Certo, não se pode ignorar a função por assim dizer
secundária de um dos tipos de protesto, o tirado por falta de pagamento, de índice da
confiabilidade do demandante de crédito. Quem acumula protestos por falta de
pagamento revela, inevitavelmente, que não preza o compromisso de honrar as
obrigações no vencimento. É mau pagador. Os agentes econômicos concedentes de
crédito têm o direito de acesso à informação dessa natureza.
Esse direito de acesso à informação sobre os protestos titulado pelos
agentes econômicos concedentes de crédito não tutela apenas os interesses imediatos
deles, de receberem o pagamento dos créditos que abrem a consumidores e outros
empresários. O inadimplemento das obrigações não raras vezes projeta os seus efeitos
para além dos interesses do credor insatisfeito, prejudicando terceiros fornecedores.
Além do mais, quanto maior o índice de inadimplemento na economia, maior serão os
juros cobrados pelos agentes econômicos concedentes de crédito, os quais, uma vez
repassados aos preços dos produtos e serviços, serão suportados por toda a sociedade.
Atende ao interesse público, portanto, a mais ampla difusão, no meio dos agentes
concedentes de crédito, das informações sobre os protestos tirados.
O protesto de títulos, seja de que natureza for, é um registro público,
ao qual todos têm direito de acesso (Lei nº 9.492/97, art. 31), independentemente de
motivação ou indicação do interesse pela informação. A concentração e sistematização
de informações atinentes aos protestos tirados nos órgãos de proteção ao crédito apenas
facilita o exercício desse direito por alguns de seus titulares, os agentes concedentes de
crédito. E exatamente por reconhecer a importância que a mais ampla difusão dessa
informação tem para a economia em geral, a lei obriga os cartórios de protesto a
colaborarem com a concentração e sistematização dessas informações (Lei nº 9.492/97,
art. 29).
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A remessa da relação dos protestos tirados às entidades de proteção ao
crédito, em outros termos, nada mais é do que a reunião num único instrumento das
informações que o cartório de protesto teria a obrigação de fornecer, caso solicitadas as
respectivas certidões, já que é público o registro de que estão encarregados. O caráter de
“informação reservada” atribuído pela lei a esta relação não representa nenhuma
restrição à ampla publicidade que deve cercar os protestos tirados. Tal caráter é apenas
o meio que a lei engendrou para impedir, em última análise, que as entidades de
proteção ao crédito substituíssem os cartórios de protesto na função de expedir
certidões.
Assentado, pois, que o protesto é ato praticado pela parte – aquele
que, identificando-se como credor de um instrumento de dívida, leva-o ao cartório de
protesto –, resta discutir a extensão dos deveres e responsabilidades do titular desse
serviço público notarial.
4. Deveres e responsabilidades do cartório de protesto
O dever do cartório, ao receber para protesto uma letra de câmbio não
aceita, simples ou domiciliada, restringe-se ao de verificar o preenchimento dos
requisitos formais de caracterização do título de crédito. Em outros termos, consiste
apenas em conferir se o documento exibido por quem se apresenta como credor é
mesmo uma letra de câmbio suscetível de protesto cambiário. Concretamente, se estão
presentes os requisitos estabelecidos pelos arts. 1º e 2º da LUG; nada mais.
Não cabe ao cartório ir além dessa verificação, de caráter
exclusivamente formal. Quer dizer, se quem se apresenta como credor é-o realmente, ou
não; se tinha o direito de sacar aquele específico título de crédito, ou deveria ter se
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valido de outro; se podia indicar a praça de pagamento que indicou; se o valor de seu
crédito é o mencionado no título, ou inferior – são todos fatos ou questões jurídicas que
escapam por completo do dever que o cartório tem quando procede ao exame do
documento no momento da “protocolização” de letra de câmbio (26).
Nos termos do art. 9º da Lei nº 9.492/97:
Art. 9º. Todos os títulos e documentos de dívida protocolizados serão
examinados em seus caracteres formais e terão curso se não apresentarem
vícios, não cabendo ao tabelião de protesto investigar a ocorrência de
prescrição ou caducidade.
Vale a pena relembrar, a propósito, que o Brasil, ao aderir à
Convenção pela Adoção da Lei Uniforme sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória,
assinalou a reserva do art. 16 do Anexo II, por força da qual as “relações jurídicas que
serviram de base à emissão da letra” ficam excluídas do âmbito de alcance da norma
26 Ressaltam Themistócles Pinho e Ubirayr Ferreira Vaz: “constatado pelo exame que o título ou
documento de dívida preenche os requisitos formais exigidos por lei, sem apresentar vícios nos seus caracteres formais, é dever do Tabelião de Protesto dar curso normal ao pedido (art. 9º e parágrafo único da Lei 9.492/97), sem que tenha ele o poder de examinar a validade e eficácia, não lhe sendo permitido recusar promover o curso normal de pedido em que estejam presentes os requisitos formais do título ou documento de dívida. [...] Repita-se, por sua importância, o Tabelião de Protesto não tem poderes jurisdicionais para indagar quanto à validade e eficácia dos títulos ou documentos de dívida a ele apresentados ou indicados. O seu PODER-DEVER DE AGIR, o obriga a recepcionar e dar curso normal aos pedidos de protesto de títulos ou documentos de dívida que tenham existência formal, só podendo recusar os pedidos baseados em títulos ou documentos de dívida que não tenham essa existência, ou que apresentem vícios em seus caracteres formais (art. 9º da Lei 9492/97)” (Obra citada, págs. 20/22).
