monografia superendividamento

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Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Graduação Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção de grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito do Consumidor.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    FACULDADE DE DIREITO

    CURSO DE GRADUAO EM DIREITO

    MARLIA MAIA CASTELO BRANCO FERREIRA

    MECANISMOS DE PREVENO E DE TRATAMENTO DO

    SUPERENDIVIDAMENTO

    FORTALEZA

    2015

  • MARLIA MAIA CASTELO BRANCO FERREIRA

    MECANISMOS DE PREVENO E DE TRATAMENTO DO

    SUPERENDIVIDAMENTO

    Monografia apresentada Coordenao do

    Curso de Graduao Direito da Universidade

    Federal do Cear, como requisito parcial para

    a obteno de grau de Bacharel em Direito.

    rea de concentrao: Direito do Consumidor.

    Orientador: Prof. Msc. William Paiva Marques

    Jnior.

    FORTALEZA

    2015

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

    Universidade Federal do Cear

    Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

    F383m Ferreira, Marlia Maia Castelo Branco.

    Mecanismos de preveno e de tratamento do superendividamento / Marlia Maia Castelo

    Branco Ferreira. 2015. 64 f. ; 30 cm.

    Monografia (graduao) Universidade Federal do Cear, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2015.

    rea de Concentrao: Direito do Consumidor.

    Orientao: Prof. Me. William Paiva Marques Jnior.

    1. Dvidas - Brasil. 2. Defesa do consumidor - Brasil. 3. Consumidores - Brasil. I. Marques

    Jnior, William Paiva (orient.). II. Universidade Federal do Cear Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDD 347.731

  • MARLIA MAIA CASTELO BRANCO FERREIRA

    MECANISMOS DE PREVENO E DE TRATAMENTO DO

    SUPERENDIVIDAMENTO

    Monografia apresentada Coordenao do

    Curso de Graduao Direito da Universidade

    Federal do Cear, como requisito parcial para

    a obteno de grau de Bacharel em Direito.

    rea de concentrao: Direito do Consumidor.

    Aprovada em:

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________

    Prof. Msc. William Paiva Marques Jnior (Orientador)

    Universidade Federal do Cear (UFC)

    ___________________________________________

    Prof. Msc. Camilla Arajo Colares de Freitas

    Universidade Federal do Cear (UFC)

    ___________________________________________

    Mestrando Fernando Demetrio de Sousa Pontes

    Universidade Federal do Cear (UFC)

  • A minha famlia, pelo amor, apoio e

    compreenso incondicionais.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela vida e pelo nimo renovado a cada dia. Aos meus pais, fontes

    inesgotveis de amor e de doao, por me ensinarem que a melhor herana que eu poderia ter

    seria o conhecimento. Aos meus avs-pais, por todo o empenho em me fazerem feliz e por me

    ensinarem que as dificuldades nunca sero uma desculpa para o fracasso. Ao meu irmo, por

    ter sido meu companheiro na vida. Aos meus tios e aos meus primos, por serem apoios

    constantes. Ao meu amor, pela dedicao, pela pacincia e pelo companheirismo dirios. Aos

    meus colegas companheiros de curso, pela cumplicidade e pelas experincias compartilhadas.

    Aos profissionais com quem tive a oportunidade de trabalhar nos estgios do Banco do

    Nordeste e do DECON, pelos valiosos ensinamentos jurdicos e de vida. Aos mestres da

    Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear, pelo aprendizado. Ao professor e

    orientador William Paiva Marques Jnior, pela disponibilidade e empenho na orientao deste

    trabalho. Meus agradecimentos sinceros a todos que contriburam de alguma forma para

    minha formao acadmica.

  • Entre o forte e o fraco a liberdade que

    escraviza e a lei que liberta. (Lacordaire)

  • RESUMO

    Investiga-se o superendividamento como um fenmeno jurdico e social, presente na

    sociedade brasileira, com efeitos negativos para a populao e para a economia do pas. O

    estudo inicia com a anlise da conceituao e da classificao do fenmeno e busca,

    posteriormente, investigar detalhadamente as suas causas e as suas consequncias. Em

    seguida, so analisados meios de preveno e de tratamento ao superendividamento, com

    destaque para a pesquisa emprica, coordenada por Cludia Lima Marques, no Estado do Rio

    Grande do Sul, visando demonstrar a importncia de uma regulamentao adequada da

    matria e dos meios mais eficazes para tanto. Ao final, realiza-se uma anlise de como a

    situao vem sendo tratada no pas, diante da inexistncia de legislao especfica, atravs das

    normas vigentes, dos julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justia sobre o tema e do

    projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, cujo objetivo a regulamentao deste

    fenmeno social.

    Palavras-chave: Consumidor. Crdito. Superendividamento. Preveno e tratamento do

    superendividamento. Tutela.

  • ABSTRACT

    The overindebtedness was investigated as a legal and social phenomenon in the brazilian

    society, with negative effects on the population and on the economy. The study started with

    the concept and the classification of overindebtedness and its causes and consequences. The

    ways of prevention and treatment to overindebtedness were analyzed, with emphasis on

    empirical research, coordinated by Claudia Lima Marques, at State of Rio Grande do Sul,

    aiming to demonstrate the importance of appropriate regulation. At the end, the situation of

    bankruptcy in the country was investigated, given the absence of specific legislation, through

    the current regulations, the jurisprudence of the Superior Court of Justice and

    overindebtedness bill under consultation at National Congress.

    Keywords: Consumer. Credit. Overindebtness. Prevention and treatment of overindebtness.

    Custody.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................. 11

    2 CONTEXTUALIZAO DO SUPERENDIVIDAMENTO: CONCEITOS,

    CAUSAS E CONSEQUNCIAS ................................................................................. 13

    2.1 Delimitao conceitual do superendividamento ............................................................. 15

    2.1.1 Consumidor pessoa natural ............................................................................................. 18

    2.1.2 Boa-f nos contratos de crdito ....................................................................................... 18

    2.1.3 Natureza das dvidas ....................................................................................................... 20

    2.1.4 Impossibilidade de pagar dvidas atuais e futuras ........................................................... 20

    2.2 Classificao do sobre-endividamento ............................................................................ 20

    2.3 Origens do superendividamento ...................................................................................... 22

    2.4 Consequncias prticas ................................................................................................... 25

    3 PROPOSIES SOBRE A PREVENO E O TRATAMENTO DO

    SUPERENDIVIDAMENTO DAS PESSOAS NATURAIS EM CONTRATOS

    DE CRDITO ............................................................................................................... 28

    3.1 Necessidade de normatizao na preveno do superendividamento e seus benefcios . 29

    3.2 A regulao para tratar o superendividamento: modelo americano versus modelo

    francs ............................................................................................................................. 33

    3.2.1 Modelo de Falncia Individual nos Estados Unidos ....................................................... 34

    3.2.2 Modelo de Falncia Individual na Frana ....................................................................... 36

    3.2.3 Anlise comparativa dos dois modelos ........................................................................... 38

    3.3 Um projeto de tratamento das situaes de superendividamento do consumidor

    brasileiro e o estudo de casos .......................................................................................... 40

    4 O TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDADO NO BRASIL ................................. 46

    4.1 A ausncia de legislao especfica e a proteo perifrica do consumidor

    sobreendividado .............................................................................................................. 46

    4.2 Projeto de Lei n 283/2012 .............................................................................................. 50

    4.3 Anlise jurisprudencial.................................................................................................... 55

    5 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 60

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 62

  • 11

    1 INTRODUO

    importante notar que a facilidade de acesso ao crdito, a falta de orientao da

    populao, a avidez pelo consumo, a publicidade agressiva e as prticas abusivas dos

    fornecedores so fatores que tm criado um ambiente favorvel ao endividamento excessivo e

    irrefletido, levando cada vez mais brasileiros condio de inadimplentes.

    O superendividamento, alm de ser um grave problema social, que condena um

    nmero de pessoas cada vez maior ao isolamento e marginalizao, tambm nocivo

    economia, por retirar o indivduo do mercado de consumo. Trata-se, pois, de um fenmeno

    complexo que exige respostas justas e efetivas por parte da sociedade e do Estado,

    especialmente por meio da instituio de aes de preveno e tratamento.

    Contudo, o ordenamento jurdico ptrio carece de maiores protees ao

    consumidor de crdito. Deste modo, o presente trabalho tem o objetivo de demonstrar que a

    legislao brasileira, apesar de assegurar constitucionalmente a proteo do consumidor em

    seus direitos fundamentais, carece de meios para proteger a dignidade humana do consumidor

    de crdito e para evitar o superendividamento.

    Assim, o primeiro captulo dedica-se delimitao conceitual do

    superendividamento e anlise da sua classificao. Em seguida, enumeram-se as principais

    causas e consequncias deste fenmeno que, na maioria das vezes, ultrapassam a esfera da

    vida privada do consumidor endividado e de sua famlia.

    Adiante, elencam-se mecanismos de preveno e de tratamento do

    superendividamento utilizados em direito comparado, tomando-se como parmetro os

    modelos de falncia individual utilizados nos Estados Unidos e na Frana.

