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71 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA. Choque Choque 6 Carlos Otavio Corso Hamilton Petry de Souza INTRODU˙ˆO Choque Ø definido como uma circulaçªo inadequada do sangue que resulta em hipóxia celular. A persistŒncia do estado de mÆ perfusªo e hipóxia conduz à disfunçªo celu- lar, que pode levar à falŒncia orgânica, com conseqüŒncias graves e potencialmente fatais, se o choque nªo for revertido com a maior brevidade possível. A causa mais comum de choque no paci- ente traumatizado Ø a hemorragia e, parale- lamente à identificaçªo do choque, Ø funda- mental determinar a sua origem. Freqüente- mente, a lesªo que determinou o choque hemorrÆgico se mantØm como uma fonte ati- va de sangramento por ocasiªo da avaliaçªo inicial. Assim, Ø imprescindível o envolvi- mento precoce de um cirurgiªo qualificado no atendimento do trauma, conforme preconiza o ATLS. O choque hemorrÆgico continua sendo uma das maiores causas de morte após trau- ma, agudamente devido à perda sangüínea maciça, ou tardiamente, na seqüŒncia de uma depressªo metabólica e imunológica, que favorece o desenvolvimento de sepse e/ou falŒncia orgânica mœltipla. O seu reconhe- cimento e tratamento imediato sªo funda- mentais, pois quanto maior a sua duraçªo, mais intensos serªo os danos decorrentes da isquemia dos tecidos e da conseqüente re- perfusªo. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DO CHOQUE HEMORR`GICO Todo paciente traumatizado grave que se encontra hipotenso, pÆlido e frio Ø virtualmen- te um paciente em choque hemorrÆgico, e o tratamento deve ser instituído sem demora. Todavia, Ø importante lembrar que, embora incomuns, existem outras causas de choque que devem ser verificadas no atendimento ini- cial do trauma, mesmo quando existam si- nais de hemorragia.

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ChoqueChoque 6Carlos Otavio Corso

Hamilton Petry de Souza

INTRODUÇÃO

Choque é definido como uma circulaçãoinadequada do sangue que resulta em hipóxiacelular. A persistência do estado de máperfusão e hipóxia conduz à disfunção celu-lar, que pode levar à falência orgânica, comconseqüências graves e potencialmente fatais,se o choque não for revertido com a maiorbrevidade possível.

A causa mais comum de choque no paci-ente traumatizado é a hemorragia e, parale-lamente à identificação do choque, é funda-mental determinar a sua origem. Freqüente-mente, a lesão que determinou o choquehemorrágico se mantém como uma fonte ati-va de sangramento por ocasião da avaliaçãoinicial. Assim, é imprescindível o envolvi-mento precoce de um cirurgião qualificado noatendimento do trauma, conforme preconizao ATLS.

O choque hemorrágico continua sendouma das maiores causas de morte após trau-

ma, agudamente devido à perda sangüíneamaciça, ou tardiamente, na seqüência deuma depressão metabólica e imunológica,que favorece o desenvolvimento de sepse e/oufalência orgânica múltipla. O seu reconhe-cimento e tratamento imediato são funda-mentais, pois quanto maior a sua duração,mais intensos serão os danos decorrentes daisquemia dos tecidos e da conseqüente re-perfusão.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DO CHOQUEHEMORRÁGICO

Todo paciente traumatizado grave que seencontra hipotenso, pálido e frio é virtualmen-te um paciente em choque hemorrágico, e otratamento deve ser instituído sem demora.Todavia, é importante lembrar que, emboraincomuns, existem outras causas de choqueque devem ser verificadas no atendimento ini-cial do trauma, mesmo quando existam si-nais de hemorragia.