No mesmo sentido, anota Rubem Garcia: “o Cartório de Protesto exerce uma função notarial. E é da essência do ato notarial a tomada de notas em livros da Serventia, consoante o pedido ou declaração da parte interessada. No caso do Cartório de Protesto, o funcionário atende ao pedido do apresentante do título que, em resumo, pode ser equacionado com uma solicitação para intimar o devedor de que o portador pretende a devolução do título, seu aceite, ou pagamento. Pela apresentação indevida do título a Cartório, pode o portador ser responsabilizado, se obrar de ma fé. Por outro lado, nenhuma é a responsabilidade do Escrivão pelo rpotesto regular de quaisquer títulos. A Serventia se obriga, tão-só, a efetuar o exame formal do título, conferindo sua legalidade e preenchimento de requisitos legais” (Obra citada, pág. 27).
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uniforme em sua entrada em vigor no direito interno, derivada da edição do
Dec. 57.663/66 (27).
O dever atribuído aos cartórios de protestos circunscreve os limites de
sua responsabilidade. Os tabeliães respondem subjetivamente pelos danos que causarem
no caso de descumprimento de qualquer dever legal. A lei exclui, de modo expresso,
qualquer responsabilização objetiva, isto é, independente de culpa, pela atividade
exercida. Diz o art. 38 da Lei nº 9.492/97:
Art. 38. Os tabeliães de protesto de títulos são civilmente responsáveis por
todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos
substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o
direito de regresso.
Deste modo, afastada legalmente a hipótese de responsabilidade
objetiva, somente no caso de descumprimento de dever legal pode o cartório ser
responsabilizado por eventuais danos que a sua atividade de registro notarial venham a
acarretar.
A rigor, o cartório de protesto seria civilmente responsabilizado no
caso de recusar-se a protocolizar uma letra de câmbio domiciliada que atendesse aos
requisitos dos arts. 1º e 2º da LUG. Seria igualmente responsabilizado, pelos danos que
dessa conduta adviriam a concedentes de crédito, no caso de omitir, na relação de 27 “A Convenção de Genebra permite que o país, ao aderir, se reserve à faculdade de fazer algumas
pequenas mudanças no texto uniforme, ao introduzi-lo em seu ordenamento. Essas mudanças somente podem ser as previstas pela mesma Convenção, para fins de se garantir o propósito fundamental da uniformidade. Pela sistemática adotada, agregaram-se à convenção dois anexos: o texto da lei uniforme (Anexo I) e as reservas admitidas (Anexo II). Como o Brasil assinalou 13 reservas, a lei uniforme não vigora inteiramente entre nós. Nas matérias reservadas, permanecem em vigor as normas correspondentes do Decreto n. 2.044/1908 – que compõe a chamada lei cambial interna. Por outro lado, como não se operou a revogação expressa desse decreto por força do art. 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, os dispositivos correspondentes à matéria não disciplinada pela lei uniforme continuam vigentes” (meu Curso de direito comercial vol. 1, pág. 394).
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protestos tirados que tem a obrigação de fornecer às entidades de proteção ao crédito, os
referentes às letras de câmbio domiciliadas. Nestes dois casos, estaria descumprindo
flagrantemente deveres que a lei lhe impõe e, portanto, agindo com culpa.
Não pode ser responsabilizado, por conseguinte, por danos que o
consumidor sofre quando vitimado por protesto indevido, seja em que título for, seja em
que modalidade for, incluindo o relacionado a letra de câmbio domiciliada. Quem
pratica o protesto, reitere-se, é o portador do título de dívida; se ele protesta sem o
devido respaldo legal, o cartório não pode ser responsável, nem individual, nem
solidariamente.
O devedor apenas poderia demandar perdas e danos contra o cartório
de protesto se este tivesse culposamente incorrido em algum descumprimento de dever
legal. Por exemplo, se tivesse registrado o protesto antes do esgotamento do prazo do
art. 12 da Lei nº 9.492/97, não respeitando o lapso temporal assegurado ao devedor para
proceder ao pagamento do título protocolizado; ou se não tivesse expedido a intimação
para o endereço fornecido pelo devedor, etc.