    Neste tpico, apresenta-se tambm o Projeto Piloto de Tratamento das Situaes

    de Superendividamento dos Consumidores, desenvolvido no Estado do Rio Grande do Sul,

    que traou o perfil do endividado brasileiro e de maneira exitosa conseguiu implementar um

    modelo prprio de tratamento do fenmeno no pas, atravs da conciliao.

    No ltimo captulo do estudo, realiza-se uma anlise legislativa e jurisprudencial,

    com a exposio do Projeto de Lei n 283/2012, de autoria do ento Senador Jos Sarney, que

    tem como objeto a regulamentao do superendividamento, e com a descrio e crtica dos

    fundamentos utilizados em decises judiciais proferidas pelo Superior Tribunal de Justia.

  • 12

    Para atingir os fins pretendidos, realizou-se pesquisa bibliogrfica na doutrina de

    direito do consumidor, em artigos cientficos, em teses e dissertaes especializadas no tema,

    bem como na anlise de projetos de lei e da jurisprudncia dos tribunais superiores.

  • 13

    2 CONTEXTUALIZAO DO SUPERENDIVIDAMENTO: CONCEITOS,

    CAUSAS E CONSEQUNCIAS

    At recentemente, no Brasil, as pessoas naturais no tinham amplo acesso ao

    mercado formal de crdito, pois os emprstimos ao consumo eram vistos com suspeita. As

    pessoas tomavam dinheiro emprestado dos bancos apenas para a aquisio da moradia ou

    como ltima alternativa para conseguir pagar despesas relativas sade e educao, que no

    eram subsidiadas pelo governo1.

    A democratizao do crdito ocorreu somente aps 1994 com a edio do Plano

    Real e a estabilizao da moeda e, mais acentuadamente, nos ltimos anos devido poltica

    do estmulo ao crdito popular do governo Lula, que ampliou o consumo entre a populao de

    baixa renda que absorveu cerca de 17 bilhes de reais ofertados no mercado. Entre 2005 e

    2006, 2,15 milhes de famlias deixaram a classe de consumo D/E e passaram a integrar a

    classe C2.

    Os benefcios potenciais do crdito - cujo papel social bem definido pela

    Constituio da Repblica3 - so relevantes para as economias em desenvolvimento, pois

    permite o acesso de muitas famlias a bens que so indicadores de qualidade de vida, alm de

    habilitar os indivduos a desenvolverem novos negcios.

    Os economistas no duvidam da importncia do crdito para gerar crescimento,

    pois ao propiciar o aumento do consumo, as empresas so obrigadas a produzirem em maior

    escala e a empregar mais, aumentando o poder de compra da populao, com melhora no seu

    nvel de vida4.

    1 KILBORN, Jason J. apud LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de

    recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 25. 2 BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 53-54. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015. 3 CF/88: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento

    equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compem, abrangendo

    as cooperativas de crdito, ser regulado por leis complementares que disporo, inclusive, sobre a participao

    do capital estrangeiro nas instituies que o integram. (grifou-se) 4 BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 53-54. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015.

  • 14

    Contudo, se de um lado, o acesso ao crdito viabiliza o consumo, de outro,

    compromete a renda de quem o toma, podendo conduzir a uma situao de endividamento.

    Cludia Lima Marques, desse modo, elucida que o superendividamento a outra face da

    democratizao do crdito5.

    A falta de informao e educao para o consumo e o desejo de obter produtos e

    servios oferecidos atravs de uma publicidade agressiva, aliados ao amplo acesso ao crdito,

    fez com que muitos consumidores se endividassem at deixarem de ter capacidade de honrar

    seus compromissos, sendo lanados no sobre-endividamento6.

    De acordo com alguns dados divulgados no portal eletrnico do Superior Tribunal

    de Justia (STJ), ainda em 2011, o superendividamento j era uma realidade para mais de 9%

    das famlias brasileiras, veja-se:

    Desde a crise de 2008, quando o governo federal decidiu aumentar a oferta de

    crdito para manter a economia aquecida, os brasileiros nunca deveram tanto e

    nunca comprometeram parcela to grande do salrio para pagar dvidas. Pesquisa

    recentemente divulgada pelo Banco Central revela que cada brasileiro deve cerca de

    42% da soma dos salrios de um ano inteiro, o que representa um recorde. As

    pessoas fsicas devem quase R$ 716 bilhes aos bancos em operaes simples, como

    o microcrdito e o cheque especial, at financiamentos longos, como o imobilirio e

    de veculos, passando pelo carto de crdito7.

    A Associao Brasileira das Empresas de Cartes de Crdito e Servios (ABECS)

    informou que o montante de crdito requerido pelos consumidores (que passaram a pagar

    apenas o mnimo e financiar o resto) triplicou de R$ 48.4 milhes em 2000 para R$ 151.2

    milhes em 2006. O nmero de cartes de crdito, (incluindo os de loja e de dbito), de 2001

    a 2005, aumentou 118% no Brasil, e nas classes C, D e E, aumentou 144%. Se em 2000,

    tnhamos no Brasil 119 milhes de cartes de crdito, em 2007 j eram 413 milhes8.

    5 MARQUES, Claudia Lima. Sugestes para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas

    fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio

    Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do

    consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 256.

    (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29). 6 MARQUES, Cludia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor: o novo regime das relaes

    contratuais. 4. ed. rev. Atual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 7 Portal Eletrnico do Superior Tribunal de Justia. Superendividamento: uma realidade para mais de 9%

    dos brasileiros. 2011. Disponvel em:

    . Acesso em: 25 out. 2015. 8 BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 18. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015.

  • 15

    O grande desafio, na viso de Jos Reinaldo de Lima Lopes9, que o

    superendividamento ainda tratado pela sociedade como uma questo de cunho individual,

    cuja soluo passa pela simples execuo do devedor. Contudo, no se deve esquecer que o

    endividamento depende de que o consumidor tenha tido acesso ao crdito (responsabilidade

    do credor), que tenha sido estimulado e incentivado a consumir crdito, que tenha sido vtima,

    em certos casos, de uma fora maior social, qual seja, uma recesso, uma onda de

    desemprego.

    Como se percebe, o superendividamento um fenmeno complexo e que exige

    respostas justas e efetivas por parte da sociedade e do Estado, especialmente por meio da

    instituio de aes de preveno e tratamento do mesmo. Cludia Lima Marques10

    adverte

    que o "direito brasileiro est sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta realidade

    complexa" e continua:

    (...) o direito brasileiro est sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta

    realidade complexa, principalmente se devemos distinguir superendividamento de

    pobreza em nosso Pas. A massificao do acesso ao crdito, que se observa nos

    ltimos 5 anos - basta citar os novos 50 milhes de clientes bancrios! -, a forte

    privatizao dos servios essenciais e pblicos, agora acessveis a todos, com

    qualquer oramento, mas dentro das duras regras do mercado, a nova publicidade

    agressiva sobre o crdito popular, a nova fora dos meios de comunicao de massa

    e a tendncia de abuso impensado do crdito facilitado e ilimitado no tempo e nos

    valores, inclusive com descontos em folha de aposentados, pode levar o consumidor

    e sua famlia a um estado de superendividamento.

    Deste modo, notrio que o superendividamento no deve ser encarado como

    uma questo de descontrole financeiro individual e sim como um fenmeno social e jurdico,

    pois condena cada vez mais pessoas excluso e a uma existncia indigna, alm de ser nocivo

    tambm economia, por retirar o consumidor do mercado, minimizando seu poder de compra

    e vedando-lhe novos investimentos.

    2.1 Delimitao conceitual do superendividamento

    Faz-se necessrio estabelecer a distino entre endividamento e

    superendividamento: o primeiro compreende a antecipao de rendimentos gerador de

    9 LOPES, Jos Reinaldo de Lima Lopes. Crdito ao consumidor e superendividamento: uma problemtica geral.

    Revista de informao legislativa, v. 33, n. 129, jan./mar. 1996, p. 111. Disponvel em <

    http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176377>. Acesso em: 01 nov. 2015. 10

    MARQUES, Claudia Lima. Sugestes para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas

    fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio

    Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do

    consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 260.

    (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29).

  • 16

    acesso ao consumo de bens e servios11, ao passo que o segundo consiste no fenmeno

    social (e no apenas pessoal) da inadimplncia dos consumidores por ultrapassarem sua

    capacidade de consumo a crdito12.

    Cludia Lima Marques13

    esclarece, ainda, que:

    O endividamento um fato inerente vida atual na sociedade de consumo. Para

    consumir produtos e servios, essenciais ou no, os consumidores esto

    constantemente se endividando. A economia de mercado seria, segundo muitos, por

    natureza, uma economia do endividamento. Consumo e crdito seriam duas faces da

    mesma moeda. Chama ateno hoje, no Brasil, o processo de massificao expanso

    do crdito ao consumidor (...). Instala-se no pas uma nova poltica de endividamento, na qual a insolvncia no um problema, mas oportunidade de lucro

    para o sistema financeiro.

    O superendividamento, que sinnimo de insolvncia ou falncia do consumidor,

    decorre de vrios fatores, desde casos fortuitos at o consumo desenfreado. Deste modo, o

    fenmeno se caracteriza pela insuficincia de recursos econmicos da pessoa natural para o

    cumprimento de suas obrigaes financeiras, cujo resultado um aumento de suas dvidas

    frente aos seus rendimentos14

    .