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Choque Neurogênico

O choque neurogênico resulta de traumamedular sobre os segmentos cervicais outorácicos com perda do tônus simpático. Ge-ralmente, estes pacientes não têm perda volê-mica significativa, mas, sim, uma despropor-ção entre o volume circulatório normal e oleito vascular dilatado, resultando hipotensãoarterial. Devido à lesão do simpático, a vaso-constrição periférica e a taquicardia reflexaestão abolidas, a pele apresenta-se quente ede coloração normal e a freqüência cardíacase mantém inalterada. Entretanto, deve serlembrado que o trauma contuso capaz deproduzir lesão medular é suficientemente in-tenso para produzir lesão em outros órgãos eser causa também de hemorragia. No traumapenetrante a possibilidade de hemorragia si-multânea ao trauma medular sempre deve seravaliada de forma crítica, determinando-secom precisão o trajeto do agente agressor epossíveis lesões associadas. Na vigência delesão medular o exame físico do abdome éinconfiável.

No choque neurogênico a perda volêmicaconcomitante determinada pelo trauma podeaprofundar a hipotensão e a reposição hí-drica deve ser efetuada de forma cuidadosa,preferencialmente com a monitorização dapressão venosa central. A maioria dos pacien-tes com choque neurogênico clássico respon-de bem à infusão de 2 litros de cristalóides.A pressão arterial acima de 90mmHg, débi-to urinário acima de 1ml/kg/h, sem acidosemetabólica e sensório preservado, são crité-rios que indicam que a reposição hídrica foiadequada.

O trauma craniencefálico isolado não écausa de choque e, portanto, todo pacientecom trauma craniano e hipotenso tem queser cuidadosamente examinado em busca dacausa da perda volêmica. Por outro lado, ochoque hipovolêmico agrava dramaticamen-te o trauma encefálico, aumentando sensivel-mente a lesão secundária e a morbimorta-lidade.

Choque Séptico

É bastante raro no paciente traumatizado,sendo factível apenas após muitas horas dotraumatismo e necessitando de uma fonte decontaminação, como em ferimentos abdomi-nais com extravasamento de conteúdo intes-tinal. Nos estágios iniciais a pressão arterialesta preservada, existe taquicardia mínima compulso amplo e pele quente e rósea. Quando háperda volêmica simultânea, o diagnósticodiferencial com o choque hemorrágico podeser muito difícil, já que a reposição volêmicageralmente não restitui a normalidade circu-latória. Embora o paciente em choque sépti-co se beneficie da restituição hídrica, freqüen-temente haverá necessidade do emprego dedrogas vasopressoras, e o uso de antibióticosde amplo espectro é mandatório.

Choque Cardiogênico

A característica marcante do choquecardiogênico é a disfunção miocárdica, deter-minando insuficiência circulatória e hipoten-são arterial. Entre suas causas destacam-se acontusão miocárdica e o tamponamento car-díaco, e, mais raramente, infarto do miocár-dio concomitante ao evento traumático e em-bolia gasosa.

Em vítimas de trauma torácico fechado ouque sofreram grande desaceleração e que es-tejam hipotensas, deve-se pensar na possibili-dade de contusão e disfunção miocárdica. Acontusão miocárdica é bem mais comum doque se imagina, ocorrendo entre 5% e até 40%dos pacientes com trauma torácico contuso,porém o comprometimento hemodinâmico épouco freqüente. No paciente idoso, o choquecardiogênico geralmente está associado àdescompensação de patologia cardiológicapreexistente. Em pacientes portadores de do-ença coronariana, não raro o infarto agudodo miocárdio pode ser tanto a causa que de-terminou um acidente ou queda, ou pode serinduzido no período pós-trauma pelo estresse,dor ou hipovolemia. A monitorização eletro-cardiográfica contínua pode demonstrar

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arritmias ou mesmo evidências de lesãoestabelecida. Embora não tenha grande utili-dade no atendimento inicial, a dosagem daCPK-MB também pode indicar sinais de lesãoe servir para o acompanhamento posterior. Amonitorização da pressão venosa central éimportante para que a reposição volêmicaseja realizada de forma controlada, sem ex-por o coração à sobrecarga hídrica, principal-mente em cardiopatas.

