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CAPTULO

FILOSOFIA MODERNA:

emplrlsmo e Iluminismo

Questes filosficasComo conhecemos? Existem ideias inatas? possvel chegar a concluses gerais e(1762) - Pietro Longhi. A razo tudo ilumina, pensavam os iluministas. Neste quadro, a luz da sabedoria parece nascer das pginas do livro e projetar-se naquele que o l.

o filsofo pitagrico

verdadeiras a partir do particular? Podemos existir num mundo imaterial? O que o bem e o mal? Por que o ser humano vive em sociedade? O poder inato? De onde vem a riqueza das naes?

Entramos agora no sculo XVIII, poca do Iluminismo. Como afirmou o filsofo francs

Diderot, cada sculo tem um esprito que o caracteriza, da liberdade. Voc ver que nesse perodo, na trilha do sculo anterior, a confiana continuava expandiu-se nos poderes da razo filosfica e o esprito deste parece ter sido o

Conceitos-chaveracionalismo, empirismo, apriorismo, ideias inatas, corpos naturais, corpos artificiais, tbula rasa,experincia, sensao,reflexo, contratualismo, livre iniciativa, idealismo imaterialista, induo, deduo, Iluminismo, progresso, tolerncia, igualdade jurdica, propriedade privada, separao dos poderes, liberdade, vontade geral, bom selvagem, liberalismo econmico, trabalho, autonomia, juzos analticos e sintticos a priori e a posteriori, formas a priori da sensibilidade e do entendimento

em alta, e a investigao

para todos os campos da atividade tambm as ruas e os sales. para

humana, atingindo

Nossa primeira parada ser na Inglaterra, que voc possa conhecer o empirismo ingls.

2351

Captulo 14 Filosofiamoderna:empirismo e lIuminismo

EMPIRISMO

o conhecimento parte

,\

da experinciaVimos, no captulo anterior, que o desenvolvimento da cincia moderna inseriu-se em um contexto de questionamento sobre os critrios e mtodos para a elaborao de um conhecimento verdadeiro. Por essa razo, o processo de conhecer em si mesmo passou a ser investigado e discutido intensamente por boa parte dos principais filsofos. Essa discusso concentrou-se entre os sculos XVII e XVIII. Em consequncia, a Idade Moderna tornou-se o perodo em que se formularam algumas das principais gnosiologias, ou teorias a respeito do conhecimento, da histria da filosofia.

a empirista, que considerava que desqualificar totalmente a experincia era um erro, com base na tese de que qualquer conhecimento se origina, em ltima anlise, da experincia.

Algum tempo depois, em pleno Iluminismo, o filsofo alemo Immanuel Kant entraria nesse debate, realizando uma espcie de sntese das duas correntes em sua doutrina apriorista. Veremos com mais detalhe como foi o processo dessa discusso ao longo deste captulo.

Ideias inatas

Processo de conhecerAs duas principais vertentes que se destacaram no incio dessa discusso foram: a racionalista, que defendia a tese de que o conhecimento obtido pela razo (lgico-dedutivo) mais confivel do que aquele que se obtm pela experincia sensvel, desqualificando totalmente o valor da experincia no processo de conhecer a verdade;

o incio do debate esteve vinculado ao pensamento de Ren Descartes, o primeiro e principal expoente do racionalismo moderno. No captulo anterior, vimos que o filsofo francs dizia que o verdadeiro conhecimento das coisas externas devia ser conseguido atravs do trabalho lgico da mente. Um de seus principais argumentos para justificar essa posio era a suposio da existncia de ideias fundadoras do conhecimento , as ideias inatas. Trata-se de ideias que teriam nascido com o sujeito pensante e que, por isso, dispensariam a percepo de um objeto exterior para que se formassem no pensamento. Os conceitos matemticos e a noo de Deus seriam exemplos de ideias inatas, para Descartes. Entre os principais dfensores do inatismo no processo de conhecimento encontram-se Plato, na Antiguidade, e Santo Agostinho, na Idade Mdia, alm do prprio Descartes, na filosofia moderna.Reao empiristaA filosofia cartesiana, principalmente a tese da existncia de ideias inatas, provocou forte reao de vrios pensadores. Estes passaram a defender a tese oposta, isto , de que o processo de conhecimento depende sempre da experincia e dos sentidos, pelo menos como ponto de partida, em sua origem ltima. Assim surgiram diversas doutrinas modernas empiristas (recorde que essa palavra vem do grego empeiria, que significa "experincia"). Entre os principais defensores de gnosiologias empiristas encontram-se Aristteles, na Antiguidade, e Santo Toms de Aquino, na Idade Mdia, alm dos pensadores que estudaremos em seguida. O palco inicial do empirismo moderno foi a Inglaterra. Nesse pas, grande parte da burguesia, a

A menina com chapu vermelho (1666-1667) - [an Vermeer.Valorizao da percepo dos sentidos. O pintor teria traado a imagem projetada na cmara escura e depois copiado o padro de luzes e sombras, de forma a alcanar uma imagem "fotogrfica", fiel impresso fornecida pela viso do prprio objeto.

Unidade 3 A filosofia na histria

1236sncia do ser) e procurou investigar as causas e propriedades das coisas. Para Hobbes, a filosofia seria a cincia dos corpos, isto , de tudo que tem existncia material. Os corpos naturais seriam estudados pela filosofia da natureza; os corpos artificiais ou Estado, pela filosofia poltica. E o que no corpreo deveria ser excludo da reflexo filosfica.

partir do sculo XVII, conquistou no apenas poder econmico, mas tambm poder poltico e ideolgico, impondo o fim do absolutismo monrquico, durante a Revoluo Gloriosa.Revoluo Gloriosa - revoluo burguesa que instituiu o parlamentarismo na Inglaterra, estabelecendo a superioridade das leis sobre as vontades dos reis e acabando com o absolutismo.

