crimes de racismo: um estudo...

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1 CRIMES DE RACISMO: UM ESTUDO SÓCIO-JURÍDICO Caroline Andreska Targanski 1 Jaqueline Valeska Targanski Silvia Mattei RESUMO: O presente trabalho visa abordar o racismo sob um prisma sociológico, moral e jurídico. Apresentando conceitos e entendimentos sobre racismo e preconceito, propõem uma análise acerca dos crimes cometidos nessa orbita. Partindo do pressuposto de que é preciso inverter a interpretação sobre leis protecionistas em relação ao outro, para abranger o outro como afirmação de suas singularidades e ultrapassar os limites impostos pela ideologia que apenas condiciona a uma defesa das minorias. PALAVRAS-CHAVE: Racismo; Crime; Lei ABSTRACT: This paper aims to address racism in a sociological, moral and legal perspective. Introducing concepts and understandings of racism and prejudice, propose a review about the crimes committed in this orbit. Assuming that we must reverse the interpretation of protectionist laws in relation to the other to cover the other as affirmation of their singularities and overcome the limits imposed by the ideology that only affects a defense of minorities. KEYWORDS: Racism; Crime; Law INTRODUÇÃO Na atualidade mister faz-se compreender a singularidade dos seres humanos. Amar o próximo como a si mesmo, como prega a doutrina cristã. Entender que apesar das diferenças fisicas há uma igualdade que deve ser respeitada. Interpretar a identidade do outro não como modo de estabelecer o politicamente correto, mas como forma de aproximação de diferenças recíprocas. O racismo é, substancialmente, uma mentalidade segregacionista e tem a capacidade de transitar por todas as camadas dos agrupamentos humanos. Em qualquer nível, é grave o suficiente para justificar a intervenção do direito penal e legitimar a sua intervenção. 1 Unioeste. E-mail: [email protected] .

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CRIMES DE RACISMO: UM ESTUDO SÓCIO-JURÍDICO

Caroline Andreska Targanski1

Jaqueline Valeska Targanski

Silvia Mattei

RESUMO: O presente trabalho visa abordar o racismo sob um prisma sociológico, moral e jurídico.

Apresentando conceitos e entendimentos sobre racismo e preconceito, propõem uma análise acerca

dos crimes cometidos nessa orbita. Partindo do pressuposto de que é preciso inverter a interpretação

sobre leis protecionistas em relação ao outro, para abranger o outro como afirmação de suas

singularidades e ultrapassar os limites impostos pela ideologia que apenas condiciona a uma defesa

das minorias.

PALAVRAS-CHAVE: Racismo; Crime; Lei

ABSTRACT: This paper aims to address racism in a sociological, moral and legal perspective.

Introducing concepts and understandings of racism and prejudice, propose a review about the

crimes committed in this orbit. Assuming that we must reverse the interpretation of

protectionist laws in relation to the other to cover the other as affirmation of their singularities

and overcome the limits imposed by the ideology that only affects a defense of minorities.

KEYWORDS: Racism; Crime; Law

INTRODUÇÃO

Na atualidade mister faz-se compreender a singularidade dos seres humanos. Amar o

próximo como a si mesmo, como prega a doutrina cristã. Entender que apesar das diferenças

fisicas há uma igualdade que deve ser respeitada. Interpretar a identidade do outro não como

modo de estabelecer o politicamente correto, mas como forma de aproximação de diferenças

recíprocas.

O racismo é, substancialmente, uma mentalidade segregacionista e tem a capacidade de

transitar por todas as camadas dos agrupamentos humanos. Em qualquer nível, é grave o

suficiente para justificar a intervenção do direito penal e legitimar a sua intervenção.

1 Unioeste. E-mail: [email protected].

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A Constituição Federal trás previsões e determinações de garantias, que visa efetivar a

igualdade de todos perante a lei, sem qualquer discriminação. Notável é a intenção do

legislador, que visa uma sociedade justa e igualitária.

Porém ele aparentemente trás algumas incongruências quanto à imprescritibilidade do

crime de racismo, este posicionamento que gera inquietude em alguns autores, visto que

outros crimes de aparência muito mais violenta prescrevem e este tem a previsão

constitucional de ser imprescritível.