Tamponamento Cardíaco

O tamponamento cardíaco raramenteocorre no trauma fechado, devendo todaviaser excluído em todos os pacientes trauma-tizados de tórax que apresentem um ou maisdos sinais da tríade de Beck: hipotensão ar-terial, hipofonese de bulhas e ingurgitamentodas veias cervicais. Também se acompanhade taquicardia e, caracteristicamente, a repo-sição volêmica pode produzir uma melhorainicial, tanto mais importante quanto maiora perda volêmica, porém não reverte o qua-dro clínico de forma substancial, podendoinclusive acentuar a dilatação venosa cervi-cal. Seu diagnóstico pode ser confirmado naprópria sala de emergência com a utilizaçãodo ultra-som. Por outro lado, o tampona-mento cardíaco é freqüente em pacientes comferimentos penetrantes precordiais e deve sersempre lembrado quando os sinais acima des-critos estiverem presentes.

Pneumotórax Hipertensivo

Pode ocorrer tanto no trauma contusoquanto penetrante, embora seja mais comumna contusão. Caracteriza-se por um mecanis-mo valvular unidirecional, com saída de ardo pulmão lesado e acúmulo progressivo noespaço pleural. Em questão de minutos o au-mento da pressão intrapleural pode levar aocolapso completo do pulmão afetado e des-vio do mediastino para o lado oposto. Emconseqüência, resulta angulação e compressãodas veias cavas superior e inferior, com redu-ção gradativa do retorno venoso ao coração

e diminuição do débito cardíaco, dilataçãodas veias cervicais e queda da pressão arte-rial. Todavia, diferentemente do tampona-mento cardíaco, existe hipertimpanismo e atémesmo aumento de volume no hemitóraxatingido, abolição do murmúrio vesicular,desvio da traquéia para o lado oposto e insu-ficiência respiratória grave, com óbito imi-nente se não for feita a descompressãotorácica imediata.

É digno de nota o fato de que o tamanhodo pneumotórax não tem relação com a mag-nitude da instabilidade cardiovascular. Empacientes idosos, portadores de DBPOC oucom seqüelas de patologia pleural, a perdada elasticidade ou a adêrencia de parte dopulmão à parede torácica impedem um co-lapso completo, e muitas vezes constata-seapenas um pneumotórax discreto ou loculado.Portanto, independentemente do seu volu-me, o pneumotórax associado à insuficiênciaventilatória e circulatória grave necessita tra-tamento urgente.

FISIOPATOLOGIA DO CHOQUE HEMORRÁGICO

Após uma hemorragia grave ocorre umaredistribuição do débito cardíaco, visandopreservar a circulação encefálica, cardíaca erenal. Como conseqüência, estabelece-se umaintensa vasoconstrição cutânea, muscular eesplâncnica, com baixa velocidade do fluxo,redução na perfusão capilar e perda da va-somoção arteriolar espontânea. A microcir-culação nos tecidos está reduzida e compro-mete as trocas celulares de nutrientes e me-tabólitos, resultando em acidose, diminuiçãoda viscosidade sangüínea, edema das célulasendoteliais e dos tecidos extravasculares, for-mação de microtrombos e ativação de ma-crófagos, neutrófilos e células endoteliais. Es-tas células ativadas liberam radicais livres dooxigênio e uma grande variedade de media-dores tóxicos e citocinas, tendo o potencial deestabelecer um ciclo vicioso.

Atualmente o choque hemorrágico e o seutratamento são reconhecidos como uma for-ma de isquemia/reperfusão de abrangência

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sistêmica. Portanto, os mecanismos fisiopa-tológicos intrinsecamente letais desencadea-dos pela hemorragia têm o potencial de seremagravados na fase de reposição volêmica,mantendo a falência da microcirculação e aisquemia tecidual. Existe hoje o consenso deque o tempo em que o paciente permanece emchoque, mais do que a sua intensidade, é de-cisivo para a sua recuperação. Assim, o prin-cipal objetivo do tratamento do choque he-morrágico é a pronta reversão das alteraçõesmicrocirculatórias e celulares, que só é pos-sível com a restauração rápida do volume cir-cu l a tó r i o .

