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; •~ 1 o que é o ser humano? Assim podemos sintetizar a reflexão de Blaise Pascal, filósofo e cientista francês do século XVII. E a partir de- la, formular outras mais, como, por exemplo, "Qual o lugar do homem no Universo?" e "O que é o Universo para o ser humano?" Ou seja, antes de falar de filosofia, vamos iniciar o nosso estudo discutindo sobre o ser que a produz. Va- mos primeiro filosofar sobre o ser humano e aquilo que o torna diferente e singular. Comecemos esta busca comparando o cor- III Capítulo 1 Cultura: o cosmo humano po humano ao de outros animais. Veremos que nosso corpo não é tão capacitado quanto o deles para enfrentar uma série de dificuldades. Como ilustra o arqueólogo australiano Gordon Childe (1892-1957), o homem não tem, por exemplo, um couro peludo como o do urso para manter o calor corporal num ambiente frio. O corpo humano também não é excepcionalmente bem adaptado, como o de alguns animais, à fuga, à defesa própria ou à caça. Não tem a capacidade de correr como uma lebre ou um avestruz. Não tem a coloração protetora do tigre ou a arma- dura defensiva da tartaruga ou da lagosta. Não tem asas para voar e dar-lhe a vantagem de es- pionar e localizar sua caça. Faltam-lhe o bico, as garras e a acuidade do gavião. No entanto, conclui Gordon Childe: o ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o ur- so polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habi- lidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os pólos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar. Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso iegado social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem (fala e escrita). A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvol- ver sua própria cultura. CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, p. 40-1. Assim, diferentemente dos outros animais, os homens não são apenas seres biológicos pro- duzidos pela natureza. Os homens são também seres culturais que modificam o estado de natureza, isto é, o modo de ser, a condição natural das coisas, definida pela natureza. Esmiucemos, então, isso que acabamos de afirmar. Esquimó constrói um iglu (habitação em forma de cúpula usada para proteger-se do frio extremo) juntando blocos de neve, cortados e extraídos do ambiente. Exemplo marcante da inventividade e adaptabilidade humana.

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o que é o ser humano? Assim podemossintetizar a reflexão de Blaise Pascal, filósofo ecientista francês do século XVII. E a partir de-la, formular outras mais, como, por exemplo,"Qual o lugar do homem no Universo?" e "Oque é o Universo para o ser humano?" Ou seja,antes de falar de filosofia, vamos iniciar o nossoestudo discutindo sobre o ser que a produz. Va-mos primeiro filosofar sobre o ser humano eaquilo que o torna diferente e singular.

Comecemos esta busca comparando o cor-

III Capítulo 1 Cultura: o cosmo humano

po humano ao de outros animais. Veremos quenosso corpo não é tão capacitado quanto o delespara enfrentar uma série de dificuldades. Comoilustra o arqueólogo australiano Gordon Childe(1892-1957), o homem não tem, por exemplo,um couro peludo como o do urso para mantero calor corporal num ambiente frio. O corpohumano também não é excepcionalmente bemadaptado, como o de alguns animais, à fuga, àdefesa própria ou à caça. Não tem a capacidadede correr como uma lebre ou um avestruz. Nãotem a coloração protetora do tigre ou a arma-dura defensiva da tartaruga ou da lagosta. Nãotem asas para voar e dar-lhe a vantagem de es-pionar e localizar sua caça. Faltam-lhe o bico,as garras e a acuidade do gavião. No entanto,conclui Gordon Childe:

o ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura,multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o ur-so polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habi-lidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os pólos da Terra atéo equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz.Nos aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longedo que o gavião. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar.Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são partedo corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessáriopara sua produção e uso é parte do nosso iegado social. Resulta de uma tradição acumulada pormuitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem (fala e escrita).A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebrogrande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvol-ver sua própria cultura.

CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, p. 40-1.

Assim, diferentemente dos outros animais,os homens não são apenas seres biológicos pro-duzidos pela natureza. Os homens são tambémseres culturais que modificam o estado de

natureza, isto é, o modo de ser, a condiçãonatural das coisas, definida pela natureza.

Esmiucemos, então, isso que acabamosde afirmar.

