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1 A PRODUÇÃO AGRÍCOLA FAMILIAR NO CONTEXTO DO AGRONEGÓCIO: SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA Marize Rauber Engelbrecht 1 RESUMO: O presente artigo é resultado de uma revisão bibliográfica que objetiva contextualizar a situação da agricultura brasileira no processo de acumulação capitalista a partir dos complexos agroindustriais, momento em que se difunde o capital industrial e financeiro gerando novas demandas que transformaram o produto do campo em mercadoria. Como expressões desse processo o debate gira em torno da cultura empresarial de negócio, o agronegócio, e da produção agrícola familiar, que se manifesta enquanto um campo permanente de tensões e conflitos e apresenta-se enquanto uma categoria de resistência na agricultura moderna. Evidencia-se que nas relações de produção do agronegócio as referências são a monocultura, trabalho assalariado, produção em grande escala, produtividade, concentrador e funcional à ordem do capital, enquanto na produção familiar vincula-se a biodiversidade, predominância do trabalho familiar, produção em menor escala e maior zelo com o meio-ambiente. No entanto, diante de todas as adversidades postas pelo desenvolvimento do capitalismo na agricultura, da subordinação ao agronegócio, ao controle de produção e preços, o produtor familiar com uma pequena unidade produtiva vem demonstrando o potencial e o significado relevante na produção dos alimentos internos o que mostra a capacidade de resistência e de adaptação dos agricultores aos novos contextos econômicos sociais. PALAVRAS-CHAVE: Agronegócio; Produção Agrícola Familiar; Estado. INTRODUÇÃO A partir de 1950, diante da influência dos países europeus, o Brasil inicia um intenso debate político em torno da modernização da agricultura porque até então, a agricultura brasileira era considerada símbolo de atraso econômico do país, das relações arcaicas e também responsável pelas condições de miséria da grande maioria dos trabalhadores. Com as determinações da economia mundial, as economias semi-industrializadas como no caso brasileiro são obrigadas a adotar melhoramentos tecnológicos produzidos pelos países centrais desenvolvidos. A expansão da incorporação tecnológica parte da segunda Guerra Mundial para vários países subdesenvolvidos, que ficou denominada de “Revolução Verde”. Este pacote agrícola/tecnológico prometia viabilizar a modernização agropecuária e aumentar a sua produção por meio da padronização de bases industriais. 1 Docente do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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A PRODUÇÃO AGRÍCOLA FAMILIAR NO CONTEXTO DO AGRONEGÓCIO:

SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

Marize Rauber Engelbrecht1

RESUMO: O presente artigo é resultado de uma revisão bibliográfica que objetiva contextualizar a

situação da agricultura brasileira no processo de acumulação capitalista a partir dos complexos

agroindustriais, momento em que se difunde o capital industrial e financeiro gerando novas demandas

que transformaram o produto do campo em mercadoria. Como expressões desse processo o debate gira

em torno da cultura empresarial de negócio, o agronegócio, e da produção agrícola familiar, que se

manifesta enquanto um campo permanente de tensões e conflitos e apresenta-se enquanto uma

categoria de resistência na agricultura moderna. Evidencia-se que nas relações de produção do

agronegócio as referências são a monocultura, trabalho assalariado, produção em grande escala,

produtividade, concentrador e funcional à ordem do capital, enquanto na produção familiar vincula-se

a biodiversidade, predominância do trabalho familiar, produção em menor escala e maior zelo com o

meio-ambiente. No entanto, diante de todas as adversidades postas pelo desenvolvimento do

capitalismo na agricultura, da subordinação ao agronegócio, ao controle de produção e preços, o

produtor familiar com uma pequena unidade produtiva vem demonstrando o potencial e o significado

relevante na produção dos alimentos internos o que mostra a capacidade de resistência e de adaptação

dos agricultores aos novos contextos econômicos sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Agronegócio; Produção Agrícola Familiar; Estado.

