apostila sobre neurociências

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO INSTITUTO DE BIOCINCIAS

1 CURSO DE NEUROCINCIAS E COMPORTAMENTO

27 de junho de 2008 www.ib.usp.br/labnec

SumrioCognio.........................................................................................................................................1 BiologiadaCognio:Introduo....................................................................................................7 Construodecircuitosesuamodificaopelaexperincia............................................................10 Integraoentrecircuitos:omodeloderedes..................................................................................11 BiologiadaCognio:IntegraoNeural........................................................................................15 Percepoenvolveao.....................................................................................................................16 Organizaoehierarquianociclopercepoao...........................................................................17 Integrandopercepoeao:osistemadeneurniosespelho.......................................................18 Percepo.....................................................................................................................................21 Viasperceptuais.................................................................................................................................22 Viso...............................................................................................................................................22 Audio..........................................................................................................................................24 Memriasatentasaocontexto..........................................................................................................25 Ilusesehemisfrioscerebrais......................................................................................................26 Sinestesia............................................................................................................................................28 Concluirumproblema.....................................................................................................................30 Ateno.........................................................................................................................................32 Atenoepercepo..........................................................................................................................32 Falhanapercepo............................................................................................................................34 TestedePosner..................................................................................................................................34 Efeitosdaslesesdosistemanervosonaateno............................................................................36 Memria.......................................................................................................................................38 Aspectoscomportamentaiseevolutivos...........................................................................................38 Osistemanervosocomoumaestruturaquesuportaossistemasdememria...............................39 Aspectosfisiolgicosdamemria......................................................................................................40 PlasticidadeNeural.............................................................................................................................42

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Aquisioemanutenodamemria...............................................................................................43 Redesneuraisememria..................................................................................................................44 Modularidadeeosdiferentesprocessosdememria......................................................................46 Modelosdememria........................................................................................................................47 Memriadelongadurao...........................................................................................................48 MemriaOperacional...................................................................................................................49 Sistemasdememriaseseusaspectosevolutivos...........................................................................50 Tomadadedecises......................................................................................................................51 DilemaseEstratgias.........................................................................................................................52 Origens ..............................................................................................................................................53 . Interao............................................................................................................................................54 Percepotemporal..........................................................................................................................55 Processosinconscientes....................................................................................................................55 Ateno..............................................................................................................................................56 Memria............................................................................................................................................56 Controleexecutivo............................................................................................................................56 Estudosclnicos .................................................................................................................................57 . Livrearbtrioedeterminismo............................................................................................................58 Emoo.........................................................................................................................................60 Introduo.........................................................................................................................................60 Emoo,cognioecomportamento ...............................................................................................61 . Neurobiologiadasemoes..............................................................................................................63 Modelosanimais................................................................................................................................66 ModeloseCognio......................................................................................................................68 Modelossobreprocessoscognitivos.................................................................................................68 Exemplo1Memria....................................................................................................................69 Exemplo2Ateno .....................................................................................................................70 . ModelagemComputacional..............................................................................................................72

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Teoriadadetecodesinais..............................................................................................................72 Doisfatoressofundamentaisparaadeciso:aaquisiodeinformaoeocritrio...............72 Exemplo1MemriaeaTeoriadeDetecodeSinais................................................................74 Exemplo2AtenoeaTeoriadeDetecodeSinais.................................................................75 Concluso...........................................................................................................................................76 Bibliografia....................................................................................................................................77

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1 Curso de Neurocincias e Comportamento

CognioWataru Sumi Laboratrio de Neurocincias e Comportamento [email protected] Os animais exibem diferentes tipos de comportamento, uns mais simples, outros mais complexos. Os mais simples so as respostas reflexas, que so respostas estereotipadas e fixas a estmulos especficos (Dethier, 1973). A resposta dor um exemplo clssico de como um estmulo ambiental desencadeia uma resposta motora automaticamente (Fig. 1.A). Existem tambm respostas bastante elaboradas, que podem durar alguns minutos, desencadeadas por um nico estmulo, como o caso da resposta de fuga apresentada por algumas espcies de anmonas-do-mar. Quando ela tocada por uma estrela-do-mar, seus receptores so estimulados e assim, iniciada uma sequncia de movimentos estereotipados (Fig. 1.B) que a faz se desprender do substrato e iniciar o nado.

Figura 1 - A. Reflexo a dor. B. Comportamento reflexo de fuga na anmona-do-mar. Retirado de: 1. A http://scienceblogs.com e 1. B Dethier, 1973.

Como exemplo de comportamento altamente complexo, podemos citar a habilidade dos corvos da Nova Calednia para construir ferramentas, que so hastes manufaturadas a partir das folhas das plantas locais e utilizadas para retirar insetos de dentro das cascas das rvores ou troncos apodrecidos. Essas ferramentas possuem ganchos, uma caracterstica observada apenas nesses animais e em humanos (Hunt ,1996). Alm disso, essas ferramentas so altamente uniformes, porm, variando de acordo com as diferentes regies onde vivem os corvos, sugerindo que o conhecimento para produzir essas ferramentas seja transmitido de um indivduo para outro (Hunt e Gray, 2004). Um exemplo mais prximo de ns humanos o uso de diferentes ferramentas por chimpanzs: eles so capazes de utilizar gravetos para pescar cupins ou formigas (Fig. 2); pedras fazendo papel de martelo e bigorna para quebrar nozes ou, ainda; galhos como

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lanas para espetar presas entocadas em buracos alm do alcance de seus braos. Essas habilidades so aprendidas por observao e transmitidas de gerao a gerao (i.e. culturalmente) (Wilson, 2000).

Figura 2 - Uso de ferramentas por chimpanzs. Um graveto usado para pescar formigas. Retirado de Naish.

Dentre os exemplos de comportamento apresentados at agora, todos concordariam que, no primeiro caso (resposta reflexa), o comportamento no envolveria processos cognitivos e, no segundo caso (uso de ferramentas), se trataria do mais genuno exemplo de cognio observado na natureza. Porm, entre esses dois tipos bastante distintos de comportamentos, o reflexo e a capacidade de produzir e utilizar ferramentas, existe um grande repertrio comportamental regido tanto pelo instinto como pelo aprendizado. Os instintos so padres de comportamento estereotipados que aparecem em sua forma funcional desde a primeira vez em que so executados, mesmo que o animal no tenha experincia prvia com o estmulo eliciador do comportamento. A rede neural responsvel pela deteco do estmulo e ativao do programa motor denominada mecanismo de liberao inato (Alcock, 2005). Esses mecanismos inatos muitas vezes so modulados a partir das experincias vividas pelos animais, ou seja, o aprendizado pode modificar o comportamento inato. Os esquilos, por exemplo, que comem diferentes tipos de sementes e nozes, reconhecem-nas e abrem-nas instintivamente mas, dada a variedade de formatos de sementes, necessria uma tcnica especfica para abrir cada uma delas. A habilidade de abrir um determinado tipo de noz adquirida por tentativa e erro at que chegam perfeio (Tinbergen, 1971). Vimos que existe um continuum de complexidade do comportamento. Como j mencionado anteriormente, nem todos eles so tratados como cognio. A partir de que grau de complexidade podemos dizer que um determinado comportamento cognitivo? Essa resposta varia enormemente entre diferentes autores. Uma definio mais abrangente 2www.ib.usp.br/labnec

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entende a cognio como sendo os mecanismos pelos quais os animais captam a informao do ambiente, a retm e a usam para ajustar o comportamento s condies locais ou, simplesmente, como processamento da informao. Em uma definio mais estrita, cognio tratada como o conjunto de processos que produzem o comportamento intencional (Heyes e Huber, 2000), ou manipulao do conhecimento declarativo (saber que), no sendo considerada cognio o conhecimento de procedimento (saber como) (McFarland, 1991). A definio adotada pela neurocincia cognitiva a mais ampla, ou seja, considera a cognio como o processamento da informao. Se pensarmos que, por exemplo, a memria pode ser dividida em explicita e implcita (Fig. 3), sendo que a memria explcita seria responsvel pelo comportamento intencional, a adoo da definio mais restrita de cognio implicaria em estudar apenas parte desses processos.

Figura 3 - Existem diferentes tipos de memria. A memria de longa durao pode ser dividida em: memria declarativa e memria no-declarativa (retirado de Gazzaniga e col., 2006).

Como vimos at agora, a nossa definio de cognio no se restringe apenas a processos mentais mais elevados, aqueles que nos permitem filosofar, calcular etc.. Durante o dia, realizamos inmeras atividades nas quais utilizamos a cognio. Conversamos com um amigo, lemos um jornal, vamos at a padaria da esquina, preparamos uma refeio, assistimos televiso, andamos de bicicleta etc.. A maioria das nossas aes envolve cognio, ou seja, processos como percepo, memria, ateno, tomada de deciso e emoo. Ento, qual ser o papel dos processos cognitivos em nossas atividades dirias? Ser que todos eles so utilizados? Veremos o passo a passo da recepo da informao 3www.ib.usp.br/labnec

e subsequente processamento. Antes de qualquer coisa, para interagir com o ambiente, precisamos de uma interface que faa a ligao do mundo exterior com o mundo interior, representada pelos diferentes receptores sensoriais (foto-receptor, quimio-receptor etc.), que transformam os estmulos do ambiente em potenciais eltricos transmitidos pelos neurnios. Aps o recebimento das informaes do ambiente, elas so processadas pelo sistema perceptual. Diferentes regies do crebro so responsveis por processar as diferentes caractersticas dos objetos. Por exemplo, quando vemos um pintinho amarelo andando, essa informao processada por trs subsistemas distintos, responsveis por forma, cor e movimento. Apesar dessas caractersticas dos objetos serem separadas durante o processamento da informao, elas so percebidas como uma unidade e no apenas como forma, cor e movimento separadamente (Gazzaniga e col.,2002). A qualidade da informao detectada do ambiente no recebe modulao dos receptores sensoriais, isso depende basicamente das caractersticas do estmulo. A quantidade de informaes recebidas por nossos sistemas sensoriais enorme. Para entender essa grandeza, imagine perceber todos os detalhes existentes de uma paisagem em alguns poucos segundos; isso uma tarefa impossvel. Nosso sistema nervoso simplesmente incapaz de processar todas as informaes ambientais simultaneamente. Isso fica evidente tambm quando tentamos realizar simultaneamente duas atividades distintas, por exemplo, conversar e ler um livro. O sistema nervoso, por meio da ateno, seleciona certos estmulos para serem adequadamente processados. Os objetos ou eventos escolhidos para posterior

processamento variam de acordo com a sua relevncia. Por exemplo, se queremos ler um livro, direcionamos voluntariamente a ateno visual para as letras e palavras. H tambm, certos estmulos que atraem a ateno automaticamente. Esses estmulos se caracterizam por ser mais salientes do que outros, como por exemplo, a sirene e as luzes intermitentes das ambulncias. Vamos supor que estamos engajados em uma conversa. A ateno seleciona as informaes que julgamos relevantes e essas informaes so processadas pelo sistema sensorial auditivo e posteriormente enviadas para reas responsveis pela linguagem. importante ressaltar que o processamento da linguagem no envolve apenas o sentido auditivo, mas tambm o visual e o somtico. Quando lemos um texto utilizando a viso (mais comum) ou o tato (leitura em braile), as informaes desses diferentes sentidos so igualmente processadas nas reas da linguagem. Para manter uma conversa, direcionar a ateno ou perceber o mundo como ns percebemos, necessria, alm dos processos j mencionados, tambm a memria. A memria nos permite lembrar a tabuada, o caminho para a faculdade, o rosto de nossas 4www.ib.usp.br/labnec