É necessário também enfatizar que o cho-que hemorrágico que acontece em um trau-matizado com múltiplas contusões de partesmoles e fraturas de ossos longos é muito maisgrave do que o choque hemorrágico isolado.O choque hemorrágico-traumático determinauma ativação da cascata de mediadores infla-

matórios de maior magnitude e complexida-de, originando um quadro clínico de maiorgravidade, e que se manifesta com toda inten-sidade a partir da restituição volêmica.

IDENTIFICAÇÃO DA ORIGEM DA HEMORRAGIA

Após ser feita a constatação do choquehemorrágico e ter sido iniciado o seu trata-mento, duas questões salientam-se: Qual acausa da hemorragia? Persiste sangramentoativo? Mullins chama a atenção para cincopossíveis fontes de origem da hemorragia: 1.externa; 2. pleural; 3. peritoneal; 4. extremi-dades; e 5. retroperitoneal.

A hemorragia externa pode ser bastanteevidente e de fácil acesso. A maior parte daslesões pode ser controlada com a compressãodireta, evitando-se o pinçamento às cegas,sob pena de se produzir um agravamento dalesão. Pacientes com sinais de sangramento

Fig. 6.1 � Representação esquemática da fisiopatologia do choque hemorrágico, com possibilidade de progres-são para falência orgânica múltipla.

Choque hemorrágico

Perfusão tecidual diminuída

Hipóxia tecidual

Metabolismo anaeróbico Redistribuição circulatória

Isquemia/reperfusãoAcidose

Disfunção celular

SIRS

Falência orgânica múltipla

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externo abundante e sem hemorragia ativa aoexame inicial podem ter sofrido uma hemor-ragia maciça, requerendo abordagem ime-diata e agressiva. Tanto a cavidade pleuralquanto a cavidade peritoneal podem contergrande volume de sangue sem que existamsinais óbvios. A ruptura de grandes vasospode ser rapidamente fatal, enquanto osangramento de lesões viscerais ou das pare-des freqüentemente se manifesta de forma pro-gressiva. O exame clínico acurado, RX de tó-rax, ecografia abdominal e o lavado perito-neal são a chave do seu diagnóstico.

As lesões de extremidades, particularmen-te quando associadas a fraturas de ossoslongos, podem ser causa de hipovolemia ex-pressiva. Além da hemorragia propriamentedita, estas lesões se caracterizam por umagrande perda plasmática devido ao edematraumático das partes moles, o que na práti-ca é quase equivalente ao volume do hema-toma. A redução das fraturas e alinhamentodo membro reduz a perda sangüínea. Os tor-niquetes devem ser usados excepcionalmente,apenas quando o sangramento for inacessívelà compressão direta e por um período de tem-po limitado a duas horas, sob risco de acen-tuar a isquemia distal. Lesões irreparáveis deextremidades, com sangramento profuso e in-dicação de amputação primária, possivel-mente sejam a sua indicação mais clara.

As fraturas complexas de bacia têm o po-tencial de produzir hemorragias exsangüi-nantes, e mesmo após reposição de volumesimensos de fluidos, não raro estes pacientesevoluem para choque irreversível e óbito.Fraturas pélvicas expostas são tratadas inici-almente com curativos compressivos epacking. A fixação externa da bacia e/ou aembolização de vasos sangrantes é geralmen-te o tratamento definitivo para cessar ou di-minuir o sangramento destas graves lesões.

QUANTIFICAÇÃO DA HEMORRAGIA

A hemorragia e seus efeitos deletérios semanifestam de maneira distinta de acordocom o volume de sangue perdido. Respeita-

das as variações individuais, considera-se queo volume sangüíneo de um adulto equivale acerca de 7% do seu peso ideal (cerca de 5 li-tros para um homem de 70 kg), enquanto nacriança este valor é de 8% a 9%. Embora doponto de vista prático a estimativa do volumede perda sangüínea nem sempre seja fácil,existe uma correlação importante entre a per-da volêmica e o conjunto de sinais e sintomasresultantes, o que permite uma estratificaçãodidática em quatro classes. Esta classificaçãoabrange desde uma perda discreta, equivalen-te à doação de uma unidade de sangue, atéuma situação de hemorragia maciça e de ex-trema gravidade, rapidamente fatal se nãotratada agressivamente (Tabela 6.1). Dequalquer forma, a estimativa da perda tem aintenção específica de alertar o socorristapara a maior ou menor gravidade do choque,sem que isso signifique qualquer protelaçãodo atendimento.