INTRODUÇÃO

A partir de 1950, diante da influência dos países europeus, o Brasil inicia um intenso

debate político em torno da modernização da agricultura porque até então, a agricultura

brasileira era considerada símbolo de atraso econômico do país, das relações arcaicas e

também responsável pelas condições de miséria da grande maioria dos trabalhadores. Com as

determinações da economia mundial, as economias semi-industrializadas como no caso

brasileiro são obrigadas a adotar melhoramentos tecnológicos produzidos pelos países centrais

desenvolvidos. A expansão da incorporação tecnológica parte da segunda Guerra Mundial

para vários países subdesenvolvidos, que ficou denominada de “Revolução Verde”. Este

pacote agrícola/tecnológico prometia viabilizar a modernização agropecuária e aumentar a sua

produção por meio da padronização de bases industriais.

1 Docente do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; e-mail:

[email protected]

2

A Revolução Verde denominado de “modernização da agricultura,” no Brasil, inicia-

se na década de 1950, com as importações de máquinas e equipamentos mais avançados à

produção agrícola. No entanto, foi a partir da década de 1960, que a modernização

intensificou-se na agricultura brasileira e sofreu em seu processo de produção uma verdadeira

(r) evolução que teve como causa um setor industrial voltado para a produção de

equipamentos e insumos agrícolas. Grande parte dessa modernização agrícola foi financiada

pelo Estado, sendo as principais diretrizes das políticas públicas de desenvolvimento na

agricultura o crédito rural subsidiado e os aumentos da produção e produtividade.

Desta forma, a agricultura brasileira inserida no processo de industrialização e

modernização passou do complexo rural para um complexo agroindustrial e dificultou o

estabelecimento de limites entre os setores da economia.

Nesta compreensão, a agricultura foi incorporada mais estritamente ao processo de

acumulação capitalista e possibilitou o surgimento do complexo agroindustrial com o capital

industrial e financeiro para encontrar novas formas de realização dentro da agricultura,

gerador de novas demandas que transformou o produto do campo em mercadoria.

Verifica-se nesse processo, uma macro direção que transformou as diferentes formas

de vida e de trabalho, subordinadas ao capital industrial, local, nacional e internacional,

modificando assim toda a estrutura rural.

O fato de adotar os padrões tecnológicos como a produtividade e o lucro, reduziu

grande número de agricultores no campo, em particular os que se enquadravam na atividade

de pequena produção familiar. Os pequenos produtores que não perderam completamente a

posse dos meios de produção, em que mantém de uma forma ou outra o acesso à terra para

cultivar produtos agrícolas com base no trabalho da unidade familiar, rearticularam-se em

função das mudanças tecnológicas representadas pela grande agricultura de exportação, pela

agroindústria, pela cooperativa e pelo capital comercial.

Conforme Stédile (2006) há uma cristalização de dois padrões de produção rural visto

como polares, quando não excludentes: de um lado os capitalistas, representados pelos

complexos agroindustriais e o agronegócio, e de outro, o da produção familiar tida como

disfuncional ou inviável pela ideologia dos grandes capitalistas.

3

Neste sentido, o sistema agrícola do agronegócio é um projeto distinto do sistema

agrícola do produtor familiar, isto é, enquanto no agronegócio as principais referências são a

monocultura, o trabalho assalariado e a produção em grande escala, na produção familiar

incide a biodiversidade, predominância do trabalho familiar e produção em menor escala.

Assim, o desenvolvimento capitalista de produção, sob o apogeu da ideologia

modernizadora da agricultura, caracterizou-se como um gerador de profunda desigualdade

altamente excludente, custeada por um regime ditatorial e um aparato institucional que

respaldou e subsidiou os grandes proprietários e o agronegócio em detrimento da pequena

produção familiar, definindo claramente qual o projeto que tem sido historicamente adotado

pelo Estado brasileiro.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA AGRICULTURA MODERNA, COMPLEXOS

AGROINDUSTRIAIS E AGRONEGÓCIO NO BRASIL

A política da modernização da agricultura criou um novo patamar para o meio rural

implantando uma forma social de produção pela integração socioeconômica global,

introduzindo a exportação de produtos agropecuários e agroindustriais envolvendo nesses

empreendimentos capitais das mais diferentes origens.

