revista subversa v 2 n 7 2015

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SUBVERSA EDIÇÃO ILUSTRADA | FOTOGRAFIA | Caroline Aguiar GUILHERME PIMENTA | MAURICIO LIMA | BRENO RICARDO| JORDANO SOUZA | EVANDRO CAMARGO | SAMUEL H. DIAS | DIEGO DE TOLEDO LIMA| MAURICIO CHEMELLO |JOSÉ EUGÊNIO DE ALMEIDA| LETÍCIA MONTEIRO | VINICIUS BANDERA| FERNANDA FATURETO | RAFAELA MANICKA ISSN 2359 – 5817 Volume 2 | n.º 7 | Abril 2015

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Page 1: Revista subversa v 2 n 7 2015

SUBVERSA

EDIÇÃO ILUSTRADA | FOTOGRAFIA | Caroline Aguiar

GUILHERME PIMENTA | MAURICIO LIMA |

BRENO RICARDO| JORDANO SOUZA | EVANDRO CAMARGO |

SAMUEL H. DIAS | DIEGO DE TOLEDO LIMA|

MAURICIO CHEMELLO |JOSÉ EUGÊNIO DE ALMEIDA|

LETÍCIA MONTEIRO | VINICIUS BANDERA|

FERNANDA FATURETO | RAFAELA MANICKA

ISSN 2359 – 5817

Volume 2 | n.º 7 | Abril 2015

Page 2: Revista subversa v 2 n 7 2015

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

[email protected]

@CANALSUBVERSA

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 7

© originalmente publicado em 15 de Abril de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Fotografia:

Caroline Aguiar

[email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

Page 3: Revista subversa v 2 n 7 2015

SUBVERSA

GUILHERME PIMENTA | © CANELAS | 5

MAURICIO LIMA | © O VELHO SOZINHO|10

BRENO RICARDO | © AS MAGNIFICAS REVELAÇÕES DE UM

SUBCONSCIENTE LIVRE| 14

JORDANO SOUSA | © CAMINHOS | 17

EVANDRO CAMARGO | © LENDAS PARAGUAÇUENSES | 19

SAMUEL H. DIAS | © PIERRE | 22

DIEGO DE TOLEDO LIMA |© CORRENTES DA LIBERDADE | 25

MAURICIO CHEMELLO | © VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS

| 27

JOSÉ EUGÉNIO DE ALMEIDA | © VISITAS DE DOMINGO | 29

LETÍCIA MONTEIRO | © A MORTE DO CISNE | 32

ESPECIAIS

VINICIUS BANDERA | © TINHA UM ABISMO NO FIM DO

CAMINHO | 34

FERNANDA FATURETO | © A SOLIDÃO | 40

RAFAELA MANICKA|© INVERNO| 43

V. 2 | N.º 7 | 15 DE ABRIL DE 2015

Page 4: Revista subversa v 2 n 7 2015

EDITORIAL

Este número, para além das conquistas que comemoramos e as

que já planejamos para o mês de Abril na Subversa, dedica-se também

a referir a essência libertária da literatura.

Em Portugal, o mês de Abril traz consigo os ventos libertadores do

dia 25, que marcou a Revolução no ano de 1974, data em que vem à

tona, todos os anos, discussões, manifestações, homenagens e novas

formas artísticas de abordar o momento em que o país venceu a

ditadura salazarista.

Repare que em “abordar”, neste caso, habitam muitos outros

verbos possíveis: protestar, relembrar, questionar, doer, orgulhar, sentir. E,

dentro de “sentir”, mais uma série de outras coisas e por aí fora. Mas a

questão é que, para a literatura, mesmo quando nenhum verbo dá

conta de explicar a luta desmedida pelo poder e pelo aprisionamento

social e individual, ainda é possível reinventar a linguagem, criar verbos

impossíveis, novas formas de palavras, imagens, ritmo e, enfim, expressar

aquilo que não se pode comunicar de outra maneira.

