anÁlise do poema de mario quintana

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UNIVERSIDADE DO CONTESTADO- UnC CURSO DE LETRAS JÉSSICA ULBRICHT ANÁLISE DO POEMA O "VELHO POETA" DE MARIO QUINTANA

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Page 1: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

UNIVERSIDADE DO CONTESTADO- UnC

CURSO DE LETRAS

JÉSSICA ULBRICHT

ANÁLISE DO POEMA O "VELHO POETA" DE MARIO QUINTANA

MAFRA-SC

2012

Page 2: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

1. ANÁLISE DO POEMA O "VELHO POETA" DE MARIO QUINTANA

1.1 Sobre o autor

O poeta Mario de Miranda Quintana nasceu em Alegrete/RS em

30/07/1906 e faleceu em Porto Alegre/RS, onde residia, em 05/05/1994.

"Esta vida é uma estranha hospedaria,

De onde se parte quase sempre às tontas,

Pois nunca as nossas malas estão prontas,

E a nossa conta nunca está em dia."

1.2 Quintana por ele mesmo

"Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal

coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem!

Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente.

Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca

escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são

detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades

só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois

foi-nos prometida a Eternidade.

Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima

prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não

estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como

Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac

Newton! Excusez du peu...

Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto.

Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha

altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta

satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão,

Page 3: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por

não poderem ser chatos como os outros?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a

síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a

dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter

sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de

Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que

bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras".

(Texto escrito pelo poeta para a revista Isto

É, de 14-11-1984.)

1.3 Poema

O Velho Poeta

Um dia o meu cavalo voltará sozinho

E assumindo

Sem saber

A minha própria imagem e semelhança

Ele virá ler

Como sempre

Neste mesmo café

O nosso jornal de cada dia

- inteiramente alheio ao murmurar das gentes...

Vocabulário, sintaxe, morfologia

Título: O Velho Poeta

Artigo definido O: refere-se a nome determinado, restringindo-o.

Adjetivo Velho: anteposto ao substantivo Poeta – qualifica, restringe e

intensifica o substantivo, no caso, Poeta. Velho

Poeta: Substantivo: que se dedica à poesia, ou tem uma visão de mundo

norteado por ela. Ver

Page 4: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

1.4 Análise

Primeiro verso: "Um dia o meu cavalo voltará sozinho" – oração principal

um dia: tempo da narrativa – adjunto adverbial de tempo – um: artigo indefinido

masculino, singular; dia: substantivo concreto, masculino, singular; tempo

indeterminado, no futuro, qualquer dia, é o tempo do desconhecido e da

surpresa, o tempo da incerteza, do infinito ou da eternidade.

(Nota: opõe-se ao tempo de contar estórias, no passado, com começo, meio e

fim, quando “viveram felizes para sempre”, este é o tempo dos contos de fadas:

“era uma vez”) o meu: adjunto adnominal – o: artigo definido, masculino,

singular; meu: pronome possessivo, masculino, primeira pessoa, singular;

Cavalo: sujeito: – O autor coloca-se no texto, a primeira pessoa, com a

narrativa referenciando a terceira, um animal do qual tem a posse, o domínio,

submetido a adestramento, capaz de realizar ação de maneira autônoma, por

força da repetição e da rotina, o que gera laços de afetividade. Verbo: voltará –

verbo voltar, neste caso, intransitivo, no futuro do presente, ação com

realização definida, autônoma, modificada por uma circunstancia. Sozinho –

Adjunto adverbial de modo ou de companhia (tanto pode significar que o cavalo

(corpo do poeta) pode realizar ação de maneira autônoma, automática (modo);

como indicar que o cavalo (corpo) volta desacompanhado de seu dono

(companhia),

O recurso de modificar a ação com uma circunstância será encontrada

em todo o poema.

Segundo verso: "E assumindo" – dúvida: oração coordenada sindética

aditiva, ou oração subordinada adverbial final

e: conjunção coordenativa aditiva; pode ter a função da preposição para

assumindo: Verbo assumir, transitivo direto (tomar sobre si ou para si; avocar,

assumir a responsabilidade dos atos; entrar no exercício de; adotar, tomar,

ostentar; entrar no exercício de um cargo ou função) modo gerúndio, neste

caso indicando ação imediata e urgente, com duração no tempo e espaço.