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mes, nossos nomes, o significado das palavras etc. Para mantermos uma conversa precisamos da memria, caso contrrio no nos lembraramos da ltima palavra ouvida ou falada. A ateno sustentada, que o comportamento de manter a ateno focada em um objeto ou situao por algum tempo, possvel graas memria. Se mantemos a ateno voluntariamente direcionada para algo, porque provavelmente isso relevante para ns. Ou seja, as informaes da memria influenciam o controle do direcionamento da ateno. Direcionar a ateno voluntariamente ou realizar qualquer outra atividade, envolve a tomada de deciso. A todo instante devemos decidir: continuamos a assistir TV ou comeamos a estudar para a prova? Comer mais uma fatia de po no caf da manh? Usar a camiseta vermelha ou a azul? Viajar para a praia ou para a montanha no feriado? A maioria dos nossos comportamentos envolve algum tipo de deciso. A deciso no apenas uma simples escolha entre diferentes opes, mas uma escolha dependente de diversos fatores. Um deles a memria: quando sabemos, por experincias passadas, que uma determinada opo pode nos trazer mais benefcios, natural que essa escolha seja preferida em detrimento das outras. Outro fator importante na tomada de deciso a emoo. Se tivermos medo de algo, certamente nos comportaremos de modo a evit-lo. Em um experimento clssico avaliou-se o efeito da emoo no comportamento de risco. Eram apresentados a voluntrios dois montes de cartas. Em um deles (A), ganhava-se uma recompensa de $50, correndo-se o risco de perder at $100. Por outro lado, no outro monte (B), podia-se ganhar $100, mas podia-se perder at $1200, ou seja, o risco de perder era muito maior comparado ao ganho. Sabendo dos riscos, os voluntrios poderiam escolher livremente entre os dois montes. Voluntrios controles evitavam as cartas do monte B e a simples cogitao de escolher a pilha mais arriscada desencadeava uma clara resposta emocional involuntria. Por outro lado, pacientes com leses especficas no crtex cerebral, relacionadas emoo, escolhiam sempre o monte mais arriscado e no apresentavam resposta emocional. Esses so apenas alguns exemplos de como os diferentes processos cognitivos atuam para produzir o nosso comportamento. Cada um desses processos pode ser mais ou menos utilizado de acordo com a situao, a atividade realizada. Isso fica bastante claro quando comparamos dois tipos de atividades como, por exemplo, fazer uma prova e assistir TV. Em ambos os casos utilizamos a memria, mas esse processo cognitivo muito mais ativo na primeira situao. Estudando o funcionamento de cada um desses processos e como eles se interrelacionam, a neurocincia cognitiva tenta entender como o sistema nervoso produz o comportamento. Nos captulos seguintes estudaremos como os diferentes processos

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cognitivos atuam, alm, claro, do funcionamento do sistema nervoso propriamente dito, suas unidades funcionais e os mecanismos de integrao e processamento da informao.

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Biologia da Cognio: IntroduoRenata Pereira Lima Laboratrio Neurocincia e Comportamento [email protected] No sistema nervoso, neurnios nunca funcionam isolados; eles esto organizados em circuitos que processam tipos especficos de informaes. O sistema nervoso parece organizado em grupos de circuitos, i.e., mdulos, cujas funes servem a um propsito comportamental especfico. Desta maneira, sistemas sensoriais como a viso ou audio adquirem e processam informaes a partir do ambiente, o sistema motor permite que o organismo responda a tais informaes atravs da gerao de aes. H, entretanto, um grande nmero de clulas e circuitos que esto entre estas mais ou menos bem definidas aferncias e eferncias. Eles so coletivamente referidos como sistemas de associao e so responsveis pelas mais complexas funes. Alm destas amplas distines, os neurocientistas tm convencionalmente dividido o sistema nervoso dos vertebrados, sob o ponto de vista anatmico, em componentes centrais e perifricos (Fig. 1). O sistema nervoso central (SNC) compreende o encfalo e a medula espinal. O sistema nervoso perifrico (SNP) inclui fibras de neurnios que conectam os receptores sensoriais na superfcie do corpo ao SNC e a poro motora, que consiste em axnios de nervos motores que conectam o encfalo e a medula espinal aos msculos esqueltico, viscerais, cardaco e glndulas.

Figura 1. Arranjo anatmico do sistema nervoso em humanos. Em azul o sistema nervoso central (SNC) e em amarelo, o sistema nervoso perifrico (SNP). Retirado de Bear, 1996.

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Embora o arranjo dos circuitos que compem estes sistemas varie grandemente de acordo com suas funes, algumas caractersticas so comuns entre eles. As conexes sinpticas que definem um circuito so tipicamente realizadas numa densa malha de dendritos e terminais axonais. A direo do fluxo de informao em um circuito particular essencial para se entender sua funo. Clulas nervosas que transmitem informaes em direo ao sistema nervoso central so chamadas de neurnios aferentes; j as que transmitem informaes para fora do encfalo e da medula espinal (ou para fora do circuito em questo), so chamadas de neurnios eferentes. Clulas nervosas que participam somente no aspecto local do circuito so chamadas de interneurnios. Estas trs classes neurnios aferentes, neurnios eferentes e os interneurnios so os constituintes bsicos de todos os circuitos neurais. De modo geral, podemos classificar os circuitos como:

Convergentes: aqueles nos quais um grupo de neurnios recebe uma

aferncia (entrada) de um neurnio pr-sinptico e o circuito tende a se tornar concentrado. Para demonstrar este tipo de circuito, imagine que tenhamos os neurnios A, B e C e que cada um deles possua uma entrada diferente. Estes neurnios se projetam para um neurnio D e este se projeta para outro neurnio E, realizando uma eferncia (sada). Circuitos convergentes so responsveis, por exemplo, pela interpretao dos estmulos sensoriais (Fig. 2, esquerda).

Divergentes: so os circuitos que funcionam de maneira oposta aos circuitos

convergentes. Em vez de concentrar as aferncias, estas se projetam separadamente para diferentes neurnios. No caso do circuito divergente, o neurnio A possui uma aferncia e se projeta para os neurnios B, C e D. A caracterstica bsica de um circuito divergente o fato de que um nico neurnio iniciar respostas de maneira crescente em outros neurnios. Tais circuitos so encontrados nos sistema motores e sensoriais (Fig. 2, centro).

Reverberantes: o sinal de aferncia transmitido ao longo de uma srie de

neurnios e cada um destes far sinapses com neurnios de uma poro da via previamente percorrida. O impulso reverbera sendo enviado ao longo do circuito continuamente at que um neurnio seja inibido. Ento, uma aferncia no neurnio A se projeta para o neurnio B, que se projeta para o neurnio C e ento para o D e este se projeta de volta para o neurnio A (ou para o B) e o ciclo se repete at que um neurnio (que pode ser tanto A, quanto B, C ou D) seja inibido. Circuitos reverberantes esto envolvidos no ciclo de sono-viglia, atividades motoras, memrias de longa durao, etc (Fig. 2, direita).

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Figura 2 - Esquema representativo dos modelos de circuitos. esquerda, o modelo de circuitos convergentes, no centro o modelo divergente e o reverberante direita.

Alm disto, circuitos podem funcionar paralela ou serialmente. No funcionamento paralelo, sinais aferentes so processados em vias distintas e as informaes so analisadas de maneira analtica concomitantemente no tempo. Por exemplo, o sistema visual funciona em vias paralelas que processam a informao neural de forma simultnea e integrada. Sinais representando cores, movimento, forma e localizao, por exemplo, so processados simultaneamente em diferentes regies do encfalo. Atividades concomitantes (e sincronizadas) nas vias visuais dorsal e ventral (que so anatomicamente distintas) so responsveis pela percepo unitria da imagem. No funcionamento serial, os resultados dos processamentos de um circuito so necessrios para que o prximo circuito possa contribuir para o processamento total. Isto , um neurnio estimula outro neurnio, que por sua vez estimula outro neurnio e assim por diante. Um exemplo clssico de processamento serial o arco reflexo, em que h produz uma reao involuntria rpida, na maioria das vezes inconsciente, que protege o organismo. Tal reao originada a partir de um estmulo externo que gera uma resposta antes mesmo do indivduo tomar conhecimento da existncia do estmulo perifrico e, conseqentemente, antes deste poder comand-la voluntariamente. Muitos reflexos motores so controlados por neurnios localizados na substncia cinzenta da medula espinhal e do tronco enceflico (bulbo, ponte e mesencfalo), independentemente da vontade, como por exemplo: a retirada imediata da mo de uma panela muito quente; extenso da perna aps a percusso e estiramento do tendo patelar; fechamento da pupila com o aumento da intensidade luminosa; aumento da secreo gstrica com a chegada do alimento no estmago. Desta maneira, o ato reflexo um mecanismo que gera uma reposta involuntria do organismo a um determinado estmulo (dor, estiramento, aumento da intensidade luminosa, variaes da presso arterial etc). Ocorrendo um estmulo, a fibra sensitiva de um nervo aferente (ou sensitivo) transmite-o at a medula espinhal passando pela raiz posterior, ou ao tronco enceflico, por meio de um nervo craniano. Na medula ou no tronco enceflico o neurnio aferente comunica-se com o eferente diretamente ou por meio de interneurnios associativos, gerando, no neurnio motor, a atividade que leva ao. Os axnios eferentes que levam essa ordem da medula (pela raiz anterior) ou do tronco enceflico (por 9www.ib.usp.br/labnec

um nervo craniano) constituem as fibras eferentes motoras ou vegetativas que levam a informao ao rgo efetor (msculo estriado esqueltico, glndula, msculo liso ou msculo cardaco) que, por sua vez, executar a resposta ao estmulo inicial. importante ressaltar que o processamento serial a maneira mais simples por meio da qual um circuito pode funcionar. Este tipo de processamento est envolvido nas respostas mais simples e estereotipadas. Durante o processamento de funes mais complexas, de modo geral, os circuitos envolvidos, alm de processar informaes de modo serial, funcionam concomitantemente em paralelo com outros circuitos de maneira sincronizada.

