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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
SUPERENDIVIDAMENTO E O CDC: CAUSAS EFEITOS E
SOLUÇÕES.
Por: Yuri Santos Ckless
Orientador
Prof. William Rocha
Rio de Janeiro
2010
2
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
SUPERENDIVIDAMENTO E O CDC: CAUSAS EFEITOS E
SOLUÇÕES.
Apresentação de monografia à Universidade Cândido
Mendes como condição prévia para a conclusão do
Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Direito nas
relações de consumo.
Por. Yuri Santos Ckless
3
DEDICATÓRIA
Dedico essa monografia à minha amada esposa Renata,
que tanto me incentivou e sempre me apoiou no decorrer
deste trabalho. Também ao Pedro, meu filho, luz da
minha vida, a razão de minha existência.
À Marlene, minha querida mãe, exemplo de vida,
coragem, bravura e dedicação a ser seguido.
Yuri Ckless
4
RESUMO
O superendividamento é um fenômeno sócio-econômico que começou a ser
conhecido em nosso ordenamento jurídico a partir de 2005. Desde então, tem-
se notícia de diversos casos de consumidores que vem passando por esta
mazela social nos tribunais de todo o país. Infelizmente como ainda não se tem
uma legislação específica que trate desta matéria, a total responsabilidade na
resolução deste infortúnio está nas mãos dos magistrados, que na ausência de
lei, aplica-se nosso Código de Defesa do Consumidor – que completou vinte
anos, e tratando-se desta matéria, restam diversas lacunas para resolução
deste problema. A concessão do crédito desenfreado pelas instituições
financeiras aliado à publicidade agressiva e desenfreada tem sido um fator
considerável no agravamento desta questão. A prevenção sempre será o
melhor remédio para se evitar que o consumidor chegue ao
superendividamento, através de cartilhas educativas à população e um alerta
dos órgãos de defesa ao consumidor de como evitar esse mal. Mas na
impossibilidade de se conseguir a prevenção e o cidadão cair em tentação,
este trabalho vislumbra mostrar o que deve ser feito nesse caso, como os
tribunais estão enxergando essa anomalia que nos atinge, o que o direito
comparado nos mostra e a possibilidade de termos uma lei que trate desse
assunto especificamente, beneficiando ainda mais o indivíduo que é atingido
por este infortúnio.
5
METODOLOGIA
A metodologia utilizada neste trabalho, primeiramente, é definir o que vem a
ser o superendividamento, pois ele desdobra-se em ativo e passivo, sendo esta
primeira etapa primordial para o entendimento da pesquisa.
Ainda neste início pretende-se mostrar que este desdobramento é de suma
importância, pois irá ou não, dependendo do caso, mostrar se o consumidor
terá a tutela de proteção amparada pela legislação.
A vulnerabilidade do consumidor também é tema de apreciação neste
princípio, bem como a boa-fé por parte dos fornecedores nesta primeira visão.
Num segundo plano é abordado sobre a ingerência da concessão do crédito
ao cidadão e a responsabilidade dos fornecedores nesta etapa, bem como o
código de defesa do consumidor o protege desta anomalia, quer através de
artigos, reportagens, doutrina e jurisprudências versando sobre o tema.
Ainda é visto o que está sendo feito e como é o tratamento dispensado ao
consumidor que sofre deste problema e exemplos de soluções propostas para
a resolução do superendividamento e como a legislação em outros países
tratam deste assunto ao mesmo tempo em que ela pode ser trazida à nossa
realidade.
Finalmente é mostrado através de um anteprojeto de lei uma proposta para
ser aprovado em nosso ordenamento jurídico a elaboração de uma lei para a
proteção do consumidor superendividado.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I – Fatores e causas que propiciam o superendividamento 8
CAPÍTULO II – A concessão do crédito, sua proteção no CDC e o tratamento
das situações de superendividamento do consumidor. 19
CAPÍTULO III – O direito comparado e o superendividamento 35
CAPÍTULO IV – Uma lei para o superendividado 39
CAPÍTULO V – Conclusão 41
BIBLIOGRAFIA 43
7
Introdução
O intuito da presente pesquisa, primordialmente, é alertar à sociedade de
um problema que cada vez mais vem assombrando os lares das famílias
brasileiras, mormente das classes B, C, e D, que é o superendividamento
passivo do cidadão brasileiro.
A inspiração para melindrar nesta seara, foram o de dois casos concretos
em minha família, cuja resolução não se precisou recorrer ao judiciário para
sanar este fenômeno e sim de orientações simples, como exemplos que serão
dados neste trabalho, que poderão evitar do consumidor de chegar à
insolvência civil.
No primeiro capítulo está a definição do que vem a ser este tão delicado
assunto, bem como a oferta e a demanda por crédito, mostrando também a
vulnerabilidade a que o consumidor está submetido e a boa-fé que o
fornecedor deve ter nos contratos.
No segundo capítulo discorro sobre a concessão do crédito e a influência do
marketing e da publicidade no cotidiano do cidadão; também é mencionada a
proteção do Código de Defesa do Consumidor aplicável ao indivíduo e
exemplos de tratamentos do superendividado em nosso país.
No terceiro capítulo faz-se um paralelo do direito comparado frente a nossa
legislação, e finalmente no quarto capítulo menciono o anteprojeto de lei para o
superendividado.
8
Cap. 1 – FATORES E CAUSAS QUE PROPICIAM O
SUPERENDIVIDAMENTO
1.1 – Definição
Primeiramente, antes de iniciar o desenvolvimento desta pesquisa,
cumpre informar que o que vem a ser superendividamento ou
sobreendividamento.
Em brilhante definição de Cláudia Lima Marques, fenômeno comum na
sociedade atual,
“caracteriza-se pela impossibilidade manifesta pelo devedor de
boa-fé de fazer face ao conjunto de suas dívidas não
profissionais e não pagas” (definição da Lei Especial Francesa
de 31-12-1989), traduzida pela autora (Contratos no código de
defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais.
4.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 690), ou em outras palavras da
própria autora: “como impossibilidade global do devedor
pessoa física, consumidor leigo e de boa-fé de pagar todas as
suas dívidas atuais e futuras de consumo – excluídas as
dívidas com o fisco, as oriundas de delitos ou de alimentos”.
Diante de tal definição há um desdobramento entre superendividamento
ativo e passivo.
O primeiro refere-se àquele indivíduo que
“é resultante de uma acumulação de inconsiderada de dívidas,
oriundas de consumo desenfreado estimulado pelo mercado,
na tentativa de manutenção de um padrão de vida incompatível
com as possibilidades financeiras” 1
1 Marcus Vinicius Ferrari – “O consumo e o superendividamento”
http://www.nosrevista.com.br acesso em 01-04-10).
9
Continua Marcus Vinicius:
“Será passivo se decorrente da perda de receita por um
desemprego repentino, algum tratamento de saúde sem
cobertura de seguro, separação conjugal não planejada sob o
aspecto financeiro, aplicações ou investimentos mal sucedidos
etc” 2
Sendo assim, para efeito de pesquisa, o presente estudo será focado
neste segundo caso de superendividamento passivo, cujas fontes e
materiais doutrinários são amplos ao versarem sobre este objeto.
1.2 – A oferta e a demanda por crédito
Neste subitem da pesquisa, coloco o seguinte questionamento: A oferta de
crédito é proporcional à sua demanda ?
Inquestionavelmente percebe-se uma avalanche da oferta de crédito em
diversos meios diariamente, sendo o consumidor bombardeado pela facilidade
em sua obtenção.
Houve uma banalização do crédito e a facilidade em obtê-lo, faz com que o
indivíduo muitas das vezes tenha mais de um empréstimo simultâneo.
Indubitavelmente a oferta é maior que a demanda. Com a economia do país
sem abalos de crises globais, aliada a uma inflação controlada, temos um
aumento da circulação de dinheiro e de riquezas no país.
Todavia, porém, essa dação irresponsável do crédito pelos bancos gera
também conseqüências nefastas.
Quem concede o crédito nem sempre se preocupa em avaliar
detalhadamente as condições de solvência do cliente e sim na correção
2 Marcus Vinicius Ferrari – “ O consumo e o superendividamento” http://www.nosrevista.com.br acesso em 01-04-10).
10
monetária e os juros que determinado empréstimo irá gerar de lucro para certa
instituição bancária.
Diante de tal fato, em artigo no site da Serasa 3 do “superendividamento e o
papel dos indicadores de demanda por crédito” foi feito um levantamento sobre
a procura do crédito entre o primeiro bimestre de 2009, comparado com o
mesmo período de 2008.
Em decorrência desta pesquisa
“foi constatado que com a globalização econômica, a crise
mundial afastou o consumidor brasileiro do crédito. Embora o
indicador de demanda por crédito não represente o aumento do
superendividamento e da inadimplência, pois representa
apenas que a atividade econômica tem sido ou não alavancada
pela procura e concessão de crédito, não se pode negar que o
superendividamento é uma conseqüência da falta de
planejamento na concessão de crédito para um determinado
tomador” 4
Como conseqüência o superendividamento dos consumidores está de certa
forma atrelado ao aumento excessivo de crédito a eles concedido.
