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o ser humano

Qual a essncia do ser humano?

A investigao sobre o mundo que acabamos de realizar pode ser considerada pano de fundo de outra investigao, talvez mais cara para todos ns: aquela que corresponde humanidade. Assim, nosso foco agora se fechar sobre algumas das principais questes acerca do ser humano: sua essncia ou especificidade, sua condio no mundo, suas fortalezas e debilidades. Vejamos o que podemos encontrar.

Questes filosficasQual o lugar do ser humano no universo? Existe uma natureza humana? Quanto de ns natureza, quanto cultura? Existe liberdade humana?

Conceitos-chave

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ser humano, natureza humana, condio humana, cultura, biosfera, antroposfera, trabalho, linguagem, ideologia, liberdade, responsabilidade

Unidade 2 Ns e o mundo

1112necessrio para sua produo e uso parte do nosso legado social. Resulta de uma tradio acumulada por muitas geraes e transmitida, no pelo sangue, mas atravs da linguagem (fala e escrita). A compensao Rue o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres o crebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua prpria cultura. (A evoluo cultural do homem, p. 40-41). Assim, diferentemente dos outros animais, os humanos no so apenas seres biolgicos produzidos pela natureza. So tambm seres que modificam o estado de natureza, isto , a condio natural das coisas, definida pela natureza. Isso significa que os humanos so tambm seres culturais. Esmiucemos um pouco mais o que acabamos de afirmar.

NATUREZA OU CULTURA?

Um ser entre dois mundos o ser humano? Ou, dito de uma maneira mais pessoal, quem somos ns? Comecemos nossa busca pela biologia. Sabemos que somos seres vivos pertencentes ao reino animal e, mais especificamente, espcie denominada Homo sapiens. O que distinguiria nossa espcie das demais?

o que

Humanos e outros animaisSe compararmos o corpo humano com o de outros animais, veremos que o nosso no to capacitado quanto o deles para enfrentar uma srie de dificuldades. Como ilustra o arquelogo australiano Gordon Childe (1892-1957), no temos, por exemplo, um couro peludo como o do urso para manter o calor corporal em um ambiente frio. O corpo humano tambm no excepcionalmente bem-adaptado, como o de alguns animais, fuga, autodefesa ou caa. Por isso, no temos a capacidade de correr como uma lebre ou um avestruz. No temos a colorao protetora do tigre ou a armadura defensiva da tartaruga ou da lagosta. No temos asas para voar e poder localizar mais facilmente uma caa. Faltam-nos o bico, as garras e a acuidade visual do gavio. No entanto, conclui Gordon Childe: pode ajustar-se a um nmero maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer mamfero superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavio e o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os polos da Terra at o equador. Nos trens e automveis que constri, pode superar a mais rpida lebre ou avestruz. Nos avies e foguetes pode subir mais alto do que a guia, e, com os telescpios, ver mais longe do que o gavio. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar. Mas fogo, roupas, casas, trens, automveis, avies, telescpios e armas de fogo no so parte do corpo do homem. Eles no so herdados no sentido biolgico. O conhecimento

o ser humano

Interior de um iglu - habitao construda com blocos de neve ou gelo - em uma cidade no extremo norte do Canad. Exemplo marcante da inventividade e adaptabilidade humana.

Condutas inatas e aprendidasAprendemos em biologia que boa parte do comportamento dos animais est vinculada a reflexos e instintos (padres inatos, no aprendidos, de conduta), relacionados a estruturas biolgicas hereditrias. Assim, o comportamento de um inseto praticamente igual ao de qualquer outro de sua espcie, hoje e sempre. o que observamos, por exemplo, na atividade das abelhas nas colmeias ou das aranhas tecendo suas teias.

