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A cincia

Questes filosficas O que cincia? Quais so os objetivos da cincia? O que mtodo cientfico? Que critrios devem pautar o conhecimento cientfico? O conhecimento cientfico superior ao senso comum? O conhecimento cientfico sempre correto e perfeito? O conhecimento cientfico neutro? A cincia deve ser tica? Como se define a finalidade da pesquisa cientfica? Conceitos-chave cincia, conhecimento, mtodo cientfico, mtodo experimental, leis cientficas, teorias cientficas, epistemologia, filosofia da cincia, Vamos agora investigar outra rea da atividade humana de enorme importncia mundo contemporneo: a cincia. no cincia moderna, mtodo da compreenso, mtodo da explicao, critrio da verificabilidade, neopositivismo, critrio da refutabilidade (falseabilidade), ruptura epistemolgica, emergentismo, pensamento sistmico, pensamento complexo, paradigma, cincia normal, cincia extraordinria, revoluo cientfica, mito do cientificismo

Estao Espacial Internacional, Terra branca e azul.

tendo co

Voc j reparou que quando um cientista afirma algo ningum ousa dizer o contrrio? Se diz, deve ser outro cientista. Por que: assim? O que faz a cincia ter tanto poder? Procuraremos responder a essa e outras questes neste captulo.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

1328dimentos que orienta o modo de conduzir uma investigao cientfica. H diversos conjuntos de procedimentos que caracterizam diferentes metodologias.

o QUE CINCIADo mtodo s leis cientficasComecemos nossa investigao sobre a cincia buscando o significado bsico dessa palavra. O termo cincia vem do latim scientia, que significa "conhecimento". Assim, como ponto de partida, podemos definir cincia como o campo da atividade humana que se dedica construo de um conhecimento sistemtico e seguro a respeito dos fenmenos do mundo. Por que dissemos "sistemtico e seguro"? Porque, como vimos antes (no captulo 4), a palavra conhecimento pode ser usada em um sentido geral (lato sensu) e em um sentido estrito (stricto sensu), que o conhecimento slido e bem fundamentado. Trata-se do que os gregos chamavam de episteme, o tipo de conhecimento que interessa cincia. Por isso, a investigao sobre o conhecimento obtido pela cincia conhecida como epistemologia.

A observao, experimentao ou verificao uma etapa importante de todo conhecimento cientfico. Mas preciso considerar tambm que toda observao est sempre dirigida por uma "carga" terica que o observador (o cientista) traz consigo.

Objetivos da cinciaNossa segunda questo pode ser: "Conhecer para qu?" Costuma-se dizer que para tornar o mundo compreensvel, proporcionando ao ser humano meios para prever situaes e exercer controle sobre a natureza. Essa viso surgiu com a cincia moderna (conforme estudamos no captulo 13 e veremos adiante mais detalhadamente). Segundo Jacob Bronowski (1908-1974), matemtico britnico de origem polonesa, pelo conhecimento cientfico, o "homem domina a natureza no pela fora, mas pela compreenso" (Cincias e valores humanos, p. 16). Ser isso possvel? Ser que a cincia alcana a compreenso que pretende, e o faz sem o uso da fora? Essas questes sero analisadas ao longo deste captulo.

Embora variado, o mtodo cientfico tem por base, de modo geral, uma estrutura lgica que engloba diversas etapas, as quais devem ser percorridas na busca de soluo para o problema proposto. Vejamos um esquema das etapas do mtodo cientfico experimental: enunciado de um problema - observando fatos, o cientista enuncia um problema que o intriga e que ainda no foi explicado pelo conhecimento disponvel. Nessa etapa, ele deve expor seu problema com clareza e preciso e procurar os instrumentos possveis para tentar resolv-lo; formulao de uma hiptese - tentando solucionar o problema, o cientista prope uma resposta possvel, que constitui uma hiptese a ser avaliada em sua investigao. Isso significa que a hiptese uma proposta no comprovada, que deve ser testada cientificamente; testes experimentais da hiptese - o cientista testa a validade de sua hiptese, investigando as consequncias da soluo proposta. Essa investigao deve ser controlada por ele, para que o fator relevante previsto na hiptese seja suficientemente destacado na ocorrncia do fato-problema; concluso - o cientista conclui a pesquisa cientfica, confirmando ou corrigindo a hiptese formulada e testada.

Mtodo cientficoVejamos agora o meio utilizado pela cincia, desde o incio da Idade Moderna, para alcanar seus objetivos: o mtodo cientfico. O que mtodo cientfico? O termo mtodo vem do grego meta, "atravs", e hodos, "caminho", significando "atravs de um caminho", ou de um procedimento. Assim, mtodo cientfico o ncleo de proce-

3291Outros ingredientesObserve, porm que, conforme assinalam alguns estudiosos, os mtodos cientficos no constituem sempre conjuntos fixos e estereotipados de atos a serem adotados em todos os tipos de pesquisa cientfica. Eles nascem da percepo de certos procedimentos recorrentes, mas que, por si s, no so suficientes para garantir o xito de qualquer empreendimento. Os resultados satisfatrios de uma pesquisa esto sujeitos a um amplo conjunto de fatores, desde a natureza do problema pesquisado at os recursos materiais aplicados na pesquisa. Dependem, ainda, de elementos como o acaso e, sobretudo, da criatividade, imaginao e sagacidade do pesquisador.

Capitulo

19 A cincia

Portanto, a teoria tem como objetivo explicar as regularidades entre os fenmenos e deles fornecer uma compreenso ampla. Costuma-se dizer que explicar e prever constituem a funo fundamental das leis e teorias cientficas.

Transitoriedade cientficas

das teorias

Leis e teorias cientficasAlm de utilizar um mtodo, os cientistas, depois de suas investigaes, tambm formulam leis e teorias, principalmente dentro das cincias naturais, com destaque para a fsica. Nas cincias sociais esse modelo de investigao no to presente. Mas o que so exatamente as leis e teorias cientficas? Analisando inmeros fatos do mundo, percebemos a ocorrncia de fenmenos regulares, como a sucesso do dia e da noite, das estaes do ano, o nascimento dos seres vivos, a atrao dos corpos em direo ao centro da Terra e outros. Para reconhecermos a ocorrncia de regularidades, devemos observar os fenmenos semelhantes e classific-los segundo suas caractersticas comuns. Ao examinar as regularidades, a cincia procura chegar a uma concluso geral que possa ser aplicada a todos os fenmenos semelhantes. Por meio desse processo, formulam-se as leis cientficas. Nesse sentido, leis so enunciados generalizadores que procuram apresentar relaes constantes e necessrias entre fenmenos regulares. As leis cientficas desempenham duas funes bsicas: resumem uma grande quantidade de fenmenos regulares, favorecendo uma viso global do seu conjunto; possibilitam a previso de novos fenmenos que se enquadrem na regularidade descrita.