MaterialismoAlguns estudiosos relacionam essa ascenso da burguesia, no plano epistemolgico, ao empirismo (valorizao da experincia concreta, da investigao natural) e, no plano sociopoltico, ao liberalismo (respeito liberdade individual; fim do arbtrio dos monarcas, impondo-se limites constitucionais aos seus poderes). Entre os principais representantes do ernpirismo britnico destacam-se Francis Bacon (que j estudamos no captulo anterior), Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume.

e empirismo

Thomas Hobbes

Como vimos antes, para o filsofo ingls, toda a realidade poderia ser explicada a partir de dois elementos: o corpo, entendido como o elemento material que existe independentemente do nosso pensamento, e o movimento, que pode ser determinado matemtica e geometricamente. Trata-se portanto, de uma concepo materialista e mecanicista da realidade. As ideias ou pensamentos no seriam nada mais que imagens das coisas impressas na "fantasia corporal". Isso quer dizer que, para Hobbes, o processo de conhecimento inicia-se pela sensao - uma concepo empirista, como voc pode perceber. Uma consequncia dessa meta fsica que, no pensamento de Hobbes, no h lugar para o acaso e a liberdade (mudanas no condicionadas), porque os movimentos resultam necessariamente dos nexos causais que lhe do origem. (Reveja as concepes de Hobbes estudadas no captulo 5, que ampliam esta exposio.)

tica

e poltica

Thomas Hobbes (1669) - Iohn Michael Wright. Hobbes desenvolveu uma compreenso materialista-mecanicista da realidade. Tudo se explicaria pela relao de causa e efeito.

Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu em Westport, Inglaterra. No perodo da revoluo liberal inglesa, defendeu o rei Carlos I, depois decapitado, e foi obrigado a exilar-se na Frana, entrando em contato com o pensamento de Descartes. O pensamento de Hobbes foi muito influenciado pelas ideias de Bacon e Galileu. Como estes, abandonou as grandes pretenses metafsicas (a busca da es-

Da mesma forma, no h espao na filosofia hobbesiana para o bem e o mal como valores universais a serem introjetados nas pessoas. Para Hobbes, o que chamamos de bem to-somente o que desejamos alcanar, enquanto o mal apenas aquilo de que fugimos. Isso se explicaria pelo fato de que o valor fundamental para cada individuo seria a conservao da vida, isto , a afirmao e o crescimento de si mesmo. Assim, segundo o filsofo, cada pessoa sempre tender a considerar como bem o que lhe agrada e como mal o que lhe desagrada ou ameaa. A pergunta que pode surgir ento a seguinte: se o bem e o mal so relativos, isto , so determinados pelos indivduos, como ser possvel a convivncia entre as pessoas? Hobbes responde a essa questo nos livros Leviat e Do cidado, nos quais defende a necessidade de um poder absoluto que mantenha os indivduos em sociedade e impea que eles se destruam mutuamente. (Estudaremos com mais detalhe o pensamento poltico de Hobbes no captulo 18.)

2371

Captulo

14 Filosofia moderna: empirismo e Iluminismo

John locke

vado. Ao nascer, nossa mente seria como um papel em branco, sem nenhuma ideia previamente escrita. Locke retomava, assim, a tese empirista segundo a qual nada existe em nossa mente que no tenha sua origem nos sentidos. O filsofo defendeu que as ideias que possumos so adquiridas ao longo da vida mediante a experincia sensvel imediata e seu processamento interno. Desse modo, o conhecimento seria constitudo basicamente por dois tipos de ideias: ideias da sensao - so nossas primeiras ideias, aquelas que chegam mente atravs dos sentidos, isto , quando temos' uma experincia sensorial, constituindo as sensaes. Essas ideias seriam moldadas pelas qualidades prprias dos objetos externos. Por sensao Locke entende, por exemplo, as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce etc. ideias da reflexo - so aquelas que resultam da combinao e associao das sensaes por um processo de reflexo, de tal maneira que a mente vai desenvolvendo outra srie de ideias que no poderiam ser obtidas das coisas externas. Seriam ideias como "a percepo, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar" (LoCKE, nsaio acerca do E entendimento humano, p. 160).

Retrato de [ohn Locke - Sir Godfrey Kneller. Locke, um dos maiores representantes do empirismo, estudou na Universidade de Oxford. Manifestou interesse por diversos campos de estudo, como qumica, teologia, filosofia, mas formou-se em medicina.

o filsofo John Locke (1632-1704) nasceu em Wrington, Inglaterra. Durante os tempos de universidade, decepcionou-se com o aristotelismo e com a escolstica medieval, enquanto tomava contato com o pensamento de Francis Bacon e Ren Descartes. Problemas polticos obrigaram-no a sair de seu pas, em 1675, e exilar-se na Frana e, posteriormente, na Holanda. Regressou Inglaterra somente em 1688, durante a Revoluo Gloriosa, que levou Guilherme de Orange ao trono da Inglaterra, e a partir de ento pde dedicar-se livremente s atividades intelectuais.Tbula rasaEm sua obra Ensaio acerca do entendimento humano, Locke combateu duramente a doutrina cartesiana segundo a qual o ser humano possui ideias inatas. Ao contrrio de Descartes, defendeu que nossa mente, no instante do nascimento, como uma tbula rasa:. O substantivo tabula significa "tbua" ou "placa de madeira" ou de outro material; o adjetivo rasa quer dizer "plana, lisa". Assim, a expresso tabula rasa usada por Locke tem o significado de "tbua lisa", isto , tbua na qual nada foi escrito nem gra-

Assim, a reflexo seria nosso "sentido interno", que se desenvolve quando a mente se debrua sobre si mesma, analisando suas prprias operaes. Das ideias simples, a mente avana em direo a ideias cada vez mais complexas. Porm, para Locke, de qualquer maneira a mente sempre tem "as coisas materiais externas, como objeto de sensao, e as operaes de nossas prprias mentes, como objeto da reflexo" (Ensaio acerca do entendimento humano, p. 160). O filsofo admitia, no entanto, que nem todo conhecimento limita-se, exclusivamente, experincia sensvel. Considerava, por exemplo, o conhecimento matemtico vlido em termos lgicos, embora no tivesse como base a experincia sensvel. Nesse sentido, Locke no era um empirista radical. .