Com a importância assumida pela exportação de produtos agrícolas, inserem-se novas

terminologias como: agricultura moderna, complexos agroindustriais e agronegócio, que

não são exatamente coincidentes e, mesmo que as expressões apresentam alguns elementos

recorrentes e utilizados na sua grande maioria pela literatura como sinônimos, as ênfases

atribuídas são diferentes (HEREDIA, 2010)

Estas terminologias utilizadas com frequência têm a única preocupação de vincular a

integração agricultura-indústria, porém esta integração não era o maior destaque que se dava a

agricultura moderna dos anos de 1970. Por exemplo, ao empregar a expressão “máquinas e

insumos modernos” esta se manifesta nos três termos - agricultura moderna, complexos

agroindustriais e agronegócio - só que o direcionamento para exportação não tem nas duas

primeiras o mesmo peso que na última.

Na medida em que há uma forte interdependência entre agricultura e indústria para a

agricultura, verifica-se um processo de industrialização da agricultura; e na medida em que

há uma forte interdependência entre agricultura e a indústria beneficiadora e processadora,

4

verifica-se um processo de agroindustrialização. Chama de modernização (tecnoeconômica)

agrária a interação entre industrialização do campo e a agroindustrialização (MÜLLER,

1989, p.62).

Os complexos agroindustriais (CAIs) surgem no Brasil no período pós-75, enquanto

produto da modernidade e constitui-se como principal vetor da modernização. A modificação

na dinâmica da agricultura brasileira ocorreu com a passagem2 do complexo rural para uma

dinâmica de complexo agroindustrial que envolvia a substituição da economia natural por

atividades agrícolas integradas à indústria, a intensificação da divisão do trabalho e das trocas

intersetoriais, além da especialização da produção agrícola e a substituição das exportações

pelo mercado interno, tendo como elemento central da alocação dos recursos produtivos no

setor agropecuário, (KAGEYAMA, 1996).

Caracteristicamente, o complexo agroindustrial é uma unidade de análise em que a

agricultura se vincula com a indústria de dupla maneira: com a indústria de máquinas e

insumos que tem na agricultura seu mercado e, com a indústria processadora beneficiadora de

matérias primas agrícola. A primeira é designada de indústria para agricultura e a segunda de

agroindústria, como apresenta o autor Müller,

Na medida em que há uma forte interdependência entre agricultura e indústria para a

agricultura, verifica-se um processo de industrialização da agricultura; e na medida em que

há uma forte interdependência entre agricultura e a indústria beneficiadora e processadora,

verifica-se um processo de agroindustrialização. Chama de modernização (tecnoeconômica)

agrária a interação entre industrialização do campo e a agroindustrialização (1989, p.62).

A abordagem acima citada pode ser expressa da seguinte maneira: os setores

industriais dirigidos para a agricultura (máquinas, rações, produtos veterinários) não tem o

destino de suas produções apenas nos setores agrícolas que produzem matérias-primas como

soja, trigo, aves; seus produtos têm na produção de arroz, feijão tomate, bovinos, suínos e

hortifrutigranjeiros um mercado de dimensões significativas. Assim, o CAI não pode ser

2 Esta passagem pode ser assim compreendida; enquanto o complexo rural dependia das exportações para se expandir, a

modernização no seu início dependida da capacidade de importar, porém com a internalização da produção de insumos e

máquinas para a agricultura rompe-se este limite e a modernização caminha com suas próprias pernas. Naquele momento

as condições internacionais viabilizaram a implementação dos CAIs em que o desenvolvimento da agricultura passa a

depender da dinâmica da indústria evidenciando que não há mais uma dinâmica geral da agricultura, como vinha

acontecendo com a modernização, mas agora tem várias dinâmicas próprias de cada um dos complexos particulares

(KAGEYAMA, 1996).

5

reduzido á agroindústria em sentido estrito, uma vez que há fluxos associados à

industrialização do campo que não passam pela transformação.