Esquimó constrói um iglu (habitação emforma de cúpula usada para proteger-se dofrio extremo) juntando blocos de neve,cortados e extraídos do ambiente. Exemplomarcante da inventividade e adaptabilidadehumana.

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Ur,;dade í Ser humano: ação e reflexão

o comportamento de grande parte dos ani-mais é basicamente determinado por reflexos einstintos vinculados a estruturasbiológicas hereditárias. Isso faz comque o comportamento de um insetoseja praticamente igual ao de outrode sua espécie, hoje e sempre. Com-provamos isso observando, porexemplo, a atividade das abelhasnas colméias ou das aranhas tecen-do as teias.

Existem animais que parecemmais livres do que outros da depen-dência dos instintos ou reflexos au-tomáticos, que apresentam algunscomportamentos mais flexíveis,maisimprevisíveis, mais maleáveis às cir-cunstâncias ambientais. É o caso,por exemplo, de cães e gatos, nosquais distinguimos muitas vezes oque se poderia chamar "personali-dade". E, dependendo do animal,como chimpanzés e gorilas, é possí-vel encontrar atos inteligentes e umacapacidade elementar de raciocínio.

Apesar de tudo isso, podemos dizer queexiste um grande abismo, uma grande diferençaentre o comportamento dos animais e o dos se-res humanos. Para dar um só exemplo, mesmoo chimpanzé mais evoluído possui apenas rudi-mentos do que lhe permitiria desenvolver alinguagem simbólica' e tudo o que dela resulta:aprender, reelaborar o conteúdo aprendido e

+prornover o novo (invenção). Isso quer dizerque a vida de cada animal é, em grande medida,uma repetição do padrão básico vivido pela suaespécie. Já o ser humano tem, individualmentee como espécie, a capacidade de romper comboa parte do seu passado, questionar o presentee criar a novidade futura.

É claro que existem fatores genéticos esocioeconômicos que limitam certas mudanças,

f

favorecem ou dificultam a realização de determi-nados desenvolvimentos. Além disso há váriostipos de crenças, ideologias e condicionamentos

que impedem as pessoaseJ de sequer desejar uma

transformação em si mes-~~ mas ou à sua volta. Por~ fim, todo ser humanoe:

~ apresenta também refle-xos e instintos vincula-dos a estruturas biológi-cas hereditárias própriasda espécie humana.

O que queremosdestacar, no entanto, éque o ser humano nãonasce pronto pelas "mãosda natureza". Avida de ca-da indivíduo depende doparto de si mesmo, numprocesso permanente de"nascer sem parar".

O que determina,então, essa diferença en-tre o "animal homem" etodos os outros animais?

Na maioria dos mamíferos, mamar é umato instintivo: tanto filhotes de animais comobebês, mesmo sendo "marinheiros de primeiraviagem", não costumam ter dificuldade emabrir a boca para sugar o alimento do seiomaterno.

o ser humano tem uma massa encefálica maior do que a dosoutros animais e um sistema nervoso extenso e complexo. Essapode ser, segundo alguns estudiosos, a base biológica que nospermitiu certos "vôos" mais altos, como o desenvolvimentoda linguagem, a socialização e, enfim, a criação cultural.

1. linguagem simbólica: sistema de símbolos, isto é, signos que, por convenção (acordo entre as pessoas),representam alguma coisa. Por exemplo, as línguas portuguesa, inglesa ete.

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,1·-

Do ponto de vista biológico, essa caracte-rística humana de aprender e inventar, de per-ceber, interpretar e comunicar o que percebeu,de transformar a si mesmo e o que está ao seuredor parece estar intimamente ligada às carac-terísticas da mente humana, do sistema nervosocentral e, especificamente, do cérebro.

Tudo isso levou a que o comportamentohumano fosse fundamentalmente diferente dodos outros animais. Graças ao desenvolvimentode seu psiquismo, o homem tornou-se um serbiológico e cultural ao mesmo tempo. Ocorreno ser humano uma síntese, isto é, uma inte-gração de características hereditárias e adqui-

-ridas, aspectos individuais e sociais, elementosdo estado de natureza e de cultura.