Nestas páginas, o que encontrarão é basicamente isso, maneiras

de dialogar com esta força dinâmica da vida que aprisiona e liberta,

constantemente, desde as mais delicadas sutilezas aos sentimentos e

materialidades mais fortes e concretos. Para nos ajudar, a fotógrafa

mineira Caroline Aguiar trabalhou conosco estes temas e, ainda que

repleta de afazeres acadêmicas, se aventurou por estas belas imagens.

Com vocês, o sétimo número do volume dois.

Boa leitura.

As editoras.

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5

GUILHERME PIMENTA

Belo Horizonte, MG.

Canela de pássaro na água enquanto os olhos fixos na vela do

barco procuram algum apoio. O voo é calculado. A ave vira sua asa

direita de lado e o vento carregado de sal performa tarefa bem feita,

consegue empurrar o animal em uma curva perfeita. Canela de

pássaro sente a brisa e nem se atreve a tremer, porque quem avisa o

seu dever à comida perde a oportunidade de comer. E para quê, me

diz você, vem um pássaro sem maldade pousar em um barco em bela

tarde, senão para comer?

Tarde bela, sim. Azul que contrasta com o branco da vela e,

acima dela, o predador arrasta asa e cerra os olhos analíticos ao

convés. Ao invés de se apressar como da última vez, dez minutos entre

mastro e ar fez-se muito bem – e quando é que não faz? Um tempo a

mais e nada acontece. Quase o impulso vence e a ave desce no susto

em direção ao chão.

CANELAS

Page 6: Revista subversa v 2 n 7 2015

6

Mas não. Desta vez mais tenso, o pássaro mantém o bom senso e

espera por alguma ação. Desta vez o tempo lhe deu razão. Saído ao

vento, o dono do espólio olha em volta e bota o pé em cima da caixa

que os olhos de predador almejam, enquanto a pata o firma com fervor

e atenção.

Caixa azul.

O azul é o mesmo do mar, mas neste não pode o pássaro

simplesmente entrar em um mergulho. E olha que ele se enche de

orgulho ao piar sobre seus feitos, um sem número de jeitos de pescar.

Mas por que então toda essa fixação pela caixa azul, se para o sul tudo

que se vê é mar? É maldade, porém pura realidade, que a refeição é

mais segura quando o peixe já não é vivo para nadar. Talvez quando

ele era mais jovem e delgado; agora ele vem voando meio de lado e a

canela sempre sente mais gelado o ar.

A vida segue em frente, você sabe, e quem não se adapta bem

cabe o próprio fim também naquela caixa.

O peito abaixa até a asa se deitar. Meio sem jeito no convés, o

homem firma os pés e olha o infinito. O dia é bonito, a ave bem sabe,

mas não é possível que este estranho animal fique ali parado até que o

tal dia se acabe.

Será? O tempo passa lá e lá, e o enfado é indiscutível quando um

apito corta o ar. É daqueles de pena arrepiar, não fosse a cena em

seguida. A ave tem a oportunidade de sua vida quando o homem de

média idade segue o som barco adentro. O apito, que não foi fraco, foi

sim aviso sobre algum momento. No alto e no centro, o pássaro estava

sozinho outra vez.

Hora de descobrir se a resposta para sua escassez de comida está

ali. Há um mês, sem esperança em voo de despedida, ele avistou o

azul, não tão natural quanto o mar ao sul, sendo aberto pelo animal

quase nu. Lá dentro havia peixe cru, quando ele morre e ainda não

perdeu seu frescor; quando ele não luta mais, mas ainda mantém todo

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7

o sabor. Uma bela truta que de cima da vela um exímio caçador

reconhece tão bem. Naquele dia também a ave pousou e foi além.

Dona de si, quis tomar o peixe a força, como tanto fez no mar. Só que

dessa vez não era o azul, e sim um homem nu a quem tinha que

enfrentar.

Faz um mês e o abdômen ainda dói.

A espera valeu e o pássaro está sozinho desde que o homem

desceu. Escondido atrás da vela, deslizou devagarinho quando

percebeu que não havia mais apito. Patas na lona, canela firme, a ave

estática esperava que algum som lhe viesse à tona.

Bom, o animal continuou lá em baixo.

O coração quietou o faixo e lhe permitiu ouvir os próprios passos.