Em seu livro “Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro”, de
Márcio Mello Casado, RT, 2007, p. 145, o autor cita Clóvis Veríssimo do Couto
e Silva 4 que nos ensina que
“os contratos firmados com instituições financeiras, dada a
atual indispensabilidade do crédito na sociedade de consumo,
3 http://www.serasaexperian.com.br – acesso em 01-04-10 4 Couto e Silva, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976,
p. 92
11
podem ser considerados como verdadeiros atos existenciais,
absolutamente necessárias à vida humana”.
Mas esta necessidade de consumo deve ser cautelosa e responsável, sem
prejuízo do reconhecimento das relevantes funções sociais do crédito:
financiamento do consumo, elevação da produção, geração de empregos,
aumento do bem-estar dos brasileiros e contribuição para o crescimento do
país; em suma: mais qualidade de vida para todos.
Baseada nessa qualidade de vida e no aumento do consumo, os bancos
deram-se conta deste momento favorável em que passa nossa economia e
começou a ofertar nos intervalos de programas populares e horários nobres o
crédito fácil, que Márcio Mello Casado compara com uma pizza.
Esta comparação frente a um produto tão nobre quanto o crédito, além de
banalizá-lo, afirma o caráter de abusiva e enganosa a publicidade (art. 37 pár.
1° e 2° CDC).
Leciona Márcio Casado 5 :
“É abusiva porque pode induzir o consumidor a se comportar
de forma prejudicial e perigosa a sua saúde e segurança, na
medida em que as altas taxas de juros praticadas e diversas
práticas ilegais conduzem as pessoas a situações de
endividamento importantes que podem levar à insolvência”.
Completa o autor: “É enganosa, pois não é completa, não vem
acompanhada das necessárias advertências acerca do produto crédito, seus
riscos”.
Acerca desta questão, foram aprovadas, em 11.03.1998, no IV Congresso
Brasileiro de Direito do Consumidor, realizado em Gramado – RS, no painel
sobre serviços bancários e financeiros, as seguintes conclusões, onde se
5 Proteção do Consumidor de Crédito Bancário e Financeiro – RT – 2006 – 2.ed. – São Paulo
12
caracterizam a responsabilidade civil dos banqueiros pela concessão do
crédito6.
“ 5: As instituições financeiras, ao prestarem serviços atinentes
ao crédito, manipulam interesses públicos relevantes e devem
agir com a maior diligência, cumprindo com as funções
inerentes ao crédito (captação de poupança e financiamento à
produção) de molde a não causar danos (aprovada por
unanimidade).
“ 6. Responde o banqueiro pelos danos causados a terceiros,
com base no art. 186 do CC/2002, quando por falta de
observância de normas de conduta consistente em: a) prévia
verificação da capacidade de pagamento e, ou, b) proceder
estudo de viabilidade econômica da empresa ou do
empreendimento financiado, vier a conceder crédito a pessoa
em estado de insolvência. (aprovado por maioria).
“ 7. Considera-se recusa injustificada de crédito, ensejadora de
responsabilidade civil do banqueiro: a) a negativa de crédito a
demandante que preencha os requisitos objetivos exigidos pela
instituição financeira; b) a cessação de fluxo de crédito
contratualmente ajustado; c) a cessação de renovação de
crédito em relação jurídica continuativa. (aprovada por maioria).
1.3 – A vulnerabilidade do consumidor e a boa-fé nos
contratos
1.3.1 – A vulnerabilidade do consumidor
De acordo com a definição do dicionário Aurélio 7, vulnerabilidade significa
para os léxicos, “a qualidade ou estado de vulnerável que, por sua vez,
6 Revista de direito consumidor 26/244
13
significa o que pode ser vulnerado, magoado, prejudicado, ofendido, o que é
frágil, que pode ser atacado ou ferido”.
Sendo assim, percebendo a fragilidade do consumidor frente ao fornecedor,
o Código de Defesa do Consumidor expressou em seu art. 4°, I, como um
princípio estruturante de seu sistema, ou nas palavras de João Batista de
Almeida 8 : “essa é a espinha dorsal da proteção do consumidor”.
Em face do princípio em exame,
“ a vulnerabilidade é qualidade intrínseca, ingênita, peculiar,
imanente e indissolúvel de todos que se colocam na posição de
consumidor, pouco importando sua condição social, cultural ou
econômica (...) É incindível do contexto das relações de
consumo, não admitindo prova em contrário por não se tratar
de mera presunção legal.” ( Thereza Arruda e James Martins
Eduardo Alvim, Código do consumidor comentado, 2.ed,
Revista dos Tribunais, 1995, p.45) em outras palavras,
vulnerabilidade é um estado da pessoa, uma situação
permanente ou provisória que fragiliza o consumidor.
Vulnerabilidade e hipossuficiência não se confudem, embora digam respeito
ao consumidor. Antônio Herman Benjamin 9 traça com extrema peculiaridade a
distinção na lição que segue:
“ A vulnerabilidade é um traço universal de todos os
consumidores, ricos ou pobres, educados ou ignorantes,
crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal,
limitada a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca
a todos os consumidores...A vulnerabilidade do consumidor
justifica a existência do código. A hipossuficiência, por seu seu
turno, legitima alguns tratamentos diferenciados no interior do
próprio código, como por exemplo a previsão do ônus da prova
7 Dicionário Aurélio Eletrônico, séc. XXI, versão 3.0, Nov. 1999 8 João Batista de Almeida. A proteção jurídica do consumidor, n° 54, São Paulo: RT, 2005
14
– art. 6°, VIII (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto, 8.ed., Forense
Universitária, p. 371).
Complementando com a visão de Sérgio Cavalieri10·:
“O CDC trata de maneira desigual o consumidor não para
conferir-lhe privilégios ou vantagens indevidas, mas sim
prerrogativas legais – materiais e instrumentais – para que se
atinja o desiderato constitucional da igualdade real.”
A igualdade, na clássica lição de Rui Barbosa, importa em tratar
desigualmente aos desiguais, na medida de suas desigualdades.
Cavalieri 11 classifica a vulnerabilidade em três espécies: fática, técnica e
jurídica.
Na fática ele descreve como “a discrepância entre a maior capacidade
econômica e social dos agentes econômicos.”
Na técnica “decorre do fato de não possuir o consumidor conhecimentos
específicos sobre o processo produtivo, bem assim dos atributos específicos de
determinados produtos ou serviços pela falta ou inexatidão das informações
que lhe são prestadas”.
E finalmente a jurídica ou científica, “resulta da falta de informação do
consumidor a respeito dos seus direitos.”
Diante das definições de vulnerabilidade a que o consumidor sempre estará
exposto fática, técnica e juridicamente, um estudo feito pelo núcleo de
superendividamento do PROCON-SP 12 em dezembro de 2006, comprovou em
9 Antônio Herman Benjamin. O direito do consumidor: RT. n. 670, p.50 10 Sérgio Cavalieri.Programa de direito do consumidor. Ed.Atlas, 2008,p.39 11 Op. Cit. p.39 12http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=369 – acesso em 01.04.10
15
seu atendimento a 420 consumidores superendividados passivos que 82%
deste total não recebeu a cópia do contrato no momento em que realizou a
contratação; o documento não foi recebido ou somente foi recebido após a
assinatura. Tal dado é preocupante, vez que demonstra que o consumidor não
teve acesso às informações referentes aos seus direitos e deveres, tampouco
às condições contratuais, violando direitos básicos do consumidor (art. 6°, III)
quanto à informação prévia, clara e precisa e quanto à oferta (art. 31) o que
demonstra o descaso e abuso das instituições financeiras frente ao
consumidor.
Outro dado relevante desta pesquisa refere-se à forma que o consumidor
teve acesso ao crédito. 53% obtiveram conhecimento por meio de panfletos ou
inserções de TV, o que demonstra que o crédito é quem procura o consumidor
e não ao contrário, como deveria ocorrer. Essa forma de marketing agressivo
não é salutar quando se fala em cessão de crédito. Outro dado que corrobora a
afirmação é o de que a grande maioria, 92% não teve que apresentar nenhuma
garantia para obter o crédito.
1.3.2 – A boa fé nos contratos
Após relatada a vulnerabilidade que o consumidor sofre diariamente, far-
se-á a ligação entre esta fragilidade aliado ao consagrado princípio da boa-fé
objetiva, cujo Código de Defesa do Consumidor, o adotou, implicitamente como
cláusula geral no seu art. 4°, inciso III, onde a mesma deve ser considerada
inserida em todas as relações jurídicas de consumo.