Por isso, como exclama interrogativamentePascal no início deste capítulo, o ser humanoé contraditório, ambíguo, instável e dinâmico.Um produto da natureza e da cultura e, aomesmo tempo, um transformador da natureza

13i Capítulo 1 Cultura: o cosmo humano

e da cultura. Criatura e criador do mundo emque vive. Um ser capaz de, em muitos aspectos,dominar a natureza mesmo fazendo parte dela.Capaz não só de criar coisas extraordinárias, mastambém de destruir de modo devastador. Capaz

. de acumular um saber imenso e, no entanto,permanecer angustiado por dúvidas profundasque o fazem sempre propor novas perguntas enovos problemas a si próprio.

Mediante a cultura, o ser humano criou pa-ra si um "mundo novo", diferente do cenárionatural originalmente encontrado. Em outraspalavras, 'dentro da biosfera (a parte do planetaque reúne condições para o desenvolvimentoda vida), os humanos foram construindo a an-troposfera (a parte do mundo que resulta doajustamento da natureza às necessidades huma-nas). Essa antroposfera, criada pelas diferentesculturas, é a morada do ser humano no mundo.Elaconstitui o cosmo humano, um espaço cons-truído pelos conhecimentos e realizações de-senvolvidos e compartilhados pelos diferentesgrupos sociais.

Arelaçãodo homem com a natureza

. Virnosaté aqui queo homem é um serquese distingue dos demais PQr~ré1nsfoÚlra.çªdâJ:qié~a; ." ,._~ ~._ '. _ .-. .' _ .:.:." .:' :,.'.- - ",", - .:-',- ~--", ·..~·.-.:..·;,::;>:-~.~(-:':~.;~~,~:,;5:';.·~~':'"~·-..y.·~·:~...;":~~,f,;':~:r:t~jft~:·:.

criandopara si Llnia"segundâ natureza", acultura. Embora essaintel'vénçã9t~Jlt)?Jta.fi.qp/qQ-;'-Q9'gq·dósséculos.melhorias à vida humana, não se podenegarque provocoutambem:g{á.nti~~~'prª.~J~rll~Karnbientais, em virtude da forma e daintensidade com que ela sedeu, .sobretudo DOS.~9HI9~~«k};;::

..•., Nem sempre foi assim. No passado remoto da humanidade,a náturez.àéra,s~ntiq~.:~?ifí8.18Iila -,potência superior à qual os homens estavam submetidos. Os fenômenos (,alüraisêrám~"ê2:thp'r~~~:;' .didos como "fenômenos sagrados", que revelavam uma intenção, umarazão.Oràeramyistosçgmó .'recompensa ou punição divina pelos atos humanos, ora eram.percebidoscomo apróPfiarnaDife~~a,ç~Q:dos deuses, que conversavam diretamente com os homens. Era uma natureza encantada. . -

Esse respeito e temor à natureza foi sendo gradativamente reduzido à medida que as sociedadesse tornavam mais complexas e desenvolviam novas formas de conhecer. Por meio do conhecimentoracional, o homem foi se desprendendo dos elos míticos, sobrenaturais, queo ligavam à natureza.

Esse processo, iniciado nos séculos XVI e XVII com o desenvolvimento da ciência moderna,pode ser chamado "desencantamento" do mundo, ou seja, a natureza foi perdendo o seu carátersagrado e passou a ser estudada e manipulada. Em termos históricos, esse "desencantamento" vin-cula-se à crença no progresso, característica do movimento iluminista do século XVIII. É a época das

"Desencantamento" do mundo

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Unidade 1 Ser humano: ação e reflexão i 14. -

revoluções burguesas no campo político e da revolução industrial no campo econômico.A partir do século XIX. intensificaram o domínio e a exploração da natureza. possibilitados pelo

avanço da ciência eda tecnologia e pelo modo de organização social (aglomeração nas cidades) eeconômico (capitalismo),

Questão ecolÓ~ica

Esse modelode relação do homem com a natureza - que fez surgir diversos problernasarnbien-tais e ameaça acabar com os recursos naturais - tem sido. no entanto. questionado por ambientalistas