Constituído e consolidado os CAIs, a dinâmica da agricultura só pode ser apreendida a

partir da dinâmica conjunta da indústria para a agricultura/agricultura/agroindústria, o que

remete ao domínio do capital industrial e financeiro e ao sistema global de acumulação

(KAGEYAMA, 1996, p.122).

As diversas atividades dos CAIs são atividades do capital, com uma regulação

macroeconômica mais geral - como a política cambial, favorável ao interesse do setor

exportador; a política de comércio exterior, a política tributária e política salarial- além das

ligações intercapitais das técnicas que vai se sobrepondo as financeiras. Como exemplifica

Kageyama (1996) a compra de insumos pela agricultura, impõe-se como necessidade técnica

que implica de imediato a necessidade de um financiamento o qual não será mais realizado

por agentes isolados e sim pelo sistema financeiro, movimentando o processo da agricultura

com o movimento geral da economia. Esta articulação está presente no que se denomina de

integração de capitais, processo pelo qual se centraliza os capitais industriais, bancários,

agrários que se fundem em sociedades anônimas, cooperativas rurais e empresas de

responsabilidade limitada e integradas com as agroindústrias direcionando a aplicação dos

capitais em distintos mercados3.

No entanto, vale destacar que a expressão complexo agroindustrial foi sendo

substituída pela expressão agronegócio da matriz agrobusiness em virtude das exportações de

produtos agrícolas e agroindustriais. A expressão agronegócio teve uma adesão ao termo pela

associação de produtores que fazem parte da Associação Brasileira de Agrobusiness (ABAG)

e empresários de diversos setores.

Com o aumento das exportações e intensificação do capital financeiro no setor

agropecuário, o Estado desempenha novos papéis para o desenvolvimento agrícola, sendo o

regulador estatal do financiamento, administração e captura das margens de lucro da

3 Como destaca Kageyama (1996) um dos mercados relevantes para o grande capital é o da propriedade da terra que

permite ganhos especulativos e ganhos de fundação que compreende novas áreas de fronteira incorporadas ao mercado, a

qual se denomina de territorialização do capital. Ocorre que junto com territorialização do capital, enquanto um fator de

expansão do capital no campo acrescenta-se a monopolização do território quando as indústrias capitalistas processadoras

de produtos agrícolas extraem a renda da terra sem a necessidade de expropriar os agricultores.

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agricultura, beneficiando os capitais integrados e garantindo sua valorização, ou seja,

fortalecendo e estimulando o setor do agronegócio.

A presença do Estado na agricultura dos anos de 1970 e 1980 põe em evidência de que

não se pode falar do agronegócio sem se dirigir a figura do Estado e das políticas públicas que

viabilizaram tanto a origem do agronegócio como sua expansão. Conforme afirmação de

Heredia “no início a presença do Estado se traduziu na política de terras, mas logo se

manifestou na política de inovações tecnológicas e de pesquisa” (2010, p. 165).

A função do Estado na articulação com a agricultura apresenta-se como o capitalista

financeiro que sustenta a existência de grandes capitais em operação na agricultura através de

organizações internacionais que incorporam outras esferas da atividade agrícola. A autora

Kageyama (1996) nos adverte que a transformação da agroindústria com a articulação da

agricultura não pode ser considerada como movimentos espontâneos, resultado de

mecanismos da livre concorrência, mas sim atribuídos ao direcionamento imposto pelo Estado

subjugado às pressões exercidas pelas frações de classes de maior influência no interior de seu

aparelho.

Por conseguinte, esta forma de vinculação entre agricultura e Estado vai causar o

empobrecimento da maioria dos pequenos proprietários, dos arrendatários e parceiros, tendo

sempre uma renda negativa, como também vai permitir de outro lado, a concentração das

propriedades territoriais.