Crtica ao absolutismoAnalisando o filsofo e o homem poltico, podemos dizer que Locke, de certa maneira, "transportou" suas teorias sobre o conhecimento humano para o campo sociopoltico. Para ele, assim como no existem ideias inatas, tambm no deveria existir poder inato (ou de origem divina), como defendiam os adeptos do absolutismo monrquico.

Unidade 3 A filosofia na histria

1238George Berkeley (1685-1753) nasceu em Kilkenny, Irlanda do Sul. Despertou para a filosofia bastante jovem, impressionado pela leitura de pensadores como Locke, Newton e Descartes. Em 1710, aos 25 anos, publicou o Tratado sobre os princpios do

Revelando sua preocupao em proteger a liberdade do cidado, defendia que o poder social deveria nascer de um pacto entre as pessoas. Por sua vez, as leis deveriam expressar as normas estabelecidas pela prpria comunidade, que, atravs do mtuo consentimento dos indivduos, escolheria a forma de governo considerada mais conveniente ao bem comum. A nica maneira pela qual uma pessoa qualquer renuncia liberdade natural e se reveste dos laos da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se numa comunidade para viverem com segurana, conforto e paz. (LOCKE, Segundo tratado sobre o governo, p. 71). Adversrio da tirania, do abuso do poder, Locke, em razo das suas ideias polticas, apontado por muitos historiadores como o "pai do Iluminismo" (tema que trataremos mais adiante neste captulo). Seu pensamento exerceu profunda influncia na fundamentao ideolgica da democracia liberal burguesa, contribuindo para a difuso de valores iluministas como a tolerncia religiosa, o respeito pela liberdade individual, a expanso do sistema educacional e a livre-iniciativa econmica. (Voltaremos ao pensamento poltico de Locke no captulo 18.)

conhecimento humano.Nessa obra, defende a tese de que todo o nosso conhecimento do mundo exterior resume-se quilo que captamos pelos sentidos. Pode parecer, portanto, mais uma tese empirista como as anteriores. Sua originalidade consiste, porm, em afirmar tambm que a existncia das coisas nada mais do que a percepo que temos dessa existncia. Ou, em suas prprias palavra~: "Ser perceber e ser percebido".

Imaterialidade do mundoIsso significa que toda a realidade depende da ideia que fazemos dela. Desse modo, Berkeley nega a existncia da matria como algo independente da mente: "O que os olhos veem e as mos tocam existe; existe realmente, no o nego. S nego o que os filsofos chamam matria ou substncia corprea" (Tratado sobre os princpios do conhecimento humano, p. 19). Ou seja, apesar de seu empirismo em termos gnosiolgicos, Berkeley, como homem religioso que era (foi bispo da Igreja anglicana), defendeu a imaterialidade do mundo em termos ontolgicos. Ao levar seu empirismo s.ltimas consequncias, deslizou para um idealismo imaterialista, defendendo a concepo de que tudo o que existe consiste nos sujeitos com suas experincias e percepes. Para evitar cair no solipsismo (que, como j vimos, a concepo segundo a qual tudo o que existe no mundo resume-se ao eu e sua prpria conscincia) e no total subjetivismo, defendeu a existncia de uma mente csmica, representada por Deus. Segundo o filsofo, Deus percebe, de modo absoluto, a existncia de todos os seres, coordenando as distintas percepes elaboradas pelos sujeitos. Essa mente csmica de Deus garante e sustenta a existncia dos seres que experimentamos como "seres percebidos". Assim, o mundo nada mais seria do que uma relao entre Deus e os espritos humanos.

George Berkeley

David HumeGeorge Berkeley - Artista annimo. Berkeley desenvolveu um empirismo radical: afirmou no s que todo conhecimento provm dos sentidos, como os demais empiristas, 'mas tambm que todos os seres existentes reduzem-se percepo que temos deles.

David Hume (1711-1776) nasceu em Edimburgo, Esccia. Estudou filosofia, direito e comrcio, ocupando importante posio na diplomacia inglesa. Realizou diversas viagens a pases europeus,

2391como Frana e ustria, estabelecendo contato com grandes pensadores da poca, entre eles Adam Smith e jean-jacques Rousseau.

Captulo

14 Filosofia moderna: empirismo e Iluminismo

repetidas que nos chegam da experincia sensorial, saltamos para uma concluso geral, da qual no temos experincia sensorial. Hume argumentou que a concluso indutiva, por maior que seja o nmero de percepes repetidas do mesmo fato, no possui fundamento lgico. Ser sempre um salto do raciocnio impulsionado pela crena ou hbito, isto , as reiteradas percepes de um fato nos levam a confiar em que aquilo que se repetiu at hoje ir se repetir amanh. Assim, por exemplo, cremos que o Sol nascer amanh porque at hoje ele sempre nasceu. Mas, em termos lgicos, nada pode garantir essa certeza. Para Hume, somente o raciocnio dedutivo utilizado na matemtica fundamenta-se em uma lgica racional:As proposioes deste gnero podem descobrir-se pela simples operao do pensamento e no dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um crculo ou um tringulo, as verdades demonstradas por Euclides conservaro sempre sua certeza e evidncia. (Investigao acerca do entendi-

David Hume (1766) - Allan Ramsay. Apesar de viver em um ambiente caracterizado pela religiosidade, Hume era ateu. E, curiosamente, talvez por seu acentuado ceticismo e esprito investigador, escreveu Histria natural da religio (1757), considerada por alguns estudiosos a primeira obra cientfica sobre a sociologia da religio.

mento humano, p. 77).