16
Se, no plano constitucional o princípio da dignidade humana é o mais
importante, tanto assim que consagrado como um dos fundamentos do nosso
Estado democrático de direito (CF, art. 1°, III), no plano infraconstitucional esse
papel cabe ao princípio da boa-fé.13
Como função da boa-fé, continua Cavalieri:
“importa dizer que em toda e qualquer relação jurídica
obrigacional de consumo esses deveres estarão presentes,
ainda que não inscritos expressamente no instrumento
contratual. Quem contrata não contrata apenas a prestação
principal; contrata também cooperação, respeito, lealdade etc.”
Vale dizer, o contrato não envolve apenas a obrigação de prestar, envolve
também obrigação de conduta ética antes, durante e após a celebração14
Ainda nas brilhantes palavras de Cavalieri “em sua função de controle, a
boa-fé representa, pois o padrão ético de confiança e lealdade, indispensável
para a convivência social (...) uma espécie de cinto de segurança de toda a
ordem jurídica”.
Mas frente a estas definições mais que perfeitas, percebe-se que na prática,
no dia-a-dia, na contratação de um empréstimo junto a um banco, na
realização de um contrato de seguro de automóvel etc, vislumbra-se a total
falta de boa-fé ao não ser entregue previamente ao consumidor uma cópia do
contrato a que o mesmo tem direito, tampouco ele é alertado dos riscos a que
está exposto sobre o prolongamento das prestações, quiçá das cláusulas de
limitação de seus direitos, que deveriam estar em destaque no corpo do
contrato (art. 54, par. 4°), com formato de letra nunca inferior ao corpo 12 ( Lei
11.785/08 – art.1°) nos contratos de adesão.
Quanto aos contratos de empréstimo consignado, houve um precedente em
nosso TJRJ15, onde segundo o julgado,
13 Cavalieri. Op.cit.pág. 30 14 Idem. Op.cit. pág.30
17
o “superendividamento é uma patologia econômico-financeira
gerada pela moderna sociedade globalizada de consumo e de
crédito (...) onde o débito em conta representa uma agressão à
dignidade se os descontos incidem sobre os parcos
vencimentos da autora retirando-lhe a possibilidade de
deliberar sobre quais os débitos de sua vida privada são mais
relevantes.”
Ainda dos fundamentos da decisão, merece realce a
consideração de que “não importa que o contrato de
refinanciamento tenha sido firmado em 2001, e os descontos
feitos em 2005, pois o CDC exige a transparência clara, prévia
e objetiva como direito fundamental a proteger o consumidor
(art. 6°, III, CDC), e, principalmente a boa-fé objetiva no trato
com o mais frágil.”
Cumpre destacar nas palavras de Geraldo de Faria Martins da Costa16 que:
“não só a omissão dolosa deve ser combatida. O legislador
busca um consentimento esclarecido pelo cumprimento
adequado da obrigação positiva de informar, com o objetivo de
prevenir os litígios, de dissipar a falta de clareza, de estimular a
escolha nacional do consumidor de crédito. O judiciário ficar
atento ao descumprimento generalizado da obrigação positiva
de informar adequadamente o consumidor de crédito. Este tem
direito a informações de boa-fé (art. 4°, III, c/c art. 6°, III do
CDC) completas, adequadas, postas em forma de menções
precisas (art. 52 CDC) e escritas (art. 54, par. 3° e 4° do CDC,
c/c o art. 13, XX, dec. 2181/97).
15 TJRJ, 5ª Cam. Cív.,Ap.Cív. 2006.001.46305, JDS. Des. Cristina Tereza Gaulia, j.25.04.2006 16 Direitos do consumidor endividado – Estudo sobre direito Brasileiro e superendividamento. RT, 2006, pág. 240
18
1.4 – Conclusão
Diante do primeiro capítulo desta pesquisa, cabe ressaltar que o
endividamento cada vez mais comum do cidadão em nossa sociedade não é
culpa exclusiva do indivíduo que teve um acidente da vida, como classifica
Cláudia Lima Marques17, como desemprego, morte na família, nascimento de
filhos etc, mas também das agressivas propagandas e abuso das mesmas a
que o indivíduo são submetidos diariamente; seja em outdoors ,panfletagem
constantes e incessantes nas ruas, celebridades promovendo a facilidade do
crédito, aliada à facilidade na obtenção do mesmo em bancos e instituições
financeiras.
Deveria haver uma maior responsabilização na dação do crédito pelo
comércio e bancos principalmente, devendo-se avaliar as condições de
solvência do cliente.
A falta de informação clara, omitindo dados que são relevantes ao cidadão,
além de violar o princípio da boa-fé, dever-se-ia ter nesses contratos
corriqueiros de adesão e empréstimos, linguagem mais didática, sem o
jurisdiquês e economês tão freqüentes, que acaba prejudicando o homem
médio na compreensão na hora de contratar, bem como uma maior fiscalização
dos órgãos de defesa do consumidor às instituições bancárias e financeiras.
17 Direitos do consumidor endividado – Estudos sobre direito brasileiro e superendividamento. RT, 2006.
19
2 – A concessão do crédito, sua proteção no CDC e o
tratamento das situações de superendividamento do
consumidor.
2.1 – A concessão do crédito
A oferta e a publicidade caminham de mãos dadas nesse mercado frenético
que é o da concessão de crédito. Como visto anteriormente, percebe-se uma
enxurrada diariamente em todas as mídias possíveis a que o consumidor tem
acesso: seja através de spams enviados às caixas de mensagens de correio
eletrônico, jornais de toda sorte, panfletagens nas ruas etc; somado a este
emaranhado de publicidade a que está sujeito este cidadão, proliferam as
instituições de concessão de crédito, visando ludibriar os consumidores
hipervulneráveis, no caso os idosos, com descontos em folhas de pagamento e
prestações a serem perdidas de vista, bem como aquele indivíduo, que pela
facilidade do crédito, acaba sendo fisgado por este tipo de oferta.
Segundo Cristina Tereza Gaulia18: “E justamente a partir da explosão de
ofertas, e da massiva publicidade sobre o crédito fácil e o sonho de deixar de
ser um excluído, é que nasce o grande perigo para o homo consumericus.
Atordoado pela oferta abundante e pela publicidade muitas vezes enganosa,
até por omissão, e quase sempre abusiva, o consumidor se deixa atrair para
esse novo mundo do qual ele quer tanto fazer parte: o mundo da felicidade
líquida, usando expressão de Zygmunt Bauman19 ”.
Mais uma vez vale referência à mídia escrita.
18 O abuso de direito na concessão de crédito: o risco do empreendimento financeiro na era do hiperconsumo. Publicado na RDC 71/34
19 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
20
O Jornal do Brasil 20 de 26.01.2006 traz fotogramas emblemáticos.
Uma foto mostra, numa das ruas do centro do Rio de Janeiro, os chamados
promotores de crédito, rapazes e moças, vestidos com cores marcantes: verde,
amarelo, azul, e, na frente desses está passando uma senhorinha.
A matéria descreve:
“Oferta estimula consumo”, e, logo abaixo, há outra foto na qual
uma segunda senhora está sentada em frente ao preposto de
uma financeira, e o título da reportagem diz: “Rede para pegar
cliente”.
Não é preciso muito conhecimento psicanalítico para interpretar
essa linguagem jornalística de duplos sentidos. É o
“consumidor-sardinha” que atraído pelas “iscas” publicitárias
termina “fisgado na rede do crédito fácil”.
Em trabalho apresentado perante a 7.ª Conferência
Internacional de Serviços Financeiros e reflexões sobre a
situação brasileira, o presidente do Brasilcon, promotor de
justiça, relata:
“Em 2007, apenas os cinco maiores bancos privados tiveram,
de lucro líquido, cerca de 20 (vinte) bilhões de reais, o que
representou cerca de 90% de crescimento em relação aos
lucros de 2006 (que foi um ano também de faturamentos
recordes). Ocorre que o principal fator de crescimento deveu-
se à expansão da oferta de crédito no mercado, especialmente
com a popularização do uso de cartões de crédito, empréstimo
consignado em folha de pagamento e o mútuo conhecido como
cheque especial (oferta de crédito pré-aprovado diretamente na
conta-corrente).
20 Vide nota 23, p. A18.
21
(...)
A expansão na oferta de crédito teve um crescimento real de
cerca de um terço (28,9%).21”
Nesta seara, visualiza o mesmo autor que “a bancarização não ocorreu
como um fenômeno natural do mercado (a partir da procura espontânea dos
consumidores), mas pelo aumento do anúncio publicitário em outdoors,
programas de televisão, panfletagem e internet 22”, ou seja, na
complementação de Cristina Tereza Gáulia 23:
“há um projeto empresarial claramente definido no sentido da
captação dos consumidores, pela isca do desejo, de modo tão
insistente, sedutor, massificado, constante e invasivo, que a
vontade individual se fragiliza, fragmentando as barreiras do
homem, mesmo as do mais espartano”.