Estes fatores de separação entre pequenos e grandes proprietários no processo de

inserção nos mercados e de acesso a agricultura moderna, foi direcionado aos produtores que

tinham capacidade de resposta e possuíam a expansão e a diversificação suscitada pelas

agroindústrias. A condição necessária para dar resposta foi o crédito, sendo este capital

financeiro que desencadeou e permitiu a industrialização no campo e impôs condições de

produção provocando um desenvolvimento desigual4 e combinado. “Com a liberação de

crédito sem critério e praticamente nenhum controle em seu uso, e dadas as estruturas

fundiárias e organizacionais, é claro que a massa de dinheiro foi dar em mão de alguns grupos

sociais” (MÜLLER, 1989, p. 129).

4 O setor agrícola dinâmico no modo como ocorreu à industrialização do campo foi parcial, segundo regiões, produtos e

tipo de produtores, como sustenta Müller (1989).

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Compreende-se, portanto, que o Estado brasileiro ainda é permeado por práticas

patrimonialistas, burocráticas e corporativistas que dificultam uma real cidadania e igualdade

no meio rural, pois ao permitir o fortalecimento, a expansão e concentração de terras para

alguns, cria dependência e pouco incentivo para o desenvolvimento agrícola para outros.

O DESENVOLVIMENTO DA PEQUENA PRODUÇÃO FAMILIAR NO CENÁRIO

DO AGRONEGÓCIO

No Brasil, vimos que o desenvolvimento capitalista no campo não prescinde de um

forte impulso do Estado que age de maneira discriminatória por beneficiar grandes

proprietários privilegiando tipos de produtos e produtores rurais, segmentando e polarizando a

estrutura social no campo.

Em relação ao grupo de pequenos produtores, estes ficaram exclusos da referida

integração às imposições da modernização agrícola, tendo como resultado o não acesso para

desfrutar dos créditos privilegiados do Estado, além de não gozarem de aperfeiçoamentos

técnicos. Somado a isso, cultiva terras de qualidade inferior, solos exaustos e de baixa

fertilidade, “enfim está desprovido de tudo que beneficia a grande propriedade fundiária

protegida pelo Estado” (GORENDER, 1994, p. 41). Este quadro se agravou ainda mais

devido seus produtos não ter o estímulo de preços altos decorrente do cruzamento dos

intermediários, acelerando os produtores a viverem em situação de pobreza que era distinta da

pobreza anterior, porque era provocada pela industrialização no campo.

Com a enorme participação do Estado no processo de incorporação do capital

financeiro, houve o patrocínio e a superação do predomínio do modo de produzir tradicional

pelo da industrialização sem mexer nos interesses privados já consolidados, mantendo a

estrutura fundiária e os interesses sociais organizados como dados. Garantiu assim o

fortalecimento dos interesses agrários (mesclados com os industriais e comerciais),

expandindo, redefinindo e criando novos interesses agroindustriais, constituindo-se assim o

complexo agroindustrial brasileiro que direciona as grandes ações deste novo contexto na

agricultura (MÜLLER, 1989)

Deve-se, portanto, compreender que o sistema agrícola do agronegócio é distinto do

sistema agrícola do produtor familiar. Enquanto no agronegócio as principais referências são a

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monocultura, trabalho assalariado e produção em grande escala, na produção familiar recai a

biodiversidade, predominância do trabalho familiar e produção em menor escala. É sob estas

diferenças que Welch e Fernandes (2008) afirmam que o sistema agrícola do produtor

familiar não é parte do agronegócio, mas como o capital controla a tecnologia, o

conhecimento, o mercado, as políticas agrícolas, os produtores passam a ser subalternizados,

porque são profundamente afetados pelo processo de integração econômico social.

Observa-se neste contexto que o produtor familiar pode produzir para o sistema do

agronegócio, porém dentro dos limites das próprias propriedades no que se refere a área e

escala de produção, todavia, é evidente que a participação dos produtores familiares no

agronegócio é determinado pelo capital. Articulam-se os produtores familiares com os setores

capitalistas (agroindústrias, cooperativas, grandes proprietários) porque na posição que a

pequena produção agrícola se insere no modo de produção capitalista, a modernização

representou mais uma imposição do que uma oportunidade conquistada.