AVALIAÇÃO INICIAL

A avaliação inicial do paciente em choqueé idêntica à de todo traumatizado grave. Co-meça pela via aérea e ventilação, e pela ex-clusão daquelas situações que podem ser maisrapidamente fatais. O estabelecimento e ma-nutenção da via aérea definitiva e a adminis-tração de oxigênio por máscara a 10-12L/minsão as prioridades iniciais. O controle de san-gramentos externos e a avaliação clínica daperfusão tecidual são o passo seguinte. Even-tuais distúrbios neurológicos são detectadospor um exame sucinto, focalizado no nível deconsciência, diâmetro da pupila e sua respostaà estimulação luminosa, integridade da mo-tricidade e sensibilidade. A ampla exposiçãoe o exame físico completo são obrigatórios epodem detectar a presença de lesões insus-peitas. A descompressão gástrica alivia umapossível causa de hipotensão e previne a pos-sibilidade de aspiração pulmonar, principal-mente em pacientes inconscientes. O catete-rismo vesical, na ausência de contra-indicaçãoformal, permite a identificação da presençaeventual de hematúria e oferece uma possi-

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bilidade excepcional de avaliação da perfusãotecidual, eis que a produção de urina refletediretamente o grau de perfusão do rim. Amanutenção de um ambiente aquecido é umaspecto muito importante do atendimento aotraumatizado em choque, que naturalmentetem a tendência à hipotermia e está despido.A hipotermia severa é um grave complicadordo choque, pode induzir arritmias cardíacase contribuir para tornar o choque irreversível.

Acesso Venoso e Exames Laboratoriais

Dois cateteres intravenosos curtos e cali-brosos (#14 ou #16) são introduzidos prefe-rencialmente em veias do antebraço ou bra-ço. Alternativamente, a veia jugular externaé freqüentemente acessível no adulto. Na im-possibilidade de punção percutânea, a opçãoé a realização de flebotomia na veia basílicaou safena magna. Ambas são superficiais ede dissecção fácil e rápida. A basílica, ou seuafluente, mediana basílica, se localiza no sub-cutâneo da fossa cubital, cerca de 2cm ante-rior e cranial ao epicôndilo medial. A safenamagna caracteristicamente é encontrada 1-2cm anterior ao maléolo medial. O catete-rismo venoso não deve ser feito em membroscom lesões graves ou possíveis fraturas.

O cateterismo percutâneo de veias centraisé contra-indicado no atendimento inicial,pelo grande risco de realizar uma punção emum paciente muitas vezes agitado e poucocooperativo. Apenas na impossibilidade deoutra alternativa poderá ser tentado o acessocentral. É importante lembrar que o volumede fluxo destes cateteres é muito menor queo de um cateter periférico, pois são menoscalibrosos e mais longos.

Na criança abaixo dos 6 anos a punçãointra-óssea no terco superior da diáfise da tí-bia é uma excelente alternativa, já que permi-te a infusão de volume idêntico ao de umaveia periférica calibrosa.

A canulação de uma veia é seguida pelacoleta de sangue para tipagem sangüínea eprovas cruzadas, teste de gravidez em mulhe-res em idade gestacional, testes toxicológicosse indicados, gasometria arterial, hematócritoe hemoglobina.