Fazendo um paralelo do exposto com a psicologia, vale ressaltar que a
publicidade e a propaganda, para nos convencer a adquirir produtos e serviços,
criam desejos em nossas mentes, onde tudo é planejado para que seja
associado, ao ato de comprar, a ideia de felicidade e status pelo uso da
sedução que elas provocam no ser humano.
Extraindo enxerto de artigo de Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos 24, cujo
aspecto psicológico é abordado pelo Grupo de Psicologia Econômica
(G.P.P.E.), coordenado pela Dra. Alice Moreira25, cujas conclusões são
transcritas a seguir:
21 Impressões atuais sobre o superendividamento: sobre a 7.ª Conferência Internacional de Serviços Financeiros e reflexões para a situação brasileira. RDC, n. 65. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2008, p. 147 22 Idem, ibidem, nota 27, p. 148. 23 Idem, ibidem, p.16 24 Superendividamento: a fragilidade do consumidor. Publicado em 21.11.2005,Ed. 153, cód.pub. 924 25 O que é psicologia econômica. LAPE, Belém/PA.http://www.cpgp.ufpa.br/lape/portug/contato.htm > Acesso em: 01.04.2010.
22
“O interesse dos psicólogos por temas relacionados à vida
econômica é compreensível no panorama contemporâneo,
marcado pela transformação de valores, estabelecimento de
novos mercados e tendências globalizantes. A ética da
poupança e autocontenção foi superada por valores de
consumo e satisfação imediata de desejos, gerando o que tem
sido chamado de “cultura do débito” (Livingstone & Lunt, 1993).
As identidades sustentam-se cada vez mais na posse e
exibição de bens materiais (Belk, 1991; Canclini, 1999).
Crescem as preocupações com a patologia do comprar
compulsivo (Hanley & Wilhelm, 1992), em paralelo ao estudo
das mais antigas, como jogar e colecionar (Belk, 1995; Griffiths,
1995).
A participação crescente da mulher no mercado de trabalho
leva à reestruturação das relações e estratégias de poder na
família (Burgoyne, 1995; Kirchler, 1999). Novas configurações
de mercado geram estudos abordando a influência dos valores
sobre preferências de consumo (Grunert & Beckmann, 1999)
ou as interrelações entre moeda, simbolismo e identidade
nacional (Conlon, Routh, & Pannayiotakopoulo, 2000)”.
Esta felicidade líquida e efêmera a que estamos submetidos nesta cultura
do débito faz com que nossa mente assimile aliada à massificação do crédito,
que o “gastar-sem-ter” é uma praxe cada vez mais comum em nossa
sociedade atual.
Desta forma, conforme relatado na reportagem acima, o crédito é importante
para a sociedade, mas não da forma em que está sendo feito com o
consumidor, isca de financeiras, com juros abusivos; o controle por parte do
Estado é fundamental na coibição do abuso desses juros, onde o desespero na
obtenção do crédito não pode superar a letra da lei.
23
2.2 – A proteção do CDC contra o superendividamento
Outro artigo que merece ser mencionado neste trabalho, escrito por Marcus
Vinicius Ferrari 26:
“Tendo em vista a condição de hipossuficiência do consumidor
leigo e de boa-fé, qualquer que seja a causa do
superendividamento e a despeito de ainda inexistir um
tratamento jurídico específico sobre o assunto, é importante
destacar que o Código de Defesa do Consumidor pode ser
invocado para tutelar os interesses do devedor.”
Continua o palestrante: “Com efeito, diversos dispositivos
previstos no Código consumerista apontam para a
possibilidade da proteção jurídica dos superendividados, a
despeito de não existirem normas explícitas a ampará-los. Os
princípios da boa-fé objetiva, da vulnerabilidade do consumidor
e do equilíbrio das relações entre fornecedores e
consumidores, por exemplo, estão todos previstos no artigo 4°
da Lei 8.078/90 e podem ser utilizados para a defesa de
consumidores superendividados. É vontade do legislador que
todas as relações de consumo entre fornecedores e
consumidores sejam na compra e venda de um produto ou na
prestação de um serviço sejam pautadas pela harmonização
de interesses dos participantes, com a observância da
vulnerabilidade da parte consumidora e da boa-fé objetiva tanto
26 O consumo e o superendividamento. Disponível em http://www.nosrevista.com.br/2009/10/07. Acesso em 01.04.10
24
na celebração dos contratos quanto na eventual necessidade
de renegociação destes.”
Ferrari 27, por sua vez, explica que
“o artigo 6°, ao estabelecer os direitos básicos do consumidor,
prevê no inciso V, ainda que indiretamente, um dever de
cooperação do fornecedor quando fatos supervenientes vierem
a tornar as cláusulas contratuais estabelecidas excessivamente
onerosas. Não seria o superendividamento um fato
superveniente que impossibilita a manutenção das condições
contratuais previamente assumidas? - Argui ele. As
conseqüências do endividamento, tais como a inscrição nos
sistemas de proteção de crédito com a conseqüente
impossibilidade de consumir novos bens e serviços em uma
sociedade organizada para o consumo, não seriam fatos
suficientes a ensejar, pelo menos a boa vontade dos
fornecedores de crédito em negociar? – completa o autor.
Estes questionamentos, baseados em outras situações de
superendividamento serão abordadas nos tópicos mais adiante.
Diante dessa desigualdade e da falta de uma tutela efetiva para os
consumidores, que representam a maioria no mercado, organizou-se um
movimento social consumerista.28
Segundo definição de Fernanda Moreira Cezar 29 “O direito
do consumidor despontou, assim, como elemento de
transformação do direito tradicional, para suprir as
necessidades sociais geradas pela realidade econômica do
mercado massificado.No ordenamento jurídico brasileiro, desde
a Constituição da República de 1988, a defesa do consumidor
27 Idem, ibidem, p.2 28 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. O direito do consumidor. Revista dos Tribunais, ano 80, v. 670. São Paulo: RT, p. 49-61, 1991, p. 54. 29 O consumidor superendividado:por uma tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional – publicada na RDC 63/131
25
adquiriu status de direito e garantia fundamental, conforme seu
art. 5.º, XXXII, bem como foi insculpida entre os princípios
conformadores da ordem econômica nacional, nos termos do
seu art. 170, V ” 30.
Prossegue a professora: “Indo além, o legislador constitucional impôs
verdadeiro dever de legislar ao Congresso Nacional, determinando, no art. 48
do ADCT, a elaboração o Código de Defesa do Consumidor. Em 11.09.1990,
foi enfim editada a Lei 8.078, que “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá
outras providências”, tendo como fonte inspiradora a própria Lei Maior, a qual
expressamente optou por um sistema codificado e coerente de normas de
consumo”.
Convém remarcar, entretanto, que tal sistema não importa, em nenhuma
hipótese, na existência de um “microssistema fragmentado”, na pertinente lição
do professor Gustavo Tepedino 31. Em suas palavras, “a força do Código não
se reduz às suas próprias normas, localizando-se, sobretudo, na ordem
constitucional que o fundamenta e o assegura”.
O intuito protetivo da lei está, por certo, fundado no reconhecimento da
desigualdade entre consumidor e fornecedor 32 nas relações de consumo,
sendo correto afirmar que o Código de Defesa do Consumidor é expressão do
30 Sobre o tema, comenta PEDERIVA, João Henrique que “entre os princípios que devem ser observados pela ordem econômica, por força constitucional, encontra-se a defesa do consumidor. Segundo o art. 170 da Lei Maior, essa ordem visa a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. É, portanto, possível afirmar, com base nos termos constitucionais, que a defesa do consumidor respalda-se no ideal de justiça social e constitui meio hábil de atingir a existência digna e legítima, a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa.” (O direito do consumidor, o sistema financeiro e os cartões de crédito. Revista de Informação Legislativa, ano 39, n. 153. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, p. 201-221, 2002, p. 203). 31 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 215. 32 PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais, ano 80, v. 666. São Paulo: RT, p. 48-53, 1991, p. 49.
26
princípio da isonomia material, pois trata desigualmente os sujeitos da relação
de consumo na medida em que se diferenciam.33
Dentro da perspectiva do Estado Social, a intervenção legislativa veio para
atribuir “ao consumidor uma igualdade jurídica destinada a compensar a sua
desigualdade econômica frente ao fornecedor”.34 Assim sendo, a Lei 8.078/90
está em plena sintonia com os valores constitucionalmente tutelados. Isto se
evidencia por meio da intenção do legislador infraconstitucional de buscar a
integral proteção do consumidor, parte vulnerável da relação de consumo, bem
como a harmonização dos interesses dos seus integrantes, com base na boa-
fé objetiva e no equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores,
como dispõe seu art. 4.º.