1131No entanto, algumas espcies animais apresentam, alm dos modelos comportamentais considerados inatos, algumas reaes mais flexveis, imprevisveis ou maleveis, de acordo com as circunstncias ambientais. o caso, por exemplo, de ces e gatos, nos quais distinguimos muitas vezes o que se poderia chamar de "personalidade". Em chimpanzs e gorilas, possvel encontrar atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocnio. Agora, se colocamos o ser humano nessa comparao, podemos dizer que existe uma grande diferena entre seu comportamento e o dos animais em geral, no que diz respeito a certas habilidades. Para dar um s exemplo, mesmo o chimpanz mais evoludo possui apenas rudimentos daquilo que lhe permitiria desenvolver a linguagem simblica como qualquer humano saudvel capaz de fazer - e tudo o que dela resulta: aprender, reelaborar o contedo aprendido e promover o novo (inveno). Isso quer dizer que a vida de cada animal , em grande medida, semelhante ao padro bsico vivido por sua espcie. Por sua vez, o ser humano tem, individualmente e como espcie, a capacidade de romper com boa parte de seu passado, questionar o presente e criar a novidade futura.Linguagem simblica - sistema de smbolos, isto , signosque, por conveno (acordo entre as pessoas), representam alguma coisa. Por exemplo, as lnguas portuguesa, inglesa etc.

Captulo

6 O ser humano

tem uma massa enceflica maior do que a dos outros animais e um sistema nervoso extenso e complexo. Essa pode ser, segundo alguns estudiosos, a base biolgica que nos permitiu certos "voas" mais altos, como o desenvolvimento da linguagem e a socializaoenfim, a criao cultural.

o ser humano

No h dvidas de que todo ser humano apresenta tambm reflexos e instintos vinculados a estruturas biolgicas hereditrias prprias da nossa espcie. Paralelamente, elementos genticos limitam certas mudanas, e fatores socioeconmicos dificultam a realizao de determinados desenvolvimentos humanos. Alm disso, vrios tipos de crenas, ideologias e condicionamentos impedem as pessoas de sequer desejar uma transformao em si mesmas ou sua volta (conforme veremos adiante). Mesmo assim, podemos dizer que o ser humano no nasce pronto pelas "mos da natureza", como parece ocorrer no reino animal. Como defendem alguns pensadores, a vida de cada indivduo humano seria um "parto" constante, um processo permanente de nascimento e construo de si mesmo. O que determina, ento, essa diferena entre o animal humano e todos os outros animais?

Sntese humanaContinuando nossa anlise do ponto de vista biolgico, essa caracterstica humana de aprender e inventar, de perceber, interpretar e comunicar o que percebeu, de transformar a si mesmo e o que est ao seu redor parece estar intimamente ligada a propriedades de seu sistema nervoso e, especificamente, do crebro humano, como assinala Gordon Childe no final do texto citado e confirmam outros estudiosos. Graas grande plasticidade (capacidade de modelar-se e ser modelado) de seu sistema nervoso, o ser humano constitui-se em um organismo cuja estrutu-

Na maioria dos mamferos, mamar um ato instintivo. Tanto filhotes de animais como bebs, mesmo sendo "marinheiros de primeira viagem", no costumam ter dificuldade em sugar o alimento do seio materno.

Unidade 2 Ns e o mundo

1114Criatura e criador do mundo em que vive. Um ser capaz de dominar a natureza em muitos aspectos, mesmo fazendo parte dela. Capaz no s de criar coisas extraordinrias, mas tambm de destruir de modo devastador. Capaz de acumular um saber imenso e, no entanto, permanecer angustiado por dvidas profundas que o fazem sempre propor novas perguntas e novos problemas a si prprio.

ra capaz de apresentar condutas inatas e aprendidas, de desenvolver a linguagem, manifestar conscincia e socializar-se (cf. MATURANA e VARELA, rbol El dei conocimiento). O ser humano revela-se, assim, um ser ao mesmo tempo biolgico e cultural. Mediante a cultura, criou para si um "mundo novo", diferente do cenrio natural originalmente encontrado. Em outras palavras, dentro da biosfera (a parte do planeta que rene condies para o desenvolvimento da vida), os humanos foram construindo a antroposfera (a parte do mundo que resulta do ajustamento da natureza s necessidades humanas). Essa antroposfera, criada pelas diferentes culturas, a morada do ser humano no mundo. Constitui o cosmo humano, um espao construdo pelos conhecimentos e realizaes desenvolvidos e compartilhados pelos diferentes grupos sociais atravs da histria (veremos especificamente o tema da cultura mais adiante neste captulo). Isso significa que no ser humano ocorre uma sntese, isto , uma integrao de caractersticas hereditrias e adquiridas, inatas e aprendidas, aspectos individuais e sociais, elementos do estado de natureza e de cultura.