Construo de circuitos e sua modificao pela experinciaA construo da circuitaria do sistema nervoso envolve processos ontogenticos associados interao do sistema com o ambiente. Assim, fatores qumicos liberados por determinados neurnios em diferentes estgios do desenvolvimento ontogentico atraem projees de outros neurnios intrinsecamente; paralelamente, essas projees e conexes entre neurnios podem originar-se tambm em associao com a estimulao

proporcionada pelo ambiente e/ou pela atividade de certos conjuntos de neurnios. Assim, os padres macroscpicos bsicos das conexes no sistema nervoso estabelecidas filogeneticamente podem ser microscopicamente alterados por padres de atividade neuronal (isto , experincia), modificando a circuitaria sinptica do encfalo. A atividade neuronal gerada em decorrncia de interaes com o ambiente pr e ps-natal influencia a estrutura e a funo do sistema nervoso, alm da construo de sua circuitaria. A histria de interao de um indivduo com o ambiente, i.e., sua experincia acumulada, molda os circuitos neurais, determinando seu comportamento. Em alguns casos, as experincias funcionam primariamente como gatilhos que ativam alguns comportamentos inatos. Mais freqentemente, entretanto, experincias desenvolvidas em perodos especficos no incio da vida (referidos como perodos crticos) determinam um repertrio comportamental no indivduo adulto. Estes perodos crticos influenciam comportamentos diversos incluindo laos maternais, preferncias sexuais e aquisio de linguagem, entre outros. Embora seja possvel identificar conseqncias comportamentais de determinados estmulos que foram apresentados em perodos crticos para determinadas funes, suas bases biolgicas ainda no esto completamente esclarecidas. Talvez o exemplo mais bem investigado relacione-se ao perodo crtico no estabelecimento da viso. Alguns estudos mostraram que a experincia traduzida em padres distintos de atividade neuronal que influenciam a funo e a conectividade dos neurnios relevantes. No sistema visual (e em outros sistemas tambm) a competio entre aferncias com diferentes padres de 10www.ib.usp.br/labnec

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atividade um determinante importante na consolidao dos padres de conectividade. Em um axnio aferente, padres de atividade correlatos tendem a estabilizar as conexes. Quando padres normais de atividade so rompidos (experimentalmente, em animais, ou patologicamente, em humanos) durante um perodo critico na infncia, a conectividade no crtex visual alterada, assim como a funo visual. Se no feita a manuteno destes padres at o final do perodo critico, estas alteraes estruturais da circuitaria nervosa dificilmente se restabelecem posteriormente. A conectividade nervosa estabelecida ao longo do desenvolvimento normal possibilita ao encfalo armazenar vasta quantidade de informaes que refletem a experincia especfica daquele individuo. Como esperado, a construo dessa

conectividade que tanto influencia o desenvolvimento do sistema nervoso gera alteraes maiores nos estgios iniciais de desenvolvimento. Assim, em um animal adulto, o sistema nervoso se torna gradativamente mais refratrio a lies da experincia e os mecanismos celulares que medeiam as alteraes da conectividade neuronal se tornam menos plsticos.

Integrao entre circuitos: o modelo de redesO conceito de que no crtex cerebral h domnios discretos dedicados mais ou menos exclusivamente a algumas funes cognitivas, tais como discriminao visual, linguagem, ateno espacial, reconhecimento de face, reteno de memria, memria operacional, etc., tem sido questionado devido falta de evidncias conclusivas que o apiem. Em seu lugar, modelos de redes neurais tm sido apresentados como uma alternativa mais coerente com as evidncias disponveis sobre seu funcionamento. Em 1949, Donald Hebb hipotetizou uma forma de plasticidade sinptica proporcionada por uma continuidade temporal das atividades pr e ps-sinpticas. Alm de acreditar que as conexes sinpticas eram as bases das associaes mentais, ele foi alm do simples conexionismo dos behavioristas. Primeiro, ele argumentou que uma associao no poderia ser localizada numa simples sinapse. Ao contrrio, os neurnios estariam agrupados em assemblias de clulas e esta associao era distribuda nas suas conexes sinpticas. Segundo, Hebb rejeitou a noo de que a relao estmulo-reposta poderia ser explicada somente por um simples arco reflexo conectando neurnios sensoriais a neurnios motores. Assim, era necessrio postular um mecanismo central que explicasse o atraso existente entre o estmulo e a resposta que to caracterstico do pensamento (Hebb, 1949). Seguindo as idias do neurofisiologista Lorente de N, Hebb acreditava que a estimulao sensorial poderia iniciar padres de atividade neural que eram mantidas centralmente pela circulao em loops de feedbacks sinpticos. Tal atividade reverberante torna estes padres possveis para as respostas que so subseqentes aos estmulos posteriores ao atraso. Em resumo, Hebb hipotetizou um mecanismo com fundamentos 11www.ib.usp.br/labnec

duplos da memria. A atividade neural reverberante era o fundamento da memria de curta durao, enquanto as conexes sinpticas eram o fundamento da memria de longa durao. Desta maneira, Hebb props que: A persistncia ou repetio de uma atividade reverberante tende a induzir mudanas celulares permanentes que promovem estabilidade no sistema (Hebb, 1949). Esta proposio pode ser precisamente colocada da seguinte forma: quando um axnio da clula A repetidamente ou persistentemente dispara, alguns processos de crescimento ou mudanas metablicas acontecem em uma ou em ambas as clulas (A ou B) de tal modo que a eficincia de A, uma das clulas que esto agindo sob B, aumentada. Alm disto, Hebb hipotetiza uma funo especfica para esta sinapse hebbiana: a converso da memria de curta durao em memria de longa durao pela estabilizao de padres de atividade reverberante. Uma vez que este padro de atividade foi armazenado nas conexes sinpticas, ele pode ser resgatado repetidamente a partir da excitao de neurnios sensoriais ou a partir de outros padres de atividade reverberante. A hiptese de Hebb foi verificada dcadas depois com a descoberta da potenciao de longa durao, LTP (do ingls, long-term potentiation) (Fig. 3). A LTP um estreitamento da conexo entre dois neurnios que resulta de uma estimulao simultnea de ambos e pode ser induzida experimentalmente aplicando-se uma seqncia de pequenos estmulos de alta freqncia na clula nervosa. Este estreitamento pode durar de minutos a horas (in vitro) ou de horas a dias ou meses (in vivo). Pela eficincia aumentada da transmisso sinptica, a LTP aumenta a habilidade de dois neurnios, um pr-sinptico e outro ps-sinptico, de comunicarem-se atravs da sinapse. O mecanismo preciso para este aumento da transmisso ainda no bem estabelecido, em partes porque a LTP controlada por mltiplos mecanismos que variam de acordo com a regio em que acontecem, a idade do animal em questo e espcie. Entretanto, nas formas de LTP mais compreendidas, a melhora desta comunicao predominantemente feita atravs do aumento da sensibilidade das clulas ps-sinpticas em receber sinais das clulas pr-sinpticas. Estes sinais, na forma de molculas de neurotransmissores, so recebidos por receptores presentes na superfcie da clula pssinptica. Este aumento de sensibilidade devido no somente ao aumento da atividade dos receptores j existentes na superfcie, mas tambm por um aumento do nmero destes receptores. Interessantemente, a LTP compartilha muitas caractersticas com a memria de longa durao, o que faz dela uma candidata muito atrativa como um mecanismo celular do aprendizado. Por exemplo, a LTP e a memria de longa durao dependem da sntese de novas protenas, possuem propriedades associativas e podem durar potencialmente vrios 12www.ib.usp.br/labnec

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meses. A LTP tambm pode responder por vrios tipos de aprendizado, desde o relativamente simples condicionamento clssico presente em todos os animais, at respostas mais complexas, como a cognio observada em humanos. De acordo com essa concepo, a alterao estrutural leva ao armazenamento da informao podendo explicar o fenmeno da memria. Este modelo postula que todas as representaes cognitivas consistem em redes de neurnios cuja atividade foi associada pela experincia (estmulos repetidos). Nesse contexto, pode-se assumir que memrias filogenticas correspondem a redes que se consolidaram ao longo das geraes e no necessitam de experincia individual para serem funcionais, embora possam ser aprimoradas pela experincia individual.

Figura 3 - Modelo representativo do funcionamento da Potenciao de Longa-Durao (LTP). Os receptores NMDA (vermelho) constituem a maquinaria molecular da aprendizagem. O neurotransmissor libertado durante atividade basal e durante a induo de LTP (topo, esquerda). A expresso de LTP pode dever-se presena de mais receptores AMPA (receptores em amarelo, esquerda, abaixo) ou presena de receptores AMPA mais eficientes ( direita, abaixo). Disponvel em www.braincampaign.org - 09/06/2009.