Diante das consequências que este crime pode causar, uma punibilidade rigorosa se

mostra um meio de controle, e de disciplinamento social.

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É urgente abrir os olhos para as particularidades, para as nossas singularidades.

Expressar através de leis protecionistas nossa identidade, nosso respeito ao humano e belo. De

acordo com Bueno (2005, p.25):

É o que talvez mais faça sentido numa época em que as particularidades concretas

de cada ser tendem a se dissolver rapidamente, não só nas generalizações absolutas,

mas também nas identidades coletivas que postulam direitos da mulher, do negro e

do gay.

É preciso inverter a interpretação sobre leis protecionistas em relação ao outro, para

abranger o outro como afirmação de suas singularidades e ultrapassar os limites impostos pela

ideologia que apenas condiciona a uma defesa das minorias.

Interpretar a identidade do outro não como modo de estabelecer o politicamente correto,

mas como forma de aproximação de diferenças recíprocas.

O desafio de entender o outro coaduna com o desafio de entender a si mesmo, de

ultrapassar o senso comum, o pré-estabelecido, a nossa própria ingenuidade, imaturidade e

descrença.

Assim, entender a existência do outro como alteridade, como o que “eu não sou”, e não

como “o que eu quero que ele seja”.

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Em Leviatã, Hobbes afirma haver uma igualdade entre os homens, iguais em capacidade

de força e de espírito. E quando um, deixa a desejar em relação ao que o outro detém, em

prudência podem igualar-se. Conforme Marçal (2009, p. 349):

os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros e (sim, pelo

contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a

todos. Porque cada um pretende que o seu companheiro lhe atribua o mesmo valor

que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de

subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que tal se atreve (o que, entre

os que não têm um poder comum capaz de manter a todos em respeito, vai

suficientemente longe para levá-los a se destruírem uns aos outros), para arrancar

dos seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e de outros

também, pelo exemplo.

Para Hobbes, a lei fundamental da natureza ordena a todos os homens que se

mantenham em paz. Desta lei, deriva uma segunda lei, que, assim assevera Marçal (2009, p.

353-54):

Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal

considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar-se ao seu

direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a

mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.

Importante esclarecer que, sendo a primeira lei da natureza: que busquemos a paz e que

os outros também a busquem, na segunda lei da natureza, obrigam-se a realização de

contratos e que os outros também o façam. Assim, há uma inter relação sob a condição de

reciprocidade. Logo, numa condição de guerra, falta justamente a condição da reciprocidade.

Disso conclui-se, como afirma Marçal (2009, p.354), que:

Numa condição de guerra, as leis da natureza não são suficientes para regular as

relações recíprocas entre os homens. Daí porque Hobbes diga adiante, que elas

sejam cumpridas apenas em foro interno, impondo o desejo de que sejam cumpridas,

mas não obrigam a que sejam postas em prática. É apenas com o Estado, sob a

forma de lei civil, que elas serão postas em prática. Pois o Estado, oferece a garantia

de reciprocidade necessária para que elas obriguem também em foro externo.

Correto pensar que a injustiça, a ingratidão, a arrogância, o orgulho, a iniqüidade, a

acepção de pessoas jamais podem ser tornados legítimos, desse modo a paz preserva a vida e

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a guerra a destrói. Há leis que obrigam apenas esforços, dentre elas as leis que buscam a

igualdade, o equilíbrio entre as pessoas.

No Brasil, um dos grandes desafios das leis contra discriminações raciais é impor-se.

Em um país onde é predominante a miscigenação racial parece ironia dizer que as leis contra

as discriminações raciais querem proteger as minorias.

Para Nair de Andrade (Apud BUENO, 2005, p. 34), os negros expressam-se, neste exemplo:

Noite alta, clara, reunidos no sereno da senzala, quando o rumor do dia ia se

calando, eles afinavam suas canções, seus acalantos entristecidos, cortados de

saudades. Na labuta das horas de serviço, nas ruas, nos ofícios, surgiam os cantos de

moagem. Intensa musicalidade a desses negros.