A cincia prope-se atingir conhecimentos precisos, coerentes e abrangentes. Caracteriza-se por tentar, deliberadamente, alcanar resultados que o senso comum, por suas condies, no pode normalmente alcanar. O estudo da histria das cincias revela, no entanto, que inmeras teorias cientficas que, por algum tempo, reinaram como absolutamente slidas e corretas mais tarde foram refutadas, sendo modificadas ou substitudas por outras. Por exemplo, durante sculos e sculos, o mundo ocidental acreditou, de forma inabalvel, que a Terra fosse o centro do universo. Entretanto, Nicolau Coprnico, com a obra Da revoluo das esferas celestes, publicada no ano de sua morte, 1543, demonstrou que a Terra se movia em torno do seu prprio eixo e ao redor do Sol. Era a teoria heliocntrica, que refutava o geocentrismo de Ptolomeu. Isso significa que os conhecimentos cientficos no so inquestionavelmente certos, coerentes e infalveis para todo o sempre. como se tivessem certas "condies de validade".

As leis costumam fazer parte de uma teoria cientfica, que "especifica a causa ou mecanismo subjacente tido como responsvel pela regularidade descrita na lei" (KNELLER, A cincia como atividade humana, p. 150).

Charge sobre a Revolta da Vacina, de 1904, quando a populao do Rio de Janeiro se revoltou contra o "espeto obrigatrio", campanha de vacinao contra a varola comandada por Osvaldo Cruz. Esseacontecimento um bom exemplo de que muitas vezes um novo conhecimento cientfico - no caso o uso da vacina universal como forma de preveno de doenaspode demorar para ser aceito pela sociedade.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

1330todos: a epistemologia ou filosofia da cincia (aqui usamos as duas expresses como sinnimas, embora seja possvel fazer uma distino entre elas, como observamos no quadro sintico II, no final da unidade 1). O tema geral da filosofia da cincia o desenvolvimento da reflexo crtica sobre os fundamentos do saber cientfico. Esse tema geral desdobra-se em uma srie de questes, tais como: estudo do mtodo de investigao cientfica; classificao da cincia; natureza das teorias cientficas e sua capacidade de explicar a realidade; papel da cincia e sua utilizao na sociedade.

Essa permanente possibilidade de que uma teoria cientfica seja revista ou corrigida por outra pode conduzir noo pessimista de que a cincia fracassou no seu propsito ou perdeu sua razo de ser. Ou, ainda, posio ctica de que todos os conhecimentos cientficos so crenas passageiras que sero condenadas no futuro. No entanto, existe certo consenso entre os defensores da cincia a respeito de que, embora as teorias cientficas possam ser refutadas, reformuladas ou corrigidas, a cincia cumpre sua funo enquanto tem "xito no seu propsito de fornecer explicaes dignas de confiana, bem fundadas e sistemticas para numerosos fenmenos" (NAGEL, Cincia: natureza e objetivo, em MORGEN BESSER, Filosofia da cincia, p. 18). Para alguns, seu papel seria justamente o de construir um conhecimento continuamente progressivo.

Filosofia da cinciaEssas e outras discusses levaram ao surgimento de um campo de reflexo sobre a cincia e seus m-

A epistemologia destacou-se como ramo da filosofia no final do sculo XIX, a partir de uma polmica entre os pensadores ingleses William Whewell (1794-1866) e john Stuart Mill (1806-1873) sobre o papel do mtodo indutivo na cincia. (Voltaremos s reflexes da filosofia da cincia mais adiante neste captulo.)

Anlise e entendimento1. Caracterize o que se entende hoje por cincia, destacando seus objetivos, metodologia, resultados e funo. senta uma estrutura lgica? Justifique.

3. Analise a seguinte afirmao: explicar e preverso as funes fundamentais das leis e das teorias cientficas.

2. Por que se diz que o mtodo cientfico apre-

Conversa filosfica1. Opinio de cientistas Em sua opinio, se um conhecimento cientfico pode ser refutado com o passar do tempo, por que as opinies dos cientistas tendem a ser mais valorizadas que as de outras pessoas na maioria das sociedades ocidentais contemporneas? Haveria um endeusamento ou uma mitificao do cientista? Ou h uma boa razo para que isso ocorra? Discuta o tema com colegas.

CINCIA NA HISTRIA A razo cientfica atravs do tempoO que denominamos cincia tem uma histria recente. Conforme estudamos antes (no captulo 4), at o sculo XVII filosofia e cincia estavam interligadas, e foi s a partir da revoluo cientfica

iniciada por Galileu que teve incio a histria da cincia como setor autnomo, independente da filosofia. Por isso, as origens do saber cientfico confundem-se com as origens da prpria filosofia. Essas origens situam-se na filosofia pr-socratica, marcada pela busca da arch (o princpio de todas as coisas da natureza), isto , da unidade em meio multiplicidade, do permanente em meio ao transitrio (como vimos no captulo 10).

3311

Captulo

19 A cincia

Cincia modernaEm certo sentido, o objetivo da cincia continua sendo compreender o que universal em relao aos objetos e fenmenos investigados. O que mudou bastante, dos antigos gregos cincia moderna, foi o prprio entendimento do que cincia e das condies nas quais se d o conhecimento cientfico. Aristteles dizia que conhecer conhecer as causas, concebidas por ele como sendo quatro: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final (conforme vimos no captulo 11). Ao conhecer todas elas, alcanaramos um conhecimento que transcenderia a cincia, no seu sentido atual, e se confundiria com a prpria metafsica - que , como estudamos antes (no captulo 5), o conhecimento dos princpios ltimos de toda a realidade.

reduz a explicao dos fenmenos a equaes, teoremas e frmulas. Como observou o historiador da cincia Alexandre Koyr em seu livro Do mundo fechado ao universo infinito, a partir do Renascimento houve a destruio da ideia de cosmo, isto , de um mundo hierarquizado, dotado de centro e limitado no espao. Em seu lugar, surgiu a ideia de um universo infinito, no hierarquizado, no mstico, mas geomtrico. (Reveja esse tema, estudado mais detalhadamente nos captulos 5 e 13).

Enfoque operativoOutra caracterstica peculiar da cincia moderna a ruptura com o aspecto contemplativo que predominava na cincia antiga. A cincia moderna fundamentalmente operativa, isto , tem interesse no conhecimento para poder operar, intervir na natureza e domin-la. A filosofia de Kant reflete essa nova relao do ser humano com a natureza quando afirma: A razo, assim, se aproxima da natureza no como um aluno que ouve tudo aquilo que o professor se decide a dizer, mas como um juiz que obriga a testemunha a responder a questes que ele mesmo formulou. (Crtica da razo pura, p. 11).