REPOSICÃO VOLÊMICA

Cristalóides

A reposição volêmica inicial no choquehemorrágico é feita com cristalóides, preferen-cialmente Ringer lactato, já que grandes vo-

Tabela 6.1Sinais e Sintomas do Choque Hemorrágico, com Base no Volume da Perda Volêmica,

para um Adulto de 70kg (Adaptado do ATLS1)

Classe I Classe II Classe III Classe IV

Perda em ml < 750 750-1.500 1.500-2.000 > 2.000

Perda porcentual < 15% 15-30% 30-40% > 40%

Frequência cardíaca < 100 100-120 120-140 > 140

Frequência respiratória Normal ou < 20 20-30 > 30 > 35

Diurese em ml/h Normal ou > 30 20-30 < 20 Mínima ou 0

Pressão sistólica Normal Normal/pouco Diminuída Muitodiminuída diminuída

Pressão de pulso Normal Diminuída Diminuída Muitodiminuída

Estado mental Normal/ Ansiedade Ansiedade grave/ Letargia/ansiedade leve moderada confusão inconsciência

Enchimento capilar Normal Diminuído Muito diminuído Ausente

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lumes de solução salina isotônica podem in-duzir acidose hiperclorêmica. Um bolo de 2litros no adulto, ou 20ml/kg na criança, em10 a 15 minutos, é suficiente para expandiro leito vascular de forma significativa. O vo-lume de cristalóides requerido pelo pacientecom hemorragia grave é de três a quatro ve-zes o volume do sangue perdido. Todos os lí-quidos a serem infundidos devem ser aqueci-dos a 39°C.

Resposta à Infusão Inicial

A monitorização dos sinais vitais, do dé-bito urinário e de sinais clínicos, serão osdeterminantes da reposição subseqüente e danecessidade do uso de sangue. Assim, adiurese do adulto deve ser superior a 50ml/h,na criança pelo menos 1ml/kg/h e no lac-tente 2ml/kg/h. A acidose metabólica que sesegue à reposição inicial não precisa trata-mento, porém a acidose sustentada signifi-ca reposição insuficiente e necessidade demaior aporte líquido. A reposição de bicarbo-nato só estará indicada com a manutenção deum pH arterial abaixo de 7,2 após reposiçãohídrica adequada. A redução da freqüênciacardíaca e respiratória é sinal positivo, bemcomo a melhora do estado mental e da colo-ração da pele.

A elevação da pressão arterial como sinalde melhora deve ser vista com cautela e nocontexto do conjunto de sinais e sintomas. Asua subida nem sempre tem necessariamenterelação direta com o grau de perfusãotecidual, pois pode estar elevada pelo aumen-to da resistência vascular periférica, sem queefetivamente envolva aumento do débito car-díaco.

Sao identificados três grupos de pacientesde acordo com a resposta à infusão inicial(Fig. 6.2):

1. Melhora rápida. Estes pacientes sofre-ram uma hemorragia discreta, inferior a 20%da volemia e o bolo inicial é praticamentesuficiente para restaurar a normalidade dacirculação. O cristalóide é mantido em infu-são moderada (~150ml/h no adulto), evitan-

do-se a reposição exagerada e desnecessária,e o risco de sobrecarga hídrica. Dificilmenteirão precisar sangue, todavia a avaliação ci-rúrgica se impõe.

2. Melhora transitória. Após a melhorainicial se segue uma piora circulatória, man-tendo a necessidade da infusão de um altovolume de cristalóides na tentativa de manteros sinais vitais. A mensagem é clara: A per-da volêmica é expressiva (20-40%), e comisso a reposição é insuficiente e/ou existe he-morragia em andamento, possivelmente agra-vada pela expansão transitória do volume cir-culatório. A consultoria cirúrgica é funda-mental, simultaneamente com a infusão deum segundo bolo de cristalóides. A possibili-dade da transfusão de sangue é muito gran-de. A maior parte dos pacientes em choqueencontra-se neste grupo, e uma parcela signi-ficativa vai estabilizar somente com cirurgia.

3. Nenhuma melhora. Este grupo apresen-ta uma perda volêmica maciça (>40%), vainecessitar de cristalóides e sangue em gran-de volume e é muito provável que o controleda hemorragia somente seja obtido com cirur-gia. Nesta categoria se incluem também ospacientes com tamponamento cardíaco e cho-que cardiogênico por contusão miocárdica,que não tenham sido ainda corretamente diag-nosticados.