Legado epistemolgicoAo questionar a validade lgica do raciocnio indutivo, a obra de Hume legou um importante problema para os tericos do conhecimento (epistemologistas). Afinal, ou no possvel partir de experincias particulares para chegar a concluses gerais, representadas pelas leis cientficas? Enquanto o senso comum acredita que por meio de observaes repetidas, realizadas no passado, podemos justificar nossas expectativas futuras, Hume sustentou que a repetio de um fato no nos permite concluir, em termos lgicos, que ele continuar a se repetir da mesma forma, indefinidamente. Desse modo, o filsofo revelou um ceticismo terico, pois, para ele, o conhecimento cientfico - que ostenta a bandeira da mais pura racionalidade tambm est ancorado em bases no racionais, como a crena e o hbito intelectual. Isso significa que, desconfiando das posies arraigadas pela fora do hbito, o cientista deveria apresentar suas teses como probabilidades, e no como certezas irrefutveis. Tal atitude epistemolgca, estendida ao convvio social, tornaria os indivduos mais tolerantes, democrticos e abertos.

Na obra Investigao acerca do entendimento humano, Hume formulou outra teoria empirista. Dividiu, primeiramente, tudo aquilo que percebemos em: impresses - referem-se aos dados fornecidos pelos sentidos, como as impresses visuais, auditivas, tteis; ideias - referem-se s representaes mentais (memria, imaginao etc.) derivadas das impresses.

Assim, toda ideia uma re(a)presentao de alguma impresso. Essa representao pode possuir diferentes graus de fidelidade. E algum que nunca teve uma impresso visual - um cego de nascena, por exemplo - jamais poder ter uma ideia de cor, nem mesmo uma ideia pouco fiel.

Crtica induoComo vimos anteriormente, a induo, ou raciocnio indutivo, vai do particular para o geral. As concluses indutivas so produzidas, assim, pelo seguinte processo mental: partindo de percepes

Unidade 3 A filosofia na histria

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Anlise e entendimento1. Em que discordavam racionalistas e empiristasna discusso sobre o processo de conhecimento? Sintetize.

s.

Como se pode relacionar o empirismo de Locke com suas concepes polticas?

2. Comente a relao estabelecida entre a ascenso da burguesia e o empirismo.

6. Interprete o significado desta formulao de Berkeley: "Ser perceber e ser percebido". 7. Para Hume, um cego de nascimento jamaispoderia ter uma ideia de cor. Explique essa impossibilidade a partir da teoria humana do conhecimento.

3. No pensamento de Hobbes no h lugar paraa liberdade. Justifique essa afirmao.

4. Explique a tese epistemolgica

de Locke a partir da seguinte afirmao: "A mente humana, no instante do nascimento, uma tbula rasa". O que significa essa afirmao e contra quem dirigida?

8. Hume entendia que o hbito fundamenta muitas ideias consideradas verdadeiras sobre a realidade e os fatos. Justifique essa tese e d um exemplo .

Conversa filosfica1. Limite das teses cientficas Hume recomenda que os cientistas apresentem suas teses como probabilidades e no como certezas irrefutveis. Qual a diferena entre probabilidade e certeza? Pesquise e reflita sobre o tema. Depois, rena-se com colegas para debater suas concluses.

ILUMINISMO A razo em busca de liberdadeA expanso capitalista dos sculos XVII e XVIII foi acompanhada pela crescente ascenso social da burguesia e sua tomada de conscincia como classe social. Paralelamente, o racionalismo imperava na Europa, transmitindo a confiana de que a razo era o principal instrumento do ser humano para enfrentar os desafios da vida e equacionar os problemas que o rodeavam. O desenvolvimento da Revoluo Industrial e o sucesso da cincia em campos como a qumica, a fsica e a matemtica inspiravam filsofos de todas as partes. Foi assim que surgiu talvez um novo mito: a ideia de progresso.Revoluo Industrial - complexo de transformaes socioeconmicas que alterou a vida de sociedades da Europa ocidental e outras regies do mundo a partir de meados do sculo XVIII e ao longo do sculo XIX.Aquarela de Carmontelle. Durante o sculo XVIII, as cincias experimentais das paixes de nobres e burgueses franceses. eram uma

2411Desse modo, disseminou-se a crena de que a razo, a cincia e a tecnologia tinham condies de impulsionar o trem da histria em uma marcha contnua em direo verdade e ao progresso humano.

Captulo

14 Filosofia moderna: empirismo e lIuminismo

Paralelamente, desenvolveu-se um pensamento que culminaria no movimento cultural do sculo XVIII denominado Iluminismo, Ilustrao ou Filosofia das Luzes.

Burguesia e lIuminismo De acordo com a anlise do filsofo e socilogo Lucien Goldmann (1913-1979), os valores fundamentais defendidos pelos iluministas (igualdade, tolerncia, liberdade e propriedade privada) poderiam ser relacionados com a atividade comercial, constituindo tambm valores burgueses. Em outras palavras, esses pensadores teriam sido idelogos da burguesia. Vejamos alguns tpicos dessa interpretao (cf. GOLDMANN, /Iustracin y Ia sociedad actua/). La Igualdade jurdica No ato de comrcio, como a compra e a venda, todas as eventuais desigualdades sociais entre compradores e vendedores no so essenciais. Na compra e venda, o que efetivamente importa a igualdade jurdica dos participantes do ato comercial. Observamos que grande parte da burguesia dessa poca defendeu a igualdade jurdica de todos perante a lei. Todos seriam cidados com direitos bsicos, embora com diferentes situaes socioeconmicas.

Tolerncia religiosa ou filosfica Para a realizao do ato comercial, no tm a menor importncia as convices religiosas ou filosficas das pessoas. Do ponto de vista econmico, seria irracional, absurdo, o processo de compra e venda somente entre pessoas da mesma religio ou filosofia. Seja o indivduo muulmano, judeu, cristo ou ateu, sua capacidade econmica no depende de suas crenas religiosas ou filosficas. Sabemos que os representantes da burguesia assumiram na poca a defesa da tolerncia.

Reunio de famlia (dcada de 1730) - William Hogarth. A famlia burguesa, nascida no sculo XVIII, rompeu com os padres familiares da poca e estabeleceu papis para seus membros, entre eles a autoridade indiscutvel do pai de famlia.

novos

Unidade 3 A filosofia na histria

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Liberdade pessoal e social

O comrcio s pode se desenvolver em uma sociedade onde as pessoas estejam livres para realizar seus negcios. Pois sem indivduos livres, recebendo salrios, no pode haver mercado comercial. Verificamos que a burguesia posicionou-se ento contra a escravido da pessoa humana.