Se considerarmos que um neurnio tipicamente recebe informaes de cerca de 104 neurnios e, por sua vez, projeta-se para outros 104 neurnios e, que o encfalo humano 13www.ib.usp.br/labnec

contm pelo menos 1011 neurnios, isto significa dizer que pelo menos 1019 conexes sinpticas so formadas no crebro. Entretanto, a complexidade de seu funcionamento evidentemente maior, em particular quando se considera os arranjos seqenciais pelos quais uma informao pode viajar ao longo de seqncias de neurnios. Quanto mais freqentes as exposies a estmulos relevantes, mais fortes tornam-se essas conexes. Como conseqncia, a informao tende a ser arquivada de maneira relacional. Isso permite entender porque a recordao envolve, usualmente, categorias. Por exemplo, ao pedirmos para uma pessoa listar todos os animais de que se recorda, no raro a lista conter animais agrupados por categorias de similaridade, ou seja, quadrpedes, aves, animais aquticos, invertebrados etc. O mesmo ocorre em relao a alimentos; a recordao tambm ser categrica (frutas, verduras, legumes, carnes etc.). Isso ocorre porque o aumento de atividade eletrofisiolgica em determinados circuitos neurais (que levam recordao de uma dada informao) tende a estimular a atividade em circuitos relacionados. Assim, quando aprendemos que determinado estmulo se refere a um determinado conceito, estamos na verdade fazendo associaes com conceitos que j conhecemos (associando ns de uma rede com outros). Ento, quando visualizamos a imagem de uma ma caindo, integramos todas as informaes disponveis (cor, forma, contexto, movimento) com os circuitos j consolidados previamente e que em algum momento foram associados ao conceito ma. O mesmo vale para uma outra modalidade de estmulo, ou seja, um som especfico que atribumos como caracterstico de um determinado animal, o cheiro de uma comida que est intimamente ligado com o seu sabor etc.

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Biologia da Cognio: Integrao NeuralRenata Pereira Lima Laboratrio Neurocincia e Comportamento [email protected] Todas as formas de comportamento adaptativo requerem o processamento de um fluxo de informao sensorial e sua transduo em uma srie de aes direcionadas a um objetivo. Desde a mais primitiva espcie animal, todo o processo regulado por feedbacks externos (ambiente) e internos (Fig.1). Esse padro de funcionamento torna o organismo apto a forragear, fugir de predadores, lutar e reproduzir-se.

Figura 1 - Uma das finalidades da percepo permitir uma interao com o ambiente. Interaes podem incluir andar de um lugar para outro, pegar um objeto, conversar com uma pessoa ou dirigir um carro. De modo circular, tais aes afetam diretamente nossa percepo do mundo. Esta interdependncia entre ao e percepo ilustrada pelo Ciclo Percepo-Ao da figura acima. A viso que temos na integrao sensoriomotora que em vrios aspectos do comportamento, aes motoras e processos sensoriais esto conectados inseparavelmente e, desta forma, precisam ser estudados juntos.

O sistema nervoso evoluiu, sobretudo nos mamferos, de tal forma que uma grande complexidade estrutural e funcional foi alcanada no tanto pelas vias aferentes, responsveis por canalizar as informaes sensoriais, ou pelas vias eferentes, responsveis por emitir as respostas motoras, mas por circuitos neurais que intermedeiam essas vias de entrada e sada. Os complexos circuitos neurais que se localizam entre as vias sensoriais e motoras so os principais responsveis pela riqueza, flexibilidade e plasticidade de comportamentos observados. Isso se manifesta na enorme diversidade de estmulos que podem ser reconhecidos pelos sistemas sensoriais, na multiplicidade de graus de liberdade com que aes so organizadas pelos sistemas motores e, sobretudo, pela rica e plstica relao que se estabelece entre esses dois conjuntos. A progressiva elaborao dos circuitos neurais pode ser entendida como uma conseqncia da seleo de aes mais vantajosas (organizadas por circuitos pr15www.ib.usp.br/labnec

motores) em resposta identificao seletiva de estmulos especficos (realizada por circuitos perceptivos), provavelmente pressionada por fatores ambientais. Podemos supor ento que, ao tornar-se cada vez mais complexo, o funcionamento dos circuitos neurais que organizam a integrao sensrio-motora expressa aquilo que chamamos de percepo, ateno, aprendizado, memria, ao e, por fim, conscincia. Esses rtulos esto longe, em sua maioria, de uma definio completa e consensual. Eles so, mais provavelmente, o resultado das limitaes que ainda temos em compreender a essncia do funcionamento do sistema nervoso, no se constituindo em entidades separadas e independentes da funo neural. Desta forma, se considerarmos que a percepo do mundo, onde perceber algo, derivado do latim, significa apoderar-se dele, logo veremos que no h percepo sem que alguma forma de ateno esteja em jogo. E s por meio da percepo atenta que temos de um estmulo que sentimos, de um evento que presenciamos ou de uma resposta que emitimos, que poderemos mais tarde nos lembrar desse objeto, desse evento ou dessa resposta, resgatando uma memria arquivada por meio de um processo de aprendizado. E, de forma um tanto bvia, todo trabalho investido em se apoderar do mundo, arquiv-lo e resgat-lo, seria intil e sem sentido se no usssemos essa informao na organizao e emisso de uma ao sobre o mundo, com ele interagindo de forma contnua e coerente, permitindo nossa permanncia nesse mesmo mundo, apesar de seus constantes desafios.

Percepo envolve aoPerceber algo geralmente requer alguma ao por parte de quem esta percebendo. Freqentemente temos que olhar (direcionar os olhos) para ver, fazendo uma varredura visual do ambiente at que o objeto de desejo seja encontrado. Da mesma forma, para um som ser audvel, temos que direcionar nossos ouvidos em sua direo. Quando tocamos um objeto, ele mais facilmente identificado se for explorado pelos nossos dedos. Todos estes exemplos demonstram que a percepo um processo ativo que funciona para direcionar e otimizar o comportamento atravs do seu refinamento. Alm disso, uma vez que um objeto tenha sido percebido, podemos decidir se iremos nos aproximar ou nos afastar. Ao ouvir um barulho podemos responder a ele ou ficar quieto. Ao identificar um objeto pelo toque podemos descart-lo ou mant-lo conosco. Em cada um destes casos nosso comportamento depende do que percebido. A orientao da percepo por meio de uma ao induz uma distino interessante entre os vrios sentidos que tem a ver com a proximidade do observador em relao ao objeto percebido. Tocar e saborear algo requer um contato direto entre o observador e a fonte de estimulao. Cheirar tambm um certo contato com a fonte de estmulao; substncias qumicas volteis so diludas conforme a distncia da fonte aumenta; desta 16www.ib.usp.br/labnec

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forma, o cheirar funciona mais eficientemente para substncias que esto prximas. Em contraste, ver e ouvir,no dependem tanto deste contato. Os olhos e os ouvidos podem capturar a informao originria de fontes remotas, neste sentido eles funcionam como um radar. Eles permitem que o indivduo faa contato perceptual com um objeto que no est prximo, eles estendem a percepo para um mundo alm dos limites dos dedos e do nariz. Estes dois sentidos substituem o deslocamento at a fonte de estmulo, permitindo que o indivduo explore a vizinhana.

Organizao e hierarquia no ciclo percepo-aoEm todo o sistema nervoso central, o processamento de seqncias de aes guiadas sensorialmente segue um fluxo a partir de estruturas geralmente posteriores (sensrias), em direo a estruturas anteriores (motoras), com feedbacks em todos os nveis. Assim, no nvel cortical, a informao flui de maneira circular ao longo de uma srie de reas hierarquicamente organizadas e entre conexes que constituem o ciclo percepoao (Fig. 2). Aes automticas e/ou muito freqentes em resposta a estmulos sensoriais so integradas em nveis mais inferiores do ciclo, nas reas sensoriais da hierarquia (perceptiva) e em reas motoras da hierarquia (executiva). Comportamentos mais complexos, guiados por estmulos tambm mais complexos e distantes no tempo, requerem uma integrao em nveis corticais mais superiores de ambas as hierarquias (perceptuais e executivas), basicamente reas superiores de associao sensorial e crtex frontal anterior.Figura 2 - O substrato cortical do ciclo percepoao. Em azul est representado o lado da percepo no ciclo e em vermelho o lado da ao. Os retngulos vazios representam reas intermedirias ou subreas do crtex. As setas representam vias anatomicamente identificadas em macacos e ressaltam a conectividade recproca entre os crtices posterior e anterior. Retirado de Fuster, 2006.

Para garantir as interaes entre as duas hierarquias corticais, longas fibras corticocorticais conectam recproca e topologicamente as reas da hierarquia perceptual com as reas equivalentes executivas. Assim, reas pr-motoras se conectam com reas sensoriais associativas relativamente inferiores (reas inferiores de ambas as hierarquias), enquanto 17www.ib.usp.br/labnec

reas frontais anteriores se conectam com reas associativas superiores do crtex posterior (reas superiores). Do mesmo modo, h evidncias anatmicas de conexes ordenadas descendentes do crtex frontal anterior ao crtex pr-motor e deste para o crtex motor. Em cada estgio deste processo em cascata na hierarquia executiva, a prxima ao de uma seqncia determinada por dois tipos de influncias: 1) o processamento dos aspectos globais da seqncia nas reas frontais superiores e 2) os sinais sensoriais que esto ocorrendo naquele momento. A ativao progressiva de reas frontais inferiores que processam a ao cumulativa. Da mesma forma, as entradas sensoriais associativas do crtex posterior so progressivamente mais concretas e mais dependentes de um contexto espacial e temporal imediato. Sinais que necessitam ser processados em um contexto temporal mais amplo (episdico) requerem aes que dependem de uma integrao temporal em graus mais elevados. Estes sinais so processados no crtex posterior e concomitantemente nas reas superiores do crtex frontal anterior (rostral). Em ambos os crtices, os sinais so integrados simultaneamente com as informaes prvias (as regras de uma determinada tarefa e as instrues eventualmente dadas) antes mesmo de serem enviados para o processamento em estgios inferiores da hierarquia frontal. Sendo assim, o crtex frontal anterior integra as mais elaboradas associaes da informao sensorial que esto armazenadas em redes dos crtices sensoriais e motores. Se considerarmos que a execuo de uma ao no se limita, em geral, a uma nica oportunidade, temos uma grande vantagem ao construirmos representaes perceptivas do mundo e guard-las na memria, podendo usar essa informao em uma prxima oportunidade em que aes semelhantes sejam requeridas. Esse aprendizado permite um refinamento a longo prazo de nossas aes, fornecendo subsdios para aes mais complexas, mais integrativas e de maior alcance adaptativo.