..e pensadores do mundo inteiro. e de distintas maneiras.Uma delas fundamenta. seu questionamento na crítica ao antropocentrisrno, isto é. nega a'

crença, básicadequeo.hcmern.seia superior aos demais seres da natureza por seus dotes racionais.Um dos princip~i?9rgumento~é o de que foi justamente a razão humana que conduziu grande parteda humanidade~'gray~s problemas. como a perdada biodiversidade. a poluição e o aquecimento glo- ..bal, o que enfraqueceesse estatuto de superioridade, Éa posição da chamada ecologia profunda .:

.movirnento ecológico que cresce na Europa e nos Estados Unidos,

: A dd~d~~va~ç~1Ób;~'}b}7i"~pb;~'à'p~isagé~ t~rna-~~ artificial,triste;am~~ç~d~ra,D~í essanostalgia da natureza, essasensibilidade ecológica cada vez maior de nossos contemporâneos.

,•.~.,

A principal via de questionamento da atual relação homem-natureza não abandona. no entanto. aperspectiva humanista, posicionando o homem como centro de preocupação e referência. Criticaigualmente o tipo de racionalidade que orientou até aqui o processo civilizatório ocidental, masentende que somente o homem pode, entre outras coisas. julgar o que lhe convém e o que não lheconvém e. dessa forma. contribuir na reorientação da vida social. a fim de assegurar uma relação maisharmoniosa com a natureza. i

j.

•...

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Podemos fazer agora as seguintes pergun-tas: onde acaba, no ser humano, a natureza ecomeça a cultura? Em que ponto, em que mo-mento, com que fato ocorreu essa transição ouessa síntese?

O tema é polêmico. Alguns estudiosos afir-mam que não há um limite rígido entre naturezae cultura, enquanto para outros um provávelindicador desse limite seria a construção de ins-trumentos de trabalho. Aqui destacaremos duascorrentes interpretativas que consideramos asmais relevantes.

Alguns estudiosos entendem que o fator de-terminante da transição natureza - cultura é a lin-guagem. Trata-se de uma corrente que entendeo ser humano fundamentalmente como um serlingüístico. Para ilustrar essa concepção, o an-tropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908)faz o seguinte exercício de imaginação:

Suponhamos que num planetadesconhecido encontremos seresvivos que fabricam utensílios. Is-so não nos dará a certeza de queeles se incluem na ordem huma-na. Imaginemos, agora, esbarrar-

151 Capítulo 1 Cultura: o cosmo humano

mos com seres vivos que possuamuma linguagem que, por maisdiferente que seja da nossa, possaser traduzida para nossa lingua-gem - seres, portanto, com osquais poderíamos nos comunicar.Estaríamos, então, na ordem dacultura e não mais da natureza.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Cultureet langage. Apud CUVILLlER, Arnoud.

Sociologia da cultura, p. 2.

.~,

Assim, segundo esse antropólogo, o que te-ria distanciado definitivamente o homem da or-dem comum dos animais - animal que ele tam-bém é e nunca deixará de ser - e permitido a suaentrada no universo da cultura seria o desenvolvi-mento da linguagem e da comunicação.

De fato, a linguagem constitui uma das di-mensões mais importantes da cultura, pois é elaque permite o intercâmbio das experiências eas aquisições culturais. É pela linguagem, porexemplo, que os pais comunicam aos filhosnão apenas suas experiências pessoais, mas al-go mais amplo: as experiências acumuladas ecompartilhadas pela sociedade. De modo inver-so, é também por meio da linguagem que o co-nhecimento individual de cada pessoa pode in-corporar-se ao património social.

o impacto de invenções ligadas à linguagem através d~ história

Costuma-se conceber a história como a seqüência das marcas deixadas pelos acontecimentosdo passado, mas nem todo acontecimento tem o mesmo impacto sobre o futuro. Alguns são maisfecundos nas possibilidades que abrem para a humanidade. É o caso de um conjunto de invençõesligadas à esfera da linguagem e da comunicação: a criação do alfabeto, a invenção da imprensa e, emnossos dias, o desenvolvimento da linguagem eletrônica.