Propriedade privada

O comrcio tambm s possvel entre pessoas que detenham a propriedade de bens ou de capitais, pois a propriedade privada confere ao proprietrio o direito de usar e dispor livremente do que lhe pertence. Observamos que nessa poca os representantes da burguesia passaram a defender o direito propriedade privada, que se tornou essencial sociedade capitalista.

Filosofia nas ruas e salesIluminismo no foi um movimento coeso e uniforme. Por isso, no podemos rotular todos os pensadores iluministas como "idelogos da burguesia". Muitos dentre eles defendiam a aristocracia. No entanto, em meio a essa pluralidade de pensadores, havia um trao comum: a busca pelo convencimento racional das pessoas. A prpria postura de muitos filsofos modificou-se no sculo XVIII. Abandonando os crculos fechados de seus antecessores, os iluministas circulavam pelas ruas e sales, exibindo e exercitando a razo. Para esses filsofos propagandistas, como escreveu o pensador alemo Ernst Cassirer (1874-1945), "a razo no era o cofre da alma onde se guardavam verdades eternas, mas era a fora espiritual, a energia, capaz de nos conduzir ao caminho da verdade" (Filosofa de Ia Iustracin, p. 21). O Iluminismo enfatizou a capacidade humana de, pelo uso da razo, conhecer a realidade e intervir nela, no sentido de organiz-Ia racionalmente, de modo a assegurar uma vida melhor para as pessoas. O processo de ilustrao, isto , o desenvolvimento da capacidade intelectual, trazia a proposta de libertar o ser humano dos medos irracionais, supersties e crendices, levando-o a questionar as tradies vulgares e a construir uma nova ordem racional para a sociedade. Podemos dizer, enfim, que o grande mrito dos iluministas teria sido o esforo de generalizar e aplicar as doutrinas crticas e analticas aos diversos campos da atividade humana, bem como os ideais de conhecimento forjados no grande racionalismo (o racionalismo do sculo XVII). Vejamos alguns indicadores dessa nova mentalidade (cf. FORTES, O numinismo e os reisfilsofos, p. 20):

o

estudo da natureza e ser humano - a ateno dos intelectuais volta-se para o mundo terreno, concreto, e, dentro dele, para o estudo do prprio ser humano; histria - os estudos histricos ganham expresso. Percebe-se que o conjunto dos conhecimentos adquiridos no passado pode ser colocado a servio do bem-estar social; progresso - o entusiasmo pelas novas descobertas tem como consequncia a crena em um novo ideal, a ideia de progresso.

A seguir, veremos alguns. pensadores representativos do Iluminismo.

Montesquieu

Detalhe de retrato de Montesquieu, 1728 - Escola Francesa. Para o filsofo, todo indivduo investido de poder tentado a abusar dele.

\

2431

Captulo

14 Filosofia moderna: empirismo e Iluminismo

o jurista francs Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como baro de Montesquieu (1689-1755), escreveu O esprito das leis. Nessa obra, formula a teoria da separao dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judicirio, como forma de evitar abusos dos governantes e de proteger as liberdades individuais. Montesquieu no defendia a implantao de uma repblica burguesa. Suas simpatias polticas inclinavam-se para um liberalismo aristocrtico, uma monarquia constitucional. Dizia que "a lei uma relao necessria que decorre da natureza das coisas". E ainda que haveria grandes riscos de tirania "se uma mesma pessoa - ou uma mesma instituio do Estado exercesse os trs poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a sua execuo e o de julgar os conflitos entre os cidados" (O esprito das leis, p. 168). Voltaire

respeitadora das liberdades individuais, governada por um soberano esclarecido. Tornou-se marcante sua posio em defesa da liberdade de pensamento, expressa na clebre frase: "Posso no concordar com nenhuma das palavras que voc diz, mas defenderei at a morte seu direito de diz-Ias".

CONEXES

1. Voltaire refere-se a certa necessidade social da crena em Deus. Tambm bastante conhecida a clebre frase do romancista russo Fidor Dostoivski (1821 - 1881): "Sem Deus tudo seria permitido". Reflita sobre essa concepo das religies como fontes doadoras de normas e coeso social.

Diderot e D'AlembertOs pensadores franceses Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond D'Alembert (1717-1783) foram os organizadores de uma enciclopdia de 33 volumes, que pretendia resumir os principais conhecimentos da poca nos campos cientfico e filosfico. Essa obra contou com a colaborao de numerosos autores, entre os quais se destacam Buffon, Montesquieu, Turgot, Condorcet, Voltaire, Holbach e Rousseau. A Enciclopdia exerceu grande influncia sobre o pensamento poltico burgus. Defendia, em linhas gerais, o racionalismo, a independncia do Estado em relao Igreja e a confiana no progresso humano por meio das realizaes cientficas e tecnolgicas. Diderot considerado por muitos a principal figura da Enciclopdia. Rompeu com a teologia tradicional, assumindo-se como ateu e materialista. No texto seguinte, expressa esse materialismo: "Se que podemos acreditar que veremos quando no tivermos olhos; Que ouviremos quando no tivermos mais ouvidos; Que pensaremos quando no tivermos mais cabea; Que sentiremos quando no tivermos mais corao;

Detalhe de retrato de Voltaire (1728) - Maurice Quentin de Ia Tour. Segundo Voltaire, um indivduo deve ser julgado mais por suas perguntas do que por suas respostas. Como bom filsofo, ele valoriza, nessa afirmao, o ato de perguntar.

o poeta, dramaturgo e filsofo francs Franois-Marie Arouet, de pseudnimo Voltaire (1694-1778), foi um dos mais famosos pensadores do Iluminismo. Com seu estilo literrio irnico e vibrante, destacou-se pelas crticas que fez prepotncia dos poderosos, ao clero catlico e intolerncia religiosa. Concordava, entretanto, com certa necessidade social da crena em Deus, chegando a dizer que se Deus no existisse seria preciso invent-lo. Em termos polticos, no foi propriamente um democrata, mas sim defensor de uma monarquia