CONEXES

t , Identifique elementos de seu meio e de sua experincia cotidiana, distinguindo entre aqueles que pertencem biosfera e antroposfera.

Ponto de transioPodemos fazer agora as seguintes perguntas: Onde acaba, no ser humano, a natureza e comea a cultura? Em que ponto, em que momento, a partir de que fato ocorreu essa transio ou essa sntese? O tema polmico. Alguns estudiosos ~ '" afirmam que no h uma fronteira rgida en~ tre natureza e cultura, enquanto, para outros, ~ um provvel indicador dessa transio teria g, sido, em termos histricos, a construo das .g ' primeiras ferramentas pelos seres humanos. Mesmo assim, podemos seguir pergun~ tando: que fator, que elemento, que aspecto fundamentalmente humano permitiu essa ~ transio? Vejamos as respostas de duas n; ~ correntes interpretativas que consideramos ~ as mais relevantes para nossa investigao .

J

.f

Linguagem

e comunicao

sem fim (1928) - Salvador Dal (Museo Nacional Reina Sofa, Madri, Espanha). A existncia humana parece ser um enigma indecifrvel, ao mesmo tempo fascinante e assustador.

o enigma

De acordo com alguns estudos, o fator determinante da transio natureza-cultura a linguagem. Trata-se de uma corrente que entende o ser humano fundamentalmente como um ser lingustico. Para ilustrar essa concepo, o antroplogo francs Claude Lvi-Strauss (1908-2009) faz o seguinte exerccio de imaginao: Suponhamos que num planeta desconhecido encontremos seresvivos que fabricam utenslios. Isso no nos dar a certeza de que eles se incluem na ordem humana. Imaginemos, ago-

Essa condio parece fazer dos humanos seres ambguos, contraditrios, instveis e dinmicos. Um produto da natureza e da cultura e, ao mesmo tempo, um transformador da natureza e da cultura.

1151ra, esbarrarmos com seres vivos que possuam uma linguagem que, por mais diferente que seja da nossa, possa ser traduzida para nossa linguagem - seres, portanto, com os quais poderamos nos comunicar. Estaramos, ento, na ordem da cultura e no mais da natureza. (Citado em CUVILLlER, 2). p.

Captulo

6 O ser humano

por meio da linguagem que o conhecimento individual pode incorporar-se ao patrimnio social (estudaremos com mais detalhe o fenmeno humano da linguagem e da comunicao no prximo captulo).

TrabalhoOutra vertente interpretativa, fundada pelo filsofo alemo Karl Marx (1818-1883), entende que o trabalho que possibilita a distino entre ser humano e animais, portanto, entre cultura e natureza. Segundo essa perspectiva, seria a partir do trabalho - e da forma como se d o processo de produo da vida material das comunidades humanas - que se desenvolveriam todas as outras formas de manifestao humana:Pode-se considerar a conscincia, a religio e tudo o que se quiser como distino entre os homens e os animais; porm esta distino s comea a efetivar-se quando os homens iniciam a produo dos seus meios de vida. (MARXe ENGELs, ideologia alem, p. 19). A

Assim, segundo esse antroplogo, o que teria distanciado definitivamente o ser humano da ordem comum dos animais - animais que somos tambm e nunca deixaremos de ser - e permitido a sua entrada no universo da cultura seria o desenvolvimento da linguagem e da comunicao. No se pode negar que a linguagem constitui uma das dimenses mais importantes da existncia humana, pois ela que permite o intercmbio das experincias e as aquisies culturais. pela linguagem, por exemplo, que pais e mes comunicam a seus filhos e filhas no apenas suas experincias pessoais, mas algo mais amplo: as experincias acumuladas e compartilhadas pela sociedade. De modo inverso, tambm

Imagem do filme Avatar (2009, EUA, direo de [ames Cameron). so elementos constitutivos da linguagem, permitindo intercmbio e aquisies culturais.

De acordo com essa interpreta~ o, portanto, o modo como os seres humanos constroem sua vida te material que d origem elaborao _1iiIl"".", da vida espiritual e das relaes so~ ciais, formando um conjunto que le constitui a cultura. Isso quer dizer .~ tambm que no podemos falar de ~ cultura no singular, mas sim de cul~ ~ turas, pois elas so mltiplas e vari