    No Brasil, a conceituao mais difundida e reproduzida a cunhada por Claudia

    Lima Marques15

    :

    O superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do devedor

    pessoa fsica, consumidor, leigo e de boa-f, de pagar todas as suas dvidas atuais e

    futuras de consumo (excludas as dvidas com Fisco, oriunda de delitos e de

    alimentos) em um tempo razovel com sua capacidade atual de rendas e patrimnio.

    Maria Manuel Leito Marques16

    conceitua o superendividamento como a situao

    em que o devedor se v impossibilitado, de uma forma durvel ou estrutural, de pagar o

    11

    MELLO, Flvio Citro Vieira de. A proteo do sobre-endividado no Brasil. Revista luso-brasileira de

    Direito do Consumidor. Vol. 1, n. 2, jun/2011, p. 15. 12

    LOPES, Jos Reinaldo de Lima Lopes. Crdito ao consumidor e superendividamento: uma problemtica geral.

    Revista de informao legislativa, v. 33, n. 129, jan./mar. 1996, p. 111. Disponvel em <

    http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176377>. Acesso em: 01 nov. 2015. 13

    MARQUES, Cludia Lima. Mais ateno ao Superendividamento. Revista do Idec, n. 92, set./ 2005, p. 44. 14

    BOLADE, Geisianne Aparecida. O Superendividamento do Consumidor como um Problema Jurdico-

    Social. Disponvel em: < http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima8/9-O-Superendividamento-do-Consumidor-

    como-um-Problema-Juridico-Social.pdf>. Acesso em: 28 out 2015. 15

    MARQUES, Claudia Lima. Sugestes para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas

    fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio

    Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do

    consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 256.

    (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29). 16

    MARQUES, Maria Manuel Leito; FRADE, Catarina. Regular o sobreendividamento. In Gabinete de

    Poltica Legislativa e Planeamento do Ministrio da Justia (org.), Cdigo da Insolvncia e da Recuperao de

    Empresas. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 82. Disponvel em: <

    http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/anexos/sections/informacao-e-eventos/anexos/prof-

    doutora-maria/downloadFile/file/MMLM.pdf?nocache=1210675423.37> . Acesso em: 01 nov. 2015.

  • 17

    conjunto de suas dvidas, ou mesmo quando existe uma ameaa sria de que no o possa fazer

    no momento em que elas se tornarem exigveis.

    Nos termos do art. L.330-1 do Cdigo de Consumo Francs17

    , a situao de

    superendividamento das pessoas naturais se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o

    devedor de boa-f de honrar o conjunto de suas dvidas no profissionais, exigveis e

    vincendas.

    O Projeto18

    de Lei do Senado Federal (PLS) n 283/2012, por sua vez, que altera o

    Cdigo de Defesa do Consumidor para aperfeioamento da disciplina do crdito ao

    consumidor e preveno ao superendividamento, traz a seguinte definio:

    Art. 54-A, 1: 1 Entende-se por superendividamento a impossibilidade

    manifesta do consumidor, pessoa natural, de boa-f, pagar a totalidade de suas

    dvidas de consumo, exigveis e vincendas, sem comprometer seu mnimo

    existencial, nos termos da regulamentao.

    Da anlise de todas essas definies, percebe-se a preocupao em estabelecer

    parmetros que forneam ao operador do Direito uma definio precisa e apta a identificar o

    consumidor superendividado e a real necessidade de proteo jurdica diferenciada19

    . Deve

    ficar claro quais devedores devem ser beneficiados por essa tutela, sob pena de gerar um

    paternalismo exacerbado ao mais fraco em detrimento completo do fornecedor20.

    Dessa maneira, imperiosa a anlise dos elementos gerais do superendividamento

    devedor pessoa natural, boa-f, dvidas de natureza no profissional, impossibilidade

    manifesta e dvidas vencidas e vincendas enquanto pressupostos de caracterizao do

    fenmeno, e das classificaes elaboradas a partir do exame destes critrios, de modo a

    determinar os casos que ensejam a tutela estatal.

    17

    Art. L330-1. Code de la consommation. Traduo livre: La situation de surendettement des personnes physiques est caractrise par l'impossibilit manifeste pour le dbiteur de bonne foi de faire face l'ensemble de

    ses dettes non professionnelles exigibles et choir. 18

    BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado Federal n. 283/2012, 03 de agosto de 2012. Altera a Lei

    n 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Cdigo de Defesa do Consumidor), para aperfeioar a disciplina do crdito

    ao consumidor e dispor sobre a preveno do superendividamento. Disponvel em: <

    http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=182356&tp=1>. Acesso em: 01 nov. 2015. 19

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Disponvel em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em:

    01 nov. 2015. 20

    BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. apud SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do

    consumidor: conceito, pressupostos e classificao. Disponvel em: <

    http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em: 01 nov. 2015.

  • 18

    2.1.1 Consumidor pessoa-natural

    Ao delimitar o superendividamento pessoa natural, que adquire o produto como

    destinatria final para atender as suas necessidades pessoais, distingue-se esta espcie de

    inadimplemento daquelas experimentadas pelas pessoas jurdicas, s quais se aplicam os

    institutos da falncia e da recuperao judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei n

    11.101/200521

    .

    2.1.2 Boa-f nos contratos de crdito

    O Cdigo Civil brasileiro possui dispositivo22

    expresso no sentido de que as

    relaes jurdicas devem ser realizadas com base na boa-f, que se trata de uma regra objetiva

    de conduta fundada na honestidade, na retido, na lealdade e na transparncia.

    Rizzato Nunes23

    conceitua a boa-f objetiva como:

    A boa-f objetiva, que a que est presente no CDC, pode ser definida, grosso

    modo, como uma regra de conduta, isto , o dever das partes de agir conforme certos

    parmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilbrio nas relaes

    de consumo. No o equilbrio econmico, como pretendem alguns, mas o equilbrio

    das posies contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das

    partes, em matria de consumo, como regra, h um desequilbrio de foras.

    Entretanto, para chegar a um equilbrio real, somente com a anlise global do

    contrato, de uma clusula em relao s demais, pois o que pode ser abusivo ou

    exagerado para um no o ser para outro.

    Esse preceito se encontra expresso tambm no Cdigo de Defesa do

    Consumidor24

    , em seu artigo 4, inciso III, sendo considerado um princpio bsico e bilateral,

    21

    GONTIJO, Patrcia Maria Oliva. A regulamentao do superendividamento como forma de concretizao

    do Estado Democrtico de Direito. Dissertao (Mestrado em Direito) Curso de Ps-graduao stricto sensu, da Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2010. Disponvel em: <

    http://www.mcampos.br/posgraduacao/Mestrado/dissertacoes/2010/patriciamariaoliviagontijoaregulamentacaod

    osuperendividamentocomoforma.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2015. 22

    CC/02: Art. 422. Os contratantes so obrigados a guardar, assim na concluso do contrato, como em sua

    execuo, os princpios de probidade e boa-f. 23

    NUNES, Luis Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 4ed., p. 605, So Paulo: Saraiva, 2009. 24

    CDC: Art. 4 A Poltica Nacional das Relaes de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades

    dos consumidores, o respeito sua dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos, a

    melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparncia e harmonia das relaes de consumo, atendidos os

    seguintes princpios: (...) III - harmonizao dos interesses dos participantes das relaes de consumo e

    compatibilizao da proteo do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econmico e

    tecnolgico, de modo a viabilizar os princpios nos quais se funda a ordem econmica (art. 170, da

    Constituio Federal), sempre com base na boa-f e equilbrio nas relaes entre consumidores e

    fornecedores; (grifou-se)

  • 19

    que deve ser respeitado tanto pelo consumidor, como pelo fornecedor, pois visa manter o

    equilbrio e a transparncia da relao de consumo25

    .

    A boa-f do consumidor compreendida no como um estado de nimo do sujeito

    (boa-f subjetiva), mas como um comportamento leal, cooperativo, correto (boa-f

    objetiva)26

    . A presuno desse princpio no pode ser afastada, mas a ausncia comprovada

    deste impede o auxlio do Estado ao superendividado, funcionando como verdadeiro

    pressuposto de admissibilidade27

    .

    O fornecedor, por sua vez, deve observar alm de seus interesses, tambm os do

    consumidor, sob pena de exceder liberdade contratual e, com isso, violar os princpios da

    boa-f28

    e da dignidade da pessoa humana, conforme os ensinamentos de Carpena e

    Cavallazzi29

    :

    O financiamento concedido de forma temerria, tendo sido celebrado o pacto com

    consentimento irrefletido, sem contemplao por parte do fornecedor das reais

    condies daquele que pretende receber o crdito, praticamente induzindo a

    inadimplncia, sem dvida nenhuma viola o princpio da dignidade da pessoa

    humana. A proteo das legtimas expectativas dos consumidores, a garantia de

    cumprimento do que ele espera obter de uma dada relao contratual, nada mais do

    que a projeo do princpio fundamental da dignidade da pessoa humana no mbito

    obrigacional.

    Portanto, a boa-f do fornecedor observada no seu dever de cautela na concesso

    de crdito, mesmo diante da satisfao dos requisitos formais de validade do contrato, pois lhe

    incumbe estabelecer condies disposio de crdito.