Unidade 3 A filosofia na histria

\244oferecer a todos os cidados um regime de igualdade jurdica. Em outra de suas importantes obras, Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau glorifica os valores da vda natural e ataca a corrupo, a avareza e os vcios da sciedade civlizada. Faz inmeros elogios liberdade de que desfrutava o selvagem, na pureza do seu estado natural, contrapondo-o falsidade e ao artificialismo do indivduo civlizado. Foi dessas ideias que nasceu o mito do bom selvagem (conforme vmos no captulo 6). Rousseau tornou-se clebre como defensor da pequena burguesia e inspirador dos ideais que estariam presentes na Revoluo Francesa. (Estudaremos com mais detalhe o pensamento poltico de Rousseau no captulo 18.)

Que existiremos quando no estivermos em parte alguma, Ento consinto." Ou seja, se possvel acreditar em tamanhos absurdos, ento consinto que h algo alm da matria. Tudo matria, pensa Diderot, e a matria a existncia do real. (DIDEROT, A entrevista do filsofo com a marechala de..., citado em FORTES, lIuminismo e os reis filO sofos, p. 56).

Rousseau

Adam Smith

Iean-lacques Rousseau (sculo XVIII) - Escola Francesa. Para Rousseau, a razo forma o ser humano e o sentido o conduz.

o filsofo e escritor suo jean-Iacques Rousseau (1712-1778) foi uma figura de transio do Iluminismo. Apesar de defender a liberdade e combater os vcios sociais, criticava os excessos racionalistas, sendo um precursor do Romantismo. Foi na Frana, para onde se transferiu em 1742, que escreveu suas grandes obras. Entre elas podemos destacar Do contrato social, na qual expe a tese de que o soberano deve conduzir o Estado segundo a vontade geral de seu povo, sempre tendo em vista o atendimento do bem comum. Somente esse Estado, de bases democrticas, teria condies de

Adam Smith (1790) - [ohn Kay. Para o filsofo, a riqueza de uma nao mede-se pela riqueza do povo, no pela dos prncipes.

o economista e filsofo escocs Adam Smith (1723-1790) foi um dos maiores expoentes da economia clssica e o principal terico do liberalismo econmico. Em sua obra Ensaio sobre a riqueza das naes, criticou a poltica mercantilista, baseada na interveno e regulamentao excessiva do Estado na vida econmica.

2451Para ele, a economia deveria ser dirigida pelo jogo livre da oferta e da procura de mercado. O mercado se autorregularia, dando conta das necessidades sociais, desde que deixado em paz consigo mesmo, sem intervenes dos governantes. Adam Smith tambm defendeu a tese de que o trabalho em geral representa a verdadeira fonte de riqueza para as naes, devendo ser conduzido pela livre iniciativa dos particulares. De certo modo, suas teses so tambm produto da crena geral iluminista no triunfo da racionalidade e da ordem sobre o arbtrio e o caos, desde que as pessoas possam agir com liberdade social - no caso, liberdade econmica.

Captulo

14 Filosofia moderna: empirismo e lIuminismo

quatro questes fundamentais: O que posso saber? Como devo agir? O que posso esperar? E, por fim, o que o ser humano? Esta ltima questo engloba as trs anteriores.

Maioridade humanaEm sua obra O que ilustrao, Kant sintetiza seu otimismo iluminista em relao possibilidade de o ser humano guiar-se por sua prpria razo, sem se deixar enganar pelas crenas, tradies e opinies alheias. Nela, descreve o processo de ilustrao como sendo a sada do ser humano de sua "menoridade", ou seja, um momento em que o indivduo, como uma criana que cresce e amadurece, torna-se consciente da fora e independncia (autonomia) de sua inteligncia para fundamentar sua prpria maneira de agir, sem a doutrinao ou tutela de outrem. Portanto, o ser humano, como ser dotado de razo e liberdade, o centro da filosofia kantiana. Seus estudos partem da investigao sobre as condies nas quais se d o conhecimento, realizando um exame crtico da razo, contido em sua obra mais clebre, Crtica da razo pura. Nela confessa que Hume o havia despertado, pela primeira vez, de seu "sonho dogmtico" e institui o que ficou conhecido como "tribunal da razo". Depois, seu exame do agir humano (tica) daria origem aos textos Crtica da razo prtica, Fundamen-

Immanuel Kant

tao da metaftsica dos costumes e Metaftsica dos costumes. Outro aspecto importante da obra de Kant sosuas reflexes a respeito da esttica, presentes na Crtica do juzo. (A tica e a esttica kantiana sero estudadas, respectivamente, nos captulos 17 e 20 deste livro.)Retrato de Immanuel Kant (e. 1790) - Artista annimo. Parece que Kant foi em sua vida prtica um homem to metdico como em sua vida intelectual. Conta-se que se deitava e se levantava rigorosamente no mesmo horrio, alm de seguir sempre o mesmo itinerrio entre sua casa e a universidade.

Tipos de conhecimentoComo j dissemos, uma das questes mais importantes do pensamento de Kant o problema do conhecimento, a questo do saber. Na Crtica da razo pura, ele distingue duas formas bsicas do ato de conhecer: conhecimento emplnco (a posteriori) - aquele que se refere aos dados fornecidos pelos sentidos, isto , que posterior experincia. Por exemplo, para fazer a afirmao "Este livro tem a capa verde", foi necessrio ter primeiro a experincia de ver o livro e assim conhecer a sua cor; portanto, trata-se de um conhecimento posterior experincia;

Nascido em Kongsberg, pequena cidade da Alemanha, lmmanuel Kant (1724-1804) teve uma vida longa e tranquila, dedicada ao ensino e investigao filosfica. Homem metdico e de hbitos arraigados, lecionou durante 40 anos na Universidade de Knigsberg. Morreu aos 80 anos, sem nunca ter se afastado das imediaes de sua pequena cidade natal. Kant considerado o maior filsofo do lluminismo alemo. Para ele, a filosofia deveria responder a

Unidade 3 A filosofia na histria

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conhecimento puro (a priori) - aquele que no depende de quaisquer dados dos sentidos, ou seja, que anterior experincia, nascendo puramente de uma operao racional. Exemplo: a afirmao (juzo) "Duas linhas paralelas jamais se encontram no espao" no se refere a esta ou quela linha paralela, mas a todas. Constitui, assim, um conhecimento universal. Alm disso, uma afirmao que, para ser vlida, no depende de nenhuma condio especfica. Trata-se, portanto, de um conhecimento necessrio.