Terceiro verso: "Sem saber" – oração subordinada adverbial de modo

Page 5: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

Sem: preposição: indica carência, falta, ausência.

Saber: verbo no infinitivo, não flexionado, indica impessoalidade; algumas

acepções: ter conhecimento, ciência, informação, notícias de, conhecer; estar

informado; julgar, considerar, ter como, etc.

Quarto verso: "A minha própria imagem e semelhança"

Oração subordinada substantiva objetiva direta

A: adjunto adnominal, artigo definido, feminino, singular; determina o

objeto direto

Minha: adjunto adverbial de posse, pronome possessivo, primeira

pessoa do singular, aproxima ainda mais a identificação do objeto e traz para

perto do leitor a presença do poeta na composição.

própria: adjunto adnominal, adjetiva e aprofunda a identidade e presença do

poeta no poema.

imagem: objeto direto; substantivo feminino, concreto, singular. Algumas

acepções: representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de

objeto; representação plástica da Divindade, de um santo, etc; pessoa muito

formosa (Fig); reprodução invertida, de pessoa ou objeto, numa superfície

refletora; aquilo que evoca uma determinada coisa, por ter com ela uma

relação simbólica; símbolo; representação mental; manifestação sensível do

abstrato ou do invisível; metáfora, etc.

e – conectivo, relaciona mais um objeto direto

semelhança: objeto direto; substantivo abstrato, feminino, singular.

Acepções: qualidade de semelhante; relação entre seres, coisas ou idéias que

apresentam entre si elementos conformes, além daqueles comuns à espécie;

parecença, analogia; similitude; aspecto, aparência; confronto, comparação,

paralelo.

Quinto verso: “Ele virá ler” – oração subordinada adverbial final

Sujeito: ele – pronome pessoal do caso reto, terceira pessoa do singular

Verbo: virá – verbo vir, intransitivo; tempo futuro do presente

Verbo: ler: infinitivo, indica aqui finalidade, motivação do verbo vir, forma não

flexionada, a ação em toda sua potencialidade, com dimensão infinita.

Page 6: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

Sexto verso: “Como sempre” – adjunto adverbial de modo

Como: conjunção – da mesma forma que

Sempre: advérbio – em todo o tempo; sem cessar, continuamente,

continuadamente; em todo caso, de qualquer modo; afinal, enfim, finalmente;

na verdade, realmente; entretanto, contudo, todavia.

Como sempre: locução adverbial – modo

Sétimo verso: “Neste mesmo café” – adjunto adnominal - lugar

Neste: pronome demonstrativo, indica lugar próximo à pessoa do discurso,

concluindo-se que o poeta escreve o poema aí.

mesmo: adjetivo – exatamente igual, idêntico; parecido, semelhante análogo;

próprio; esse, este, aquele; citado, mencionado; que figura em pessoa, que se

apresenta em caráter pessoal; não diverso, não outro, tal qual; que não mostra

alteração no caráter ou na aparência; que não mudou, invariável; a mesma

coisa; o que é indiferente ou que não importa; indivíduo cuja caráter ou

aparência não sofreram mudança; exatamente, precisamente, justamente; até,

ainda; realmente, verdadeiramente, deveras;

Café: substantivo concreto, masculino, singular; fruto do cafeeiro; infusão do

fruto, após torrado e moído; a porção, dose servida em xícara, copo, caneca;

estabelecimento comercial onde é servida a bebida e outros, botequim; a cor

do café torrado;

Antecedido pelo adjetivo mesmo pode indicar a hora do dia – a manhã - em

que se lê os jornais para se informar das novidades, ou ainda as duas

hipóteses combinadas.

Oitavo verso: “O nosso jornal de cada dia” – oração subordinada

substantiva objetiva direta, complemento verbal da oração “Ele virá ler”

O: adjunto adnominal, artigo definido, masculino, singular

nosso: pronome possessivo, primeira pessoa do plural.

jornal: substantivo concreto, masculino, singular, fulcro do objeto direto.

Complemento verbal do verbo ler. Ver sinônimo

Page 7: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

Cada: conjunção - entre outros significados: conforme, segundo;

pronome indefinido, a unidade de um todo ou conjunto de elementos afins;

advérbio de intensidade (cada menina bonita!)