Integrando percepo e ao: o sistema de neurnios espelhoQuando temos que explicar uma ao humana, a neurocincia tem duas abordagens maiores: a sensoriomotora e a ideomotora. Na abordagem sensoriomotora, tudo comea com uma estimulao, e as aes so consideradas uma conseqncia desta estimulao. De modo inverso, na abordagem ideomotora, tudo comea com uma inteno, e as aes so consideradas como o meio de realizar estas intenes, isto , as aes so vistas como o meio para determinados fins que seguem a inteno. Assim como vimos acima, existe uma sobreposio e uma dependncia entre as percepes e as aes, tanto nos seus sistemas quanto nas respostas comportamentais. Desde modo, fica difcil imaginar que nossas aes sejam meras escravas de nossas percepes.

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Em uma situao em que uma pessoa observa as aes de outra pessoa, a abordagem ideomotora oferece uma predio muito consistente. Considerando o fato de sermos seres sociais, ns humanos passamos boa parte do nosso tempo observando as outras pessoas, tentando entender o que elas esto fazendo e por que. Esta comunicao primitiva essencial para estratgias de sobrevivncia e sociabilidade do indivduo. Contudo, como reconhecemos e entendemos as intenes das outras pessoas? Quais as bases neurofisiolgicas desta habilidade? A recente descoberta de neurnios espelho tem inspirado uma srie de estudos em busca destas respostas. O reconhecimento de uma ao foi inicialmente concebido como baseado apenas no sistema visual (abordagem sensoriomotora); isto , numa anlise dos componentes visuais da ao especfica, do agente envolvido, do objeto ao qual a ao direcionada e do contexto no qual ela est inserida. Assim, a interao de todos estes elementos identificados visualmente permitiria ao observador reconhecer e entender uma ao feita por outra pessoa. Uma hiptese alternativa admite que a observao de uma ao estimularia uma representao motora interna que envolveria as mesmas estruturas neurais envolvidas na execuo da ao observada; de acordo com esta concepo, embora nenhum movimento efetivo seja executado, a representao motora evocada pela observao permitiria o reconhecimento do significado do que visto. Com a descoberta de que h ativao de neurnios na regio do crtex pr-motor durante a observao de aes, os assim denominados neurnios espelho, e considerando que esta hiptese no exclui a possibilidade de que outro processo cognitivo, baseado na descrio do objeto e do movimento, possa participar desta funo, esta hiptese motora vem ganhando cada vez mais adeptos. Todavia, tem sido proposto que os neurnios espelho formam um sistema que combina observao e execuo percepo e ao. Neurnios espelho so um grupo particular de neurnios cuja atividade aumenta durante a execuo de uma ao motora particular ou da observao da mesma ao desempenhada por outro indivduo. Sua descoberta ocorreu durante experimentos com macacos envolvendo o controle motor de aes desempenhadas com as mos, como por exemplo, pegar/manipular um objeto ou alimento. Os descobridores destes neurnios, entre eles Giacomo Rizzolatti, implantaram eletrodos no crtex frontal inferior de macacos (rea F5) e registraram a atividade dos neurnios individualmente enquanto os animais alcanavam pedaos de alimentos. Eles observaram que alguns destes neurnios (situados no setor superior da rea F5), disparavam no somente quando o macaco pegava o alimento, como tambm quando ele observava outro indivduo (macaco ou humano) desempenhando esta ao, como se a mesma tivesse sido refletida no seu crtex motor (Fig. 3). Estudos posteriores mostraram que pelo menos 10% dos neurnios envolvidos no controle motor de aes desempenhadas com as mos so neurnios espelho. 19www.ib.usp.br/labnec

Figura 3 - Experimento feito com macacos em que ele executa uma ao (pegar o amendoim) e tambm observa esta mesma ao sendo feita pelo experimentador. direita est um esquema que exemplifica a atividade dos neurnios espelho nas duas situaes. Retirado de Rizzolatti,1996.

Estes estudos mostram que alm do reconhecimento da ao motora por meio de informaes visuais, o sistema de neurnios espelho lida com informaes mais abstratas, a fim de reconhecer o objetivo final da ao. Esta resposta, baseada tambm em outras modalidades, isto , auditiva, sugere que a atividade espelho depende da riqueza das experincias prprias do observador e de aes presentes em seu repertrio motor (memria de planos motores). Entretanto, aparentemente, o reconhecimento do objetivo final de uma ao baseado em exposio prvia do observador s parece possvel se houver dicas suficientes no ambiente acerca da inteno desse outro indivduo. Isto , uma ao implica em um agente e um objetivo. Conseqentemente, o reconhecimento de uma ao implica no reconhecimento de um objetivo e, em outra perspectiva, o entendimento da inteno do agente: Joo v Maria pegando uma maa. Vendo sua mo movimentando-se em direo maa, ele reconhece o que Maria far (pegar algo), e tambm reconhece que Maria quer pegar uma maa, isto , o estmulo ligado inteno do agente. Desta maneira, o sistema de neurnios espelho oferece um modelo de integrao entre percepo e ao bastante interessante. Atravs do reconhecimento de aes e, no apenas pelo sistema sensorial, mas tambm no prprio sistema motor do observador, ocorre uma integrao online das informaes recebidas do ambiente - a ao observada sendo executada por outra pessoa - e tambm entre informaes presentes no sistema nervoso do observador - representao motora da ao observada.

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PercepoFelipe Viegas Rodrigues Laboratrio de Neurocincia e Comportamento [email protected] Percepo um produto do sistema nervoso central que depende do entendimento dos sistemas sensoriais, mas vai alm destes. Entender percepo entender no somente como percebemos alguma coisa (seja vendo, ouvindo ou sentindo estmulos), mas tambm por que percebemos e quais as implicaes para com outros aspectos da cognio, como a memria ou a ateno. Falar em percepo falar sobre os crtices associativos. Esse campo de estudo lida com dois problemas: (1) como todos os aspectos de um estmulo sensorial so entendidos e processados (cor, forma, movimento para viso; intensidade, timbre, altura para audio, por exemplo) e (2) qual a relao com outros produtos da cognio, especialmente ateno e memria. Uma das principais diferenas entre a percepo e as sensaes a constncia perceptual. Tome por exemplo a Fig. 1. No importa qual a posio do carro mostrado na figura, sabemos que se trata do mesmo carro, apesar das quatro imagens serem distintas e provocarem estimulaes diferentes nas regies O iniciais mesmo do sistema

visual.

princpio

verdadeiro para a percepo de uma mesma nota musical tocada por instrumentos diferentes. Embora as frequncias produzidas por eles

sejam diferentes, com alteraes dos harmnicos que compem o somFigura 1 A imagem na retina imensamente diferente para os quatro desenhos. Ainda assim, perceptualmente logo nos damos conta de que se trata do mesmo carro. Retirado de Gazzaniga, Ivry e Mangun (2006).

resultante (dando a cada instrumento seu timbre), a percepo de uma determinada nota mantida.

A constncia perceptual s possvel pela integrao da informao sensorial com a informao de outras regies enceflicas, inclusive (ou talvez principalmente) das memrias adquiridas ao longo da vida. Esse mecanismo depende, portanto, de aprendizado e ele possivelmente uma particularidade da espcie humana. Experimente colocar um capacete de ciclismo (que cobre apenas a parte superior da cabea) e aparecer diante do seu cachorro. Ele seguramente o estranhar. Por outro lado, o reconhecer pelo cheiro e voz, o que o far parar de hesitar aps algum tempo. Humanos so nicos em sua capacidade de abstrao, capazes de ver um tronco cortado em uma floresta e imediatamente pensar: Que bom! Um banco para descansar!. 21www.ib.usp.br/labnec

O interesse pelos mecanismos de percepo veio a partir de casos clnicos de leses cerebrais, em geral por acidentes vasculares cerebrais (AVC), em que os pacientes tiveram comprometimento da percepo. Tais pessoas se tornaram incapazes de reconhecer objetos ou pessoas que antes lhes eram muito familiares. Uma investigao minuciosa evidencia que tais pessoas podem descrever em detalhes o que lhes pedido, o que descarta problemas de memria. Mais do que isso, a estimulao por outra modalidade sensorial resulta em imediata identificao do objeto ou pessoa em questo, levando ao entendimento de que o problema perceptual e, em geral, associado a apenas uma modalidade sensorial. Ao conjunto de sintomas de incapacidade de percepo dado o nome agnosia.

Vias perceptuaisAs leses cerebrais que levam a problemas de percepo frequentemente so aquelas que ocorrem em reas dos crtices parietal posterior, temporal inferior ou face lateral do crtex occipital. Essas regies encontram-se na confluncia das reas sensoriais e, como j mencionado, so parte dos chamados crtices associativos, pois recebem aferncias corticais das regies sensoriais e integram entradas mltiplas para desempenhar funes cognitivas supramodais e comportamentais especficas. Algumas dessas regies so neoformaes em primatas e elas constituem a maior parte do crtex cerebral, particularmente no caso da espcie humana (Preuss, 2006). Viso O sistema visual a modalidade mais estudada de todos os sistemas sensoriais conhecidos. No captulo sobre fisiologia sensorial foi possvel entender como se d o processo de transduo do estmulo luminoso em sinal eltrico e como essa informao levada at o crtex. Vamos elucidar agora como essa informao manipulada e integrada com informaes de outras regies corticais para, de fato, entender como percebemos. A informao que chega at o crtex visual no para em V1, muito pelo contrrio, essa informao continua avanando por diferentes regies, cada vez mais prximas dos crtices temporal inferior e parietal posterior, passando por populaes de neurnios especializadas no processamento de caractersticas especficas de um estmulo visual. Uma particularidade desse sistema sequencial que a cada sinapse que realizada a partir de V1, mais fibras vo convergindo para um mesmo neurnio. Com esse arranjo, quanto mais adiante na sequncia esteja um neurnio, mais especfica sua funo no processamento visual: enquanto aqueles no incio da cadeia de processamento disparam para simples estmulos em forma de barra (com populaes especficas para as diversas angulaes possveis dessa barra), h neurnios mais adiante nessa cadeia que s dispararo para 22www.ib.usp.br/labnec

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combinaes dessas barras ou se o estmulo em questo tiver caractersticas de um mvel (Fig. 2). Apesar do arranjo sequencial, as evidncias atuais apontam para um processamento em paralelo regies. dessas Casos diversas de

clnicos

pacientes que tiveram um AVC em regies muito especficas do encfalo (nos crtices

associativos) revelam a perda de percepo de algum

componente da viso, como movimento ou cor, mas no de outras caractersticas, mesmo que estas sejam processadas mais adiante na sequncia deFigura 2 Estrutura sequencial na organizao dos crtices associativos do SNC. Quanto mais adiante na sequncia, mais complexo o estmulo para qual a populao de neurnios ir responder. Modificado de Lent, 2006.

processamento visual. O maior tempo deteco de de reao um para

estmulo

visual quando mais de uma caracterstica precisa ser analisada em um teste perceptual (cor e forma, por exemplo) tambm refora a ideia de processamento em paralelo. Se apenas uma das caractersticas for necessria para a deteco do estmulo, independente de qual delas, o tempo de reao menor. Na Fig. 3 pode ser vista uma representao das diferentes regies de processamento visual e o papel de cada uma delas na construo de um percepto visual. Vale ressaltar que o arranjo existente nos permite definir uma via dorsal e outra ventral de processamento. Atravs da via dorsal, podemos entender onde vemos um objeto, j que essa via nos trs informaes sobre movimento e posio espacial de um objeto. J a via ventral nos traz informaes de o qu vemos, permitindo identificar caractersticas como cor e forma de um objeto.