Sobre essa questão Wanderley afirma que,

A natureza estrutural do capitalismo agrário brasileiro, [ ...]qualificou a própria

modernização da agricultura – uma modernização sob o comando da terra. Ela é, também

responsável em grande parte por determinar o “lugar” social do campesinato na sociedade

brasileira ao longo de sua história. Trata-se primeiramente de um lugar negado, não

reconhecido. (2003, p. 56).

Destarte, fica expressa a subordinação do pequeno produtor ao modelo agrícola

imposto e embora apresente muitas dificuldades a pequena produção persiste sob uma forma

modernizada, ou enquanto processo de decomposição (semiproletarização) ou de

capitalização, dependendo das particularidades com que conseguiu redefinir a sua articulação

com o capital.

Nesta mesma incidência, tem-se uma contribuição bastante significativa apresentada

por Carvalho, ao expressar que,

Criou-se uma mistificação dos programas de modernização quando afirmavam que a

denominada “agricultura familiar” só se viabilizaria ao se integrar aos mercados e que

facilitando o crédito rural se transformaria numa ponte econômico-financeira, ou seja, de

um lado estavam as indústrias processadoras (fertilizantes, agrotóxicos, herbicidas,

medicamentos, máquinas, etc) e por outro as indústrias (agroindústrias), compradoras,

beneficiadoras e industrializadoras de matérias primas da agricultura como leite, aves,

suínos soja, milho, etc. (2009, p.04)

9

À medida que ocorre a integração do produtor rural familiar proprietário de terras com

as agroindústrias através dos contratos de produção - mesmo tendo impasses econômicos,

políticos e ideológicos - se subordinam perante as agroindústrias em nome da uma suposta

melhoria de renda agrícola que seria proporcionado pela integração. Com isso, o produtor

rural perde a liberdade de gerir com autonomia familiar os processos de trabalho na sua

propriedade.

É sob estas determinações que os produtores rurais ao se integrarem ao capital e

adotarem o modelo tecnológico dominante foram perdendo gradativamente a capacidade de

decidirem como grupo familiar sobre “o que, como, onde, quanto, quando produzirem e qual

a parcela deveria ser destinada para o autoconsumo familiar, e qual deveria ser colocado nos

mercados como produtos ‘in natura’ ou como produtos beneficiados” (CARVALHO, 2009,

p. 04).

O fato dos produtores rurais perderem estas decisões para o capital, tornou-os

alienados política e ideologicamente até alcançarem a alienação de suas terras, isto é, quando

passaram a permitir a realização de contratos de arrendamento para as agroindústrias ou

venda para terceiros, tornaram-se apenas agricultores nominais de suas terras.

Vivenciando as diferentes formas de aliança econômica com o capital do agronegócio,

como a adoção do modelo tecnológico dominante e ou a integração por contrato de

produção, os produtores rurais familiares foram perdendo sua autonomia potencial como

camponeses e a possibilidade de desenvolverem a consciência de classe social

(CARVALHO, 2009, p. 05).

Com isso, a subordinação dos produtores rurais aos interesses do agronegócio

apresenta várias e diferentes condições, seja porque é constrangida, ou seja, pela falta de

conhecimento de alternativas. Também são pressionados ideologicamente a se relacionar

econômica e financeiramente com os capitais, que consequentemente transformam toda sua

base de produção e principalmente são desagregados como produtores rurais pelas empresas

que concentram e centralizam a terra para seu enriquecimento, que Wanderley (2003)

referencia como “assalariados do solo” e de “agricultores sem terra”5.

5 Wanderley cita as referidas expressões em um texto elaborado sobre a reprodução de categorias paradoxais (em

referência aos modelos clássicos) no trabalho intitulado: A modernização sob o comando da terra; os impasses da

agricultura moderna no Brasil. Revista Ideias, n.3 Campinas: UNICAMP, 1996.