A conseqüência adversa da restauraçãovolêmica antes que a hemostasia seja obtidaé o aumento da hemorragia devido à eleva-ção da pressão arterial. Nesse sentido temsido sugerido que a indicação de cirurgia sejadefinida precocemente, e que apenas após oinício da cirurgia seja continuada a reposiçãovolêmica vigorosa.

Sangue

A indicação de transfusão sangüínea já foidescrita anteriormente de forma geral e estáesquematizada na Fig. 6.2. O sangue total,fresco, é o produto ideal de reposição notraumatizado em choque, entretanto a neces-sidade de maximizar a utilização das doa-ções sangüíneas faz com que o sangue seja

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fracionado e com freqüência esteja disponívelcomo concentrado de hemácias (CHAD). Atransfusão sangüínea, em maior ou menorvolume, geralmente será indicada nas hemor-ragias classe III e IV, ou seja, pacientes que ti-veram uma perda superior a 30% do seu vo-lume circulatório. A solução de Ringer lactatoé mantida após o início da infusão do sangue,procurando-se manter uma proporção de vo-lume de 3:1 entre cristalóide e sangue.

O sangue com todas as provas cruzadas éa melhor escolha, todavia a sua preparaçãoexige cerca de uma hora, e portanto, ideal-mente só poderá ser utilizado no paciente queestá hemodinamicamente normal, e que ne-cessita da transfusão para aumentar o volu-me de hemácias.

A compatibilidade ABO e Rh caracterizao sangue tipo específico, cujos testes necessi-tam de apenas cerca de 10 minutos. Emboranem todas as incompatibilidades sejam ex-

cluídas, a sua disponibilidade quase imedia-ta faz com que seja a primeira escolha nashemorragias graves.

O sangue tipo O é indicado naqueles pa-cientes com hemorragia grave, na ausênciado sangue tipo específico ou na necessidadede uso emergencial. Idealmente deverá serinfundido o fator Rh-negativo em meninas emulheres em idade fértil, para evitar a possi-bilidade de uma sensibilização e complica-ções gestacionais futuras. No sexo masculinopode ser infundido o fator Rh-positivo semproblemas.

Tradicionalmente, o objetivo da transfusãosangüínea é a manutenção do nível mínimode hemoglobina acima de 10g/% e hemató-crito acima de 30%, e estes valores são váli-dos para pacientes nos extremos da faixaetária, com doenças preexistentes e politrau-matizados. Em indivíduos jovens, previamen-te sadios e sem politrauma, existe boa tole-

Fig. 6.2 � Representação esquemática da reposição volêmica no choque hemorrágico e da probabilidade de ci-rurgia, conforme a resposta do paciente ao tratamento. * Normalmente não está indicada a infusão de sangue,utilizar apenas em caso de necessidade bem estabelecida.

Choque hemorrágico

Avaliação inicialABCDE — Tipagem sangüínea

RL 2 lts

Avaliação cirúrgica

Melhora rápida

“Manutenção”RL — 150ml/h

CHAD comprovas cruzadas*

Cirurgia?Possível

Melhora transitória

RL 2 lts+

CHAD tipo específico

Cirurgia?Provável

Nenhuma melhora

Cirurgia?Muito provável

RL 2 lts+

CHAD tipo específicoou tipo O

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rância para níveis de hemoglobina até 7g/%e hematócrito em 24%.

Embora seja incomum na primeira horade tratamento, naqueles pacientes que sãosubmetidos à transfusão maciça de sangue ecristalóides, a ocorrência de alterações gravesda coagulação é muito freqüente. A causa éatribuída à diluição e consumo dos fatores decoagulação. Embora existam fórmulas quedeterminem a transfusão de plasma fresco ecomponentes do sangue baseadas no volumede unidades de glóbulos transfundidas, pare-ce mais razoável e prático que sejam utiliza-dos quando o sangramento microvasculardevido à coagulopatia for evidente ou as pro-vas de coagulação assim o indicarem.