Enfoque quantitativoA partir de Galileu deu-se o abandono, em grande medida, dessa pretenso metafsica de corihecimento, de busca dos princpios ltimos de todas as coisas. A cincia passou a se guiar por um procedimento mais especfico e experimental e, sobretudo, por um enfoque quantitativo. A busca da explicao qualitativa e finalstica (que busca um fim, uma finalidade, um sentido) acerca dos seres foi substituda pela matematizao, que abstrai as caractersticas sensveis da realidade e

A lio de anatomia do Or.Tulp (1632) - Rembrandt. Retrato da dissecao de um corpo no sculo XVII, exemplo da cincia operativa da Idade Moderna. As dissecaes tornaram-se acontecimentos pblicos poca, pois havia grande curiosidade acerca do funcionamento do corpo humano.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

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Desenvolvimento

das cincias

apenas no interior da cincia, mas tambm na sociedade em geral. Vejamos alguns casos emblemticos.

A fsica e a qumica, no sculo XVII, e, posteriormente, as cincias biolgicas desenvolveram-se no interior dessa nova concepo de cincia. O otimismo em relao s cincias naturais dominou a Idade Moderna, estendendo-se s chamadas cincias humanas, que, nascidas no sculo XIX, procuraram atingir um patamar de cientificidade prximo do alcanado pela fsica, considerada o modelo de cincia. A prpria sociologia foi concebida por Augusto Comte, um entusiasta da cincia, como uma "fsica social". S posteriormente o socilogo Max Weber postularia o mtodo da compreenso (apreenso global dos elementos analisados) como mais adequado s cincias humanas que o mtodo da explicao (esclarecimento das causas), embora ele prprio no abrisse mo da coleta de dados e das anlises estatsticas, que so os procedimentos possveis de ser efetuados pelas cincias humanas.

Teoria da evoluo das espciesNo campo da biologia, a teoria da evoluo das espcies, estabelecida em 1859 pelo naturalista ingls Charles Darwin (1809-1882), veio abalar o prprio estatuto do ser humano como "centro do mundo", que marcou o humanismo da poca moderna. Trata-se da tese de que a diversidade biolgica de nosso planeta se deve a modificaes acumuladas ao longo de sucessivas geraes, em um processo evolutivo de seleo natural que culminou com o aparecimento do ser humano. Foi uma grande revoluo, tanto no mbito cientfico como no senso comum, pois se chocava com muitas crenas, principalmente religiosas, a respeito da origem do ser humano sobre a Terra. Alm disso, lanava a noo de que as coisas nem sempre foram assim como as vemos. Existiria uma histria tambm no mundo natural. Surgiram ainda, no campo da biologia, as leis da hereditariedade de Mendel (1866) e, no incio do sculo XX, a identificao dos cromos somos e dos genes, que levaram decifrao do cdigo gentico na segunda metade do sculo XX e possibilitaram as mais recentes e polmicas pesquisas no campo da engenharia gentica.

Revolues cientficasNo final do sculo XIX e incio do sculo XX, a matemtica e a fsica clssicas foram revolucionadas por novas teorias que comearam a romper com certos paradigmas (modelos) estabelecidos at ento. Outras, porm, causaram grande impacto no

A ovelha Oolly nasceu em 1996 como resultado de uma das tcnicas mais polmicas desenvolvidas pela cincia atual: a clonagem. Ela foi gerada de forma assexuada, a partir das clulas mamrias de uma ovelha de 6 anos de idade.

CONEXES

1. Pesquise sobre o impacto que a clonagem provocou no meio cientfico e na sociedade. Depois elaboreuma anlise e reflexo que responda s seguintes questes: O que a clonagem representou para cada um desses mbitos? Por que houve tanta polmica em torno dela?

3331Geometrias no euclidianasNo campo da matemtica, surgiram novas concepes de geometria, desenvolvidas inicialmente por volta de 1826 pelo matemtico russo Nicolai Lobatchevski (1792-1856) e pelo hngaro Jnos Bolyai (1802-1860) - independentemente e sem conhecimento mtuo - e, posteriormente, pelo matemtico alemo Bernhard Riemann (1826-1866). Essas novas geometrias, denominadas geometrias no euclidianas, abalaram a certeza matemtica, pois rejeitavam alguns axiomas da geometria clssica euclidiana, colocando em dvida algumas verdades at ento consideradas evidentes e modificando as ideias sobre o espao geomtrico. A partir do golpe desferido por essas novas concepes, os axiomas da geometria clssica passaram a ser entendidos no mais como princpios irrefutveis, mas como simples pontos de partida. O matemtico francs Henri Poincar (1854-1912) reconheceu que, diferentemente da pretenso de irrefutabilidade que caracterizava a geometria euclidiana at ento, "uma geometria no pode ser mais verdadeira que outra: ela pode ser apenas mais cmoda" (Citado em REALE ANTlSERI, e Histria da filosofia, p. 414).

Captulo

19 A cincia

Albert Einstein conseguiu unir sua atividade como cientista reflexo filosfica, manifestando uma viso global e crtica do mundo contemporneo.

Fsica qunticaNo campo da fsica, o mecanicismo determinista (nexos necessrios entre causas e efeitos de um fenmeno), que se desenvolveu a partir da mecnica de Newton, havia se estendido aos outros ramos dessa cincia, como a termodinmica, a tica e a acstica, permeando o sculo XIX. No final do sculo XIX, no entanto, o desenvolvimento de diversas pesquisas apresentou contradies que abalaram essa concepo do universo fsico e propiciaram o desenvolvimento da fsica quntica. Em 1905, o fsico alemo Albert Einstein (1879-1955) reformulou os conceitos tradicionais de espao e tempo em um artigo intitulado "Sobre a eletrodinmica dos corpos em movimento", no qual, entre outras coisas, enuncia o conceito de energia como sendo igual quantidade de massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado (E = mc-). Era o ponto de partida para o desenvolvimento de sua teoria da relatividade.

O mecanismo da fsica clssica newtoniana sofreu novo abalo com a formulao do princpio da incerteza pelo fsico alemo Werner Karl Heisenberg (1901-1976), um dos fundadores da fsica quntica. Esse princpio estabeleceu a impossibilidade de determinar com preciso a velocidade e localizao de um eltron. Assim, no sculo XX, a fsica passou a lidar com dois grandes nveis de observao: o campo dos valores e grandezas verificveis na experincia cotidiana, que emprega a fsica clssica; o campo dos valores e grandezas envolvidos nos fenmenos microscpicos (atmicos, nucleares e subnucleares) e astronmicos, que emprega, por exemplo, a fsica quntica e a teoria da relatividade, respectivamente.