Entender a cultura do outro como produto de suas particularidades, expressão de suas

vivências, característica de sua inteligência, é principio de um Estado que visa concretizar a

Igualdade Racial na medida e proporção de suas diferenças. Essa aproximação é possível,

quando não, a lei protetiva coativamente passa a estabelecer o correto.

Eliminar sintomas de racismo religioso, discursos de inferioridade, degenerações raciais

ou idealizações de mestiçagem é ponto essencial na Lei de Crimes Raciais.

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de raça

ou de cor.

Do diferente não queremos a diferença, mas a igualdade, para reduzi-lo. Trazê-lo para

nós enquanto produto, enquanto dominado.

Estudos sobre etnicidade demonstram que experimentamos do outro apenas resquício de

sua experiência. De fato, ao observarmos o outro, o diferente armamo-nos de fetiches,

reduzindo a dinâmica e a complexidade do que aconteceu a fragmentos de objetos e relações,

símbolos e ritos fora do lugar.

Assim, as leis contra discriminação racial buscam o respeito à diferença, na medida de

suas desproporções. Equivale a, oportunizar a todos sem distinção de raça e cor, meios de

trabalho e acesso a uma igualdade fictícia.

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Por exemplo, a lei de apoio a população negra: a reserva de vagas para matrícula em

estabelecimentos de ensino superior.

“O art. 3º da Constituição de 1988 declara como objetivos fundamentais da

República, ‘erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais

e regionais’, bem como ‘promover o bem de todos’, sem preconceitos de qualquer

espécie.

Mas o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado

apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece

registrado como degradação social permanente em todos os levantamentos

estatísticos. (apud FIORILLO, 2005, p.317).

Por óbice, que a partir das leis contra o racismo, bem como as leis de acesso a cursos

superiores sejam dados grandes passos em busca de uma reversão das conseqüências atreladas

aos crimes contra a “raça negra” já cometida neste país.

2.1 RACISMO

O conceito de Raça é relativamente recente e antes de ter adquirido uma conotação

biológica equivalia a designar “um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma

origem comum”. (FIORILLO, 2005, p.310)

As discussões poligenistas datadas do século XIX empregaram a palavra raça para

designar as “espécies de seres humanos distintos tanto fisicamente quanto em termos de

capacidade mental.” (FIORILLO, 2005, p.310).

Com efeito, a UNESCO junto a sociólogos, biólogos e geneticistas sociais,

concluíram a respeito que:

“As diferenças fenotípicas entre indivíduos e grupos humanos, assim como

diferenças intelectuais, morais e culturais, não podem ser atribuídas, diretamente, as

diferenças biológicas, mas devem ser creditadas a construções socioculturais e a

condicionantes ambientais” (FIORILLO, 2005, p.310).

A discussão das questões étnicas em território brasileiro é uma questão antiga,

complexa e, sobretudo, polêmica. (CAVALLEIRO, p. 9, 2000). De acordo com Nucci.

(2010, p. 305):

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Racismo é o pensamento voltado à existência de divisão dentre seres humanos,

constituindo alguns seres superiores, por qualquer pretensa virtude ou qualidade,

aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se um objetivo segregacionista,

apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta.

Assim, racista pode ser entendido como sendo tanto o indivíduo de determinado

grupo que se opõe a qualquer sujeito integrante da minoria existente em uma comunidade,

bem como o integrante da minoria, quando se confronta com alguém apontado como

sendo da maioria. Se o racismo como foi demonstrado é, substancialmente, uma

mentalidade segregacionista, ele tem a capacidade de transitar por todas as faces dos

agrupamentos humano. (NUCCI, 2010).

De acordo com Mateucci (apud FIORILLO, 2005, p. 310), racismo é “referência

do comportamento do indivíduo à raça a que pertence e, principalmente, o uso político de

alguns resultados aparentemente científicos, para levar a crença da superioridade de uma

raça sobre as demais”

Caracterizado o preconceito racial, entende-se que o racismo constitui uma ‘forma

de segregação de indivíduos de determinado meio social’. (FIORILLO, 2005, p.311).