Tipos

de juzo

puro, por conseguinte, conduz a juzos universais e necessrios, enquanto o conhecimento emprico no possui essa caracterstica. Os juzos, por sua vez, so classificados por Kant em dois tipos: juzo analtico - aquele em que o predicado j est contido no conceito do sujeito. Ou seja, basta analisar o sujeito para deduzir o predicado. Tomemos, por exemplo, a afirmao "O quadrado tem quatro lados". Analisando o sujeito dessa afirmao, quadrado, deduzimos necessariamente o predicado: tem quatro lados. Kant tambm chamava os juzos analticos de juzos de elucidao, pois o predicado simplesmente elucida algo que j estava contido no conceito do sujeito. juzo sinttico - aquele em que o predicado no est contido no conceito do sujeito. Nesses juzos, acrescenta-se ao sujeito algo de novo, que o predicado. Assim, os juzos sintticos enriquecem nossas informaes e ampliam o conhecimento. Por isso, Kant tambm os denominava juzos de ampliao. Por exemplo, na afirmao "Os corpos se movimentam", por mais que analisemos o conceito corpo (sujeito), no extrairemos dele a informao representada pelo predicado se movimentam. Por fim, analisando o valor de cada juizo, Kant distingue trs categorias: juzo analtico - como no exemplo da afirmao "O quadrado tem quatro lados", um juzo universal e necessrio, mas serve apenas para elucidar ou explicitar aquilo que j se conhece do sujeito. Ou seja, a rigor, apenas importante para se chegar clareza do conceito j existente, mas no conduz a conhecimentos novos;A alma da rosa (1908) - [ohn WilliamSegundo Kant, o conhecimento Waterhouse. passa primeiro pelos sentidos.

o conhecimento

juzo sinttico a posteriori - como no exemplo da afirmao "Este livro tem a capa verde", amplia o conhecimento sobre o sujeito, mas sua validade est sempre condicionada ao tempo e ao espao em que se d a experincia e, portanto, no constitui um juzo universal e necessrio; juzo sinttico a priori - como no exemplo da afirmao "Duas linhas paralelas jamais se encontram no espao", e em outras da matemtica e da geometria, acrescenta informaes novas ao sujeito, possibilitando uma ampliao do conhecimento. E como no est limitado pela experincia, um juzo universal e necessrio. Por isso, segundo Kant, o juzo mais importante. Para o filsofo, a matemtica e a fsica seriam disciplinas cientficas por trabalharem com juzos sintticos a priori.

2471 Estruturas do sentir

Captulo 14 Filosofia moderna: empirismo e lIuminismo

e conhecer

Limites do entendimentoconhecimento, portanto, seria o resultado de uma interao entre o sujeito que conhece (de acordo com suas prprias estruturas a priori) e o objeto conhecido. Isso significa que no conhecemos as coisas em si mesmas (o ser em si), isto , como elas so, de forma independente de ns. S conhecemos as coisas tal como as percebemos (o ser para ns). Em outras palavras, as coisas so conhecidas de acordo com nossas prprias estruturas mentais. Para Kant, sua filosofia representava uma superao do racionalismo e do empirismo, pois argumentava que o conhecimento o resultado de dois grandes ramos: a sensibilidade, que nos oferece dados dos objetos, e o entendimento, que determina as condies pelas quais o objeto pensado.

Como estudamos antes (no captulo 9), Kant buscou saber como o sujeito a priori, isto , o sujeito antes de qualquer experincia. Concluiu que existem no ser humano certas estruturas que possibilitam a experincia (as formas a priori da sensibilidade) e determinam o entendimento (as formas a priori do entendimento). Trata-se do chamado apriorismo. Vejamos: formas a priori da sensibilidade - so o tempo e o espao. Kant dir que percebemos e representamos a realidade sempre no tempo e no espao. Essas noes so "intuies puras", existem como estruturas bsicas na nossa sensibilidade e so elas que permitem a experincia sensorial. formas a pror do entendimento - de modo semelhante, os dados captados por nossa sensibilidade so organizados pelo entendimento de acordo com certas categorias. As categorias so "conceitos puros" existentes a priori no entendimento, tais como causa, necessidade, relao e outros, que serviro de base para a emisso de juzos sobre a realidade.

o

Nova revoluo copernicanaNo prefcio da Crtica da razo pura, o prprio Kant comparou seu papel na filosofia ao de Coprnico na astronomia. Quando a teoria geocntrica no mais conseguia explicar o conjunto de movimentos dos astros, Coprnico vislumbrou a necessidade de tirar a Terra do centro do Universo e fazer-nos, como espectadores, girar em tomo dos astros. Assim, lanando o modelo heliocntrico, resolveu os impasses da astronomia da poca. Algo semelhante realizou o filsofo alemo, ao inverter a questo tradicional do conhecimento: antes se propunha que todo o conhecimento era regulado pelos objetos; com Kant, os objetos passaram a ser regulados pelas formas a priori de nosso conhecimento.__ o

CONEXES

2. Interprete livremente. mas de maneira filosfica. o quadro abaixo. do pintor surrealista belga Ren Magritte.

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Perspiccia (Autorretrato, 1936) - Ren Magritte (Coleo particular). De acordo com a teoria kantiana, as coisas existem para ns no como so, mas como as percebemos.