Antes da invenção do alfabeto, eram os poetas que se encarregavam da educação na Gréciaantiga, e o faziam relatando histórias épicas ou fábulas, narrações sobre as aventuras e desventurasrealizadas por humanos, heróis e deuses. Assim. os jovens aprendiam com esses personagens o queera piedade, amor, traição etc. Para serem sábios, tinham de-agir,por exemplo, como Ihes contavam

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Unidade 1 Ser humano: ação e reflexão 116

"":;:

que atuava Ulisses; para serem corajosos, tinham de agir como Ihes diziam que agia Aquiles (doispersonagens dos maiores poemas épicos da Antiguidade grega, atribuídos a Homero). Desse modo,linguagem e ação estavam estreitamente ligadas. Podemos dizer que o falar, o pronunciar certas pa-lavras, tinha o poder de promover determinadas coisas, fazer com que elasacontecessem. indicarmodelos a serem atingidos. Era uma linguagem de ação, baseada no relato dos acontecimentos reaisou imaginários. .

. Por volta de 700 a.C; com Q surgimentodo alfabeto, facilitando a linguagem escrita, teveinício uma transformação cujasconseqüências se observam até os dias atuais. O relato oral foi per-dendo a relevância exclusiva de antes, pois o texto escrito, que lentamente-se difundia, falava por simesmo e, para escutá-lo, ooradordeixou deser imprescindível. Ea linguagem da reflexão foi gradati-vamente suplantandoo papel antes desempenhado pelo relato oral -dos acontecimentos: passou-sea perguntar "o que é a sabedoria?", "o queé a coragem?", sem recorrer aos exemplos de Ulisses ouAquiles. Os poetêls,qec:lamádpre'seoradóresforamsentlo substituídos pelos filósofos, preceptoreseprofessores;na tar~'fade'e'ducar a juventude. A narrativa épica deixou de ser a fonte exclusiva dosexemplos e rnodelosycedêndo espaço para ás tratadosfilosóficos e científicos.

. "A partir do.séculoXv, com outro invento, a impren-sa deGotenberg/ocorréu uma nova revolução, que apro-TundoG a..'m-ud~ln·ç~'de.meritalidade iniciada: corn oadvénto'.dó'arfap,~t~:Ó~'Hv~ós, antes manuscritos; passàiarna.ser.' irnpre~s~~'ese tornar~m produtos quê podiam ser adquiti-

..... dos com maior facilidade, favorecendo a educação, aexpan- .são da-alfabetização e .divulgação das idéias filosóficas e

. científicas,Algosemelhante.está acontecendo nas últimas déca-

das, como resultado dó desenvolvimento da linguagem ele-trõnica,quecompreende;grandequantidade de meios decOnlunicaçã~'; desd~ os antigos telégrafos e gramofones,~té;osátüais,'tel~fone,telex,., fax. ..rádio,. televisão,. cinema,

;·:·~ídéó)iSf~2óp;lád():r~;::cbíTI~Utâd~f.-interriét,'correlo eietrôni-coe telefoneç~iular.O problema da distância para acomuni-cação.pratiêª!TIenteacapou.Como resultado, o mundo se

;transf9r(hOQ':~f11"y,~~"aldeiaglobal ", (expressão usada pe-...lo.~ÔmtInícQI~gb,Marshall. MaçLuhan) onde diferéntes.cul-'. turasseihte'rpénEiram:e'ksniLidanças se converteram num.aspecto petrn~hef1t~ da:vidam6derna.

:,"

,:,

'Óae~çritkê:~iieifotr:Tlé ~<Tlta~Úinh'~~aeargilada Me~opOiârriia (foto) aos textos que viajam .de forma instantânea pela rede' mundial de •computadores. Comó as sucessivas revoluçõesda comunicação afetaramnossasvidas?

RAFAEL ECHEVERRíA. Ontología dei lenguaje,p. 19-26. (Excertos traduzidos e adaptados pelo autor.)

ser humano e animais; portanto, entre cultura enatureza. É a partir do trabalho, e da forma comose dá o processo de produção da vida material doshomens, que todas as outras formas de manifesta-ções humanas se desenvolvem. Para Marx:

Outra vertente interpretativa, desenvolvidaporKarl Marx, filósofo alemão do século XIX,entendeque é o trabalho que possibilita a distinção entre

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17\ Capitulo 1 Cultura: o cosmo humano

Pode-se considerar a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os ho-mens e os animais; porém esta distinção só começa a efetivar-se quando os homens iniciam aprodução dos seus meios de vida.