Em excepcional artigo de Heloisa Carpena 35, a mesma traduz de forma
brilhante, a proteção jurídica frente a nossa Lei 8.078/90, relatando os artigos
pertinentes em defesa do consumidor e às informações claras a que todos tem
direito, nas fases pré-contratual e no momento de formação do contrato;
aborda o controle da publicidade, a execução do contrato e o controle do
conteúdo das cláusulas, a possibilidade de revisão contratual, bem como a lei
processual civil que também possui normas que podem ser invocadas pelo
superendividado, tendo como pano de fundo o princípio da boa-fé.
33 Assim é a lição de MARQUES, Claudia Lima: “Trata-se de uma necessária concretização do Princípio de Igualdade, de tratamento desigual aos desiguais, da procura de uma igualdade material e momentânea para um sujeito com direitos diferentes, sujeito vulnerável, mais fraco” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2002, p. 317).
34 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 358.
35 Uma lei para os consumidores endividados – publicado na RDC 61/76
27
“O fornecedor somente se desincumbe de forma satisfatória do
dever de informar quando os dados necessários à tomada de
decisão pelo consumidor são por ele cognoscíveis. Não basta,
portanto dar a conhecer disponibilizar, é preciso que o
consumidor efetivamente compreenda o que está sendo
informado. Este é o sentido da regra do art. 31 do CDC, que
impõe o dever de informar de forma clara, destacando-se ainda
o disposto no art. 46, segundo o qual são ineficazes as
cláusulas, ou mesmo todo o contrato, redigidas “de modo a
dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” Em outras
palavras, se a informação não é cognoscível, não obriga o
consumidor.36
No momento pré-contratual, a lei consumerista permite a
imposição de especiais deveres de informação ao fornecedor
de crédito, que a doutrina vem denominando de
aconselhamento 37, cuja inobservância acarreta a invalidade da
disposição, por aplicação do art. 46 do CDC. O Código contém
ainda norma específica para o “fornecimento de produtos e
36 “Consumidor. Método de cálculo de resgate de difícil compreensão inserido em título de capitalização. Cláusula que deveria constar em destaque para facilitar o seu entendimento. Afronta ao principio da boa-fé objetiva, transparência e da informação. Nulidade das regras do pacto. Subscrição de título de capitalização com desistência antes do prazo avençado. Cláusula contendo cálculo de resgate redigida sem destaque obrigando a empresa financeira ao reembolso apenas de metade dos valores vertidos. Violação ao princípio da boa-fé objetiva, da transparência e do direito subjetivo do consumidor à informação verdadeira. Exegese das regras contidas nos arts. 4.º, III, 46, § 4.º, 51, IV e 54, todos da Lei 8.078/90. Nulidade das referidas cláusulas corretamente reconhecida pela sentença, eis que abusiva. Pleito de desconto de valores precedentemente pagos que não se viu demonstrado nos autos, de molde que não há que se falar em ma-fé em razão de alegada omissão em tese praticada pelo autor, tampouco em julgamento ultra petita face a sua inserção no comando condenatório. Improvimento do recurso. Unânime.” TJRJ, 3.ª Câm. Cív., Ap.Cív 2002.001.29061, rel. Des. Murilo Andrade de Carvalho, j. 17.06.2003.
37 “A obrigação de conselho implica no dever de revelar ao consumidor os prováveis problemas da operação de crédito a curto e a longo prazos, prevenindo-o e sugerindo soluções possíveis.” Geraldo de Faria Martins da Costa. O direito do consumidor endividado e a técnica do prazo de reflexão. Revista de Direito do Consumidor n.43. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul.-set. 2002, p. 265.
28
serviços que envolva a outorga de crédito ou concessão de
financiamento”, criando outros deveres de informação para o
fornecedor (art. 52).
Ainda quanto ao aspecto da comunicação, entendida de acordo
com a noção de oferta, cabe destacar que o sistema de
controle da publicidade instituído pelo CDC também apresenta
soluções para a questão do contrato de crédito. A lei classifica
como enganosa a propaganda que “seja capaz de induzir em
erro o consumidor” a respeito das condições da contratação
(art. 37, § 1.º, CDC). Todavia, quanto à publicidade abusiva, a
lei referiu-se apenas àquela que explora a “deficiência de
julgamento da criança”, não contemplando de forma expressa a
situação dos idosos.
Também no momento da formação do contrato, quando este
for celebrado fora do estabelecimento do fornecedor, o art. 49
do CDC prevê o direito de arrependimento do consumidor,
submetendo o pacto a uma condição resolutiva38, dada a
especial vulnerabilidade do consumidor nessa situação.
Na fase da execução do contrato, a lei brasileira oferece a
possibilidade de controle do conteúdo das cláusulas, tornando
nulas de pleno direito aquelas que violem o princípio da boa-fé
objetiva, o qual preside a contratação para o consumo. Assim,
38 A jurisprudência vem definindo os contornos do instituto, confira-se: “Promessa de compra e venda. Arrependimento. Modificação superveniente das condições do negócio. Devolução das quantias já pagas. Código de Defesa do Consumidor. Direito de arrependimento. 1. O direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor se esgota decorridos sete dias da celebração do negócio, ainda que a entrega do bem dependa da conclusão do prédio. Extensão indevida a regra destinada a proteger o consumidor de uma prática comercial na qual ele não desfruta das melhores condições para decidir sobre a conveniência do negócio, circunstâncias essas que não persistem depois de prolongada execução do contrato. 2. Não reconhecida, na instância ordinária, a existência de circunstância que justifique a extinção do contrato por fato superveniente, e se manifestando a promitente vendedora, categoricamente, pela manutenção do contrato, não cabe ao juiz dar o contrato por extinto. 3. Improcedente a ação de extinção do contrato, inatendível a pretensão do promissário comprador de obter a devolução das quantias pagas. Inexistência de violação a lei. Divergência que não se reconhece, por versar o paradigma hipótese em que houve a rescisão do contrato por iniciativa da vendedora. Falta de prequestionamento sobre a questão da verba honorária. Recurso não conhecido. STJ, 4.ª T., REsp 57.789-SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; DJ 12.06.1995.
29
com esteio no art. 51 do CDC, o julgador pode declarar a
nulidade de uma cláusula que preveja a aplicação de juros
capitalizados, por exemplo, já se encontrando na jurisprudência
decisões neste sentido.39 Vale lembrar também que os arts. 52
e 53 da Lei Consumerista cuidaram de alguns aspectos desse
tipo de contrato, a saber: limitação da multa moratória, garantia
da liquidação antecipada do débito e, nas compra e venda de
imóveis, proibição da perda total das prestações pagas, em
caso de inadimplemento.
Finalmente, nas relações de consumo, haverá a possibilidade
de revisão contratual, nos termos do art. 6.º, V, do CDC;
enquanto nas dívidas civis, o superendividado conta com a
revisão por excessiva onerosidade, prevista no art. 478 do
CC/2002. Nas duas hipóteses, embora sejam diversos os
pressupostos, o devedor pode obter a modificação de cláusulas
contratuais de modo a restaurar o equilíbrio entre deveres e
obrigações.
Fora do âmbito da proteção do consumidor, a lei processual
civil também possui normas que podem ser invocadas pelo
superendividado, no capítulo da execução por quantia certa
contra devedor insolvente (arts. 748 a 786-A do CPC). A lei
processual considera haver insolvência “toda vez que as
dívidas excederem à importância de bens do devedor” e institui
um procedimento de execução coletiva no qual são
arrecadados os bens, é antecipado o vencimento das dívidas e
39 Vale citar, por todos, aresto do Superior Tribunal de Justiça: Embargos à execução. Contrato de mútuo bancário. Juros remuneratórios. Abusividade cabalmente demonstrada por perícia. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Recurso especial provido. Sentença restabelecida. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos de financiamento bancários firmados entre as instituições financeiras e seus clientes, sendo possível a declaração de nulidade de cláusula manifestamente abusiva. Cabalmente comprovada por perícia, nas instâncias ordinárias, que a estipulação da taxa de juros remuneratórios foi aproximadamente 150% maior que a taxa média praticada no mercado, nula é a cláusula do contrato. Recurso especial conhecido e provido. 2.ª Seção, REsp 327.727-SP, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 08.03.2004.