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Anlise e entendimento9. Caracterize a filosofia produzida durante o lIuminismo. Exemplifique com aspectos do pensamento dos iluministas. 10. Comente a interpretao de Lucien Goldmann de que os pensadores iluministas podem ser considerados "idelogos da burguesia".Justifique 11. Segundo Kant: a) O juzo sinttico a posteriori no expressa um conhecimento necessrio e universal e o juzo sinttico a priori sim. b) O juzo analtico conduz a conhecimentos novos. Essas afirmaes esto corretas? Por qu? Crie exemplos de juzos que justifiquem suas respostas. 12. No podemos conhecer o ser em si, apenas o ser para ns. Justifique essa afirmao.

13. Em que sentido a revoluo causada por Kantno mbito da filosofia pode ser comparada causada por Coprnico na astronomia?

Conversa filosfica2. Progresso como mito Com o desenvolvimento da Revoluo Industrial e o sucesso da cincia surgiu o "mito do progresso". O que o progresso? Observando o mundo hoje, voc entende que o progresso um mito? Por qu? A humanidade tem progredido? Em que termos? Reflita sobre o tema e depois discuta com colegas. 3. Valores iluministas Dos valores destacados no texto que marcaram o lIuminismo, quais, em sua opinio, so os mais necessrios para uma sociedade democrtica? Justifique, d exemplos e apresente-os a seus colegas.

Sugestes de filmes Amadeus (1984, EUA, direo de Milos Forman) Filme que retrata a vida do compositor austraco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) nas cortes europeias do sculo XVIII. Danton - O processo da revoluo (1982, Frana/Polnia, direo de Andrzej Wajda) Viso da Revoluo Francesa a partir da tica liberalizante de Danton contra as posies mais radicais de Robespierre.

Para pensarTemos em seguida dois textos sobre o lIuminismo. No primeiro, o prprio Kant faz o elogio de seus ideais. No seguinte, dois filsofos alemes contemporneos, Horkheimer e Adorno, fazem a crtica do projeto iluminista. Leia-os e responda s questes que seguem.

1 . O que ilustrao "A ilustrao [Aufk/rung, em alemo] a sada do homem de sua menoridade, da qual ele o prprio responsvel. A menoridade a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a conduo de um outro. O homem o prprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside no na falta de entendimento, mas na falta de resoluo e coragem para us-Io sem a conduo de um outro. Sapere aude! [Ousa i saberll. 'Tenha coragem de usar seu prprio entendimento!' - esse o lema da ilustrao. Preguia e covardia so as razes pelas quais uma to grande parcela da humanidade permanece na menoridade mesmo depois que a natureza a liberou da conduo externa [.. ]; e essas

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Captulo 14 Filosofia moderna: empirismo e lIuminismo

so tambm as razes pelas quais to fcil para outros manterem-se como seus guardies. cmodo ser menor. Se tenho um livro que substitui meu entendimento, um diretor espiritual que tem uma conscincia por mim, um mdico que decide sobre a minha dieta e assim por diante, no preciso me esforar. No preciso pensar se puder pagar: outros prontamente assumiram por mim o trabalho penoso. Que a passagem maioridade seja ti da como muito difcil e perigosa pela maior parte da humanidade [...] deve-se a que os guardies de bom grado se encarregam da sua tutela. Inicialmente os guardies domesticam o seu gado, e'certificam-se de que essas criaturas plcidas no ousaro dar um nico passo sem seus cabrestos: em seguida, os guardies Ihes mostram o perigo que as ameaa caso elas tentem marchar sozinhas. [.. ] muito difcil para um indivduo isolado libertar-se da sua menoridade quando ela tornou-se quase a sua natureza [...l. Mas que o pblico se esclarea a si mesmo muito perfeitamente possvel; se lhe for assegurada a liberdade, quase certo que isso ocorra ... Sempre haver alguns pensadores independentes, mesmo entre os guardies das grandes massas, que, depois de terem-se libertado da menoridade, disseminaro o esprito de reconhecimento racional tanto de sua prpria dignidade quanto da vocao de todo homem para pensar por si mesmo. [...] Enquanto essa reforma no ocorrer, novos preconceitos serviro, to bem quanto os antigos, para atrelar as grandes massas no pensantes. Entretanto, nada alm da liberdade necessrio ilustrao: na verdade, o que se requer a mais inofensiva de todas as coisas s quais esse termo pode ser aplicado, ou seja, a liberdade de fazer uso pblico da prpria razo a respeito de tudo [ ..l."KANT,

O que a ilustrao, citado em WEFFORT, Os clssicos da poltica, v. 2, p. 83-85.

2. O que lIuminismo "Desde sempre o Iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a Terra resplandece sob o signo do infortnio triunfal. O programa do Iluminismo era o de livrar o mundo do feitio. Sua pretenso, a de dissolver os mitos e anular a iluso, por meio do saber. [...] A tcnica a essncia desse saber. Seu objetivo no so os conceitos ou imagens, nem a felicidade da contemplao, mas o mtodo, a explorao do trabalho dos outros, o capital. [...] O que os homens querem aprender da natureza como aplic-Ia para domin-Ia completamente e aos homens. [...] Poder e conhecimento so sinnimos."HORKHEIMER

e ADORNO, Conceito de Iluminismo, em

BENJAMIN

et aI., Textos escolhidos, p. 89 e 98.

1. No primeiro texto, o que significa a "menoridade" do ser humano?

2. Por que, segundo Kant, o ser humano escolhe viver assim? 3. Com relao aos "guardies" ou tutores da conscincia dos indivduos, citados por Kant:a) Quem seriam eles? b) Como voc entende que eles controlariam a conscincia das pessoas? c) Quem mais voc acrescentaria a essa lista nos tempos atuais? H pessoas do seu cotidiano que poderiam ser consideradas tutoras da sua conscincia?

4. Qual o caminho proposto por Kant para tirar o ser humano dessa condio de menoridade?Comente essa proposta.

5. Contraponha o otimismo de Kant em relao ao projeto iluminista com o que dizem os autoresdo segundo texto.

6. Que reflexes e concluso voc extrai da leitura desses dois textos?