De acordo com essa interpretação, portan-to, é o modo como os homens constroem suavida material que dá origem à elaboração da vi-da espiritual e das relações sociais, formandoum conjunto que constitui a cultura. Isso querdizer também que não podemos falar de cul-tura no singular, mas sim de culturas, poiselas são múltiplas e variáveis, de acordo com adiversidade dos modos de ser e viver das cole-tividades humanas. (Veremos com mais detalhea temática de-trabalho no Capítulo 2 e o pen-samento de Marx no Capítulo 10.)

A:; respostas ao desafiefFh~,~ "lf ~~ 'fS.nt,F t~l·~JJ~I ~~S'~~'Ji;;1~~1~ """~M~

Falamos até agora sobre essa distinção entre.natureza e cultura. Mas o que queremos dizerexatamente quando usamos a palavra cultura?Pararesponder a essa pergunta, investiguemos primeiroo uso desse vocábulo em contextos distintos:

• Os biólogos, por exemplo, se referem àcriação de certos animais falando em cultu-ra de germes, cultura de carpas etc.• Na linguagem cotidiana dizemos queuma pessoa tem cultura quando freqüentouboas escolas, leu bons livros, adquiriu co-nhecimentos científicos etc.• Na Grécia Antiga o termo cultura adqui-riu uma significação toda especial, ligada àformação individual do cidadão. Correspondiaà chamada paidéia, processo pelo qual o ho-mem realizava o que os gregos consideravama sua verdadeira natureza, isto é, desenvolvera filosofia (o conhecimento de si e do mundo)e a consciência da vida em comunidade.Apesar dessas diferentes acepções, pode-

mos perceber em todas a existência de umaidéia básica: a de desenvolvimento, formação erealização. Essa idéia básica está presente aqui

MARX, K. e ENGEL, F. Ideologia alemã, v. 1, p. 19.

também, no uso que estamos dando à palavracultura. Empregada por antropólogos, historia-dores e sociólogos, cultura designa o conjuntodos modos de vida criados e transmitidos deuma geração para outra, entre os membros deuma sociedade. Abrange conhecimentos, cren-ças, artes; normas, costumes e muitos outros ele-mentos adquiridos socialmente pelos homens.

A cultura pode ser considerada um amploconjunto de conceitos, símbolos, valores e atitu-des que modelam uma sociedade. Envolve oque pensamos, fazemos e temos como mem-bros de um grupo social. Nesse sentido, todasas sociedades humanas, da pré-história aos diasatuais, possuem uma cultura. E cada cultura temseus próprios valores e sua própria verdade.

Podemos falar, então, em cultura ocidentalou oriental (própria de um conjunto de povoscom determinadas características comuns), cul-tura chinesa ou brasileira (própria de uma na-ção ou civilização), cultura tupi ou africana(própria de um grupo étnico), cultura cristã oumuçulmana (própria de um grupo religioso),cultura familiar ou empresarial (própria doconjunto de pessoas que constituem uma insti-tuição) etc. Observem que, como dissemos an-tes, cada grupo cultural mencionado tem seuspróprios valores e suas próprias verdades.

Cultura é, numa abordagem mais filosó-fica, a resposta oferecida pelos grupos humanosao desafio da existência. Resposta que se ma-nifesta em termos de conhecimento (lagos), pai-xão (pathos) e comportamento (ethos). Isto é,em termos de razão, sentimento e ação.

o arqueólogo norte-americano RobertBraidwood procurou indicar os principais ele-mentos que caracterizam a cultura:

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Unidade 1 Ser humano: ação e reflexão 118

A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam.No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e entendimentos.Quase se pode dizer que a cultura vive nas mentes das pessoas que a possuem. Mas as pes-soas não nascem com ela; adquirem-na à medida que crescem. Suponha que um bebê húngarorecém-nascido seja adotado por uma família residente nos Estados Unidos, e que nunca digama essa criança que ela é húngara. Ela crescerá tão alheia à cultura húngara quanto qualquer

./ outro americano.Assim, quando falo da antiga cultura egípcia, refiro-me a todo o conjunto de entendimentos,I crenças e conhecimentos pertencentes aos antigos egípcios. Significa, por exemplo, tanto suas

I crenças sobre o que faz o trigo crescer, quanto sua habilidade para fazer os implementos neces-I sários à colheita. Ou seja, suas crenças a respeito da vida e da morte.