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Respaldado por Carvalho (2009) o fato concreto que se manifesta é que os produtores

familiares estão sendo expulsos da terra ou submetidos pela integração ou adoção do modelo

de produção e tecnologias dominantes, tendo inclusive, apoio político e financeiro dos

governos nacional e estaduais no país. Aqueles que permanecem na terra se sujeitam a uma

condição de pobres trabalhadores a serviço direto ou indireto do capital que expropria a renda

agrícola e a mais valia dos produtores familiares.

Na compreensão de Wanderley (2003), é evidente que os produtores agrícolas

familiares estão subordinados ao capital agroindustrial e fazem um enorme esforço social para

alcançar as condições mínimas de sua reprodução e assegurar a constituição de um patrimônio

fundiário estável e transmissível às gerações subseqüentes. No entanto, ressalta-se que mesmo

a ação continuada e crescente das empresas do agronegócio que cooptam, desagregam e/ou

expulsam os produtores rurais familiares da terra, esta situação não se realiza de forma

passiva.

Historicamente há uma longa trajetória de lutas sociais contra esta ação do capital que

se manifesta nas mais distintas formas de resistência social e segundo Gorender (1994), os

produtores familiares resistem e proliferam porque abrem mão da renda da terra que

equivaleria ao seu lucro e se contenta a um salário permitindo uma estreita sobrevivência.

Assim, a resistência desponta quando ainda nota-se a busca de alternativas de

sobrevivência dos produtores agrícolas familiares que desejam permanecer, produzir e viver

na terra e pela terra e por isso, qualquer processo que expulsa estes produtores é uma

violência contra as famílias que nega a possibilidade de implantar novas formas de produzir

no campo.

Geralmente as resistências no campo não se restringem somente às lutas pela

propriedade fundiária e pela manutenção dos valores tradicionais (comunitarismo, familismo)

dos produtores familiares, mas se amplia quando lutam pelo acesso aos meios de produção e

se transformam num processo de construção de sujeitos políticos que recriam as relações

sociais e transformam o espaço rural na constituição de uma nova ruralidade6.

6 Se existe um novo rural, na compreensão de Saquet (2010) este é um produto de suas relações com o urbano, ou seja, há

mudanças no rural: um pouco mais de conforto (telefone, eletrificação, estradas, calçadas) maior complexidade em

relações sociais, inovações em forças produtivas, enfim uma maior incidência do urbano, no e com o território, porém,

estas mudanças contêm o velho.

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Conforme destaca Sauer (2010) ao citar Martins (1994), a questão da resistência e das

lutas travados no campo pelos produtores familiares transcendem a demanda por terra porque

são lutas pela liberdade e emancipação humana7 buscando a sobrevivência e a reprodução

social e por isso, não pode se restringir apenas à dimensão econômica, mas deve incluir

demandas por saúde, política, justiça e paz.

Mesmo diante de todas as forças ideológicas que se manifestam criando e recriando

empecilhos para o desenvolvimento do produtor familiar com pequena unidade produtiva,

tornando-os subalternos ao agronegócio, controlando produção e preços, fechando as

fronteiras, restringindo acesso a terra produtiva, há uma predominância de pequenos e médios

que vem demonstrando o potencial e o significado relevante na produção dos alimentos e que

sob formas diversas continuam assegurando os lugares que hoje ocupam no meio rural e na

atividade agrícola do país.

Para enfatizar seu potencial apresentam-se alguns dados no que se refere à produção

de alimentos, segundo Silva (2010) citando Hashizume (2008) o agronegócio controla cerca

de 70% das terras agricultáveis (300 milhões de hectares), recebe 90% dos recursos públicos

para financiamento e produz somente 50% dos alimentos. Enquanto que, os produtores

familiares controlam somente 30% da área (120 milhões de hectares), ficando apenas com

10% dos recursos públicos de crédito, ao passo que produzem igualmente 50% dos alimentos.

Deve-se ressaltar que os dados do Censo Agropecuário – 2010, divulgado pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também vem reafirmar a capacidade de

resistência da produção agrícola familiar, que adota um modo de produção camponês (uso da

força de trabalho da família) diferente daquele do agronegócio, constituindo-se em uma das

alternativas às crises econômicas, sociais, alimentares e ecológicas provocadas pela

globalização capitalista, como destaca Russo (2011).