De novo, se o portador de letra de câmbio domiciliada eventualmente
abusou do seu direito e sacou título sem causa, em valor superior ao seu crédito ou
indicou dolosamente domicílio incorreto do sacado, estas são condutas que cabe
exclusivamente ao Poder Judiciário, mediante a ação própria, apreciar e julgar. Não têm
os cartórios de protesto poder jurisdicional, ou mesmo meios concretos de averiguação,
que os permitam coibir ou impedir o exercício irregular do direito ao protesto por quem
quer que se apresente como credor de título de dívida.
Não tem, enfim, nenhuma base jurídica a imputação de qualquer
responsabilidade civil aos cartórios de protesto pelos danos que porventura sofrem os
sacados de letra de câmbio regularmente sacada e protestada, inclusive se domiciliada.
21
5. Resposta aos quesitos
Assentadas as premissas acima, pode-se responder aos quesitos
propostos de modo conciso e objetivo.
1. O art. 1º da Lei Uniforme de Genebra (LUG) não define o aceite
como requisito essencial da letra de câmbio. Que elementos devem
ser apreciados pelo cartório para lavrar o protesto de letra de
câmbio sem aceite? A letra de câmbio sem aceite deixa de ser letra de
câmbio?
Quando a letra de câmbio é apresentada a protesto, o cartório tem o
dever de verificar se o documento exibido preenche os requisitos legais característicos
desse título de crédito. Se o instrumento apresentado não se configura uma letra de
câmbio, por não atender aos requisitos legais pertinentes (nem se configura qualquer
outro título de dívida legalmente sujeito a protesto), o cartório tem o dever de o recusar.
Mas se os requisitos legais característicos da letra de câmbio
mostram-se atendidos no documento apresentado a protesto, o dever do cartório é o de
não recusar sua protocolização e processamento.
A letra de câmbio é ordem de pagamento emitida contra um sujeito de
direito (sacado), que pode aceitá-la ou não. Se o documento exibido ao cartório de
protesto atende a todos os requisitos legais característicos deste título de crédito, a
ausência de aceita não é minimamente um fato impeditivo de sua protocolização e
processamento.
22
E a ausência do aceite não é fato impeditivo do protesto da letra de
câmbio exatamente porque não se encontra entre os requisitos legais característicos
deste título de crédito.
Em suma, a letra de câmbio sem aceite não deixa de ser letra de
câmbio e deve ter o protesto regularmente processado e tirado sempre que o credor (ou
outra pessoa) apresentar o título ao cartório para esta finalidade, se presentes estiverem
os requisitos legais que o caracterizam.
2. É válido, à luz do art. 27 da LUG, o saque de letra de câmbio para
pagamento em praça situada em local diferente do domicílio do
sacado?
É plenamente válido o saque da letra de câmbio em que o local do
pagamento não coincide com o lugar do domicílio do sacado. O dispositivo legal
mencionado no quesito não deixa margem para qualquer dúvida a respeito.
Trata-se da conhecida letra de câmbio domiciliada, em que o sacador,
responsável pela ordem de pagamento materializada na cambial, por sua conveniência,
elege como lugar de pagamento do título uma praça (vale dizer, um Município) diverso
daquele em que domicilia o destinatário da ordem.
O sacado também pode, aliás, se aceitar o título, alterar o lugar do
pagamento indicado pelo sacador, segundo o previsto no mesmo dispositivo da Lei
Uniforme de Genebra, caso referido pela doutrina pela expressão letra de câmbio de
aceite domiciliado.
Tanto no caso da definição do lugar do pagamento pelo sacador, como
no de sua alteração pelo sacado-aceitante, não há nada na lei que obrigue coincida este
com o lugar do domicílio do destinatário da ordem de pagamento. Pelo contrário, a lei
23
expressamente autoriza a incoincidência, facultando sempre ao sacador escolher o lugar
do pagamento que lhe for mais conveniente, independentemente de onde está fixado o
domicílio do potencial devedor da letra de câmbio.
3. Os cartórios de protestos estão obrigados, pelos arts. 29 e 30 da Lei
nº 9.492/97, a informarem as entidades vinculadas à proteção ao
crédito de todos os protestos tirados, inclusive os por falta de aceite?
Os cartórios de protesto têm o dever de comunicar aos órgãos de
proteção do crédito, por meio de relações, todos os protestos tirados, incluindo os por
falta de aceite.
Na verdade, a lei apenas simplifica os procedimentos de acesso dos
órgãos de proteção do crédito às informações relacionadas aos protestos. Sendo tais
informações públicas, estes órgãos poderiam obtê-las mediante certidão, mas isso
apenas dificultaria e encareceria o custo da sistematização e armazenagem dos dados;
dificuldade e encarecimento que repercutiria, em última análise, no custo do crédito
disponível no mercado, principalmente o consumidor.