Na ótica da lei 7.716/89, cor é o colorido da pelo do corpo humano, esse é o

motivo de mencionar cores como “preto”, “branco”, “amarelo” “vermelho”. Uma lástima,

pois, esse modo turvo de encarar as pessoas denota automaticamente um preconceito.

Justamente por isso, em alguns países não se faz mais referências às pessoas “pretas” ou

“brancas”, usando em substituição termos como “afrodescendente” ou “caucasiano”.

(NUCCI, 2010).

A utilização dessas cores para distinguir pessoas se torna incongruente, pois, não

existe nenhum ser humano exatamente branco como uma folha de papel, preto como

carvão nem mesmo vermelho ou amarelo. Poder-se-ia expressar essas características

utilizando outros termos, como por exemplo, tom de pele marrom, com várias nuanças.

(NUCCI, 2010). Correa (p. 276, 2009) que do ponto de vista científico, defende-se que

não existe distinção considerável entre as raças.

A inoperância da utilização da “cor” como classificação de seres humanos pode ser

facilmente demonstrada, sendo indevido e ineficiente, em particular para representar

elemento de tipo penal incriminador. (NUCCI, 2010).

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Discriminar, em regra, denota o estabelecimento de diferença entre seres e coisas,

visando prejudicar a parte inferiorizada. Discrimina-se, aquele ser humano que é

considerado indesejado em certo ambiente, por alguma razão. (NUCCI, 2010).

Quanto aos seres humanos, “a discriminação provoca consequências nefastas, por

vezes extremamente dolorosas, implicando inclusive como a História já demonstrou, em

perda de milhares de vidas”. (NUCCI, p. 297, 2010).

Qualquer forma discriminatória, em relação ao ser humano, deveria ser coibida

com veemência, pelo ordenamento jurídico, em todos os níveis, pois pode gerar lesões

tanto físicas quanto morais, provocando um sentimento incalculável de revolta e injustiça.

(NUCCI, p. 297, 2010).

A discriminação do ser humano, em qualquer nível, é grave o suficiente para

justificar a intervenção do direito penal e legitimar a sua intervenção. (NUCCI, 2010).

De acordo Nucci (2010, p. 297):

O título da lei n° 7.716/89, perdeu o ensejo de realizar um autêntico avanço no

âmbito dos direitos e garantias fundamentais, afinal, em seu artigo 1°, inciso III, a

Constituição Federal assegura a dignidade da pessoa humana, bem como estabelece

como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, em seu artigo 3°,

inciso IV, dentre outros, promover o bem de todos sem preconceitos de origem ,

raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao intitular esta lei como “a que define os crimes resultantes de discriminação por

raça ou cor” deixa-se de incluir as outras inúmeras maneiras de externar e fazer valer a

discriminação. Mais valeria intitula-la como sendo a que “define os crimes resultantes de

discriminação das mais variadas espécies”, pois seria uma maneira mais ampla, menos

restrita. (NUCCI, 2010).

2.2 CRIMES DE RACISMO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Como forma de caracterizar os objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil é que o legislador constituinte deixou explicito a criminalização dos crimes raciais,

esculpindo-os como pratica criminal inafiançável e imprescritível.

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Dessa forma determina os objetivos da Constituição, especificando os preceitos

fundamentais do Estado Brasileiro a fim de concretizar a democracia econômica, social,

cultural, efetivando por sua vez a dignidade da Pessoa Humana. Cumpre ressaltar, que:

“Ao se permitir a pratica de atos de segregação social por conta do preconceito

racial, estar-se á impossibilitando, no âmbito individual, a igualdade entre os

homens, e, no coletivo, a concretização da sadia qualidade de vida, porquanto o

segregado terá, parcial ou totalmente, inviabilizado a preservação e o cultivo de suas

origens e culturas, não podendo ainda usufruir as mesmas condições sociais,

econômicas ou culturais dos agentes segregadores” (FIORILLO, 2005, p. 313).

Categoricamente a Constituição Federal elencou taxativamente, nos seguintes termos:

O artigo 4°, inciso II e IV, da Constituição Federal, estabelece que a República Federativa do

Brasil rege-se nas suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da prevalência

dos direitos humanos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo.