    25

    ROCHA, Amlia Soares da; FREITAS, Fernanda Paula Costa de. O superendividamento, o consumidor e a

    anlise econmica do Direito. Disponvel em: . Acesso em: 1 nov. 2015. 26

    CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo

    emprico e perspectivas de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli.

    Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,

    p. 329. 27

    BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. apud SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do

    consumidor: conceito, pressupostos e classificao. Disponvel em: <

    http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em: 01 nov. 2015 28

    BOLADE, Geisianne Aparecida. O Superendividamento do Consumidor como um Problema Jurdico-

    Social. Disponvel em: < http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima8/9-O-Superendividamento-do-Consumidor-

    como-um-Problema-Juridico-Social.pdf>. Acesso em: 28 out 2015. 29

    CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo

    emprico e perspectivas de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli.

    Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,

    p. 337.

  • 20

    2.1.3 Natureza das dvidas

    No que se refere ao requisito dvidas de natureza no profissional, cumpre

    esclarecer que serve para enfatizar que o tratamento ao superendividamento est restrito s

    dvidas de consumo, enfatizando o propsito de conter a proliferao do crdito

    desmedido30.

    2.1.4 Impossibilidade de pagar dvidas atuais e futuras

    Considerando que o superendividamento se caracteriza pela impossibilidade

    manifesta de adimplir dvidas vencidas e vincendas, faz-se necessrio que o conjunto de

    dvidas (atuais e futuras) deflagre uma impossibilidade (subjetiva) global (universal e no

    passageira), de modo que o mero descumprimento momentneo de uma prestao a cargo do

    consumidor no suficiente para configurar o sobre-endividamento31.

    Desse modo, para a caracterizao da situao do devedor necessrio uma

    ponderao entre o passivo e o ativo do ncleo familiar, contabilizando ainda os gastos com a

    subsistncia referentes ao mnimo vital atravs da qual o aferimento de um resultado

    negativo (passivo maior que ativo) denota a impossibilidade global de adimplemento,

    configurando o superendividamento32

    .

    2.2 Classificao do Sobre-endividamento

    Com a finalidade de diferenciar as situaes que merecem a tutela jurdica para

    restabelecimento financeiro do consumidor daquelas que caracterizam fraudes, a doutrina

    subdivide o superendividamento em ativo e passivo: o primeiro engloba o consumidor que se

    endivida voluntariamente, ao contrair dvidas de consumo para alm de sua capacidade

    econmica e patrimonial; o segundo o que contrai dvidas em decorrncia dos chamados

    30

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Disponvel em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em:

    01 nov. 2015. 31

    VIEGAS, Thas Emlia de Sousa; MARTINS, Tereza Lisieux Gomes. Sociedade de consumo e

    superendividamento: uma discusso sobre a proposta de alterao do Cdigo de Defesa do Consumidor. Disponvel em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=72fa288df9f22f71>. Acesso em: 10 nov 2015. 32

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Disponvel em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em:

    01 nov. 2015.

  • 21

    acidentes de vida, circunstncias inesperadas e externas, como o desemprego,

    enfermidades, divrcio, dentre outros33

    .

    A anlise do conceito por Maria Manuel Leito Marques34

    revela que o

    superendividado ativo subdivide-se, ainda, em consciente e inconsciente. O ativo consciente

    aquele que realiza dvidas sabendo que no poder quit-las, ou seja, pratica um ato eivado de

    m-f, com a inteno de no reembolsar a dvida no momento de seu vencimento.

    Por outro lado, considera-se ativo inconsciente o consumidor que est

    superendividado em decorrncia da falta de ponderao em seus gastos, ou seja, no h o

    elemento da m-f, pois, quando assume suas dvidas tem o nimo de quit-las, mas por falta

    de controle sobre seus gastos acaba assumindo mais compromissos financeiros que seus

    rendimentos so capazes de suportar35

    .

    O maior problema est em identificar claramente o superendividado ativo

    consciente (fraudulento) do inconsciente (sem malcia) no caso concreto. Trata-se de tarefa

    difcil, que ao final se traduz em uma anlise da existncia de boa-f do consumidor36

    .

    Na prtica, atravs da anlise dos tribunais estrangeiros, percebe-se que, em regra,

    o sobre-endividado ativo consciente no recebe o apoio do Estado, e o superendividado

    passivo o recebe. J o superendividado ativo inconsciente depende da discricionariedade do

    julgador37

    .

    33

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Disponvel em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em:

    01 nov. 2015. 34

    MARQUES, Maria Manuel Leito. apud BOLADE, Geisianne Aparecida. O Superendividamento do

    Consumidor como um Problema Jurdico-Social. Disponvel em: < http://www.anima-

    opet.com.br/pdf/anima8/9-O-Superendividamento-do-Consumidor-como-um-Problema-Juridico-Social.pdf>.

    Acesso em: 28 out 2015. 35

    BOLADE, Geisianne Aparecida. O Superendividamento do Consumidor como um Problema Jurdico-

    Social. Disponvel em: < http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima8/9-O-Superendividamento-do-Consumidor-

    como-um-Problema-Juridico-Social.pdf>. Acesso em: 28 out 2015. 36

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 26, 2009, p. 175. Disponvel em: <

    http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em: 01 nov. 2015. 37

    SCHMIDT NETO, Andr Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e

    classificao. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 26, 2009, p. 175. Disponvel em: <

    http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/36>. Acesso em: 01 nov. 2015.

  • 22

    2.3 Origens do superendividamento

    Segundo Johanna Niemi-Kiesilinen38

    , o superendividamento s existe quando o

    crdito usado pelos consumidores; logo, o crdito a principal razo para a ocorrncia do

    fenmeno. Contudo, atravs de uma abordagem diferente, podem ser observadas outras

    causas que levam os consumidores ao superendividamento.

    Umas delas a desregulamentao dos mercados de crdito, atravs da

    diminuio dos mecanismos de controle pelos bancos centrais do nvel de crdito ao consumo

    e da abolio do teto de juros39

    .

    Aponta-se, tambm, a reduo do estado de bem-estar social. Os pases que no

    oferecem educao e sade pblicas de qualidade oneram o oramento das pessoas naturais

    com essas despesas. A situao agravada quando os programas ou benefcios sociais, como,

    por exemplo, auxlio-desemprego, no esto disponveis. Com a renda reduzida e com o

    aumento das dvidas contradas para driblar os acidentes de vida, aparecem as dificuldades

    de reembolso, ensejando frequentemente uma situao de superendividamento40

    .

    O sobre-endividamento pode resultar, ainda, do excesso de crdito disponvel e de

    sua concesso irresponsvel, ou seja, quando o profissional concede o crdito sabendo, ou

    devendo saber, que o devedor no ter condies financeiras de reembols-lo no futuro. Nessa

    situao, notrio que o fornecedor que concede crdito a quem no tem condies de

    cumprir o contrato, est praticando abuso de direito41.

    H muitas evidncias de que os fornecedores de crdito preferem assumir,

    deliberadamente, grandes riscos ao conceder crdito, em razo da larga margem de lucro

    38

    NIEME-KIESILINEN, Johanna; HENRIKSON, Ann-Sofe. apud LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento

    do superendividamento e o direito de recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014,

    p. 35. 39

    NIEME-KIESILINEN, Johanna; RAMSAY, Iain; WHITFORD, William C. apud LIMA, Clarissa Costa de.

    O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2014, p. 35. 40

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 35. 41

    CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo

    emprico e perspectivas de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli.

    Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,

    p. 337.

  • 23

    decorrente da diferena de juros que o banco tem que pagar pelo dinheiro e do que ele cobra

    quando empresta aos consumidores42

    .

    H outros fatores atribuveis aos consumidores que podem contribuir para o

    superendividamento. Os indivduos tendem a ser superconfiantes no que diz respeito a sua

    prpria suscetibilidade de risco. Segundo Jason J. Kilborn43, as pessoas subestimam suas

    prprias chances de sofrerem um evento adverso, mesmo se compreendem perfeitamente

    bem, ou mesmo se exageram as probabilidades de os outros virem a sofrem o mesmo destino

    (Isso no ir acontecer comigo).

    Alm desses fatores, a falta de informao e de educao financeira contribui para

    aumentar o risco de superendividamento.

    Consumidores que no recebem previamente as informaes sobre as condies

    de contratao correm mais risco de se endividar (vulnerabilidade informacional44

    ). J a falta

    de educao financeira torna difcil a compreenso e o bom uso das informaes recebidas na

    avaliao e deciso pela contratao de crdito de forma racional45

    .

    A expanso do carto de crdito outro fator responsvel pelo aumento do

    endividamento do consumidor, pois, ao separar temporalmente o momento doloroso do

    pagamento e o prazer da compra, incentiva gastos incompatveis com a renda do

    consumidor46

    .

    42

    WARREN, Elizabeth; WESTBROOK, Jay Lawrence. apud LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do

    superendividamento e o direito de recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.