O desenvolvimento desses novos campos da fsica, alm de romper com a concepo determinista e mecanicista da fsica clssica, passou a admitir tambm, com o princpio da incerteza, certo "irracionalismo", o que abalou a pretenso de causalidade e previsibilidade que caracterizava a cincia at ento.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

1334preta do em sua totalidade de maneira interdisciplinar, associando, por exemplo, a viso econmica, cultural, biolgica, qumica etc., conforme o sistema em questo.,

Cincia ps-modernaA partir da segunda metade do sculo XX, aumentou significativamente o nmero de adeptos de abordagens que no seguem o modelo adotado desde o incio da cincia moderna, especialmente no que tange ao seu reducionismo mecanicista. Por esse motivo, vrios estudiosos falam no surgimento de um novo paradigma (modelo, conceito que veremos mais adiante), isto , de uma nova cincia: a chamada cincia ps-moderna. O reducionismo pode ser definido, como vimos antes, como a maneira de pensar segundo a qual o todo pode ser explicado pelas partes nas quais ele se reduz, no entendimento de que "a soma das partes equivale ao todo". Assim, se conhecermos as partes, conheceremos o todo. (Reveja a explicao mais detalhada de reducionismo mecanicista, apresentada no captulo 5.)

Pensamento

complexo

HolismoNas novas abordagens desenvolvidas nas ltimas dcadas, o todo tende a ser entendido como sistema, isto , como estrutura organizada de elementos inter-relacionados. Para ser adequadamente compreendido, o todo no pode ser dividido, isolando suas partes. As partes devem ser entendidas conjuntamente nas relaes que estabelecem entre si, sempre tendo como referncia o todo. Essa tendncia conhecida, de modo genrico, como holismo (do grego hIos, "total, inteiro, completo"). Uma de suas expresses o chamado emergentismo, movimento que ganhou fora dentro da biologia desde o incio do sculo XX. Os emergentistas dizem que, em alguns sistemas, "o todo algo mais que a simples soma de suas partes", porque nestas no se observariam algumas das propriedades que emergem com o todo. Em outras palavras, as propriedades emergentes no poderiam ser reduzidas s anteriores. Um exemplo de emergncia seria a vida, fenmeno incompreensvel quando se pensa em seus elementos inorgnicos isoladamente. Outra expresso de holismo na compreenso da realidade o pensamento sistmico, inicialmente formulado pelo bilogo austraco Karl Ludwig von Bertalanffy (1901-1972). Segundo essa abordagem, qualquer sistema real (por exemplo, uma Clula, uma empresa, a Terra) manifesta-se como um sistema complexo, isto , que apresenta distintos nveis de realidade em interao. Por isso, deve ser inter-

O pensamento complexo outra forma de abordagem do novo paradigma, mas que prope uma espcie de sntese entre a perspectiva reducionista e a holista. De acordo com um dos principais tericos dessa corrente, o pensador francs Edgar Morin (1921-), as pessoas estavam totalmente condicionadas a buscar compreender as partes separadas do todo (reducionismo). E, quando descobriram a abordagem sistmica, ficaram to fascinadas com ela que caram no outro extremo, passando a ver apenas da perspectiva do todo (holismo). Assim, para Morin, o holismo seria uma espcie de reducionismo invertido (com o nvel superior determinando o inferior). No entanto, conforme argumenta o pensador francs, nos sistemas complexos operam dois princpios: princpio de emergncia, que, como j vimos, relaciona-se com a possibilidade de emergirem propriedades que no estavam nas partes isoladas do todo. a criatividade do sistema (= o todo mais que a soma das partes); princpio de imposio, que expressa a possibilidade de as partes no manifestarem todas as suas propriedades potenciais (isto , de mant-las latentes) em benefcio da harmonia do sistema. Ou seja, o todo se impe s partes. a represso do sistema (= o todo menos que a soma das partes isoladas).

Por isso seria importante adotar, ao mesmo tempo, as perspectivas do todo e das partes (holista e reducionista) para compreender a complexidade do mundo. a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistrio do real; e de saber que as determinaes - cerebral, cultural, social, histrica - que impem a todo o pensamento, codeterminam sempre o objeto de conhecimento. isto que eu designo por pensamento complexo. (MORIN, O mtodo 1/: a vida da vida, p. 14).

3351

Captulo

19 A cincia

Novos paradigmas da ps-modernidade Complexidade - em vez da simplicidade da natureza, como props a cincia moderna (conforme vimosno incio do captulo), adota-se a perspectiva de uma realidade complexa.

Variabilidade e instabilidade - em vez da uniformidade e da estabilidade do mundo, expressas por leis naturais invariveis nas diversas instncias da realidade fsica, admite-se a existncia de leis distintaspara nveis da realidade distintos. Relacionamento - em vez do isolamento das partes, proposto pelo mtodo cientfico moderno, valoriza-se a perspectiva da relao entre elas.

Intersubjetividade - em vez da objetividade, supostamente garantida pela separao entre o objeto e o observador, entende-se que o observador (ou conjunto de observadores) integra o fenmeno que estuda.

Anlise e entendimento4. A partir do sculo XVII, modificou-se muito oentendimento do que cincia, de qual seu campo de atuao e de como se d o conhecimento cientfico, distanciando definitivamente dois conceitos de cincia. Justifique essa afirmao, caracterizando e comparando os conceitos antigo e moderno de cincia.

S. Que descobertas cientficas despertaram, napassagem do sculo XIX para o sculo XX, uma nova perspectiva sobre o fazer cientfico e seus resultados? E o que mudou com elas?

6. Por que se diz que estaria surgindo uma novacincia, uma cincia ps-moderna?

Conversa filosfica2. Progresso cientficoSer a histria da cincia um processo linear e evolutivo? A humanidade sabe cada vez mais do que sabia antes? Pesquise sobre o tema e encontre argumentos a favor e contra. Depois discuta-os com colegas.

EPISTEMOLOGIA A investigao fi losfica da cinciaA partir das transformaes no campo cientfico ocorridas na passagem do sculo XIX ao XX, muitas certezas foram abaladas, fazendo surgir novos questionamentos e reavaliaes dos critrios de verdade e da validade dos mtodos e teorias cientficas. A filosofia da cincia debruou-se sobre essas questes. interessante observar que, entre seus nomes mais significativos, esto muitos cientistas de

vrios ramos, que produziram reflexes sobre sua prpria prtica - e, nesse momento, so filsofos.