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Figura 3 Vias paralelas de processamento do estmulo visual: via dorsal (crtex parietal posterior), para processamento de informaes sobre localizao espacial e movimento, e uma via ventral (crtex temporal inferior), para processamento de informaes como cor e forma do objeto em questo. Retirado de Kandel e col. (2000).

Evidncias clnicas, mais uma vez, no deixam dvidas de que essas vias colaboram de forma independente para a percepo de um objeto qualquer. Um paciente com leso em regies da via ventral poder afirmar no existir uma caneta (objeto) sobre uma mesa diante dele. Apesar disso, se ele for instrudo a imaginar um objeto sobre a mesa e demonstrar como seria o movimento para pegar esse objeto, esse indivduo faria o movimento correto e at mesmo poderia pegar a caneta. A ativao de todas as regies corticais necessria para que possamos ter a correta percepo de um objeto nossa frente; o uso de aspas justifica-se porque, falando-se em percepo, simplesmente no h correto, mas sim uma experincia pessoal que fortemente influenciada pelas nossas memrias, emoes e a ateno deslocada a um dado estmulo do ambiente. Falaremos mais sobre isso nos tpicos seguintes.

Audio O sistema auditrio e seus crtices associativos adjacentes tm sido mais bem estudados nos ltimos anos. Novos experimentos tm trazido evidncias de que o processamento de diferentes caractersticas do som tambm ocorre em diferentes regies corticais. Semelhantemente ao sistema visual, existiriam duas vias de sada para os crtices associativos: uma anteroventral, relacionada percepo de caractersticas do som como timbre e tonalidade; e outra posterodorsal para a percepo de caractersticas espaciais e localizao do estmulo. De fato, Bendor e Wang (2005) encontraram no crtex auditivo de saguis-comuns (na regio anteroventral) neurnios capazes de perceber tons, isto , que disparam para

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uma determinada frequncia e tambm para seus mltiplos. Essa relao entre frequncias exatamente aquela encontrada entre duas oitavas musicais. Essa populao de neurnios provavelmente existe tambm em outras espcies de primatas, incluindo os humanos. possivelmente pelo disparo desses neurnios que identificamos as notas semelhantes entre dois instrumentos musicais diferentes. Como no carro da Figura 1, a constncia perceptual acontecendo para estmulos auditivos. Por outro lado (ou, melhor dizendo, por outra via...), morcegos so um exemplo brilhante da capacidade de localizao por estmulos sonoros. Acredita-se que eles sejam capazes de estabelecer um mapa do ambiente por onde se locomovem to preciso quanto aquele que estabelecemos pela estimulao visual. Tentar imaginar algo como isso quase impossvel, mas, novamente, isto apenas um reflexo da forma como percebemos o mundo. Seria como tentar imaginar como um cego (de nascena) percebe o mundo. Embora voc provavelmente tenha pensado em fechar seus olhos e prestar ateno aos sons, cheiros e presses (tteis) ao seu redor, isto no o que um cego percebe do mundo. Para ele a estimulao visual nunca existiu, logo, perceber o mundo no ver uma imagem preta e atentar s outras sensaes. Para ele, so apenas as outras sensaes. H casos bem documentados de pessoas que conseguiram desenvolver a capacidade de se ecolocalizar (como os morcegos) para se locomover. Essas pessoas parecem criar mapas rudimentares do ambiente, precisos o suficiente para se locomoverem sem maiores problemas.

Memrias atentas ao contextoEm diversos mamferos, aps um estmulo percorrer todos os circuitos necessrios sua percepo (ainda que de forma inconsciente), invariavelmente ele chegar regio anterior do lobo frontal (ou estruturas homlogas). Essa regio est envolvida com memria operacional e ateno, especialmente no caso de primatas (e possivelmente em outros mamferos), e onde o estmulo ser integrado com memrias passadas e, se o estmulo tiver maior relevncia para o organismo (ou simplesmente se for um estmulo muito forte como um rudo muito alto), ganhar maior processamento neural destes circuitos, resultando em um fenmeno que chamamos comumente de ateno. interessante notar que a definio de qual estmulo receber ateno em um dado momento tambm depender do contexto em que se encontra uma pessoa. Imaginese na sua rotina diria no colgio alguns anos atrs. Voc consegue se lembrar com que facilidade voc percebia o sinal da sua escola soar perto do horrio de ir embora? Ou mesmo quantos alarmes-falsos voc tinha durante essa espera? Da mesma forma, crculos vermelhos no devem significar nada para voc neste exato momento, mas eles tero muita importncia quando estiver dirigindo para algum lugar. Essas diferenas sutis 25www.ib.usp.br/labnec

naquilo que percebemos so produto de ativao de circuitos de ateno e das memrias que acumulamos ao longo da vida.

Iluses e hemisfrios cerebrais Ter memrias significa aprender sobre o ambiente que nos rodeia. Quando essas memrias so integradas com nossa percepo, no raro que tenhamos uma viso distorcida daquilo que est diante de ns. Tome por exemplo a Fig. 4A. Qual das duas barras horizontais maior? primeira vista, todos diro que a barra superior maior. Apenas alguns, aps uma anlise mais cuidadosa, diro que ambas tem o mesmo tamanho. Isso no significa que falhamos em enxergar. Apenas nos deixamos levar pelo aprendizado que tivemos em toda nossa vida: ao longo dos anos, vemos que linhas de mesmo tamanho parecem diferentes quanto mais distantes elas esto de ns. As barras convergentes na Fig. 4 criam a iluso de algo que se distancia. Assim, percebemos as barras paralelas como sendo de diferentes tamanhos. Olhe a Fig. 4B e isso ficar ainda mais claro.Figura 4 Iluso de Ponzo. As linhas paralelas em (A) parecem ter diferentes tamanhos, apesar de serem iguais. Em (B) uma possvel explicao biolgica para esse efeito.

(A)

(B)

Nosso treino para perceber formas geomtricas nos faz enxerg-las at mesmo onde elas no existem. A Fig. 5 sugere o formato de um tringulo, mas sem todas as suas bordas esperadas, de fato. A figura conhecida como Tringulo de Kanisa. Algumas pessoas chegam a dizer que ele mais branco que as reas em volta! A explicao direta que nos acostumamos a enxergar com mais luz algo que est em primeiro plano. As iluses de ptica no se resumem apenas a fenmenos mnemnicos (que dizem respeito memria). H tambm efeitos causados pelos prprios receptores sensoriais. Voc provavelmente j se deparou com imagens como as que esto na Fig. 6. A estimulao de um determinado receptor retiniano para cor por um perodo prolongado leva percepo da cor

complementar correspondente, o que faz com que, aoFigura 5 Tringulo de Kanisa.

olhar para um fundo neutro (branco, preto ou qualquer tom de cinza), perceba-se cores trocadas na imagem.

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Figura 6 Efeito de ps-imagem. Uma iluso criada pelos receptores sensoriais quando superestimulados por uma determinada cor. Olhe fixamente por cerca de 30 segundos para qualquer um dos pontos pretos nas imagens e, em seguida, para uma parede branca. O que voc v?

Essa questo torna-se extremamente importante quando pensamos em contraste. A percepo de uma cor em um determinado momento influenciada no somente pela cor em si, mas pelas cores em volta da mesma. Quo diferentes so as cores dos quadrados A e B na Fig. 7? A resposta correta : nada diferentes! No h modificaes! Isso acontece porque as cores ao redor da cor atentada influenciam a percepo da mesma.Figura 7 - Os quadrados A e B da figura so diferentes na cor? No! Os quadrados no so diferentes!

De forma mais ampla, somos influenciados por diferenas entre nossos hemisfrios cerebrais. Apesar de estes trabalharem sempre em conjunto, com ativaes bilaterais, diferenas sutis na ativao refletem certas dominncias inter-hemisfricas que podem tambm resultar em diferenas na percepo. Testes com pacientes que sofreram um AVC e estudos com animais lesionados sugerem que o hemisfrio esquerdo se encarrega primordialmente da percepo de detalhes de uma imagem, enquanto que o hemisfrio direito se encarrega das caractersticas globais. Veja na Fig. 8 como estes pacientes desempenham em um teste simples de cpia de uma figura. Essas diferenas manifestam-se tambm na percepo de figuras com contedo ambguo. O que voc percebe primeira vista na Fig. 9?

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Figura 8 Desempenho de pacientes com hemisfrios cerebrais paralisados em um teste de cpia de figura. Pacientes que tem apenas o hemisfrio esquerdo funcionante, percebem os detalhes das imagens originais, mas perdem a forma global. Por outro lado, pacientes com apenas o hemisfrio direito funcionante percebem a forma global, mas no se do conta dos detalhes. Retirado de Lent, 2006.