    36. 43

    KILBORN, Jason J. Comportamentos econmicos, superendividamento; estudo comparativo da insolvncia

    do consumidor: buscando as causas e avaliando solues. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI,

    Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So

    Paulo. Revista dos Tibunais, 2006, p. 73. (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29). 44

    (...) 2. O Cdigo de Defesa do Consumidor assegura que a oferta e apresentao de produtos ou servios

    propiciem informaes corretas, claras, precisas e ostensivas a respeito de caractersticas, qualidades, garantia,

    composio, preo, garantia, prazos de validade e origem, alm de vedar a publicidade enganosa e abusiva, que

    dispensa a demonstrao do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para sua configurao. 3. A propaganda

    enganosa, como atestado pelas instncias ordinrias, tinha aptido a induzir em erro o consumidor fragilizado,

    cuja conduta subsume-se hiptese de estado de perigo (art. 156 do Cdigo Civil). 4. A vulnerabilidade

    informacional agravada ou potencializada, denominada hipervulnerabilidade do consumidor, prevista no

    art. 39, IV, do CDC, deriva do manifesto desequilbrio entre as partes. (...) (trecho da Ementa do REsp

    1329556 / SP, Ministro RICARDO VILLAS BAS CUEVA, Terceira Turma, STJ, julgado em 25/11/2012).

    (grifou-se) 45 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 36. 46

    MARTIN, Natalie; Sweet, Ocean Tama y. apud LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do

    superendividamento e o direito de recomear dos consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.

    36.

  • 24

    A questo do superendividamento, no Brasil, se agravou ainda mais com a

    insero dos contratos de crdito consignado, aps a Lei n. 10.820 de 17 de dezembro de

    2003, que autorizou o pagamento de emprstimo atravs de desconto direto no salrio e no

    benefcio de aposentados e pensionistas.

    Por ser uma modalidade de crdito bem mais atrativa, em razo das menores taxas

    de juros e da concesso fcil e sem consulta s entidades de proteo ao crdito, tem gerado

    dados alarmantes47

    , desencadeando um processo de superendividamento intenso,

    especialmente nos idosos.

    O principal desafio dessa nova variante de crdito que ela corri a tradio

    jurdica clssica da intangibilidade, impenhorabilidade salarial, desafiando o direito a exercer

    seu papel ativo na conteno dos poderes do mercado pela fora da aplicao dos direitos

    fundamentais dos consumidores com a definio de sua existncia e liberdade salarial48.

    A publicidade agressiva das novas formas de crdito, por sua vez, incita ao

    consumo excessivo e ao superendividamento, inclusive dos consumidores mais vulnerveis.

    Tornou-se bastante comum, por exemplo, a presena de atores e atrizes conceituados atuando

    em propagandas que oferecem crdito facilitado, sem o fornecimento de informaes, como o

    valor dos encargos, as consequncias do pagamento mnimo ou o limite de renda49

    .

    Sobre este assunto, importante transcrever a deciso do Tribunal de Justia do

    Rio de Janeiro:

    (...) crescente a preocupao da Doutrina e da Jurisprudncia com as causas e os

    efeitos do "superendividamento", tendo sido reconhecida, como ilcita, a conduta

    abusiva e irresponsvel de algumas instituies financeiras que - se valendo da

    ingenuidade de gente humilde, especialmente, aposentados com base em macia campanha publicitria oferecem crdito fcil a quem no pode pagar, sem grave

    prejuzo de seu sustento. O ABUSO DO DIREITO DE OFERECER

    EMPRSTIMOS, SEM UMA CUIDADOSA E RESPONSVEL ANLISE DA

    CAPACIDADE DE ENDIVIDAMENTO DO TOMADOR, VIOLA O PRINCPIO

    DA BOA-F OBJETIVA E NO PODE CONTAR COM O BENEPLCITO DO

    47

    As operaes de crdito consignado realizadas por aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro

    Social (INSS) totalizaram R$ 3,318 bilhes em setembro de 2014. Em valores nominais isto , sem considerar a inflao o resultado foi 17,28% superior ao mesmo perodo de 2013, quando foram liberados R$ 2,830 bilhes. Em relao a agosto de 2014, quando foram registrados R$ 3,470 bilhes, houve reduo de 4,35%. Em

    nmero de operaes, setembro de 2014 registrou 841.689 contratos, nmero 6,12% inferior ao de agosto de

    2014, quando 896.597 contratos foram efetivados. Comparando com o mesmo ms de 2013, houve aumento de

    11,51%. Em setembro de 2013, a quantidade de operaes correspondeu a 754.819 contratos. Disponvel em: <

    http://www.previdencia.gov.br/2014/10/emprestimo-consignado-operacoes-somam-r-33-bilhoes-em-setembro/>

    Acesso em: 03 nov. 2015. 48

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 37. 49

    ROCHA, Amlia Soares da; FREITAS, Fernanda Paula Costa de. O superendividamento, o consumidor e a

    anlise econmica do Direito. Disponvel em: . Acesso em: 1 nov. 2015.

  • 25

    JUDICIRIO. (...) (trecho da deciso no Agravo de Instrumento n. 2005.002.27037

    - DES. MARCO ANTONIO IBRAHIM - Julgamento: 17/01/2006 - DECIMA

    OITAVA CAMARA CIVEL). (grifou-se)

    Pesquisas conduzidas em vrios pases indicam, ainda, que a maior causa para o

    superendividamento so as mudanas imprevistas nas circunstncias de vida. No Brasil, a

    pesquisa de campo coordenada por Cludia Lima Marques, com 100 casos de pessoas

    superendividadas no Rio Grande do Sul, constatou que mais de 70% dos casos se endividaram

    em razo dos acidentes de vida (desemprego 36,2%, doena e acidentes 19,5%, divrcio

    7,9%, morte 5,1% e outros, como nascimento de filhos 9,4%)50

    .

    2.4 Consequncias prticas

    O primeiro efeito do superendividamento a diminuio da produtividade do

    superendividado, que perde o incentivo para agir de forma empreendedora, quando todo o

    dinheiro que ele ganha se torna proveito para os credores. Essa situao aumenta, ainda, o

    risco de o superendividado abrigar-se na economia informal para evitar seus credores ou de

    passar a depender de benefcios sociais custeados pelo Estado51.

    Vale ressaltar que o superendividamento retira o endividado do mercado de

    consumo, minimizando seu poder de compra e vedando-lhe novos investimentos52

    ,

    comprometendo, desse modo, o desenvolvimento da economia ao reduzir a circulao de

    mercadorias e de servios.

    Outra dificuldade a preservao da subsistncia e da qualidade de vida da

    famlia, principalmente para os consumidores que dependem do crdito para a manuteno

    cotidiana dos seus lares53

    . Jos Reinaldo de Lima Lopes pontua:

    No so poucos os que se endividam para pagar despesas corriqueiras, despesas de

    manuteno diria ou despesas com servios indispensveis que j no so providos

    50

    MARQUES, Claudia Lima. Sugestes para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas

    fsicas em contratos de crdito ao consumo: proposies com base em pesquisa emprica de 100 casos no Rio

    Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do

    consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 302.

    (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29). 51

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 39-40. 52

    BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 8. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015. 53

    BOLADE, Geisianne Aparecida. O Superendividamento do Consumidor como um Problema Jurdico-

    Social. Disponvel em: < http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima8/9-O-Superendividamento-do-Consumidor-

    como-um-Problema-Juridico-Social.pdf>. Acesso em: 28 out 2015.

  • 26

    pelo Estado ou que nunca o foram adequadamente. Parte do endividamento que

    preocupa deriva, sobretudo, do aumento de recursos necessrios para prover a

    subsistncia. O crdito pessoal, adiantado sob a forma de carto de crdito ou de

    cheque especial, crdito sem garantias reais, portanto, constitui substancial parcela

    do crdito ao consumo54

    .

    A situao de inadimplemento estressante e dramtica para os devedores e suas

    famlias. Entre casais, pode ocasionar episdios de raiva, discusso, frustrao e culpa,

    ocasionando, muitas vezes, o divrcio. Os efeitos negativos das dificuldades econmicas

    tambm atingem os filhos, sendo fonte de desentendimento com os pais55

    .

    Outros efeitos decorrentes desse estresse financeiro so baixa autoestima, viso

    pessimista da vida, reduo da sade com aumento de casos de dores de cabea e de

    estmago, insnia, depresso, podendo levar ao consumo exacerbado de lcool e at mesmo

    ao suicdio56

    .

    Na Espanha, fortemente atingida pela crise financeira de 2008, onde, somente no

    primeiro trimestre de 2012, iniciaram-se 46.599 processos judiciais de execues

    hipotecrias57

    , foram registrados inmeros suicdios58

    de devedores que no tinham esperana

    e tutela do superendividamento no ordenamento jurdico espanhol.

    Com efeito, o superendividamento gera consequncias extremamente

    desagradveis ao consumidor, conforme explicita Cludia Lima Marques59

    :

    Sob uma ou outra forma, o superendividamento gerador de situaes nefastas que

    no se pode deixar prosperar. Constitui, com efeito, fonte de tenses no seio da

    clula familiar que muitas vezes acarretam um divrcio, agravando a situao de

    endividamento. Ele pode conduzir as pessoas superendividadas a evitar despesas de

    tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educao dos filhos. E, na

    medida em que a situao tal, que a moradia no pode ser assegurada, dado um

    passo na direo da excluso social. O superendividamento fonte de isolamento, de

    marginalizao; ele contribui para o aniquilamento social do indivduo. Quanto mais

    este fenmeno aumenta, mais seu custo social se eleva e mais a necessidade de

    combat-lo se impe.