Critrio da verificabilidadeUm grupo de cientistas que marcou a filosofia da cincia foi o chamado Crculo de Viena, formado na dcada de 1920 por cientistas de diversas reas, tais como o fsico alemo Moritz Schlick (1882-1936), os matemticos alemes Hans Hahn (1879-1934) e Rudolf Carnap (1891-1970) e o socilogo e economista austraco Otto Neurath (1882-1945), entre outros.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

1336

o Crculo de Viena desenvolveu o neopositivismo, tambm denominado positivismo lgico ou ainda empirismo lgico, que pretendeu formar uma concepo cientfica do mundo isenta de qualquer especulao:As proposies fatuais so, pois, o fundamento de todo saber, mesmo que elas precisem ser aba ndonadas no momento de transio para afirmaes gerais. Estas proposies esto no incio da cincia. O conhecimento comea com a constatao dos fatos. (SCHLlCK, O fundamento do conhecimento, p. 46). Em suas reflexes acerca do procedimento cientfico, enfatizou as exigncias de clareza e preciso e props o critrio da verificabilidade para validar uma teoria cientfica. Em outras palavras, a teoria, para ser aceita como verdadeira, deveria passar pelo crivo da verificao emprica.

o austraco naturalizado britnico Karl Popper (1902-1994), fsico, matemtico e filsofo da cincia, criticou o critrio da verificabilidade e props como nica possibilidade para o saber cientfico o critrio da refutabilidade ou da falseabilidade. De acordo com esse critrio, uma teoria mantm-se como verdadeira at que seja refutada, isto , at que seja demonstrada sua falsidade, suas brechas, seus limites. Para Popper, nenhuma teoria cientfica pode ser verifica da empiricamente pelo mtodo indutivo. Isso porque,[...] do ponto de vista lgico, no nada bvio que se justifique inferir assertivas universais a partir de assertivas singulares, por mais numerosas que sejam estas ltimas. Com efeito, qualquer concluso tirada desse modo sempre pode se revelar falsa: por mais n.umerosos que sejam os casos de cisnes brancos que possamos ter observado, isso no justifica a concluso de que todos os cisnes so brancos. (Citado em REALE e ANTlSERI, Histria da filosofia, p. 1022). Com essa afirmao, Popper indicou a condio transitria da validade de uma teoria, ou seja, determinada teoria vlida at o momento em que refutada, mostrando-se sua falsidade. Somente a falsidade de uma teoria pode ser provada, mas nunca sua veracidade absoluta. Isso significa que a cincia possui apenas conjeturas (hipteses) sobre a realidade, e no certeza definitiva. Mas o conhecimento cientfico pode progredir em sua busca de explicar o real, sendo necessrio, para isso, que as sociedades estejam abertas liberdade de crtica e de pesquisa. Outro ponto que Popper destacou em suas reflexes sobre o conhecimento cientfico foi que a mente no uma "tabula rasa", como pensam os ernpiristas. Para ele, no existe observao pura, pois todas as observaes so sempre realizadas luz de pressupostos e de teorias prvias que o cientista traz consigo. E elas se confirmam ou no a partir de sua observao.

Critrio da refutabilidade

Rupturas epistemolgicasOutro filsofo importante no campo da cincia foi o francs Gaston Bachelard (1884-1962), que destacou a importncia do estudo da histria da cincia como instrumento de anlise da prpria racionalidade. Nessa pesquisa, a atividade cientfica entendida como parte de um processo histrico amplo e que possui um carter social.

Mais conhecido como um dos maiores nomes da filosofia da cincia, Popper tambm trouxe importante contribuio ao pensamento poltico. Com uma crtica aguada a toda forma de totalitarismo, foi um defensor persistente do liberalismo.

3371De acordo com a anlise de Bachelard, a cincia progride por rupturas epistemolgicas quando supera obstculos epistemolgicos. Isso quer dizer que caminha por saltos que se caracterizam pela recusa dos pressupostos e mtodos que orientavam a pesquisa anterior (sustentando os erros estabelecidos), pois esses pressupostos e mtodos atuavam como obstculos, como entraves ao avano do conhecimento. Esses obstculos podem se dever a hbitos socioculturais cristalizados, a dogmatizaes de teorias que freiam o desenvolvimento da cincia, entre outros fatores. Exemplos de ruptura epistemolgica so os da fsica quntica e da teoria da relatividade, que formularam uma nova maneira de conceber o espao e o tempo, como resposta aos obstculos representados pela fsica newtoniana. Bachelard destacou tambm o papel da imaginao e da criatividade como elementos imprescindveis prtica cientfica.

Captulo

19 A cincia

Paradigma cientfica

revolues

Por sua vez, o estado-unidense Thomas Kuhn 0922-1996), fsico e filsofo da cincia, desenvolveu sua teoria acerca da histria da cincia entendendo-a no como um processo linear e evolutivo, mas como uma sucesso de paradigmas que se confrontam entre si. Paradigma, em sua definio, um conjunto de normas e tradies dentro do qual a cincia se move, durante um determinado perodo e em certo contexto cultural. No seu livro A estrutura das revolues cientiji.cas (962), Kuhn sustenta a tese de que a cincia se desenvolve durante certo tempo a partir da aceitao, por parte da comunidade cientfica, de um conjunto de teses, pressupostos e categorias que formam seu paradigma. Em determinados momentos, porm, o paradigma se altera, provocando uma revoluo que abre caminho para um novo tipo de desenvolvimento cientfico. Foi o que se deu, por exemplo, na passagem da fsica antiga fsica moderna, ou ainda na passagem da fsica clssica (moderna) fsica quntica. De acordo com Kuhn, como se ocorresse uma nova reorientao da viso cientfica, na qual os elementos de um problema so inseridos em novas relaes. Thomas Kuhn tambm faz a distino entre cincia normal e cincia extraordinria: cincia normal - aquela que se desenvolve dentro de certo paradigma, acumulando dados e instrumentos em seu interior; cincia extraordinria - aquela que surge nos momentos de crise de um paradigma. Surge como nova cincia, questionando os fundamentos e pressupostos da cincia anterior e propondo um novo paradigma.

Planetrio do sculo XVIII, com o Sol ao centro. A mudana do geocentrismo para o heliocentrismo um exemplo clssico de mudana de paradigma na cincia: quando o modelo geocntrico no mais conseguia explicar certos fenmenos foi necessrio encontrar outro que desse conta do problema.