SinestesiaA sinestesia um caso muito especfico de percepo em que uma

determinada modalidade sensorial gera a percepo de outra modalidade. Um dos eventos mais frequentes a percepo secundria de cores aps a estimulao primria por um grafema, seja um nmero ou uma letra (ou at mesmo palavras). A percepo induzida pelo estmulo primrio sempre muito especfica e unidirecional (a estimulao pelo percepto induzido no gera a percepo do estmulo indutor pareado, isto , se a palavra casa induz a percepo da cor amarela, o contrrio no acontecer). Um sinesteta pode repetir mais de centenas de pares de percepes com pouco ou nenhum erro. Frequentemente a percepo induzida a de cores, seja por grafemas, como dito acima, ou por sons (palavras em geral); mas h relatos bem documentados de palavras gerando percepo de gostos, gostos gerando formas, cheiros para cores e, mais curiosamente, msica (ou intervalos tonais ou simplesmente tons) para cores ou formas. As percepes secundrias de gostos e tambm cheiros so menos comuns, embora exista pelo menos um caso bem documentado de percepo secundria de gostos induzida por intervalos tonais (musicais). A mesma pessoa reporta possuir o caso mais comum de sinestesia entre tonalidades musicais e cores. A investigao sobre o fenmeno ainda muito recente e algumas perguntas bsicas sobre o assunto s agora comearam a ser respondidas. Em relao aos mecanismos neurais que possibilitam a sinestesia, duas proposies foram feitas:Figura 9 O que voc v nesse quadro?

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alteraes estruturais e alteraes funcionais. A Fig. 10 apresenta um resumo dos modelos de mecanismos possveis.

Figura 10 - Modelos de Sinestesia. Os modelos diferem na rota proposta de ativao cruzada (direta ou indireta) entre as regies indutora e concorrente e nas diferenas subjacentes ao sinesteta (estruturais ou funcionais). Regies em amarelo esto ativas (comeando pela regio indutora) e, em azul, inativas. Conexes excitatrias so mostradas como flechas e inibitrias como pontas em trao. Linhas pontilhadas representam conexes presentes estruturalmente, mas funcionalmente inativas. Modificado de Bargary e Mitchell (2008).

As evidncias de casos clnicos e fenomenologia da sinestesia apontam mais fortemente para alteraes estruturais na conectividade cerebral, com ligaes anormais entre as regies indutora e induzida no crebro de sinestetas (Bargary e Mitchell, 2008). Vale ressaltar que diferentes possuidores de uma mesma sinestesia (tons para cores, por exemplo) podem reportar associaes diferentes para a cor induzida. Se um deles disser que um d maior azul, o outro poder dizer: Isto est errado!. No se sabe por que a induo de cores muito mais frequente que a induo de outras percepes. Diferenas na manifestao da sinestesia ainda levaram sugesto de uma classificao em dois tipos de sinestetas: (1) de ordem baixa e (2) de ordem alta (Ramachandran e Hubbard, 2003). Essa diviso leva em considerao o estgio de processamento em que ocorre o fenmeno perceptual. Sinestetas de ordem baixa tendem a ter o efeito de induo apenas com estmulos muito especficos, por exemplo: nmeros escritos na lngua de origem. J os sinestetas de ordem alta tm o efeito de induo toda vez que o conceito que um determinado indutor sugere est presente. Tomando por base o exemplo anterior, nos sinestetas de ordem alta mesmo algarismos escritos em nmeros romanos (que nada mais so do que letras) poderiam gerar a percepo induzida. 29www.ib.usp.br/labnec

A incidncia da sinestesia na populao mundial de algo entre 1% e 4% (Simner e colaboradores, 2006), um valor bem diferente dos 0,05% anteriormente sugeridos. Estudos em primatas do indcios de que essas conexes anormais esto naturalmente presentes no organismo durante a fase fetal e o perodo de lactncia, mas aps esse perodo essa hiperconectividade de regies sensoriais tende a ser removida do crebro. Isto ainda no fora comprovado em recm-nascidos humanos, mas observaes

comportamentais levam sugesto de que h uma confuso sinestsica nas primeiras semanas de vida. A plena maturao perceptual e a segregao dos sentidos viriam apenas aps alguns poucos meses de vida, portanto. De qualquer forma, no ouse afirmar que um sinesteta tem sentidos menos maduros ou perguntar a ele como viver assim?. A resposta sempre presente aps essa pergunta : Como voc vive assim?!.

Concluir um problemaUma das maiores questes ainda no respondidas com respeito percepo como geramos um percepto nico das estimulaes constantes nossa frente se aspectos diferentes de um estmulo so processados em regies distintas do crtex cerebral (e.g. cor, forma, movimento, etc., no caso da viso). o chamado binding problem. Uma das possveis explicaes para a forma como geramos um percepto a de que, pelo sequenciamento de neurnios no encfalo, com cada vez mais neurnios se juntando em um prximo neurnio (e, consequentemente, complexando o estmulo processado), ao final do processamento, invariavelmente todas as informaes sobre o estmulo estariam ali reunidas. A quantidade de regies envolvidas e a diviso do processamento em duas vias (dorsal e ventral), porm, no favorece essa explicao. Parece mais plausvel aos pesquisadores que o encfalo forme um percepto nico pela sincronizao do disparo dos neurnios das diferentes regies corticais, ainda que cada uma delas esteja envolvida no processamento de distintos aspectos de um estmulo apresentado. Essa explicao, porm, ainda carece de comprovaes. O estudo de casos de sinestesia tem trazido algumas colaboraes para aquilo que entendemos sobre percepo. Alguns sinestetas relatam a percepo de cores estranhas, diferentes de qualquer cor que eles j tenham visto em algum objeto ou lugar. Um deles chegou a chamar essas percepes sinestsicas de cores marcianas. Ramachandran e Hubbard (2003) atribuem essas cores estranhas ligao cruzada (ou direta) de um crtex sensorial para outro, o que desviaria o processamento de estgios iniciais da percepo de cores. Segundo os autores, isso sugere que a experincia subjetiva da percepo de cores depende no s do processamento final, mas de todo o padro de atividade neural que leva formao de um percepto, incluindo as fases iniciais do processo. 30www.ib.usp.br/labnec

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Estando certa ou no a sugesto dada por Ramachandran e Hubbard (idem), fica claro que ainda precisamos entender muito sobre os mecanismos pelos quais simplesmente percebemos o mundo que est ao nosso redor. Ou talvez um dia tenhamos a certeza de que, desde sempre, apenas representamos internamente o que percebido externamente. Pelo menos isso que os estudos sobre ateno e memria sugerem cada vez mais fortemente.

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AtenoWataru Sumi Laboratrio de Neurocincias e Comportamento [email protected] A todo instante somos expostos a uma grande quantidade de estmulos ambientais que so captados por nossos rgos sensoriais. A maioria desses estmulos no percebida pelo observador, apenas alguns selecionados para serem posteriormente analisados. Acredita-se que o sistema nervoso incapaz de processar todas essas informaes. Assim, para permitir um processamento eficiente, a ateno selecionaria apenas algumas poucas informaes que ns recebemos (Bear e col., 1996). O conhecimento acumulado sobre ateno no ltimo sculo tem trazido luz, mais e mais fenmenos relacionados com esse processo cognitivo. A partir da dcada de 1950, muitos cientistas cognitivos propuseram diferentes teorias para abarcar o conjunto de dados revelados pelas mais diversas tcnicas de avaliao do comportamento e de medies das atividades do crebro. O presente texto ser focado nos aspectos comportamentais da ateno, portanto, no nos ateremos aos processos neurofisiolgicos responsveis pela ateno nem nas diferentes teorias criadas ao longo das ltimas dcadas para explicar o funcionamento geral desse que um dos mais interessantes e enigmticos processos cognitivos.

Ateno e percepoComo mencionado anteriormente, a ateno seleciona um conjunto de informaes do ambiente enquanto ignoram outros. Veremos ao longo do texto diferentes exemplos de experimentos nos quais evidenciado esse fenmeno, principalmente na ateno visual. Antes, comearemos com os efeitos da ateno sobre a percepo auditiva. Na dcada de 1950, Cherry realizou um experimento no qual era avaliada a capacidade de selecionar um dentre dois estmulos auditivos simultaneamente

apresentados. O voluntrio utilizava fones de ouvido e recebia diferentes estmulos, um para cada ouvido. O voluntrio era ento instrudo a prestar ateno apenas a um dos ouvidos. Ele observou que os voluntrios eram incapazes de relatar o que foi apresentado ao ouvido no atendido (Gazzaniga e col., 2002). Esse efeito no aparece apenas quando ouvimos estmulos diferentes em cada ouvido. Somos frequentemente expostos a situaes nas quais recebemos diferentes estmulos auditivos, selecionando os que nos interessa e ignorando os demais. Para ilustrar melhor esse efeito, podemos nos imaginar em uma festa: existem dezenas de pessoas, umas falando mais alto que outras, alm da msica no volume

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mximo. Apesar disso, somos capazes de selecionar estmulos especficos que nos interessam como a fala de um amigo ou eventualmente a msica sendo tocada. Apesar da avaliao da ateno auditiva ter contribudo bastante com entendimento da ateno, os estudos nessa rea concentram-se principalmente na ateno visual. Isso fica claro quando tanto pelo numero de artigos publicados como pela diversidade de tarefas desenvolvidas pelos cientistas. Consequentemente, o conhecimento acumulado sobre esse sistema perceptual muito maior. Vamos a seguir ver os diferentes efeitos comportamentais da ateno sobre a percepo visual. Para compreendermos melhor a ateno, podemos utilizar a metfora do holofote: enxergamos os objetos iluminados pela luz, mas no somos capazes de enxergar os objetos que permanecem nas sombras. De forma semelhante, para percebermos os estmulos do ambiente, eles devem estar sob o foco da ateno. Um experimento realizado no final do sculo XIX por Herman von Helmholtz demonstra isso claramente. Nesse experimento, os voluntrios eram colocados em frente a um painel e eram instrudos a direcionar a ateno a um ponto especfico da tela. O painel era mal iluminado e o voluntrio era incapaz de observar qualquer letra impressa nele. Quando um flash de luz era acionado, era ento possvel ver as letras. Porm, os voluntrios eram capazes de discriminar apenas as letras localizadas na regio onde a ateno estava previamente focada (Gazzaniga e col., 2002). Como citado anteriormente, no somos capazes de processar eficientemente todas as informaes que recebemos do ambiente. Quando procuramos algo especfico no ambiente, podemos ter mais ou menos facilidade de acordo com a caracterstica do alvo. Quando um estmulo se destaca muito no meio de outros estmulos, a ateno pode ser atrada automaticamente, como ocorre, por exemplo, com as luzes intermitentes dos automveis. Por outro lado, quando a diferena entre o alvo e os outros elementos da cena (distratores) pequena, necessrio procur-la, ou seja, direcionar voluntariamente a ateno. Ambos os processos podem ser avaliados na tarefa de busca visual (Fig. 1). Quando o alvo (1-A: barra vertical e; 1-B: barra vermelha) muito diferente dos distratores, a sua deteco quase imediata, independentemente do nmero de elementos, ou seja, podem ser cinco ou cinquenta distratores sem que o tempo para a deteco do alvo seja afetado. Isso porque a ateno atrada automaticamente. Porm, quando a diferena entre alvo (1-C: barra azul horizontal) e os distratores pequena, o tempo de deteco aumenta de acordo com o aumento do nmero de elementos distratores, isso porque necessrio analisar cada um dos itens isoladamente de forma serial; assim, quanto mais elementos precisarem ser analisados, maior ser o tempo necessrio para detectar o alvo (Treisman e Gelade, 1980).