Uns dois foram em falso e lhe falta agora a concentração, de quase

botar para fora sua última refeição — dela mal se lembrava. Nada

acontece, nada. Pata depois de pata, esquerda e direita, tudo em

ordem para que a caminhada fosse feita com cuidado. Caminhar, sim,

porque faz muito barulho voar de lado. A caixa parecia ser mais baixa

vista do alto. De perto, seu azul não lembrava em nada o mar; mesmo

assim, ali estava a solução. Enfim!

Alguma coisa porém estava errada, uma informação que lhe

faltava: como abrir aquela caixa? É fácil para o outro animal, que em

vez de asas tem dois membros que parecem pedaços de pau com

ganchos no fim.

Contra patas e canelas fracas, dá pena até em mim.

Em um pulo, nela ela estava em cima. Não estava em clima de

esforço, a dor da fatiga crescente em seu torso, e bicar lhe costuma dar

enxaqueca – ainda mais se contarmos o nervosismo, que sempre deixa

a boca seca. Mas pássaro não é rico, não tem braços nem tem dente,

portanto não lhe resta nada além do bico – nada que lhe viesse à

mente. E ave bica baixo quando quer. Fica um barulhinho qualquer que

até brisa disfarça. Só que a caixa azul parece carapaça. Impenetrável.

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Bica-bica que fica mais alto que brisa, dá dica para as ondas que

tentam competir. Elas também ficam para trás. A bicada aumenta de

volume, um pouco mais de cada vez.

Um erro de estratégia, pois bem. Erro comum, porém, quando

ficamos sem paciência. Assim, totalmente distraído, o pássaro não

percebeu a emergência.

Os tais ganchos do outro animal o acertaram com violência e a

ave foi jogada para longe, sem rota – a asa de lado forçando

cambalhota. Sem saber se estava caindo ou voando, conseguiu firmar-

se no ar, dois palmos da superfície do mar. Subiu num voo em círculos

porque voa de lado, recuperando-se do enjoo e do estômago

embrulhado. O dono da caixa acompanhava com seu olhar a nova

rota baixa, ele e seu mau-olhado.

O pássaro vestiu seu rosto magoado em resposta àqueles olhos

que diziam para ficar longe do que é meu. Ou seu, mas nunca da ave

que não é dona de nada. Agora, qualquer lugar onde haja sinal de

lona é zona proibida. O pássaro perdeu a oportunidade de sua vida, e

agora é esperar o dia em que o mar vem lhe levar.

Será?

Claro que não! Se um pássaro tem um coração que bate, ainda

há, antes que o tempo lhe mate, razão suficiente para lutar.

O mergulho de lado foi diagonal, capaz de assustar qualquer

animal com tamanha determinação. O coração bateu nas asas, bem

quando o bico chegava para o ataque. Aquele animal enorme de

araque tentou seus ganchos, com tanta lentidão que a ave deu a volta

antes deles terminarem sua rota. O homem girou, mas quem se

importa? O pássaro não, pois seu coração é bem mais forte. Não

importa que voe de lado quando se é tão determinado.

Humilhado, o animal tentou de novo, e essa tentativa eu louvo

por ter sido mais consistente. Foi um golpe diferente, mas de resultado

igual. Mal o animal se recuperou, o pássaro investiu em golpe fatal,

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golpe direto no rosto do tal inimigo. No susto ele gritou, dançou e

recuou, tropeçou na caixa azul. Com o impacto ela caiu e se abriu,

enquanto o animal sumiu de costas na água.

E o silêncio.

O silêncio da vitória.

Depois de tanto tempo, a oportunidade de sua vida. Que alegria!

Com mais água do que o mar em seu bico – jeito que eu também fico

quando faminto – o pássaro que agora é rico caminha até seu prêmio.

Mas em um milênio você não verá comparável decepção. Seu

coração ficou bem pequeno ao saber que ali dentro não havia

pescado. O conteúdo tinha sido trocado! Ao invés de peixe fresco

havia uma porção de cilindros, algo pesado. Tudo errado, tudo. O

pássaro sentiu ódio, lógico, mais salgado que o sódio do mar. Decidiu

sua volta ao ar, mas não sem antes usar seu bico.