Quando falo de cultura, estou pensando em algo que perdurou através do tempo. Se qualqueregípcio morresse, mesmo que fosse o faraó, isso não afetaria a cultura egípcia daquele mo-mento determinado.

Vários estudiosos concordam com os ele-mentos apontados por Braidwood, caracterizan-do a cultura como:

• adquirida pela aprendizagem, e não her-dada pelos instintos;• transmitida de geração a geração, atravésda linguagem, nas diferentes sociedades;• criação exclusiva dos seres humanos, in-cluindo a produção material e não-material;• múltipla e variável, no tempo e no espa-ço, de sociedade para sociedade.

Pensemos agora sobre a vida cotidiana decada pessoa e sua relação com o universo cul-tural de que ela participa.

Vimos que a cultura abrange um conjuntode conceitos, valores e atitudes que modelamuma comunidade. Assim, podemos dizer quetoda pessoa vive sob a influência de diversas cul-turas, e não só de uma, pois participa de distin-tos grupos sociais, e cada um deles lhe imprimea sua marca cultural.

Vejamos um exemplo: um brasileiro que temuma família, freqüenta uma igreja e trabalhanuma empresa, recebe influência de pelo me-nos quatro fontes culturais - a cultura popular.brasileira (ampla e expressiva, mas que não éhomogênea e pode ser dividida em diversas sub-culturas); a cultura familiar, basicamente trans-

BRAIDWOOD, Robert.Homens pré-nistôricos. p. 41-2.

Grupo de africanos de etnia massai diante de um notebook,O que podem estar pensando? Os massais são um povonômade que crê que todo gado do mundo Ihes pertence.

mitida por seus pais e avós; a cultura de seu gru-po religioso; e a cultura organizacional desenvol-vida em seu local de trabalho.

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Unidade 1 Ser humano: ação e reflexão 120

Como a cultura influenciaa nossa maneira de Yeras coisas

Olhe bem esse desenho. Oque ele representa para você?Saiba que pode haver mais de uma resposta. Esse mesmo desenho foí mostrado emum estudo

para pessoas de urnacorruinidade rlJ!al afrlc:ana'e qua~t:t~d~Sç8nGÔrçlarafr,..que erà:rh"duis'piêssoas~oocaminhando, sendo que uma delas levava úmá carga ;s(;b'fÉ?·~;·c.ibeça,algo bastanteà)rTImr1'em$u~'região. Hasnãoviram duas pessoas em pé numa $ala,r~Pf~~êr1têlda porduasparedeseünfa]ànela" 000

ainterpretaçãomaiscornurn em sbcledadesurbãríízàda~;:;,;<; , , , ' " ,

realizada por seus ancestrais ou antecessorespara enfrentar os desafios da existência, pois jádomina "respostas" ou "soluções" que lhe satisfa-zem ou à sua comunidade.

O problema dessa invisibilidade está, noentanto, em que, como os integrantes de umacultura compartilham a mesma maneira de vere viver as coisas, comumente acreditamos queessa visão compartilhada constitui uma reali-dade única ou a verdade absoluta. E, por contadisso, podemos:

• desprezar grupos culturais com visõesdistintas e entrar em confronto com eles,sendo intolerantes em relação à diferença;11 não encontrar saídas para as dificuldadesou novos desafios que surjam em nossa fa-mília, escola, trabalho e sociedade. Não ve-

mos alternativas porque, muitas vezes, es-.tamos condicionados pelo padrão culturalem que vivemos. Isso é fonte de conformis-mo expresso em frases como "o mundo foisempre assim", "todas as pessoas são dessejeito".

Acreditamos que a filosofia pode ser umbom apoio nesse processo de transformação cul-tural, pois filosofar é promover uma reflexãoprofunda sobre a natureza e o ser humano, anali-sando o que fazemos, sentimos, pensamos e ma-nifestamos. Aprender a filosofar contribui paraa compreensão do mundo e nos impulsiona adesempenhar um papel mais consciente e ativodentro dele.

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