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Anlise e entendimento7.conjunto de transformaes da cincia, na passagem do sculo XIX para o XX, estimulou o surgimento de uma rea de reflexo filosfica at ento inexistente: a filosofia da cincia ou epistemologia. Entre os epistemlogos, passou-se a discutir, por exemplo, sobre o critrio a ser adotado para validar uma teoria cientfica. Nesse debate, opuseram-se os pensadores do Crculo de Viena e Karl Popper. Que critrio defendia cada um? Explique-os.

o

momento, de se render a outra teoria, zes que ainda no possvel imaginar. cesso de aprofundar a teoria no teria Voc acredita que Popper concordaria opinio de Einstein? Por qu?

por raO prolimites. com a

9. Em que sentido podemos

dizer, com Bachelard, que a fsica newtoniana constituiu, em dado momento, um obstculo epistemolgico para os cientistas? e revolu-

8. Albert Einstein teria afirmado, referindo-se suateoria da relatividade, que ela ter, em algum

10. Explique os conceitos de paradigma o cientfica em Thomas Kuhn.

Conversa filosfica3. Cincia e filosofia O que diferencia o saber cientfico do saber filosfico , segundo Russell, principalmente o enfoque: a cincia interessa-se mais em resolver problemas especficos, delimitados, enquanto a filosofia busca alcanar uma viso global, harmnica e crtica do conhecimento. Com qual tipo de conhecimento voc mais se identifica? uma reflexo sobre sua maneira de ser e de conhecer. Com o cientfico ou como o filosfico? Elabore

C NCIA E SOC EDADE

O debate sobre o papel

da cinciaVimos que a anlise epistemolgica contempornea tem levado compreenso da atividade cientfica como um procedimento que admite falhas. Esse questionamento tem relativizado o conhecimento cientfico em relao aos outros tipos de conhecimento e jogado luz sobre o processo de conhecer, que no depende exclusivamente da atividade lgica. interessante a observao de Einstein sobre esse tema:No existe nenhum caminho lgico que nos conduza [s grandes leis do universo]. Elas s podem ser atingidas por meio de intuies baseadas em algo semelhante a um amor intelectual pelos objetos da experincia. (Como vejo o mundo, p. 46).

Apesar dessas novas percepes, para a sociedade em geral a cincia ainda um mito. O pensador brasileiro Rubem Alves (1933-) chama a ateno para o perigo de mitificar a cincia e os cientistas. Ele afirma:virou um mito. E todo mito perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este um dos resultados engraados (e trgicos) da cincia. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivduos so liberados da obrigao de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. (Filosofia da cincia, p. 11).

o cientista

Ao fazer essa observao, Rubem Alves prope algumas questes em relao ao conhecimento cientfico e ao poder que esse conhecimento adquiriu na sociedade contempornea.

3391A primeira diz respeito diferena entre o conhecimento cientfico e o conhecimento comum, isto , o senso comum, da maioria das pessoas: ser o conhecimento cientfico superior? A segunda concerne ao estatuto do conhecimento cientfico, encarado como modo de pensar correto: ser a cincia sempre correta, perfeita, absoluta? Finalmente, a terceira refere-se propriamente ao poder que o saber cientfico confere a quem o detm, poder de induzir o comportamento das pessoas e autoproclamar-se conhecedor da verdade sobre determinados assuntos: ser o cientista neutro?

Captulo

19 A cincia

A questo da superioridade

Quanto primeira questo, vimos, ao tratar das formas de conhecimento, que o senso comum se ca-' racteriza por certa ausncia de fundamentao, por uma aceitao acrtica ou pouco criteriosa daquilo Questo 'da correo que parece ser a verdade para as pessoas em geral. A Com isso, chegamos segunda questo: o estacincia, por sua vez, seria, ao contrrio, a busca destuto do conhecimento cientfico, Ser ele sempre sa fundamentao, a procura rigorosa dos nexos e perfeito, o mais correto? relaes entre os fatos observveis, de forma a enA reflexo sobre o assunto indica que no. No contrar a razo de ser dos fenmenos estudados, h, como vimos antes, certezas absolutas em relao No entanto, essa oposio to rgida, que culmi validade de nenhuma teoria cientfica. Essa uma na em uma valorizao da cincia em detrimento do das questes mais debatidas entre filsofos da cinsenso comum, no corresponde exatamente prticia e cientistas. Muitos deles encaram a cincia ca do acesso ao saber. Em outras palavras, nem o como uma atividade contnua e no como uma dousenso comum to ingnuo quanto costuma ser trina enrijecida pela pretenso de ter atingido um pintado, nem a cincia to rigorosa e infalvel saber perfeito e absoluto. quanto se apresenta. Primeiramente, no devemos nos esquecer de que as observaes que levam ao conhecimento cientfico nascem de problemas com os quais o ~ senso comum lida, a ponto de o economista sueco Gunnar Myrdal (1898- :: -1987) afirmar que "a cincia nada mais que o senso comum refinado ~ e disciplinado" (citado em ALVES, ~ Filosofia da cincia, p. 9). Mas tambm devemos considerar que o comportamento cientfico se distingue do senso comum por no se manter preso s primeiras observaes. Vai alm do observvel ao promover a elaborao de teorias, muitas das quais de complexidade tal que fogem ao entendimento comum. o prprio Myrdal que afirma tambm: Cidade-fantasma de Pripyat, na Ucrnia, resultado do pior acidente nuclear da "Os fatos no se organizam em conhistria, em 1986, na usina de Chernobil. A aplicao da energia nuclear, descoberta ceitos e teorias se simplesmente os pela cincia, um tema ainda muito polmico.

contemplarmos". Isso significa que o trabalho cientfico envolve outros elementos, alm da observao: o levantamento de hipteses, experimentaes, generalizaes, at se constituir em teorias, que so abstraes razoveis acerca do observado, Apesar de suas diferenas, 'o problema da oposio extremada entre senso comum e cincia deu-se a partir do positivismo, que valorizou exageradamente o saber cientfico em detrimento de outras formas de conhecimento, como o mito, a religio, a arte e at a filosofia. O positivismo criou o mito do cientificismo, a ideia de que o conhecimento cientfico perfeito, a cincia caminha sempre em direo ao progresso e a tecnologia desenvolvida pela cincia pode responder a todas as necessidades humanas - crenas que tm sido postas em xeque.

iI.o

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Alm disso, a complexidade dos fenmenos uma interrogao sempre constante no campo do conhecimento cientfico. Os muitos problemas ambientais decorrentes da ao tecnocientfica so exemplos dessa incapacidade da cincia de tudo prever. Como apontou, ironicamente, o dramaturgo irlands Bernard Shaw (1856-1950), "a cincia nunca resolve um problema sem criar pelo menos dez outros".

Questo da neutralidadeChegamos terceira questo aqui proposta: a relao entre saber e poder, formulada por Francis Bacon (1561-1626). O filsofo alemo Friedrich Nietzsche (1844-1900) j havia afirmado que o conhecimento se d por meio de alguma forma de dominao, isto , todo conhecimento implica ~ poder. ~ Com o conhecimento cientfico ocorre o mesmo. Ele no neutro, e seu uso menos neutro ainda. A produo cientfica insere-se no conjunto dos interesses das sociedades. E, frequentemente, direcionada por verbas e financiamentos vinculados aos objetivos dos grupos que exercem poder social.

Crtica da cinciaNo , portanto, apenas em relao possibilidade de verdade das teorias cientficas que a filosofia da cincia deve se debruar. Outras questes concernentes cincia ainda surgem no mundo contemporneo. Elas dizem respeito ao sentido, ao valor e aos limites ticos do conhecimento cientfico nos contextos das sociedades. Como observamos antes (no captulo 16), uma parte da filosofia contempornea tem-se dedicado anlise dos rumos tomados pelo conhecimento cientfico e sua aplicao prtica, isto , o desenvolvimento tecnolgico. Vejamos alguns pontos dessa anlise.