Em seguimento, o artigo 5°, “caput” preceitua que todos são iguais perante a lei, sem

qualquer distinção de qualquer natureza. No inciso I, ratifica a igualdade em direito e

obrigações entre homens e mulheres. No inciso III, demonstra um repudio a qualquer

tratamento desumano e degradante. No inciso VI, garante ser inviolável a liberdade de

consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na

forma da lei, os locais de cultos e liturgias. No inciso VIII, afirma que ninguém será privado

de direito por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política. No inciso X

afirma serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. No

inciso XIII, determina o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as

qualificações profissionais que a lei estabelecer. Firma-se, no inciso XXXV, que a lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito. No inciso XLI,

preceitua que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades

fundamentais. No inciso XLII, determina que a prática do racismo constitui crime

inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.

Tendo em vista tantas previsões e determinações de garantias, que visa efetivar a

igualdade de todos perante a lei, sem qualquer discriminação, vislumbrasse a necessidade de

maior amplitude da lei e maior ousadia para a punição de atos flagrantemente

discriminatórios. (NUCCI, 2010).

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Na maioria dos casos a lei optou pela tipificação de condutas expressas de segregação,

deixando a desejar quanto às ações e omissões implícitas, manifestadamente discriminatórias.

Deixando de abordar também as injúrias por qualquer motivo de desigualdade, que distanciam

pessoas, além das piadas que se multiplicam em relação às minorias que também levam ao

isolamento, seja no âmbito de trabalho, lazer, ou qualquer outro.

Como questiona Nucci (2010), Quando o Brasil realmente enfrentará o problema da

discriminação de seres humanos como afirma ser o objetivo maior do Estado Democrático de

Direito, cuja finalidade é a consolidação de uma sociedade justa e igualitária?

A Lei 7.716/89 deve ser atualizada, visando dar maior alcance ao disposto no artigo

140, paragrafo 3°, do Código Penal.

2.3 IMPRESCRITIBILIDADE

O artigo 5°, inciso XLII, da Constituição Federal, determina que a prática do racismo

constitua crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.

Muito embora Nucci (p.298, 2010), defenda a gravidade do delito de racismo e sua punição

de forma ampla, não concorda com o preceito retro mencionado, levanta o seguinte

questionamento “ Por que ser imprescritível? Por acaso , assim sendo, o racismo será

extirpado do Brasil?”. Ele ainda afirma que é “pura demagogia”, e acrescenta:

Fosse na ótica do legislador, verdadeiramente sério esse crime e não teria pena

atingindo o máximo de cinco anos de reclusão. A maior parte das condenações não

terá nem mesmo como impor a pena privativa de liberdade em regime fechado, o

que somente evidencia a sua pouca importância aos olhos da lei. (p. 298, 2010).

Ora, o crime de extorsão mediante sequestro seguida de morte, tem pena de reclusão

de 24 a 30 anos, começando obrigatoriamente no regime fechado, prescreve em vinte anos.

Então, se torna incongruente punir alguém, autor de crime previsto na lei n° 7.716/89, que

tem previsão de pena de um a cinco anos de reclusão, depois de decorrido 30 anos da data do

crime. Nesta ótica Sérgio Salomão Shecaira preleciona:

a imprescritibilidade é um verdadeiro insulto à moderna concepção de justiça e

incompatível com o princípio de respeito a dignidade dos seres humanos insculpido

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na Constituição Federal . Ademais fere o princípio da proporcionalidade e da

humanização das penas. (Racismo, p. 413).

Porém, subjugar o outro como inferior, partindo do pressuposto de distinções raciais,

podem ter consequências mais desastrosas para toda a sociedade. Quando uma ideologia que

incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável se dissemina na

sociedade, sem controle, ou punição, gera a barbárie. No estado de direito democrático devem

ser essencialmente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos

humanos. Não devendo ser apagados da memória as condutas que afrontam esses princípios

fundamentais, até porque, os erros do passado podem servir de exemplo para os

contemporâneos.