Dia: substantivo, concreto, masculino, singular.

cada dia: pode significar conforme, segundo o dia; ou pronome indefinido

(unidade de um conjunto)

Nono verso: “- inteiramente alheio ao murmurar das gentes...” – adjunto

adnominal/complemento nominal

inteiramente: advérbio de modo; inteiro: em toda a sua extensão; todo,

completo; na sua totalidade; que tem todas as suas partes, que não falta nada;

ileso, incólume; não deteriorado, quebrado ou rachado; que não diminuiu;

constituído de uma só peça, inteiriço; ilimitado, absoluto, irrestrito; Fig: reto,

íntegro, incorrutível.

alheio: que não é nosso; que pertence a outrem; estranho, estrangeiro; falto,

privado; isento, livre; que nada tem a ver com o assunto de que se trata;

impróprio; distante, apartado, afastado; diverso, contrário, oposto; distraído,

desatento, abstraído; desconhecedor, insciente, ignorante; alienado, louco,

doido.

ao: locução prepositiva: a + o – preposição mais artigo

murmurar: acepção de verbo intransitivo dizer mal de alguém; apontar faltas;

conceber mau juízo; produzir murmúrio ou sussurro; sussurrar; soltar

queixumes; lastimar-se em voz baixa; resmungar, resmonear; emitir som leve,

frouxo; dizer em voz baixa, segredar; censurar ou repreender disfarçadamente

em voz baixa; dizer mal; maldizer; conceber mau julgamento; falar contra

alguém ou algo; criticar; soltar queixumes;

das: locução prepositiva – de + as – preposição de mais artigo as definido

feminino plural

gentes: o uso no plural é informal; substantivo feminino, concreto, plural; gente:

quantidade maior ou menor de pessoas indeterminadas; povo; determinado

número de pessoas que tem em comum certas características, ou profissão, ou

interesse; pessoal; número indeterminado de pessoas, ou mesmo uma só

pessoas; alguém; o gênero humano; homem, pessoa; habitante de

determinada localidade, região ou país; população, povo; partidários ou

Page 8: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

sequazes de uma idéia, de uma facção ou causa política; companheiro,

camarada; família ou empregados; mil. força armada

A palavra gentes eleita por MQ contempla todos os seus significados.

1.5 Figuras de linguagem

1.5.1 Metáforas

cavalo: matéria, corpo do poeta

imagem e semelhança/a totalidade do ser; corpo e espírito do poeta

jornal (O nosso jornal de cada dia): o alimento, o pão de cada dia

1.5.2 Metonímia

o produto pelo lugar ou o tempo

Neste mesmo café

Depois de levantados os elementos que serviram de suporte ao poeta

para transmitir a sua mensagem, chegamos à interpretação que não pretende

esgotar o poema, pois cada leitor pode dar sua colaboração, em conformidade

com leituras, umas mais atentas, outras não, às diferentes visões de mundo,

história de vida, formação, vivências, repertório teórico, etc.

Que o presente trabalho possa servir de ensejo para o surgimento de questões

que o complemente, enriqueça, corrija ou mesmo conteste.

A visão geral do poema:

O poema encerra um paralelismo bíblico com os temas da Criação, da

vinda do Prometido, da Salvação, para tanto, o poeta tece a trama poética de

maneira lúdica, poética, com certo humor, beirando o maravilhoso fantástico,

resultando uma reinvenção da narrativa bíblica, o Gênese e Novo Testamento,

Page 9: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

apresentando os temas da Recriação ou Reinvenção do Poeta, do Regresso,

do Resgate e da Libertação.

Outros temas podem ser investigados, como o da crise da unidade do

ser e do maravilhoso fantástico.

À primeira vista, o poema nos chama a atenção pela apresentação:

- a visão gráfica do texto nos apresenta versos longos e curtos, sendo estes

predominantemente circunstanciais.

- versos longos para a presença em primeira pessoa, referentes ao “eu

poético”; versos curtos quando relacionados à terceira pessoa, à ação do

“cavalo”, sozinho ou já um ser integral; termina o poema com um verso de

metro intermediário para a explicitação final do objeto da missão dos dois;

último verso, longo, para a circunstância final.