Descarga mineira de cobre polui as guas de rio na Espanha. Aliado fiel do capitalismo, o desenvolvimento tecnolgico, resultante dos avanos no conhecimento cientfico, tem mostrado pouca preocupao pelo meio ambiente e qualidade de vida das pessoas.

Caso nazista Tomemos um caso que, por suas dimenses e caractersticas, nos d uma ideia precisa do que pode ser o uso "interessado" da racional idade cientfica e da tecnologia: a violncia do regime nazista. Tal fato foi analisado pela pensadora alem Hannah Arendt (1906-1975), em seu livro Eichmann em Jerusalm. Em sua investigao, ela destaca a forma cientificista, a racional idade perversa com que foram mortos cerca de seis milhes de judeus nos campos de extermnio. O emprego da tecnologia - no caso, as cmaras de gs e os fornos crematrios - era um procedimento frio, burocratizado, uma operao conduzida por funcionrios pblicos. Eichmann o nome de um desses funcionrios de Hitler. que Arendt identificou como um produto tpico do regime nazista. Analisando as condies em que se tornou possvel o extermnio de um nmero to grande de pessoas, Hannah Arendt concluiu que isso se deveu banalizao do mal. obtida por uma prtica cientificamente programada e racionalizada da violncia. Em nossos dias, situaes semelhantes se repetem nos "ataques cirrgicos" que caracterizam as guerras atuais. Resultado do refinamento da tecnologia de armamentos, essas guerras a distncia tambm banalizam o mal, uma vez que quem aperta um boto no presencia, no vive diretamente o horror da guerra.!

3411CONEXES

Captulo

19 A cincia

2. Pense em seu cotidiano, em suas diversas vivncias e no que voc conhece de sua cidade. Procure identificar o papel da cincia e da tecnologia em sua vida e em seu ambiente. H coisas boas e coisas ruins? Quais so elas?

Dominao socialNos filsofos da Escola de Frankfurt, a crtica do papel da cincia e da tecnologia no mundo atual est vinculada crtica da prpria razo contempornea, dominadora e manipuladora, uma razo instrumental. Segundo essa interpretao, essa racionalidade - que, a partir dos ideais iluministas, apresentava-se como libertadora - passou a servir dominao e destruio da natureza. A vida dos indivduos tambm foi submetida a mecanismos de racionalizao, como a especializao do trabalho nas indstrias, que se apresentou como cientfica, quer dizer, neutra, desinteressada. Mas nem sempre foi assim. Outro filsofo que denunciou os mecanismos de controle social pela induo racional e cientfica dos comportamentos foi, como vimos, Michel Foucault (1926-1984). Ele procurou mostrar que o saber especializado usado como forma de convencimento racional das pessoas em geral, exercendo poder sobre elas. Essa utilizao do discurso cientfico s possvel a partir do mito do cientificismo, ou seja, a crena no poder da cincia de tudo explicar e, sobretudo, a crena em sua neutralidade, a ideia de que o conhecimento cientfico desinteressado e imparcial.

bruto mundial. Isso estimula o investimento de mais recursos nesse tipo de pesquisa e desenvolvimento tecnolgico, em detrimento de outros, pois esto envolvidos interesses de dominao poltica e econmica.

Interesses polticos e econmicos o que define a finalidade da pesquisa cientfica?Apenas o bem-estar social e a emancipao do ser humano, como geralmente se cr, ou h outros interesses? Os cientistas envolvidos na construo da bomba atmica, por exemplo, no detinham o controle de seu uso. O fsico estado-unidense Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), diretor do centro de pesquisas nucleares de Los Alamos durante parte dos trabalhos relativos a tal projeto, redigiu uma declarao na qual revelou sua ignorncia poltica, ou seja, o desconhecimento do uso previsto para suas pesquisas. Tambm sabido que muitos pases dependem economicamente da indstria armamentista, responsvel por grande parte do produto interno

Cena de destruio no Iraque, em 2003, com dezenas de civis mortos como resultado da exploso de um mssil.

Levando tudo isso em considerao, percebemos que a cincia tambm est atrelada a outros interesses que norteiam sua prpria ao. Desse modo, devemos ser cautelosos quando avaliamos o sentido e o valor dos conhecimentos cientficos. A reflexo filosfica pode ajudar-nos nessa tarefa.

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Anlise e entendimento11. "O cientista virou um mito. E todo mito perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento" (Rubem Alves). O que significa dizer que "o cientista virou um mito"? Como o mito do cientista pode induzir o comportamento? E inibir o pensamento? Exemplifique.

12. Discorra sobre os seguintes mitos a respeitoda cincia: a) superioridade; b) correo; c) neutralidade.

Conversa filosfica4. Cincia e tica Einstein teria dito que o pensamento cientfico tem um olho aguado para mtodos e instrumentos, mas cego quanto a fins e valores. Voc concorda com essa afirmao? Encontre exemplos na histria e na realidade atual que ilustrem sua posio. Depois, apresente-os a colegas. 5. Compreenso ou poder Considere a ambiguidade relativa maneira de atuar da cincia, destacada ao longo do captulo. Para voc, o ser humano domina a natureza mais pela compreenso, como assinalou Bronowski, ou pela fora, como considerou Nietzsche? Ou seria mediante uma combinao de ambas? Justifique sua opinio.

Sugestes de filmes A ilha do Dr. Moreau (1977, EUA, direo de Don Taylor) Fico acerca da ideia do cientista como criador, semelhana de Deus. Em uma ilha isolada, cientista realiza experimentos de engenharia gentica, criando seres, a partir de clulas humanas e animais, que so controlados por ele atravs de dispositivos que causam dor. O leo de Lorenzo (1992, EUA, direo de George Miller) Baseado em histria real, o filme conta a luta dos pais de um garoto, que sofre de uma rara doena degenerativa, para conseguir criar um remdio que paralise o desenvolvimento do mal. Mostra a cincia como uma atividade interessada, que principia com um problema e pode ser desenvolvida pelas pessoas comuns. Frankenstein (1931, EUA, direo de James Whale) Filme baseado no romance de Mary Shelley, Fronkenstein ou O Prometeu moderno, de 1818. Crtica romntica pretenso de verdade da cincia, que no seu desenvolvimento pode acabar criando monstros. Boris Karloff faz o papel do monstro criado pelo Dr. Frankenstein. Epidemia (1995, EUA, direo de Wolfgang Petersen) Obra que trata de uma epidemia causada por um vrus letal e desconhecido que assola uma regio da frica. Uma equipe de mdicos do Exrcito norte-americano designada para o caso. Porm, alm de descobrir o vrus causador da doena, os membros da equipe ainda tm de descobrir e desfazer a trama poltica que encobre a descoberta da doena. Mostra os interesses polticos e econmicos nos quais a cincia tropea.