A obrigatoriedade contida nos dispositivos legais lembrados pelo
quesito visa, portanto, contribuir para a ampliação do acesso do consumidor ao crédito,
ao facilitá-lo e barateá-lo. Não fosse a organização de bancos de dados centralizados
sobre os protestos, o lojista somente poderia conceder o crédito aos consumidores que
lhe exibissem as certidões negativas dos diversos cartórios de protesto, o que
visivelmente não tem nenhum cabimento.
Trata-se de dever legal imposto aos cartórios de protesto, que não
pode ser, assim, desrespeitado ou descumprido.
24
Os protestos por falta de aceite também devem ser contemplados nas
relações enviadas aos órgãos de proteção do crédito, diante da inexistência de qualquer
disposição legal ou normativa em sentido diverso. Como o cartório deve obediência
estrita aos ditames legais relacionados aos procedimentos da relevante atividade que
exerce por delegação do Poder Público, omitir um tipo qualquer de protesto em tais
relações sem que exista qualquer preceito normativo a obrigar a omissão importaria
flagrante descumprimento, por parte do cartório, dos deveres que lhe são imputados.
4. Ao receberem para protesto as letras de câmbio domiciliadas e
procederem à lavratura do ato, os cartórios de protesto estão agindo
licitamente?
Se a letra de câmbio domiciliada que lhes é exibida atende aos
requisitos legais característicos deste título de crédito (abrigados nos arts. 1º e 2º da
LU), os cartórios de protestos agem licitamente ao receberem-nas e lavrarem o ato,
seguindo os procedimentos da lei.
As letras de câmbio domiciliadas, como visto ao longo do Parecer e na
resposta a quesito anterior, são admitidas no direito brasileiro e no vigente em todos os
países signatários da Convenção de Genebra (LU, art. 37). Não há outra alternativa,
para os cartórios de protesto, senão a regular prática de todos os atos previstos nos
procedimentos legais diante da solicitação de protesto de uma letra de câmbio
domiciliada que lhes seja apresentada.
Estariam agindo ilicitamente os cartórios de protesto se recusassem a
protocolização e processamento do protesto de uma letra de câmbio, tão somente sob o
argumento de ter sido eleita como lugar do pagamento uma praça (Município) diversa
da do domicílio do sacado. Nesta hipótese, sim, haveria descumprimento de dever legal
e ilicitude na infundada recusa.
25
5. O cartório de protesto é responsável civilmente pelo protesto das
letras de câmbio domiciliadas sacadas sem causa? Há solidariedade
em relação à eventual responsabilidade do sacador pelo ato?
Não há nenhuma responsabilidade dos cartórios pelo protesto de letras
de câmbio domiciliadas, ainda que tenham sido sacadas sem causa.
Como assentado, o responsável pelo protesto é o apresentante do título
(normalmente, seu credor). É ele quem “protesta” diante de um fato que contraria os
seus interesses: falta do aceite, falta do pagamento, falta de data do aceite na letra de
câmbio a certo termo da data, etc.
O cartório de protesto apenas dá a forma legal ao ato,
instrumentaliza-o, reduz a termo a declaração do apresentante. Com perdão pelo
paralelo simples, age exatamente como o cartório de notas ao lavrar a escritura de
compra e venda de imóvel: apenas registra as declarações de vontade das partes, sem
praticar o negócio jurídico.
Por outro lado, o art. 38 da Lei nº 9.294/97 imputa aos cartórios de
protesto responsabilidade subjetiva pelos danos derivados da atividade que, por
delegação do Poder Público, exercem. Vale dizer, apenas respondem os cartórios no
caso de culpa (do próprio tabelião, de substitutos ou escreventes). Não há
responsabilidade objetiva.
Deste modo, só podem ser responsabilizados os cartórios de protestos
por atos ilícitos que tenham cometido.
Como visto, o protesto de letra de câmbio domiciliada não aceita é
plenamente lícito, e, portanto, não pode dar ensejo a nenhuma responsabilização do
cartório que o lavra – a menos, é claro, que o título não atenda aos seus requisitos legais
26
(LU, arts. 1º e 2º) ou tenha ocorrido alguma irregularidade qualquer no processamento
do protesto (falta da intimação, inobservância dos prazos etc).
Não há que se falar, tampouco, em solidariedade com o sacador. A
solidariedade não se presume, resulta da lei ou da vontade das partes (CC, art. 265). Não
existindo lei nenhuma imputando essa responsabilidade solidária, nem tendo havido
qualquer manifestação de vontade nesta direção, o cartório de protesto não se vincula a
obrigação solidária nenhuma por eventual falta de causa no saque da letra de câmbio ou
abusividade do protesto por parte do apresentante.
São Paulo, 7 de agosto de 2008
Fábio Ulhoa Coelho