O texto, composto em versos livres, cujo ritmo, próprio da fala, com a

linguagem do cotidiano, aparentemente simples e despretensiosa e com

elementos utilizados pelo poeta, resultam em uma mensagem intrigante e

surpreendente.

O título determina um referencial: fala de uma pessoa bem identificada,

mas deixa ao leitor uma ponta de dúvida após a leitura cuidadosa: O Velho

Poeta – é ele mesmo – Mário Quintana, ou a figura do Criador?

Primeiro verso: início da recriação do ser e o anúncio do tema da volta.

Já no primeiro verso, o autor faz uma narrativa em primeira pessoa, é

personagem do texto, introduzida pelo pronome possessivo “meu”. Inicia a

recriação do ser.

A presença do poeta, explícita já no primeiro verso pelo possessivo

/meu/, percorre todo o poema, como um eco da sua presença, pelo recurso da

aliteração em /M, N/ nas palavras meu, sozinho, assumindo, sem, minha,

imagem, semelhança, como, sempre, mesmo, nosso, inteiramente, murmurar,

gentes, numa gradação cujo ápice se dá no quarto verso, adiante.

Page 10: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

O autor coloca-se no texto, a primeira pessoa, com a narrativa

referenciando a terceira, um animal do qual tem a posse, o domínio, submetido

a adestramento, capaz de realizar ação (voltará) de maneira autônoma, por

força da repetição e da rotina, o que gera certa simbiose com seu dono. A

metáfora cavalo dotado de memória celular, impregnado da lembrança da vida

passada, o corpo, matéria.

Suscita outra dubiedade este primeiro verso: “sozinho” como referência

à capacidade de agir independente, ou a apresentação do ser desconstruído,

incompleto, o qual age por força da repetição, rotina.

Nos segundo e terceiro versos, o ser incompleto, o corpo, a matéria, é capaz

de se transfigurar no que fora, o que se dá de modo inconsciente pois a parte

imaterial é mais forte e o domina, como num encantamento.

Quarto verso: a recriação do ser: a unidade – corpo e espírito

A fusão da matéria e do espírito se dá no quarto verso, o centro do poema,

atingindo, a recriação, a plenitude, consumando-se a reestruturação ou a

reinvenção do ser, agora uno, completo, prontos para a missão. A presença da

primeira pessoa, já explícita no primeiro verso /Meu/ atinge aqui o seu

ápice: /MiNha/própria/iMageM/seMelhaNça.

Este recurso, o da aliteração, com a repetição dos sons /M/

principalmente, é uma espécie de marca da presença do poeta, iniciada no

primeiro verso com o possessivo “meu” /Um dia o MEU cavalo voltará sozinho/

o que faz ecoar sua presença em todo poema, uma espécie de mariocentrismo

evidenciando a genialidade do poeta que dá o suporte lingüístico, fônico e

poético ao tema da reinvenção do ser, para uma finalidade que veremos

adiante, no quinto verso.

A aliteração atinge seu auge num mesmo verso, e coincide com a

plenitude do paralelismo bíblico da criação do homem, o ápice da presença do

ser completo, reconstruído, para a seguir repetir a profecia da sua volta, já

Page 11: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

anunciada no primeiro verso, agora que foi consumada a reinvenção de si

mesmo.

Temos neste verso a gradação, um movimento como que de uma

câmera se aproximando de fora para dentro, dos detalhes acessórios para a

essência, indo desde o artigo definido /A/ fortalecendo-se com o pronome

possessivo de primeira pessoa /minha/ em nível mais profundo o adjetivo

/própria/culminando com o concreto /imagem/ para finalmente se totalizar com

o abstrato /semelhança/

Tem muita plasticidade, o verso é esculpido à medida que o escultor

define os acessórios e mostra a face (concreto) e a natureza (abstrato)

graduando a materialização do poeta que se totaliza em corpo e espírito,

restabelecendo a unidade perdida.

Quinto verso: o resgate “Ele virá ler”

O quinto verso se iguala ao quarto em importância, ambos nas posições

centrais do poema, anuncia a finalidade do regresso, preparada com a

recriação.

Único verso sem o recurso da aliteração, isto é, sem o eco /M/ da

presença da primeira pessoa.