30
estabelecido o concurso universal dos credores. Tais regras,
contudo, não tratam do aspecto preventivo do
superendividamento e se destinam apenas à satisfação dos
interesses dos credores. Como subsídio para o tratamento do
superendividado, vale registrar que o Código de Processo Civil
prevê, em seu art. 778, a extinção de todas as obrigações do
devedor após o prazo de 5 anos contado da data do
encerramento do processo de insolvência.40
Mais amplamente, na disciplina do contrato de consumo,
assume especial destaque o princípio da boa-fé objetiva, que
impõe deveres de cooperação, veracidade e lealdade aos
contratantes, e cuja aplicação vem gerando expressiva
jurisprudência em todo o Brasil, reconhecendo os Tribunais a
prevalência do interesse do consumidor no tocante a questões
como o adimplemento substancial, o direito de rescisão, a
renegociação das dívidas e outras.41
40 Sobre a efetividade do dispositivo da lei processual civil, adverte Alexandre Câmara : “Estes dois artigos [777 e 778] do CPC regulam - nas suas linhas gerais - o sistema de extinção das obrigações do devedor insolvente. Assim é que, instaurado o concurso universal de credores (o que é, como visto, efeito do provimento declaratório da insolvência), interrompem-se todos os prazos prescricionais dos créditos de que o executado é devedor. Transitada em julgado a sentença que extingue a obrigação, porém, tais prazos voltam a correr, agora unificados em cinco anos. (...) A cada vez que se reabre a execução a execução, repita-se, há interrupção do prazo de cinco anos a que se refere o art. 777 do CPC. Decorridos cinco anos sem que tenha havido reabertura do processo, aí sim, deve-se considerar extintas as obrigações.” (Lições de direito processual civil. v. 2, 9.ed. Rio de Janeiro : Lumen Iuris, 2004, p. 381-382.
41 Sobre este ponto, Claudia Lima Marques faz uma resenha das decisões do STJ referidas à boa-fé objetiva e concessão de crédito: “Há, pois, na boa-fé uma função de correção e de adaptação em caso de mudança das circunstâncias (Korrekturfunktion), a permitir que o julgador adapte e modifique o conteúdo dos contratos para que o vínculo permaneça (manutenção do vínculo) apesar da quebra da base objetiva do negócio, por exemplo, com a desvalorização do dólar em contrato de leasing, ou imponha deveres de negociação face à quebra subjetiva da base do negócio, por exemplo, quando o consumidor perde seu emprego.” (Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: Claudia Lima Marques e Rosângela Lunardelli Cavallazzi (coords.). Direitos do consumidor endividado - superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; Revista do Consumidor, n. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul.-set. 2005, p. 281.
31
Este é, em breve síntese, o panorama do instrumental que, de
lege lata, está ao alcance do devedor para enfrentar a situação
de superendividamento.”
2.3 Tratamento das situações de superendividamento
No Estado do Rio Grande do Sul 42, duas juízas de Direito, Clarissa Costa
de Lima e Káren Rick Danilevicz Bertoncello, das varas de Sapucaia do Sul e
Sapiranga, respectivamente, propuseram um projeto, através do Conselho
Nacional de Justiça “Conciliar é Legal”, cujo objetivo era suprir
momentaneamente a falta de previsão legal para as situações de
superendividamento dos consumidores com a finalidade de inserção social dos
indivíduos e dos núcleos familiares no mercado que se encontram
impossibilitados ou com dificuldades de adimplir suas dívidas.
Baseado nos estudos realizados pela profa. Cláudia Lima Marques 43, este
projeto aborda as modalidades de conciliação processual e paraprocessual,
cujas dívidas abrangidas são as vencidas ou a vencer, créditos consignados,
contratos de crédito ao consumo em geral, contratos de prestação de serviços
(essenciais ou não), isto com a ausência de limitação do valor da dívida,
excluindo-se as dívidas alimentícias, fiscais, créditos habitacionais, decorrentes
de indenização por ilícitos civis ou penais.
Os pressupostos do superendividado era que fosse pessoa física de boa-fé,
que não tivesse contraído crédito para o exercício de suas atividades
profissionais ou com qualquer renda familiar.
O procedimento era o de preenchimento de um formulário padrão com as
informações prestadas pelo endividado, verificando a veracidade dos dados
fornecidos e isento das custas, obviamente.
42 http://www.tj.rs.gov.br – acesso em 01.04.2010. 43 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de
32
Feito isto, é enviada uma carta-convite padrão a todos os devedores,
preferencialmente via eletrônica para a audiência de renegociação com os
credores arrolados pelo superendividado.
Da audiência de renegociação com o fim de preservar a agilidade do projeto
e a garantia ao mínimo existencial ao consumidor, resultariam o acordo exitoso
da conciliação paraprocessual e processual, a homologação pelo juiz de direito,
constituindo título executivo judicial; no acordo inexitoso na conciliação
paraprocessual, o superendividado é orientado a procurar a satisfação do seu
direito pelas vias ordinárias, na justiça comum ou JEC; já no acordo inexitoso
da conciliação processual, o processo será devolvido à vara de origem para o
regular prosseguimento.
Os efeitos da renegociação a serem consignados no termo do acordo são:
1- As dívidas vencerão antecipadamente caso o superendividado:
a. Preste dolosamente falsas declarações ou produza documentos
inexatos com o objetivo de utilizar-se dos benefícios do procedimento
de tratamento da situação de superendividamento;
b. Dissimule ou desvie a totalidade ou parte de seus bens com o
objetivo de fraudar credores ou a execução;
c. Sem o acordo de seus credores, agrave sua situação de
endividamento mediante a obtenção de novos empréstimos ou
pratique atos de disposição de seu patrimônio durante o curso de
procedimento de tratamento da situação de superendividamento.
2- Incidência de cláusula penal;
100 casos no Rio Grande do Sul. In: Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.256
33
3- Acordo conjunto, identificando valor de cada dívida e seu respectivo
credor.
Diante deste projeto, percebe-se, na ausência de uma lei que trate do
superendividado, uma alternativa viável dentro de nosso ordenamento jurídico
para combater essa anomalia que atinge nossa sociedade.
Ainda na esteira de ideias do pensamento jurídico sulista de nosso país, foi
criada pela Justiça Gaúcha 44, uma cartilha para o consumidor evitar a situação
ou quitar os débitos sem prejudicar a subsistência básica, para resgatar a
saúde financeira do consumidor.
1- Em primeiro lugar, nunca gaste mais do que você ganha, o que indica que
você terá problemas futuros;
2- O cenário econômico indica para uma grande oferta de crédito fácil para os
consumidores, com baixas taxas de juros e facilidades de parcelamento.
No entanto, não se iluda com esta oferta, veja se você realmente necessita
do empréstimo e se terá condições de pagá-lo no futuro;
3- Antes de adquirir qualquer dívida, converse com sua família. Isso porque
gastos imprevistos podem surgir, o que complicará sua situação na hora de
pagar a dívida;
4- Quando assumir uma dívida, saiba todos os procedimentos para
pagamento e exija-os por escrito. Leia atentamente o contrato;
5- Exija informações sobre as taxas de juros anuais e mensais e as compare
entre instituições, para reconhecer a mais vantajosa de acordo com seu
orçamento;
6- Exija o prévio cálculo do valor da dívida e veja se ela se encaixa em seu
orçamento, ou seja, se é compatível com a renda;
7- Compare as taxas de juros dos concorrentes;
44 http:// noticias.uol.com.br/economia/ultnot/infomoney-acesso em 01.04.2010.
34
8- Não assuma dívidas para outras pessoas, as quais podem não arcar com o
compromisso;
9- Nunca assuma dívidas nem forneça seus dados pela internet, meio pelo
qual você poderá ser vítima de fraudes;
10- Sempre reserve parte de seu salário para as contas essenciais e nunca o
comprometa para pagamento de dívidas.
Frente a estes “dez mandamentos”, que servirão de alerta à população,
será abordado no próximo capítulo a visão no direito comparado.
2.4 - Conclusão
A concessão e oferta do crédito estão associadas diretamente ao
crescimento do lucro dos bancos.
Os consumidores, cada vez mais atraídos pela mídia fácil da oferta do
crédito, criam a ilusão de que é necessário um empréstimo para resolver o
problema de suas ansiedades compulsivas e terminam por gerar outro que é o
(super) envidividamento, seja através da utilização do cartão de crédito e
cheque especial – maiores vilões, comprometendo grande parte de seu salário
com dívidas, impedindo a sua própria subsistência.
Como ainda não há uma legislação especial que trate da matéria do
superendividamento, o CDC é aplicável para sanar os problemas desta
epidemia da sociedade frente à desigualdade social entre fornecedor e
consumidor.
Na esteira de exemplo a ser seguido, o estado do Rio Grande do Sul larga
na frente em matéria de se antecipar ao problema, propondo projetos para este
nicho da população através de programas em seus tribunais, bem como
cartilhas educativas aos consumidores.
35
3 – O direito comparado e o superendividamento
Em nosso ordenamento jurídico infelizmente ainda não temos uma
legislação tratando especificamente sobre o superendividamento, apesar de
nosso Código de Defesa de Consumidor ser um dos mais modernos em se
tratando de matéria pertinente à defesa do consumidor.
Existe um projeto de lei elaborado pela profa. Cláudia Lima Marques, que
será objeto de apreciação no próximo tópico, retratando o quadro do
superendividado e a real necessidade de se ter uma lei específica versando
sobre o assunto.
Enquanto esta lei não surge em nosso sistema jurídico para proteção dessa
camada da população vulnerável, o que não está longe de acontecer, deve-se
aplicar o CDC como forma de defesa ao consumidor conforme mostrado
anteriormente, não é suficiente para tratar de forma adequada as situações em
que se constata que o consumidor já está superendividado.