    54

    LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Prefcio. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela

    Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revista

    dos Tribunais, 2006, p. 5-9. 55

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 40-41. 56

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 42. 57

    MUOZ, Miguel. Desalojo de vivienda por deuda a la orden del da en Espaa. Disponvel em: <

    http://www.nacion.com/mundo/Desalojo-vivienda-deuda-orden-Espana_0_1293670766.html>. Acesso em 01

    dez. 2015. 58

    WIKIPEDIA. Desahucios en Espaa durante la crisis econmica. Disponvel em: <

    https://es.wikipedia.org/wiki/Desahucios_en_Espa%C3%B1a_durante_la_crisis_econ%C3%B3mica>. Acesso

    em: 01 dez. 2015. 59

    BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 10. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015.

  • 27

    Desse modo, percebe-se que este fenmeno e seus efeitos extrapolam a dimenso

    econmica e jurdica, assumindo contornos psicossociais. A gesto deste novo risco constitui,

    assim, um desafio regulatrio para muitos pases que adotaram ou estudam um conjunto de

    medidas de preveno e tratamento60

    .

    60

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 43.

  • 28

    3 PROPOSIES SOBRE A PREVENO E O TRATAMENTO DO

    SUPERENDIVIDAMENTO DAS PESSOAS NATURAIS EM CONTRATOS DE

    CRDITO

    O crescimento do superendividamento, especialmente aps a crise financeira

    mundial, tornou imprescindvel a criao de prticas internacionais para proteger o

    consumidor de servios financeiros com medidas que incluem regras de informao e

    transparncia, controle de prticas abusivas, mecanismos de indenizao e a criao de novos

    organismos de regulao61

    .

    A meta reguladora do crdito ao consumidor deve ter em vista proteo efetiva,

    positiva e preventiva dos consumidores. Neste sentido, o relatrio publicado pela Federao

    Internacional de Praticantes de Insolvncia (INSOL Internacional) concluiu que a soluo

    para o superendividamento deve priorizar a preveno, pois evita os custos e a estigmatizao

    de um processo de falncia62

    .

    Contudo, no podemos desconsiderar que nem sempre a preveno evita que o

    fenmeno se instale e provoque os efeitos nefastos que so sentidos por toda a sociedade.

    Trata-se da condio dos consumidores que podem ter recebido todas as informaes no

    momento da contratao, mas encontram dificuldades em cumprir suas obrigaes

    contratuais, porque depois so surpreendidos com o desemprego, doena, entre outros eventos

    imprevistos que abalam seu oramento63.

    Em relao a esses consumidores coloca-se a questo dos remdios aplicveis. O

    tratamento do superendividamento consiste na reestruturao da conjuntura financeira do

    devedor de boa-f, promovendo a quitao dos dbitos, mas, tambm, resguardando os

    interesses do devedor e assegurando o seu restabelecimento de forma digna64

    .

    61

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 44. 62

    Traduo livre: Prevention to reduce the need for Intervention: Although there has been a changing attitude towards insolvency over the last decade, especially among young people, insolvency still carries a stigma that

    can be avoided. It requires the cooperation of legislators, local and national governments, lenders and creditors associations together with representatives of debtors. Consumer Debt Rport da Insol Internacional, disponvel em: Acesso em: 10 nov. 2015. 63

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 53. 64

    GONTIJO, Patrcia Maria Oliva. A regulamentao do superendividamento como forma de concretizao

    do Estado Democrtico de Direito. Dissertao (Mestrado em Direito) Curso de Ps-graduao stricto sensu, da Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2010. Disponvel em: <

    http://www.mcampos.br/posgraduacao/Mestrado/dissertacoes/2010/patriciamariaoliviagontijoaregulamentacaod

    osuperendividamentocomoforma.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2015.

  • 29

    No Brasil, a massificao do crdito, sem uma legislao forte que a

    acompanhasse, criou uma crise de solvncia e confiana no Pas, tanto na classe mdia, como

    nas classes mais baixas.

    No Estado do Rio Grande do Sul, a experincia do Poder Judicirio com o

    Projeto Piloto de Tratamento das Situaes de Superendividamento dos Consumidores teve

    por objetivo subsidiar o Ministrio da Justia para a elaborao de uma lei sobre a preveno

    e o tratamento do superendividamento dos consumidores brasileiros que levasse em conta as

    caractersticas sociais, econmicas e culturais do pas.

    3.1 Necessidade de normatizao na preveno do superendividamento e seus benefcios

    A preveno contra o superendividamento depende da adoo de uma

    regulamentao especfica do crdito ao consumo com disposies destinadas informao

    do consumidor (regulamentao da publicidade, oferta, prazo de reflexo, contedo de

    contrato)65

    .

    Com efeito, nos contratos de crdito, a ausncia de informao somada presso

    exercida no momento da oferta e necessidade de satisfao dos desejos dos consumidores

    o principal motivo de endividamento excessivo. Por conseguinte, a qualidade da informao

    contratual, da publicidade e da oferta constitui a principal forma de preveno ao

    superendividamento66

    .

    A preveno implica a comunicao ao consumidor, antes da assinatura do

    contrato e de forma clara, de todas as informaes necessrias para que ele possa avaliar os

    custos da contratao, bem como o impacto no seu oramento67

    . Trata-se de um dever de boa-

    65

    LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Rick Danilevicz. Superendividamento aplicado:

    aspectos doutrinrios e experincia no Poder Judicirio. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 122-124. 66

    GONTIJO, Patrcia Maria Oliva. A regulamentao do superendividamento como forma de concretizao

    do Estado Democrtico de Direito. Dissertao (Mestrado em Direito) Curso de Ps-graduao stricto sensu, da Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2010. Disponvel em: <

    http://www.mcampos.br/posgraduacao/Mestrado/dissertacoes/2010/patriciamariaoliviagontijoaregulamentacaod

    osuperendividamentocomoforma.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2015. 67

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 48.

  • 30

    f, um dever de informar os principais elementos e mesmo um dever de esclarecer o leigo

    sobre os riscos do crdito e o comprometimento futuro de sua renda68

    .

    O Cdigo de Defesa do Consumidor69

    , em seu artigo 52, prev essa tcnica de

    preveno e dispe que o consumidor dever ter informao prvia e adequada de todos os

    elementos contratuais sobre o crdito que pretende adquirir, precipuamente em relao aos

    preos e condies que lhe sero exigidos pela oferta. O objetivo capacitar o consumidor a

    escolher os produtos que atendem a sua necessidade e capacidade financeira.

    informao alia-se o dever correlato de conselho, que consiste em tornar

    acessvel a informao necessria para a deciso de contratar, relativamente a pontos que o

    consumidor no consegue alcanar com base no seu prprio conhecimento70

    . Deve-se, nesse

    caso, explicar ao consumidor os riscos que tal ou qual contratao podero acarretar.

    Franois Boucard71

    destaca que o dever de informao comporta uma prestao de

    natureza intelectual (a determinao da informao a transmitir) e uma prestao de natureza

    material (a transmisso da informao). Em contrapartida, o dever de aconselhamento

    consiste em emitir uma opinio e adaptar as informaes s necessidades do consumidor, de

    modo a orientar a ao do indivduo.

    A obrigatoriedade de o fornecedor entregar uma oferta prvia ao consumidor foi o

    mecanismo utilizado pelo legislador europeu para garantir o acesso a todas as informaes

    necessrias para o exame da necessidade e adequao do crdito antes da sua contratao,

    permitindo ainda a comparao, pelo devedor, das condies ofertadas em outros

    estabelecimentos de crdito72.

    68

    BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 26. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015. 69

    CDC: Art. 52. No fornecimento de produtos ou servios que envolva outorga de crdito ou concesso de

    financiamento ao consumidor, o fornecedor dever, entre outros requisitos, inform-lo prvia e adequadamente

    sobre: I - preo do produto ou servio em moeda corrente nacional; II - montante dos juros de mora e da taxa

    efetiva anual de juros; III - acrscimos legalmente previstos; IV - nmero e periodicidade das prestaes; V -

    soma total a pagar, com e sem financiamento. 70

    LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Rick Danilevicz. Superendividamento aplicado:

    aspectos doutrinrios e experincia no Poder Judicirio. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 72. 71

    BOUCARD, Franois apud LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Tratamento do

    crdito ao consumo na Amrica Latina e superendividamento. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI,

    Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So

    Paulo. Revista dos Tribunais, 2006, p. 199. (Coleo Biblioteca Direito do Consumidor, vol. 29). 72

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 48.

  • 31

    Outro mecanismo adotado no direito comparado que trouxe timos resultados na

    preveno do superendividamento foi o estabelecimento de um prazo de validade para a

    oferta, permitindo ao consumidor refletir melhor sobre a contratao e procurar melhores

    condies de pagamento, estimulando a concorrncia.

    Trata-se de instrumento essencial para a tomada de deciso do consumidor, que

    passa a exercer papel principal - ser um construtor de sua vontade, e no mero anexo, adesivo

    de contratos preestabelecidos73.

    A preveno pode ser complementada tambm pela concesso ao consumidor de

    um prazo, aps a concluso do contrato de crdito, para ponderar sobre a necessidade do

    crdito e a comparao com outras ofertas no mercado. Decorrido o prazo, o consumidor pode

    retratar-se ou desistir do contrato sem necessidade de justificar o motivo.