Esse cilindro é de furo fácil. Deve ser por isso que estava seguro

por carapaça. Esperava qualquer coisa a sair dele, menos água.

Corrigiu-se para não se trair: não é água, é algo amarelo e amargo.

Não lembra nem água de lago, que também tem a sua cor. Pelo

menos não era tão ruim o sabor. E os venenos não são bons. Pena que

não era nada perante a cena que imaginou: uma caixa com peixes

frescos.

O cheiro, o sabor, e a brisa amena. Mas é hora de ir embora,

voltar para seus restos.

De novo o tédio.

Mas não! Ele está diferente, percebeu quando a última canela

passou a corda que segura a vela. Aquele líquido é remédio?

Ou é milagre ou ele está medicado: ele agora voa reto, e é o

mundo que está de lado.

GUILHERME PIMENTA é designer e escritor, poeta e romancista com diversos

livros auto publicados. Possui o blog Sobre Pessoas, onde escreve textos de até

quinhentos caracteres. Mesmo sem ponto nenhum, prefire ir direto ao ponto.

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MAURICIO LIMA

Novo Hamburgo, RS.

O VELHO SOZINHO

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- Posso usar esta cadeira? – perguntou o velho sozinho

- Claro – respondi.

Ele prontamente

sentou ao meu lado

Eu havia imaginado

que ele pegaria a cadeira

e se sentaria em algum outro lugar

Aquilo que estava de fato acontecendo

eu não conseguia imaginar

Desespero e solidão transbordavam em sua voz,

eu,

como há muito já havia transbordado,

só fiquei um pouco desconfortável,

irritado,

pois só queria ficar

Comíamos em silêncio,

tentei pensar em poesia,

ver uma outra coisa que eu não veria,

que não diria,

mas a realidade era avassaladora

O velho sozinho

sentado

comia

Acho que ele só queria

sentar ao lado de alguém

tanto quanto eu

de ninguém

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Parecia abandonada

um bando de nada

nadando

quase afogada

Olhei de relance

Ele parecia emburrado...

Ou seria

enrugado?

Parecia que esperava

que algo esperasse por ele,

mas não aparecia!

Começou então

a sugar a carne

que estava presa

no meio dos dentes

Era uma sinfonia

coerente

com toda aquela gente

presa aquele lugar

Sem me despedir,

com um aceno

com a cabeça,

meio não dado

meio não visto,

levantei

e fui embora,

como se sugado por entre os dentes

daquela tarde vazia

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A minha cadeira, vazia,

o faria companhia,

não fosse ele não estar lá,

o velho

amigo (?)

Eu estava com tanta fome

que me dava azia

Na minha cabeça

eu já tinha comido,

mas sequer havia feito o pedido

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,

músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas

participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,

trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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BRENO RICARDO

Belo Horizonte, MG.

AS MAGNÍFICAS REVELAÇÕES DE UM

SUBCONSCIENTE LIVRE

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De repente o mato virou gramado! O parque malcuidado onde

eu me encontrava, tomou ares de guia turístico e eu me senti o mais

rico viajante. Relaxei e ri, perdi o equilíbrio de mim mesmo, enquanto

fugia das angústias desse mundo demasiadamente real. A minha mente

se esvaziou quase por completo. Estive sem problemas e pude ver o

quão belas são as nuvens de algodão flutuando no céu como eu

flutuava na terra. Éramos bem semelhantes, porque os dois éramos a

leveza e a liberdade do recriar-se sem dificuldades. Elas pareciam

saídas de um desenho animado; essa textura se expandia e chegou a

transformar-me a mim e ao caminho por onde ia. Era um caminho

mágico, como nas lendas da Idade Moderna ou ainda como os

clássicos da Disney. Continha pedras brancas que brilhavam como o sol

que nelas refletia seu poder e beleza: uma sutil extravagância; um

exclusivo show de magnificência!