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Figura 1- Tarefa de busca visual. 1a e 1b: o alvo difere em apenas uma caracterstica em relao aos distratores: forma e cor, respectivamente. 1c: o alvo possui duas caractersticas que o torna diferente dos distratores (horizontal azul).

Falha na percepoQuando no prestamos ateno ao ambiente por estarmos distrados ou por estarmos prestando ateno fixamente em algo, deixamos de perceber diferentes estmulos. Existem experimentos nos quais so evidenciados esses efeitos. Um deles denominado cegueira inatencional. Isso se caracteriza pela incapacidade do voluntrio de reportar a presena de um objeto no centro de seu campo visual, perfeitamente visvel, mas inesperado, porque a ateno estava engajada em outra tarefa (Neisser e Becklen, 1975). Outra evidncia do papel da ateno na percepo a cegueira para mudana, um fenmeno relacionado com a cegueira inatencional, mas com sutis diferenas. Esse efeito se refere incapacidade em identificar diferenas entre duas imagens apresentadas em seqncia (Simons e Rensink, 2005). Essas imagens podem ser fotografias diferentes, algo como os jogos de sete erros, ou mesmo objetos do ambiente. Em uma pegadinha realizada por uma emissora de TV, o atendente de uma loja abaixa-se atrs do balco para, supostamente, pegar uma mercadoria, ele ento troca de lugar com outra pessoa que, aps se levantar, continua a interagir com os clientes-vtimas como se nada tivesse acontecido. Poucos clientes percebiam a troca.

Teste de PosnerUma das maiores contribuies para os estudos da ateno foi feita por Posner, que desenvolveu uma tarefa que pode ser utilizada para testar diferentes aspectos da ateno. Essa tarefa (Fig. 2) consiste em manter o olhar fixo no centro de um monitor de vdeo. Apresenta-se, ento, uma pista indicando o provvel (por exemplo, 80%) local de aparecimento de um alvo, que pode ser para a direita ou esquerda do monitor. Nesse caso, a pista chamada de vlida. No restante das tentativas (20%), a pista indica o local oposto de aparecimento do alvo, sendo chamada ento de pista invlida. Aps o aparecimento da pista, o voluntrio deve direcionar a ateno, mas no o olhar, para o local indicado pela

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pista. Finalmente, aps o aparecimento do alvo, o voluntrio deve responder pressionando um nico boto, independente do lado e da validade da pista (Bear e col., 1996). Quando o voluntrio direciona a ateno para o local de aparecimento do alvo (i.e. tentativa com pista vlida) ele responde mais rpido do que na situao em que ele direciona a ateno para o lado oposto do monitor de vdeo. Essa tarefa nos permite avaliar diferenas entre esses tempos de resposta na ordem de dezenas de milissegundos. Se alterarmos a intensidade do estmulo alvo, ser possvel observar claramente os efeitos atencionais sobre a percepo. Nesse caso, o estmulo deve estar um pouco acima do limiar de percepo do voluntrio. Ento, se o alvo for precedido da pista vlida, quando o sujeito direciona a ateno para o local de aparecimento do alvo, ele responde normalmente, mas, quando o voluntrio direciona a ateno para o lado errado em decorrncia da pista invlida, ele simplesmente no v o alvo.

Figura 2- Tarefa de orientao espacial da ateno. O voluntrio deve manter o olhar fixo no centro do monitor. Ele ser, ento, instruido a direcionar a ateno para um dos lados de acordo com uma pista e, finalmente, responder ao aparecimento do alvo. Retirado de Lent, 2002.

Uma alterao dessa tarefa pode nos mostrar o efeito do direcionamento atencional na percepo da coincidncia temporal da apresentao de estmulos. Nessa tarefa, os voluntrios eram orientados a direcionar a ateno para um dos lados do monitor, de acordo com uma pista sinalizadora, mas ao invs de aparecer apenas um alvo, direita ou esquerda, apareciam dois alvos, um de cada lado, mas com um intervalo de algumas 35www.ib.usp.br/labnec

dezenas de milissegundos. Observou-se que os voluntrios percebiam um estmulo mais rapidamente quando prestavam ateno ao local de aparecimento; por exemplo, se ele direcionasse a ateno para o lado direito e aparecesse um estmulo esquerda e 30ms depois na direita, o voluntrio relataria que os alvos apareceram simultaneamente, apesar da defasagem temporal entre os estmulos (Stelmach e Herdman, 1991).

Efeitos das leses do sistema nervoso na atenoAt agora, vimos os efeitos produzidos pela alocao ou no da ateno nas atividades do cotidiano ou em condies experimentais que nos auxiliam a entender como ela funciona. Outra fonte muito importante de informao sobre as relaes desse processo cognitivo que tem contribudo com os avanos nessa rea a observao de indivduos com graves deficincias atencionais, decorrentes de leses provocadas por AVC, tumores, traumas, etc. Leses no crtex parietal, na juno com o crtex temporal (principalmente no hemisfrio direito), produzem um efeito conhecido como sndrome de heminegligncia (Fig. 3), que consiste em ignorar objetos ou eventos presentes no lado oposto leso (Robertson e Rafal, 2000). Apesar do prejuzo em relatar eventos no campo contralateral, os pacientes dessa sndrome ainda so capazes de identific-los precariamente, porm, quando estmulos so apresentados simultaneamente em ambos os lados do campo visual, eles identificam apenas os estmulos apresentados no lado ipsolateral (Gazzaniga e col., 2002). Esse efeito chamado de extino.

Figura 3- Desenho feito por um paciente com a sindrome de heminegligncia. esquerda, desenho modelo e, direita, cpia feita pelo paciente. Metade da figura ignorada pelo paciente. Modificado de Gawryszewski e col., 2007.

Em um experimento clssico possvel observar que a heminegligncia no afeta apenas a percepo. Um paciente que sofre dessa sndrome foi orientado a descrever uma paisagem com a qual ele estava bastante familiarizado (a praa central da cidade em que vivia). Imaginando-se posicionado em um dos lados da praa, ele descrevia apenas a metade da paisagem. Mas, quando ele era orientado a se imaginar do lado oposto da praa, 36www.ib.usp.br/labnec

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ele descrevia os objetos anteriormente ignorados e mantendo a tendncia de ignorar metade do campo visual (Gazzaniga e col., 2002). A leso no crtex parietal dos dois hemisfrios cerebrais produz a sndrome de Balint. O portador dessa sndrome percebe apenas um objeto de cada vez (agnosia simultnea), mesmo quando dois objetos esto prximos ou sobrepostos (Gazzaniga e col., 2002). Para esses pacientes, os objetos aparecem de repente e as mudanas do campo visual para outros objetos so aleatrias. A capacidade de reconhecer rostos, formas, cores e palavras so mantidas, mas a incapacidade de ver dois objetos simultaneamente faz com que esses pacientes percam a noo de espao. Eles so incapazes de dizer se um objeto est direita, esquerda, acima ou abaixo em relao a eles ou outros objetos (Robertson e Rafal, 2000). As propriedades atencionais descritas aqui mostram explicitamente a relao entre ateno e percepo, mas no apenas isso. Sabendo, por exemplo, que a nossa memria se constri principalmente a partir do que percebemos do mundo, fica claro tambm que a ateno tem grande importncia na formao de memria. importante ressaltar tambm que, se por um lado a ateno afeta o funcionamento das outras funes cognitivas, a recproca tambm verdadeira, pois todas as funes cognitivas so inter-relacionadas, modulando-se mutuamente, como ser visto nas demais aulas desse curso.

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MemriaLeopoldo F. Barletta Marchelli Laboratrio de Neurocincia e comportamento [email protected] Das propriedades que emergem da organizao e funcionamento do sistema nervoso, a memria tida como um dos resultados mais fascinantes. O que demonstra a presena de memria em um organismo a capacidade que ele tem de alterar seu comportamento em funo de informaes adquiridas e armazenadas. Uma vez que ocorra interao entre ambiente e indivduo, os sistemas de memrias, aptos a aprenderem sobre informaes e regras ambientais relevantes (altamente informativas), guiam

adaptativamente o comportamento desses indivduos. Com o acmulo de informaes, o sistema nervoso passa a detectar regularidades e antecipar eventos em funo de experincias anteriores. Desta forma, organismos portadores de memrias podem relacionar grandes quantidades de informaes passadas e presentes e selecionar quais recebero um processamento preferencial por meio do direcionamento da ateno. Isso quer dizer que em funo de experincias prvias, tais organismos podem flexibilizar o controle de seus comportamentos. Isso lhes garante um repertrio de solues para os mais diversos problemas que a sobrevivncia impe.

Aspectos comportamentais e evolutivosAos olhos da teoria proposta por Charles Darwin em 1859, sistemas biolgicos so tidos como produtos da evoluo por seleo natural, que pode favorecer o desenvolvimento de um sistema mais adaptado. Alm de a seleo atuar sobre estruturas e mecanismos, ela age tambm selecionando comportamentos. Por exemplo, se um ambiente relativamente simples e po