    Desse modo, o direito de arrependimento busca evitar a compra impulsiva, ao

    permitir que o consumidor no s mude de opinio, como tambm verifique se o emprstimo

    compatvel com sua situao financeira. Este prazo permite, ainda, que o consumidor

    consulte a concorrncia e encontre um crdito com melhores condies74

    .

    Na busca pela preveno do superendividamento, a publicidade deve ser regulada

    de forma positiva, obrigando o fornecedor a divulgar informaes sobre o custo do crdito, e

    de forma negativa, limitando os locais e a forma de divulgao. Legislaes mais duras

    probem a divulgao do crdito fora das agncias bancrias, bem como mensagens que se

    referem a gratuidade do crdito e a facilidade e a rapidez com a qual ele pode ser obtido75

    .

    No Brasil, sem nenhuma cautela, muitos bancos e financeiras fazem publicidade

    justamente com esta ideia de crdito a jato, sem consultar os bancos de dados de

    inadimplncia, ou crdito gratuito, que consiste em ofertar um perodo de carncia ao

    consumidor e, passado este, o crdito se torna oneroso, muitas vezes com encargos

    significativos a serem suportados pelo consumidor.

    73

    CHAGAS. Brbara Seccato Ruis. JESUS, Morgana Neves de. O problema do superendividamento e a

    reforma do Cdigo de Defesa do Consumidor: A educao como soluo possvel. 2012. Disponvel em:

    http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=eb30fa42eeb3bf42 Acesso em: 17 nov 2015. 74

    FLORES, Philippe. A preveno do superendividamento pelo Cdigo de Consumo. Revista de Direito do

    Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, v. 78, 2011, p. 77. 75

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 49.

  • 32

    Gilles Paisant76

    adverte que o enquadramento legislativo ou a regulamentao do

    crdito:

    (...) comea geralmente por gerar uma oposio quase reflexa dos organismos

    bancrios e de crdito que no deixam de sustentar junto aos poderes pblicos

    quanto seria desastroso para a economia do pas de querer, assim, entravar o curso

    de suas atividades. Mas a experincia mostra em toda parte que uma regulamentao

    do crdito no constitui um obstculo ao desenvolvimento das atividades bancrias e

    sua propriedade, mas tambm que ela produz um efeito benfico neste sentido,

    notadamente, contribuindo de maneira significativa a reduzir o nmero de incidentes

    de reembolso.

    Prope-se que o consumidor seja protagonista, e no coadjuvante, no processo de

    elaborao da relao contratual. A legislao deve, portanto, potencializar sua atuao nessa

    relao, e no a delimitar, pois se acredita que atravs de um consumidor bem educado,

    pode-se garantir a preveno do superendividamento77.

    Na atual sociedade de crdito, entretanto, a regulao do crdito nem sempre

    consegue impedir o superendividamento. Neste sentido, Clarissa Costa de Lima78

    apresenta

    uma crtica pertinente ao modelo proposto:

    A maior crtica que se faz ao modelo de regulao que visa a evitar o uso excessivo

    e imprudente do crdito ao consumidor, mediante o fornecimento de mais

    informaes e esclarecimentos ao consumidor, o fato de que tem como

    pressuposto um modelo de consumidor racional que no sofre influncias

    psicolgicas ou emocionais no momento em que decide contrair o crdito.

    O excesso de otimismo dos devedores e a presso exercida pela mdia nas pessoas

    so alguns dos fatores onde a efetividade da informao e do aconselhamento encontram

    limites. Alm disso, importante observar que os acidentes de vida desafiam os mecanismos

    de preveno, porque, nesse caso, a informao e o aconselhamento no conseguem impedir

    situaes de superendividamento79.

    Nas situaes em que os mecanismos de preveno no so suficientes para evitar

    superendividamento do indivduo, o Estado deve regulamentar o tratamento e atenuar os

    efeitos do fenmeno na sociedade.

    76

    BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Caderno de Investigaes Cientficas- Vol. 1. MARQUES , Cludia

    Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Kren Danilevicz. Preveno e Tratamento do

    Superendividamento. Braslia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor, 2010. p. 10. Disponvel em:

    Acesso em: 26 out. 2015. 77

    CHAGAS. Brbara Seccato Ruis. JESUS, Morgana Neves de. O problema do superendividamento e a

    reforma do Cdigo de Defesa do Consumidor: A educao como soluo possvel. 2012. Disponvel em:

    http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=eb30fa42eeb3bf42 Acesso em: 17 nov 2015. 78

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 52. 79

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 53.

  • 33

    3.2 A regulao para tratar o superendividamento: modelo americano versus modelo

    francs

    Os sistemas de falncia da pessoa natural diferenciam-se da falncia das pessoas

    jurdicas, porque as preocupaes econmicas cedem espao para os elementos humanitrios.

    O devedor, alm de reembolsar seus credores, deve ter garantido um mnimo de renda

    reservado para suas necessidades bsicas80

    .

    Ademais, o regramento da falncia das pessoas jurdicas tem como pressuposto

    um ator que, apesar de ter em seu poder as informaes adequadas, falhou. J em relao s

    pessoas naturais, o pressuposto o contrrio, afinal, como leigas, costumam tomar decises

    com informaes limitadas ou influenciadas por fatores externos81

    .

    A doutrina identifica dois modelos de tratamento para o superendividamento,

    tambm denominado de falncia ou insolvncia pela doutrina, que se baseiam em ideologias

    diferentes e adotam estratgias distintas para solucionar os problemas associados ao

    fenmeno.

    O primeiro modelo denominado de fresh start82

    , adotado por pases de tradio

    common law (Estados Unidos, Inglaterra, Canad e Austrlia), trata o superendividamento

    como um risco associado expanso do mercado financeiro e, por isso, aposta na socializao

    do risco de desenvolvimento do crdito. Consiste, basicamente, em perdoar as dvidas para

    restaurar a situao financeira do devedor de forma mais rpida83

    .

    O perdo tem a finalidade de incentivar as pessoas a permanecerem

    economicamente ativas, encorajando-as a continuarem contraindo novos crditos. Por esse

    motivo, afirma-se que est ligado a razes de mercado e no de cunho social como nos

    sistemas europeus84

    .

    J o segundo modelo, adotado pelos pases europeus, parte da ideia de que o

    consumidor falhou e necessita ser reeducado, sendo obrigado a pagar suas dvidas com

    80

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 54. 81

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 55. 82

    A expresso fresh start significa novo comeo, pois permite ao consumidor endividado um reincio sem o peso das suas antigas dvidas. 83

    MELLO, Flvio Citro Vieira de. A proteo do sobre-endividado no Brasil. Revista luso-brasileira de

    Direito do Consumidor. Vol. 1, n. 2, jun/2011, p. 27. 84

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 83.

  • 34

    patrimnio presente e rendimento futuro, atravs da elaborao de um plano de pagamento

    ajustado com os credores85

    .

    Clarissa Costa de Lima86

    esclarece que:

    Enquanto o modelo fresh start encara o superendividamento como um risco, uma

    falha de mercado que deve ser absorvida e que incentiva o perdo das dvidas, os

    europeus interpretam o superendividamento como uma falha pessoal dos devedores

    que devem ser submetidos a uma disciplina longa e rigorosa com foco na

    responsabilizao pelo pagamento das dvidas. Na prtica, em vez do perdo das

    dvidas pretritas, os devedores so obrigados a reembols-las por meio de um plano

    de pagamento escalonado de todas as dvidas ou de parte delas.

    So muitos os benefcios de um sistema de falncia, conforme relatrio do Banco

    Mundial: incentivo ao crdito responsvel, distribuio mais eficiente dos prejuzos,

    maximizao da atividade econmica, incentivo ao empreendedorismo, reduo dos custos de

    cobrana, dentre outros87

    .

    Nesse sentido, passa-se a uma anlise mais criteriosa do estudo do modelo francs

    dos planos de pagamento e do modelo americano do fresh start, a fim de ponderar qual o tipo

    de sistema de alvio tem mais potencial para no somente tratar, mas tambm prevenir os

    problemas associados ao superendividamento.

    3.2.1 Modelo de Falncia Individual nos Estados Unidos

    O Cdigo de Falncias americano (Bankruptcy Code88

    ), que compreende tanto as

    normas de falncia empresarial quanto as de falncia individual da pessoa natural, prev dois

    procedimentos para o tratamento do superendividamento: a liquidao do Captulo 7 (straight

    bankruptcy) e o ajustamento de dvidas do Captulo 13 (reorganization)89

    .

    O perdo das dvidas o centro do sistema americano e pode ser concedido logo

    no incio do procedimento, como ocorre no Captulo 7, quando no h bens a liquidar, ou

    aps o cumprimento de um plano de pagamento que contemple o reembolso de parte das

    85

    MELLO, Flvio Citro Vieira de. A proteo do sobre-endividado no Brasil. Revista luso-brasileira de

    Direito do Consumidor. Vol. 1, n. 2, jun/2011, p. 27. 86

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 83. 87

    THE WORLD BANK. Report on the treatment of the insolvency of natural persons. 2012 Disponvel em:

    . Acesso em: 23 nov 2015. 88

    Bankruptcy Code. Disponvel em: < http://uscode.house.gov/download/pls/Title_11.txt>. Acesso em: 23 nov

    2015. 89

    PEREIRA, Miranda Wellerson. Superendividamento e crdito ao consumidor: reflexo sob uma perspectiva

    de direito comparado. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli. Direitos do

    consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006, p. 158-190.