Mesmo cultivando uma área menor, a produção familiar é responsável por garantir a

segurança alimentar do país, gerando os produtos da cesta básica consumidos internamente. A

agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão,

46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das

7 Reconhecer-se como sujeitos de seu próprio destino, libertando-se dos vínculos de dependência e submissão e com isso

possibilitando processos sociais e políticos de recriação no campo (SAUER, 2010).

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aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. A cultura com menor participação da produção

agrícola familiar foi a soja (16%), segundo dados apresentados pelo Censo Agropecuário

(IBGE, 2010).

No Censo também foram identificados 4.367.902 estabelecimentos de produtores

familiares que representavam 84,4% do total, mas ocupavam apenas 24,3% (ou 80,25 milhões

de hectares) da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Já os estabelecimentos

não familiares representavam 15,6% do total e ocupavam 75,7% da sua área.

As pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área

ocupada por estabelecimentos rurais, enquanto as grandes propriedades (com mais de mil

hectares) ocupam 43% da área total. O quadro de desigualdade é ressaltado pelo fato de as

pequenas propriedades representarem 47% do total de estabelecimentos rurais, enquanto os

latifúndios correspondem a apenas 0,9% desse total. Isto vem reafirmar o velho quadro de

concentração fundiária no Brasil.

Ainda recorrendo aos dados do Censo 2010, mesmo que a produção familiar ocupe

apenas ¼ da área, consegue responder por 38% do valor da produção o que corresponde a

54,4 bilhões de reais/ano. Os dados do Censo reafirmam a capacidade de resistência da

agricultura familiar, que adota um modo de produção camponês diferente daquele do

agronegócio, constituindo-se em uma das alternativas às crises econômicas, sociais,

alimentares e ecológicas provocadas pela globalização capitalista. (RUSSO, 2011, p.02).

Portanto, estes dados evidenciam uma realidade social em mudança da produção

agrícola familiar, tirando-lhes do anonimato estatístico e expressando uma participação social

e política e social crescente nos últimos anos. Estes agricultores cada vez mais vêm sendo

reconhecidos e a sociedade brasileira já descobriu que a agricultura familiar faz bem para o

Brasil, à democracia e ao desenvolvimento nacional.

CONSIDERAÇÕES

A partir do tema exposto viu-se que a produção agrícola familiar apresenta-se

submissa aos ditames do capital representado pelo agronegócio, sejam elas empresas,

unidades industriais e cooperativas, em que o processo de integração e de gestão da

agricultura é determinada pela indústria que define como, quando e quanto produzir o produto

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integrado. Mas, cabe ressaltar que os pequenos produtores não foram convocados para

participar do programa de modernização da agricultura sob o argumento que era tradicionais e

avessos ao progresso, como foram os grandes produtores rurais.

Considera-se, portanto, que a agricultura não rompeu as barreiras da dependência e da

insegurança que resulta da condição subalterna que lhe é socialmente atribuída, até porque a

produção agrícola familiar está sujeita aos desdobramentos da ordem competitiva dominante

com uma independência econômica e cultural, mas isso não significa que a situação que o

produtor agrícola vivencia é um exercício da autonomia relativa pela busca da identidade, da

luta social e política.

Isto evidencia que mesmo diante da cadeia produtiva imposta pelos complexos

agroindustriais, na maioria dos casos o agricultor ainda pratica a policultura e a diversificação

da produção, integrando apenas um ou alguns produtos resultantes da atividade da família na

sua unidade de produção, práticas que se caracterizam enquanto uma resistência de

permanência no campo.

Por fim, analisar a questão da produção agrícola familiar e a relação com o

agronegócio não pode ser pensada desvinculada das práticas e mecanismos e instrumentos de

políticas implementadas pelo Estado brasileiro. A presença do Estado permanece atuante, seja

por meio de políticas setoriais rural/agroindustrial, seja por políticas globais direcionados a

infraestrutura, além da regulação no campo do trabalho e do meio ambiente.

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