Com a lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 1989 e suas alterações nas leis nº 8.081/90,

8.882/90 e 9.459/1997, passou-se a tratar e estender a criminalização a ‘todas as condutas

discriminatórias decorrentes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência

nacional, abrangendo, assim, bens jurídicos que até então eram desconsiderados para efeito de

tutela penal’(FIORELLO, 2005, p. 314).

Assim redigiu-se nos seguintes termos o artigo 20 da Lei nº 9.459/97:

“Art.20: Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,

etnia, religião ou procedência nacional.

Pena:-reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

¶ 1º: Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,

ornamentos, distintivos, propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para

fins de divulgação do nazismo.

Pena: Reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

¶ 2º:Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios

de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.

Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Dessa forma, abrangeu significativamente diversas formas de discriminação para

ampliar o âmbito de aplicação da Lei nº 7.716/89 e abranger diversos modos de tipificações

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para criminalizar as diversas formas de discriminação, seja de sexo ou estado civil, opção

sexual, de condição física, social ou de origem.

Assim coerente se mostra a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre crimes de

racismo contra o povo semita, uma decisão em vislumbrasse um entendimento mais amplo do

que seja o racismo. Pomposamente trás à luz a importância de sua criminalização, bem como

a relevância de sua imprescritibilidade:

ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL.

CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE

EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.

1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias

preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89,

artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às

cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).

2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são

uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a

exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.

3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do

genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja

pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer

outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana.

Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos

iguais.

4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo

de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo

que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.

5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e

os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e

infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio:

inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do

Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado

democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção

atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana,

baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência

no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação

estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento

infraconstitucional e constitucional do País. (...)

7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela

gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que

fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade

nacional à sua prática. (...)

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16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave

para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos

e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem.

Ordem denegada.

(STF - HC: 82424 RS , Relator: MOREIRA ALVES, Data de Julgamento:

17/09/2003, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT

VOL-02144-03 PP-00524)

Desta feita, cabe mencionar o crime de escravidão, cometido contra o povo africano e

afrodescendentes no Brasil, caracterizado como crime coletivo contra a raça negra

especificamente, nesses termos tratada:

“Milhões de jovens foram capturados durante séculos na África, e conduzidos com a

corda no pescoço, até os portos de embarque, onde eram batizados e recebiam, com

ferro em brasa, a marca de seus respectivos proprietários. Essa carga humana era

acumulada no porão de tumbeiros, com menos de 1 (um) metro de altura.Aqui

desembarcados os infelizes eram conduzidos a um mercado público para serem

arrematados em leilão.” (Apud FIORILLO, in Comparato, Fábio Konder.folha de

São Paulo, 2008).

Como conseqüência da escravidão, restou o trauma irreversível da desculturação, pois

os escravos eram afastados de sua língua, de seus costumes e de suas tradições.

Mesmo com essa mancha de sangue na História brasileira, que nossas leis efetivem-se

na moral dos indivíduos em busca da reversão das conseqüências atreladas a Escravidão.

CONCLUSÃO

O racismo sorrateiramente se espalha pelos diversos ramos sociais, não se limitando

ao tom de pele, se arrasta para subjugar etnias, religiões, disseminando o seu veneno.

Essa mentalidade segregacionista, que subjuga o outro como inferior, partindo do

pressuposto de distinções raciais, podem ter consequências desastrosas para toda a sociedade.

Quando uma ideologia que incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza

inominável se dissemina na sociedade, sem controle, ou punição, gera a barbárie. No estado

de direito democrático devem ser essencialmente respeitados os princípios que garantem a

prevalência dos direitos humanos. Não devendo ser apagados da memória as condutas que

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afrontam esses princípios fundamentais, até porque, os erros do passado podem servir de

exemplo para os contemporâneos.

Assim, as leis contra discriminação racial buscam o respeito à diferença, na medida de

suas desproporções. Equivale a, oportunizar a todos sem distinção de raça e cor, meios de

trabalho e acesso a uma igualdade fictícia. Sendo a previsão Constitucional de

imprescritibilidade desse tipo de crime, bem a como legislação infraconstitucional, que

disciplina o assunto, de relevância social.

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