  • 35

    dvidas, como acontece no Captulo 13.

    A falncia estendida a todos os devedores, bastando que estejam com alguma

    dificuldade financeira de pagar as dvidas. Clarissa Costa de Lima90

    descreve o sistema

    americano de recomeo (fresh start):

    No h exigncias de comprovao da insolvncia e nem um valor mnimo das dvidas (no se exige que as dvidas sejam mais elevadas que o valor dos bens). O

    direito de pedir falncia amplo, independe da classe social a que pertencem

    (pobres, ricos ou classe mdia). Tampouco se exige uma investigao prvia dos

    motivos que ensejam o superendividamento. Tanto os superendividados passivos,

    que se endividaram em razo de um acidente inerente vida (desemprego, divrcio,

    doena) como os superendividados ativos, que se endividaram porque no souberam

    avaliar sua capacidade de reembolso, so admitidos no processo de falncia.

    O procedimento do captulo 7 se inicia com uma petio do devedor informando

    alguns dados legalmente exigidos (descrio do patrimnio, obrigaes vencidas e a vencer,

    renda e despesas). Em seguida, um administrador intima as partes para um primeiro encontro

    com os credores. Aps, inicia a fase de liquidao para o pagamento das dvidas possveis.

    No havendo bens, o procedimento se encerra com o perdo das dvidas91

    .

    Alm disso, o Cdigo de Falncias permite que o devedor mantenha certos bens

    de valor inferior iseno do Estado, restando liquidados os bens remanescentes. Assim, os

    devedores que optarem pelo Captulo 7 podem perder a propriedade no garantida de valor

    superior iseno92

    .

    O perdo, que pode ser concedido sem o consentimento dos credores, encontra

    limitao apenas em duas situaes: quando o devedor tenta fraudar o processo de falncia,

    ocultando seus bens para evitar liquidao, e quanto natureza de determinadas dvidas que

    no podem ser perdoadas (hipoteca de casa, dvidas de alimentos ou de sustento de menores,

    emprstimos educativos com fundo do governo, multa oriunda de condenao criminal, dentre

    outras)93

    .

    O captulo 13 tem a finalidade de garantir aos devedores sem patrimnio, mas

    com trabalho e rendimento fixo, a chance de tentar pagar ao menos parte da dvida por meio

    90

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 106. 91

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 109. 92

    MELLO, Flvio Citro Vieira de. A proteo do sobre-endividado no Brasil. Revista luso-brasileira de

    Direito do Consumidor. Vol. 1, n. 2, jun/2011, p. 30. 93

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 109.

  • 36

    de um plano de pagamento que pode durar de trs a cinco anos94

    .

    A vantagem do Captulo 13 reside em dar ao devedor a chance de preservar o

    patrimnio que exceda a iseno do Estado. Essa opo tem sido utilizada para salvar a

    residncia de milhares de americanos, uma vez que o processo de execuo hipotecria

    suspenso com o pagamento parcelado da dvida.95

    .

    A principal crtica ao modelo americano do fresh start, pela doutrina, refere-se

    eliminao da responsabilidade do devedor pelo pagamento de suas dvidas. Ademais, o

    sistema de falncia americano se torna bastante complexo, ao prever dois procedimentos

    distintos, dificultando a compreenso do consumidor no momento da escolha entre ambos e

    tornando-o mais vulnervel96

    .

    Ocorre que, em 2005, o legislador americano, atendendo o desejo da indstria de

    crdito, aprovou a lei conhecida como Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer

    Protection Act (BAPCPA), tornando a falncia mais dificultosa para os consumidores.

    Aps a reforma, o devedor passou a ser submetido a um teste de verificao da

    capacidade de reembolso (means test) para ser admitido no Captulo 7 da falncia. No caso de

    o teste comprovar que o devedor tem rendimentos suficientes para pagar as dvidas, ele fica

    impedido de recorrer ao Captulo 7, restando apenas a opo do Captulo 13.

    3.2.2 Modelo de Falncia Individual na Frana

    No sistema francs, as condies de admissibilidade do processo que visam

    solucionar o problema do superendividamento esto atualmente previstas no Livro III do

    Code de la Consommation, sob o Ttulo III, denominado Traitement des situations de

    surendettement. Antes mesmo de ser includa na codificao, a matria foi tratada pela Lei

    Neiertz Lei 89-1010, de 31.12.1989, e desde ento tem sido muito utilizada para a proteo

    dos direitos do consumidor de crdito97

    .

    94

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 109. 95

    MELLO, Flvio Citro Vieira de. A proteo do sobre-endividado no Brasil. Revista luso-brasileira de

    Direito do Consumidor. Vol. 1, n. 2, un/2011, p. 30. 96

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 112. 97

    CARPENA, Helosa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo

    emprico e perspectivas de regulao. In: MARQUES, Cludia Lima; CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli.

    Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crdito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,

    p. 310-344.

  • 37

    O procedimento se inicia com uma fase administrativa obrigatria diante da

    Comisso de Superendividamento dos Particulares, que tem a funo primordial de conduzir

    as partes a um plano de pagamento amistoso.

    O devedor que se considera em situao de superendividamento dirige-se

    Comisso do seu domiclio e preenche um formulrio (dclaration de surendettement), no

    qual declara o ativo e o passivo de seu patrimnio. A comisso pode, ento, a partir de uma

    anlise criteriosa da situao do consumidor, admitir ou no o procedimento.

    A partir da admisso do procedimento, a Comisso passa a se dedicar, mais

    detalhadamente, avaliao do estado de endividamento do devedor com vistas conciliao

    sobre um plano de pagamento, que ter o prazo mximo de durao de dez anos, entre o

    devedor e seus credores.

    O plano contempla medidas de parcelamento, prorrogao do tempo para o

    pagamento das dvidas, reduo da taxa de juros e substituio das garantias, e dever

    preservar a capacidade de reembolso do devedor, deixando sua disposio um valor mnimo

    (reste vivre) para o pagamento das despesas de subsistncia98

    .

    Todos os credores so chamados para a negociao, pois todos podem sofrer

    medidas destinadas a permitir o tratamento da situao do devedor. A lei no estabelece

    prioridade entre os diferentes credores, de modo que a Comisso estabelece a ordem de

    pagamento das dvidas em funo das particularidades de cada caso99

    .

    Nos casos em que a conciliao no obteve xito, a Comisso recomenda ao juiz

    as medidas adequadas para solucionar o problema de insolvncia do devedor. Segue-se, ento,

    a fase judicial que contempla procedimentos distintos conforme o grau de endividamento do

    consumidor100

    .

    Nos casos em que o devedor se encontra em uma situao de

    superendividamento simples, ou seja, quando dispe de recursos que permitam a

    reorganizao de suas dvidas, o juiz aplica as chamadas medidas ordinrias, previstas no

    art. L 331-7 do Cdigo de Consumo, tais como: reescalonamento, prorrogao dos

    98

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 93. 99

    LIMA, Clarissa Costa de. O Mercosul e o desafio do superendividamento. Revista de Direito do

    Consumidor. Ano 19, n.73, jan-mar/ 2010, p.34. 100

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 96.

  • 38

    pagamentos e reduo da taxa de juros101

    .

    J nas situaes mais graves, denominadas de superendividamento-

    insolvabilidade, na qual o devedor no dispe de recursos para o pagamento de seus dbitos,

    o juiz aplica as medidas extraordinrias, que incluem a moratria e o perdo parcial das

    dvidas102

    .

    A moratria, que consiste na suspenso temporria da exigibilidade dos crditos

    pelo prazo mximo de dois anos, a primeira medida a ser adotada pelo juiz em situaes

    mais graves.

    Aps a moratria, se houver melhora na situao financeira do devedor, a

    Comisso recomenda ao juiz a aplicao das medidas ordinrias. Contudo, no caso de o

    devedor permanecer insolvente aps a moratria, a Comisso recomenda ao juiz o perdo

    parcial das dvidas, liberando o devedor de uma parte do seu passivo103

    .

    Todavia, as medidas adotadas pela experincia francesa se mostraram

    insuficientes nos casos de endividamento mais graves, quando os devedores no possuem

    bens e rendimentos para o pagamento das dvidas ainda que parceladas.

    Desse modo, em 2003, entrou em vigor a lei Borloo 104 ou lei segunda

    chance, que criou um novo procedimento, denominado de restabelecimento pessoal, que

    implica no perdo total e imediato das dvidas quando o devedor no tem bens passveis de

    liquidao. Esse procedimento exclusivamente judicial, pois no contempla a fase diante da

    Comisso, e depende do consentimento do prprio devedor105

    .

    3.2.3 Anlise comparativa dos dois modelos

    O que se percebe da anlise de ambos os modelos que existe uma convergncia

    global e acelerada entre os sistemas de tratamento do superendividamento no mundo106. Os

    101

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, p. 97, 2014. 102

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, p. 98, 2014. 103

    LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomear dos

    consumidores. So Paulo: Revista dos Tribunais, p. 99, 2014. 104

    Lei Bor