Já reintegrado na sua unidade – corpo/espírito, o personagem, ante a

visão do ser recriado/reinventado, se distancia, referencia-o na terceira pessoa

e no futuro, também aqui num paralelismo, não mais com o Gênese, mas com

o Novo Testamento, pela proximidade fonética /Ele virá ler/ lembrando os

versos bíblicos /Ele viverá/

Ou /Ele vive/ /Ele virá/ O ente manifestado virá para salvar, resgatar o hábito de

ler, a leitura em maior amplitude, na sua dimensão infinita (verbo ler não

flexionado)

Page 12: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

O poeta se distancia desse tempo futuro, o tempo do cumprimento da

profecia, da sua recriação ou reinvenção, sendo o único verso onde não há o

eco da presença do poeta, através da repetição, o recurso da aliteração.

Posiciona esse acontecimento futuro para o mais remoto possível,

sugere impotência no controle do tempo em que essa vinda acontecerá,

tampouco sobre seus desígnios.

Como assinalado no início, no primeiro verso, esse tempo: “Um dia...” é

o tempo do desconhecido e da surpresa, em oposição ao tempo dos contos de

fadas “Era uma vez...” onde o final feliz encerra todas as histórias. O poeta nos

narra poeticamente, ainda que com certo humor, não um conto de fadas, mas,

digamos, um conto de vida (ou de morte) real.

O sexto verso “como sempre” dá maior intensidade ao caráter de

repetição, representando também os hábitos e costumes simples, rotineiros,

mas essenciais ao poeta.

No sétimo verso: “Neste mesmo café” uma reafirmação da regularidade

de freqüência, no tempo e lugar, o hábito, a rotina, durante a sucessão de dias

do poeta, a ponto de tornar-se uma ação automática, autônoma, com uma

finalidade tão essencial, da qual não pode prescindir nem depois da sua morte

ou devido a algum outro motivo que leve à privação de realizá-la.

Oitavo verso: o centro da motivação do regresso: o jornal, a vida terrena.

Novamente o paralelismo bíblico, desta vez com a oração do Pai Nosso:

“O pão nosso de cada dia”/O nosso jornal de cada dia – o pão conforme a

necessidade do dia presente; ou o pão que é dado providencialmente no dia

atual, na sucessão dos dias aparentemente iguais, quando é preciso vivê-los

um de cada vez, sem preocupação com o amanhã. O alimento espiritual,

essencial e material do poeta é a leitura de jornal, não qualquer um, mas

específico, para atualização singular do poeta com os acontecimentos diárias

da sua aldeia e do mundo.

Page 13: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

A leitura, por extensão, envolve o ato de escrever, e tudo o mais que

serve de alimento à alma do escritor. Essa atualização, esse diálogo com as

letras e de modo mais amplo com os amigos, é trazida para perto do leitor, num

ambiente familiar, conhecido, por meio do emprego do pronome /nosso/.

A repetição da presença do poeta e ao mesmo tempo a novidade

expressa pela locução “cada dia”, quando corpo e espírito estão em unidade,

na comunhão do pão cotidiano /nosso jornal de cada dia/ que na mesmice do

formato contém a novidade do conteúdo – o alimento, a vida.

Assim, embora repetitivo na forma e tempo, o alimento se faz único e

novo a cada dia, seduzindo fascinante e irresistivelmente, a ponto de fazer o

poeta se reinventar, recriar-se, no seu desejo de revisitar o passado, ressurgir

(ou ressuscitar?) para repetir, resgatar, no futuro, esta vida do tempo presente,

quando então “um dia” estiver impossibilitado de viver esta rotina.

Nono verso: enfim, a libertação: “inteiramente alheio ao murmurar das

gentes...”

A aliteração reafirma a presença da primeira pessoa, desta vez para

colocar-se afastado de quaisquer juízos, tanto dos seus próximos, quanto dos

de sua aldeia, os seus pares, os seus amigos, o país, o mundo, “gentes”, em

sentido amplo.

Enfim, livre de toda convenção, o poeta vive a plenitude da liberdade,

sob o signo do fantástico maravilhoso, e certamente não por coincidência, este

último verso, potencializado, por ser o mais longo do poema e pelas

reticências.

Page 14: ANÁLISE DO POEMA DE MARIO QUINTANA

2. Bibliografia

Novo Dicionário Aurélio - Aurélio Buarque de Holanda – 15º edição.

Trabalho original - Vedado uso comercial ou reprodução, sem autorização