Desta forma, segue abaixo estudo da visão em outros países frente a este
problema que não é privilégio em nosso país, conforme estudo de Heloisa
Carpena45 transcrito abaixo:
“O superendividamento como fenômeno social foi tratado
pioneiramente pela Dinamarca, primeiro país europeu a instituir
uma legislação, em 1984, seguida da França em 1989, com a
Lei Neiertz. Além desses países, Alemanha, Bélgica, Holanda,
Luxemburgo, Áustria, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá
(Quebec) e Estados Unidos também possuem leis sobre o
36
tema, apresentando diferentes soluções para o seu tratamento.
Dois modelos, porém, se destacam: o francês e o americano,
que podem ser definidos como o da fresh start e o da
reeducação.46
As soluções apresentadas no direito comparado em regra se
alternam entre um procedimento de liquidação com perdão de
dívidas e sem penhora do rendimento futuro, ou um plano de
pagamento prolongado que alcance todos ou parte dos débitos.
Na primeira hipótese, apurado o ativo e liquidado o passivo, o
devedor pode reiniciar a sua vida sem os encargos do
passado; no segundo caso, busca-se uma fórmula para saldar
integralmente as dívidas, persistindo a responsabilidade pelos
compromissos assumidos.
Cada um desses modelos corresponde a um matiz ideológico
próprio. A solução do fresh start do direito norte americano
condiz com o individualismo que caracteriza a sociedade
daquele país e atende ao objetivo de preservar o consumidor
como agente econômico fundamental para o funcionamento do
mercado. A principal crítica que se faz a este modelo,
obviamente, é a probabilidade de causar prejuízos aos
credores, pois faculta a concessão do perdão a devedores que
poderiam pagar uma parte das suas dívidas. A
responsabilização do devedor cessa com a venda de seus
bens, concedendo a lei um novo começo em 4 meses (fresh
start), porém impedindo-o de recorrer ao mesmo sistema por
um período de 6 anos.
45 Uma lei para os consumidores endividados – publicado na RDC 61/76
46 Maria Manuel Leitão Marques identifica essas duas alternativas, afirmando que “na prática, contudo, os modelos tendem cada vez mais a misturar-se.” O endividamento dos consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p. 304.
37
O modelo europeu continental, por outro lado, espelha a ideia
de solidariedade, no sentido de co-responsabilidade de todos
os agentes sociais na proliferação do crédito.47 Contra este,
argumenta-se que o plano de pagamento freqüentemente se
torna inexeqüível, vez que grande parte dos superendividados
não possui recursos suficientes ao seu cumprimento,
comprometendo a eficácia desta solução.
Embora reportados a esses dois modelos, cada um dos
diferentes sistemas apresenta peculiaridades, tratando de
forma distinta aspectos comuns, como o prazo máximo do
plano de pagamento, a definição do superendividado, a
exigência de boa-fé, dentre outros. Assim, por exemplo, na
França, o consumidor superendividado será sempre aquele
que possua dívidas não profissionais, vencidas e vincendas,
ficando excluído o superendividado ativo, ou seja, aquele que
agiu com a intenção deliberada de não pagar.48 Já a lei belga
de 1999, que se destina também a profissionais liberais e
agricultores, não traz um tratamento diferenciado dos créditos e
dos credores, admitindo sejam as dívidas de origem
profissional ou não, bastando apenas que o sobreendividado
não tenha provocado a sua situação de insolvência.49 Na
Finlândia, embora o sistema tenha por destinatários os
particulares onerados por dívidas não profissionais, é possível
o recurso a esse procedimento por dívidas contraídas no
exercício de uma atividade econômica, desde que esta
atividade tenha cessado.50 Quanto à proteção do mínimo
existencial também há diversas soluções: nos Estados Unidos,
47 Assim leciona Maria Manuel Marques: “... a importância atribuída à comunidade, mais do que ao indivíduo, permite também justificar o princípio de que não é justo que a sociedade encoraje o crédito e depois se desresponsabilize das conseqüências. Tudo isto compõe um modelo baseado na ideia de que o sobreendividado se excedeu, passou a linha de um comportamento social 'normal', mas em parte foi também vítima do sistema.” Op. cit., p. 217. 48 A lei especial e os dispositivos do Código do Consumidor francês estão disponíveis em www.guidedusurendettement.org , acessado em 03.06.2006. 49 Disponível em www.observatoire-credit.be, acessado em 28.03.2006. 50 Maria Manuel Leitão Marques et al. Op. cit., p. 266.
38
o Bankruptcy Code, de 1978 (Cap. 7) prevê que o devedor
reserve todo o disposable income para o pagamento das
dívidas, mas quem determina esse excedente é o próprio
devedor, fazendo uma estimativa das despesas mínimas de
sobrevivência; enquanto no sistema francês, é o juiz quem
determina o valor do reste à vivre.51 Enfim, são muitas as
alternativas que se apresentam, cabendo ao legislador
brasileiro formular as questões pertinentes, para as quais deve
buscar respostas adequadas a nossa realidade”.
3.1 Conclusão
Diante do relatado e na visão de Fernanda Moreira Cezar 52:
“O que se observa na legislação francesa é que o consumidor
superendividado recebe um tratamento normativo, onde se
busca formas de solução negociadas do endividamento como
um todo, e não apenas de maneira pontual, em relação a cada
credor.53
A aplicação de qualquer das medidas legais de tratamento da
situação de superendividamento exige o respeito ao mínimo
existencial. Devem-se preservar os meios essenciais de
sobrevivência do consumidor, assegurando-lhe recursos ao
menos equivalentes a uma renda mínima de reinserção
(revenu minimum d'insertion - RMI).54 Garante-se, neste
sentido, o mínimo indispensável à sua existência (reste à
51 Livro III do Code de la Consommation, sob o Título III, denominado Traitement des situations de surendettement, disponível em www.lexinter.net/Legislation/codeconsommation.htm, acessado em 13.06.2006. 52 O consumidor superendividado:por uma tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional – publicada na RDC 63/131 – pág.35 53 Exemplo de solução pontual é o art. 6.º, V, do CDC, que prevê a possibilidade revisão judicial de cada contrato individualmente, o que impossibilita a análise global do endividamento do consumidor.
39
vivre), considerando sua renda e o valor dos débitos vencidos e
a vencer”.
Feita esta análise com o direito comparado, será exposto então no próximo
capítulo, uma sugestão de elaboração de lei para tratamento do
superendividamento.
4 – Uma lei para o superendividado
Em reportagem veiculada no jornal O Globo 55, a ilustre profa. Cláudia Lima
Marques, uma das autoras do anteprojeto de lei, no X Congresso Brasileiro de
Direito do Consumidor, propôs uma lei modelo para América Latina para tratar
do superendividamento do consumidor, cujo problema foi identificado em
meados de 2005, com a inclusão das classes B, C e D.
Este projeto, inicialmente com 53 artigos, para tratar esta síndrome
econômico-social, visa complementar nosso CDC, com objetivos bem claros,
como: a garantia ao mínimo existencial, reforçar a obrigação dos fornecedores
de terem boa-fé; a necessidade de entrega de cópia do contrato; cuidados na
técnica de promoção do crédito; tratamento dos dados do contratante e a
manutenção do nome limpo do superendividado.
Ainda neste veículo de comunicação, continua, com um modelo adotado no
estado do Paraná, o superendividamento está na pauta do Ministério da
Justiça, onde promoveu oficina em Brasília com representantes dos Procons,
Defensoria Pública e Ministério Público das cinco regiões do país com o
levantamento de quatro pontos:
54 Desde 1999, o RMI passou a ser igual a 2,502,30 F. (COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção..., cit., p. 124). 55 O Globo – “Uma lei para os superendividados” – economia – 16.05.2010
40
a. Diagnosticar as demandas recebidas para cada entidade;
b. Recomendações de fiscalização com os aspectos que mais provocam o
superendividamento;
c. Diretrizes para educação no consumo ao crédito;
d. Atentar para proteção dos consumidores hipervulneráveis – os idosos;
e. Maior responsabilidade na concessão do crédito – mala direta,
telemarketing agressivo – publicidade na televisão;
f. Maior qualidade de informação ao consumidor
Nesta entrevista, o professor da faculdade de Direito de Coimbra – Diogo
Leite Campos, relatando o “direito bancário sobre a ótica do consumidor”,
esclarece que na Europa exige-se que os bancos sejam transparentes em
relação a riscos e avaliem o perfil do consumidor onde há um fundo de
indenização. Explica também que a legislação brasileira está entre as mais
avançadas e que em muitos países ainda não há uma legislação específica
sobre o tema, sendo que no Brasil ainda existe a Defensoria Pública.