Para pensarOs dois textos seguintes apresentam reflexes sobre a cincia e o fazer cientfico. O primeiro contextualiza a cincia no interior do conhecimento humano. Nele, o filsofo da cincia G. Kneller procurou estabelecer os limites e as peculiaridades do conhecimento cientfico, bem como as caractersticas de outras espcies de conhecimento (artstico, histrico, religioso, filosfico) que completam a viso do ser humano sobre a realidade. No segundo texto, Karl Popper analisa por que no existe observao pura e por que a cincia s pode formular conjeturas (hipteses) sobre a realidade, e no verdades irrefutveis.

3431Leia-os atentamente, relacione-os entre si e responda s questes que seguem.

Captulo 19 A cincia

1. A cincia e outras espcies de conhecimento"A cincia apenas uma parte da tentativa da humanidade de compreender o ,mundo em todos os seus aspectos. O homem esfora-se por descobrir uma ordem no fluxo da experincia, quer essa ordem seja observada, como na repetio das estaes, quer seja postulada por teorias refinadas como as da relatividade, mecnica quntica e evoluo. A busca da ordem na experincia une cincia, literatura, histria, religio, filosofia e arte. A cincia procura essa ordem na experincia da natureza adquirida pelo homem; a literatura e a arte procuram-na na experincia interior do homem e em suas relaes com os seus semelhantes; a histria, no passado humano; a religio, na relao do homem com um Ser Supremo; e a filosofia em todos esses empreendimentos humanos. A cincia tanto restringe como amplia a experincia da natureza. Restringe essa experincia quando se empenha em eliminar tudo o que nela for puramente pessoal. Procura remover tudo o que for nico no cientista, individualmente considerado: recordaes, emoes e sentimentos estticos despertados pelas disposies de tomos, as cores e os hbitos de pssaros, ou a imensido da Via-Lctea. Tambm se esfora por banir seja o que for que as pessoas experienciam mas em diferentes graus, dependendo da perspectiva e das condies fsicas da experincia. Por conseguinte, a cincia elimina a maior parte da aparncia 'sensual e esttica da natureza. Poentes e cascatas so descritos em termos de frequncias de raios luminosos, coeficientes de refrao e foras gravitacionais ou hidrodinmicas. Evidentemente, essa descrio, por mais elucidativa que seja, no uma explicao completa daquilo que realmente experienciamos. Ao esforar-se por ser objetiva, a cincia exclui toda e qualquer referncia experincia subjetiva, individual ou coletiva. Logo, a cincia descreve um mundo de coisas sem valor, interatuando como se a humanidade no existisse. Mas como a natureza que experienciamos est impregnada de nossas avaliaes - como no terror dos furaces, na calma das lagoas e na tristeza doce e suave do cair das folhas -, a descrio cientfica da natureza permanece fria, incompleta e insatisfatria. Por outro lado, a cincia amplia o conhecimento ao corrigir a nossa experincia imediata da natureza. A cincia no substitui essa experincia mas transcende-a, pois a experincia imediata o nosso primeiro e sumamente tendencioso encontro com a natureza, e est frequentemente errada. Na experincia imediata, deparamos com objetos slidos e cores, mas a cincia demonstrou que um objeto slido , na realidade, um aglomerado de partculas e que as suas cores no lhe so inerentes. A cincia comea precisamente porque no podemos entender ou controlar de forma adequada a natureza, dentro dos limites da experincia comum. [ ... ] Cincia, literatura, arte, histria, religio e misticismo iluminam aspectos da realidade. A filosofia esfora-se por ver a realidade total. Analisa a natureza e as descobertas dos diferentes ramos do conhecimento, examina os pressupostos em que elas assentam e os problemas a que do origem, e procura estabelecer uma viso coerente do domnio total da experincia. Cada uma dessas formas do conhecimento merece ser cultivada per se. sua maneira prpria, cada uma delas familiariza-nos com uma parte da realidade. Devemos ver a cincia em seu lugar e no esperar que ela assimile ou desacredite essas outras atividades."KNELLER, A cincia como atividade

humana, p. 149-152.

2. No sabemos: podemos apenas conjeturar "A cincia no um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema que avana constantemente em direo a um estado final Nossa cincia no conhecimento (epistme): ela nunca pode pretender haver atingido a verdade [...] O avano da cincia no se deve ao fato de se acumularem mais e mais experincias perceptivas no decorrer do tempo. Nem se deve ao fato de fazermos uso cada vez melhor de nossos sentidos.

Unidade 4 Grandes reas do filosofar

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[...] Nossos nicos meios de interpretar a natureza so as ideias ousadas. as antecipaes injustificadas e o pensamento especulativo [.. ] Mesmo o teste cuidadoso e srio de nossas ideias pela experincia inspira-se, por sua vez, em ideias: a experimentao uma ao planejada na qual a teoria guia todos os passos. No topamos com nossas experincias, nem deixamos que elas nos inundem como um rio. Pelo contrrio, temos de ser ativos: devemos 'fazer' nossas experincias. Somos sempre ns que formulamos as questes propostas natureza; somos ns que repetidas vezes tentamos colocar essas questes para ento obter um ntido 'sim' ou 'no' (pois a natureza no d uma resposta a menos que seja pressionada a faz-Io) E, finalmente, somos ns tambm que damos uma resposta; somos ns prprios que, aps severo escrutnio, decidimos sobre a resposta questo que colocamos natureza - aps tentativas insistentes e srias de obter dela um inequvoco 'no'. [.. ] [...] o que faz o homem de cincia no sua posse do conhecimento, da verdade irrefutvel, mas sua persistncia e destemida indagao crtica da verdade."POPPER,

1

A lgica da pesquisa cientfica, p 278-281.

1. O primeiro texto, de Kneller, compara a cincia a outras reas de conhecimento e as colocatodas em um mesmo patamar, afirmando que o conhecimento cientfico no deve pretender assimilar nem desacreditar as outras atividades. Que conhecimentos so esses? Que argumentos usa Kneller para justificar essa concluso?

2. Em que sentido a filosofia distingue-se dos demais tipos de conhecimento, segundo Kneller? 3. O primeiro texto tambm destaca duas caractensccasda cincia: uma que pode ser considerada uma debilidade e outra que pode ser interpretada como uma fortaleza. Quais so elas? Explique-as.

4. Como, no segundo texto, Popper argumenta a favor de sua tese de que no existe observao pura e de que a cincia s pode formular conjeturas sobre a realidade?

5. Que mensagem positiva voc pode extrair do pargrafo final do segundo texto: "o que faz ohomem de cincia no sua posse do conhecimento, da verdade irrefutvel, mas sua persistncia e destemida indagao crtica da verdade"?