Autotransfusão

A autotransfusão está indicada em situa-ções de hemorragia maciça, uma vez que osangue estará disponível mais rapidamenteque o sangue homólogo do banco de sangue.Além disso, cada unidade de sangue autólogotransfundida é uma unidade a menos que en-cerra o risco de exposição à contaminaçãopelo paciente. O método mais simples é acoleta diretamente em um reservatório con-tendo anticoagulante e a reinfusão imediataatravés de um equipo com filtro específico(160 micrômetros), que retêm coágulos emicrofragmentos. É especialmente indicadoem hemotórax. O segundo processo permiteque o sangue coletado seja lavado, as he-mácias são separadas, ressuspendidas e infun-didas. Evita a infusão de fatores tóxicos e par-tículas presentes no sangue, porém além denecessitar de um equipamento especial, é ummétodo caro, relativamente demorado e não-disponível no atendimento inicial.

Solução Salina Hipertônica

A solução de NaCl a 7,5%, isolada ou as-sociada a um colóide, também tem sido uti-lizada no tratamento inicial do choquehemorrágico. Uma de suas vantagens é a in-fusão de um pequeno volume (4ml/kg, ou

250ml no adulto � small-volume resuscita-tion) em apenas 2-5 minutos, promovendoquase instantaneamente um aumento signifi-cativo da pressão arterial e do débito cardía-co. O seu mecanismo de ação se baseia noaumento súbito da osmolaridade plasmática,que atrai para a luz da microcirculação líqui-do das células endoteliais, dos eritrócitos e dointerstício, equivalendo a uma �transfusãointerna� de três a quatro vezes o volume in-fundido. A diminuição do volume das célulasendoteliais propicia um aumento do diâme-tro dos capilares, e, conseqüentemente, me-lhora do fluxo microvascular, por isso é tam-bém denominada terapia microcirculatóriado choque. Embora disponível para uso emmuitos países europeus e no Brasil, ainda nãotem aceitação ampla, devido ao temor de quea rápida melhora das condições hemodi-nâmicas possa levar ao aumento da perdavolêmica em uma hemorragia não-controla-da, e agravamento do choque.

PACIENTES ESPECIAIS

Alguns grupos de pacientes em choqueapresentam características de maior vulne-rabilidade, e devem ser tratados com cuida-dos redobrados. Assim, cardiopatas em usode betabloqueadores e antagonistas do cálciopodem ter a resposta hemodinâmica à hemor-ragia alterada e não demonstrarem claramen-te a intensidade do choque. De forma seme-lhante, os portadores de marca-passo perdema taquicardia reflexa compensatória. A medi-da da PVC nestes pacientes traz pouca contri-buição, sendo preferível a monitorização dodébito urinário e outros sinais clínicos.

Pacientes na faixa etária acima de 60anos apresentam freqüentemente doençaaterosclerótica avançada com reserva cardio-vascular mínima, sendo particularmente sus-cetíveis a complicações isquêmicas graves.Nestes pacientes, a reposição volêmica deveser agressiva e a indicação cirúrgica definidao mais breve possível.

Os atletas têm uma capacidade de com-pensar perdas volêmicas bastante aumentada,

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devido à expansão do volume circulatório eda excepcional performance cardiovasculardesenvolvida pelo exercício continuado.Como conseqüência, quando ocorrem asmanifestações clínicas do choque hemorrá-gico, a perda sangüínea é muito maior quea esperada e, portanto, nesta classe de paci-entes, a infusão de líquidos deve ser preco-ce, antes que se estabeleçam sinais claros dechoque.

Todo paciente em choque está potencial-mente exposto à hipotermia, o que pode de-terminar uma resposta hemodinâmica precá-ria à reposição hídrica, e também favorecero desenvolvimento de alterações da coagula-ção. A manutenção de um ambiente aqueci-do, o uso de colchões térmicos e a infusão delíquidos a 39°C normalmente é suficiente parao reaquecimento do paciente. Em circunstân-cias excepcionais, principalmente em pacien-tes expostos ao frio ou resgatados da água,pode haver necessidade de reaquecimentoativo, através da irrigação das cavidadespleurais e peritoneal com solução fisiológicaaquecida ou mesmo circulação extracor-pórea, se disponível.

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