Em outra mídia televisiva veiculada no Fantástico 56, mostra um advogado
no Rio Grande do Sul, tentando renegociar uma dívida com o banco, pois o
mesmo não tinha como arcar com as parcelas, não consegue empréstimo em
sua localidade em função da ação que propôs contra seu banco.
Enfim, diante deste quadro a que está submetido o consumidor, não restam
dúvidas quanto à necessidade de uma complementação do CDC ou mesmo de
uma lei que está na iminência de ser aprovada.
O fornecedor, em sentido amplo, não pode mais ignorar o Código de Defesa
do Consumidor, violando inúmeras regras, que ante o consumidor leigo, fica
56 Programa de entretenimento exibido na Rede Globo, canal 4, em 30.05.2010.
41
como uma marionete em suas mãos, preso às cordas da hipossuficiência,
sendo direcionado para o abismo da ignorância, onde nada mais resta fazer.
5 – Conclusão
Findo este trabalho sobre a sistemática do superendividamento, é possível
concluir que no Brasil é um fato social grave, atual e abrangente, para o qual
não há resposta adequada do ordenamento.
Em artigo publicado por Fernanda Moreira Cezar, a mesma explana com
maestria ao mesmo tempo em que, com sábias palavras, conclui o que vem a
ser este fenômeno a que estamos submetidos:
“O princípio da dignidade da pessoa humana e seus corolários,
o princípio da solidariedade social e da isonomia, estão no
ápice da ordem constitucional, incidindo diretamente nas
relações privadas. No âmbito das relações de consumo, o
princípio da boa-fé ganha força, enquanto standard de
comportamento ético e solidário, por sua expressa previsão no
Código de Defesa do Consumidor.
A imposição de uma atuação solidária dos fornecedores recai,
por certo, sobre aqueles que oferecem e concedem crédito ao
consumo. Pois o crédito, conquanto permita o desenvolvimento
da vida econômica do indivíduo, se concedido de forma
irresponsável, pode levar ao endividamento desmedido e
resultar na exclusão social e econômica do consumidor, por se
encontrar impossibilitado de adimplir todos os seus débitos de
consumo.
42
Dessa forma, os deveres anexos de informação, cooperação e
lealdade, advindos da boa-fé objetiva, servem como
mecanismos de controle da abusividade na oferta e
contratação de crédito, que não pode ser irrefletida e temerária.
A transparência das informações e a preocupação do
fornecedor em avaliar as condições financeiras do consumidor
que contrata o crédito são imperativos para uma prevenção
efetiva do sobreendividamento dos consumidores.
O endividamento excessivo é um verdadeiro flagelo social que
põe em risco a própria sobrevivência do consumidor e de sua
família, sendo evidente sua incompatibilidade com os ideais de
solidariedade e de justiça social e com o respeito à dignidade
humana. Mister que se envide todo o esforço necessário à
prevenção e tratamento do superendividamento do consumidor
pessoa física e de boa-fé, impedindo-o de chegar a um estado
crítico de incapacidade econômico-financeira.
No entanto, o direito brasileiro, ainda carece de uma lei que
cuide detalhadamente do superendividamento, impondo o
dever de aconselhamento, concedendo ao consumidor um
prazo de reflexão, e, principalmente, determinando a criação de
procedimentos extrajudiciais e judiciais, nos moldes de
legislações que, como a francesa, que permitem ao
consumidor se reequilibrar financeiramente.
Os valores da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social, aliadas à vulnerabilidade do consumidor na relação de
consumo, conduzem à conclusão de que o
superendividamento, flagelo social da sociedade de consumo,
deve ser prevenido e combatido. Merecendo, de lege ferenda,
uma tutela jurídica mais adequada e específica que cuide de
sua prevenção, bem como do tratamento das situações de
superendividamento, para evitar a “morte do homo
economicus” e sua exclusão social”
43
6 – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
-BELMONTE, Cláudio. Proteção contratual do consumidor – Conservação e
redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal - São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2002. – (Biblioteca de direito do consumidor; v.21)
-BENJAMIN, Antônio Herman V. Manual de direito do consumidor – 2.ed. rev.,
atual e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009.
-CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito bancário e
financeiro – 2.ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 2006. – (Biblioteca de direito do consumidor; v.15)
-CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor – São Paulo:
Atlas, 2008.
-MARQUES, Cláudia Lima. Direitos do consumidor endividado:
superendividamento e crédito – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2006. – (Biblioteca de direito do consumidor; v.29)
REVISTAS CONSULTADAS:
- Revista de direito do consumidor - O consumidor superendividado:por uma
tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional – publicada na RDC 63/131 –
pág.35
- Revista de direito do consumidor – Uma lei para os consumidores
endividados- publicado na RDC 61/76
- Revista de direito do consumidor – O abuso de direito na concessão de
crédito: o risco do empreendimento financeiro na era do hiperconsumo –
publicado na RDC 71/34
44
SITES CONSULTADOS:
-http://gilbertomelo.com.br/jurisprudencias-e-noticias/25/1552-judiciario-pode-
intervir-a-favor-de-superendividados. - acesso em 01/04/2010
http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/infomoney/2006/12/ult4040u1539.jht
m - acesso em 01/04/2010.
-www.nosrevista.com.br/2009/10/07/o-consumo-e-o-superendividamento -
acesso em 01/04/2010.
-www.parana-online.com.br/colunistas/235/38836/?postagem=consumidores
endividados – acesso em 01/04/2010.
-www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=369 – acesso em 01/04/2010.
-www.serasaexperian.com.br/serasaexperian/publicacoes/serasalegal/2009/90
- acesso em 01/04/2010
-www.tj.rs.gov.br – acesso em 01/04/2010.
JORNAL CONSULTADO:
- O GLOBO – Economia – Defesa do consumidor – 16/05/2010.
MÍDIA TELEVISIVA:
- FANTÁSTICO – Rede Globo – Canal 4 – programa exibido em 30/05/2010.
45
6.1 - BIBLIOGRAFIA CITADA:
- AURÉLIO, dicionário eletrônico, séc.XXI, versão 3.0, Nov. 1999
- BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001.
- CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v.2, 9.ed. Rio
de janeiro: Lumen Juris, 2004, p.381-382.
- MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o
novo regime das relações contratuais, 4.ed. São Paulo: Revista do Tribunais,
2004, p.690
- MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do
superendividamento de pessoa física em contratos de crédito ao consumo:
proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do
Sul. In: Direito do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São
Paulo: RT, 2006, p.256
- MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores.
Lisboa: Almedina, 2000, p.304.
- PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do código de defesa do
consumidor. Revista dos Tribunais, ano 80, v.666. São Paulo. RT.p.48-53,
1991, p.49.
- TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3.ed. rev. e atual.Rio de janeiro.
Renovar. 2004, p.215.
46
REVISTAS CITADAS:
- Revista de direito do consumidor. O direito do consumidor endividado e a
técnica do prazo de reflexão. RDC, n.43, São Paulo: RT, jul-set. 2008, p.265
- Revista de direito do consumidor. Impressões atuais sobre o
superendividamento: sobre a 7ª. Conferência Internacional de Serviços
Financeiros e reflexões para a situação brasileira. RDC, n.65: Ed. RT, jan-
mar.2008, p.147.
SITES CITADOS:
- www.cpgp.ufpa.br/lape/portug/contato.htm - acesso em 01.04.2010.
- www.guidedusurendettement.org. – acessado em 03.06.2006
- www.lexinter.net/legislation/codeconsommation.htm - acesso em 13.06.06
JORNAL CITADO:
- Jornal do Brasil – Oferta estimula consumo – 26.01.2006.
47
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO 2
DEDICATÓRIA 3
RESUMO 4
METODOLOGIA 5
SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I 8
FATORES E CAUSAS QUE PROPICIAM O SUPERENDIVIDAMENTO
1.1 – Definição 8
1.2 – A Oferta e a demanda por crédito 9
1.3 – A vulnerabilidade do consumidor e a boa-fé nos contratos 12
1.3.1 – A vulnerabilidade do consumidor 12
1.3.2 – A boa-fé nos contratos 15
1.4 – Conclusão 18
CAPÍTULO II
A CONCESSÃO DO CRÉDITO, SUA PROTEÇÃO NO CDC E O
TRATAMENTO DAS SITUAÇÕES DE SUPERENDIVIDAMENTO DO
CONSUMIDOR 19
2.1 – A concessão do crédito 19
2.2 – A proteção do CDC contra o superendividamento 23
2.3 – Tratamento das situações de superendividamento 31
2.4 – Conclusão 34
48
CAPÍTULO III
O DIREITO COMPARADO E O SUPERENDIVIDAMENTO 35
3.1 – Conclusão 38
CAPÍTULO IV
UMA LEI PARA O SUPERENDIVIDADO 39
CAPÍTULO V
CONCLUSÃO 41
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 43
BIBLIOGRAFIA CITADA 45
ÍNDICE 47
FOLHA DE AVALIAÇÃO 49