Eu as amei, principalmente, porque estava com o coração livre

das paixões do passado e despreocupado quanto às do futuro. (É assim

que eu sempre estou, atordoado na angústia do não-ser, afinal, o

pretérito e o porvir nada mais são que o se iludir). Estando no presente

como o mais puro dos selvagens, pude desfrutar o vão mineral e ele me

satisfez profundamente. Nesse caminho mágico de aventuras surreais,

eu pulei um calango grande como um jacaré. Ele não quis ser visto

quando o olhei de ré – e transformou-se em uma raiz sem sentido, ali no

chão: raiz sem árvore, como o louco que não desenvolveu seu

potencial de loucura.

Depois recaiu uma normalidade sobre tudo e foi tão de repente

que me perguntei se na verdade ela não veio sobre o nada,

preenchendo-o de suas mesmices, mas... Não!; não é dada disso! Eu

estou mentindo, perdão! Em verdade em verdade vos digo que,

aproximando-me de casa, me preocupei com a minha mãe e avó que

lá estavam. As duas não poderiam saber de toda essa maravilha que

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Deus me revelou em seu mundo comum! Ter-me-iam por drogado,

louco ou quem sabe um profeta como os bíblicos mendicantes.

Estava imerso em tais conjecturas quando me vi em casa.

Arregalei meus olhos que estavam baixos e disse algumas poucas

palavras (é absolutamente dispensável lembrar-me delas). Então, entrei

para o quarto e me deitei. Assim foi que me pus a entrar nas notas das

músicas que ouvia, tornando-me um com elas. As sensações ímpares

somaram-se e potencializaram as muitas imagens aleatórias de minha

mais tenra infância. Eram pedaços de chão, uma vasilha, um colchão,

essas coisas sem graça, juntas e misturadas, se combinando e

recombinando formando algo demais contemporâneo. Balancei minha

cabeça com as mãos e sucedeu-se que me movi energicamente com

a maleabilidade de uma borracha (ou seria leve como um papel?).

Não sei ao certo. Fato é que ondulei na apreciação de meu presente

interior.

E mais tarde, dormi. Foi positivamente um desmaio, já que nada

mais vi de que viesse a me lembrar. Meu inconsciente estava

descansado depois de revelar à consciência, tudo o que guardava em

sua caixinha de lembranças e recalques.

Então, o celular despertou e, como todos os dias, saí para o

trabalho.

BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi diretor de

um grupo de teatro amador; possui três livros publicados on-line; e,

atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do Bom

Samaritano, além de poemas e pequenas reflexões em sua página no

Facebook.

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JORDANO SOUZA

São Gotardo, MG.

CAMINHOS

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tropeçando nas pedras

do meu bairro antigo,

percebi como um estalo

de duas línguas famintas

que o caminho era apenas

para ser seguido, sem medição,

sem lógica concreta.

caminhos são feitos pelos pés,

a mente apenas os interpreta.

JORDANO JOÃO BATISTA DE SOUZA escreve desde a adolescência, já publicou

vários poemas em blogs e revistas digitais, tendo alguns textos classificados em

concursos. Atualmente o autor se dedica aos Haicais e poemas sobre o

cotidiano. Depois de passar por Goiás e Brasília, voltou a morar em Minas

Gerais, onde continua escrevendo.

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EVANDRO DO CARMO CAMARGO

Paraguaçu Paulista, SP.

LENDAS PARAGUAÇUENSES

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I - O amedrontador

É sempre difícil falar do passado. A memória nos trai e lembramo-

nos do que melhor ou pior nos convém – dependendo do grau de

saudomasoquismo do momento. Mas há tempos venho pensando em

algumas figuras que fizeram parte de minha infância e juventude e que

sempre, de uma maneira ou de outra, punham-me desconsertado, uma

vez que tudo que é alheio ao que se convencionou chamar

normalidade causa estranheza. Como nos informa Drummond em seu

belíssimo conto “A doida”, toda cidade tem seus doidos, mas são eles

de matizes tão distintos e possuem tais e quais particularidades que não

poderiam jamais ser postos num mesmo balaio.

O primeiro desses vultos tão especiais que me ocorre é o de um

ser que até hoje não sei se existiu deveras ou era fruto de minha

imaginação infantil; advirta, contudo, que dois ou três amigos, já

grandes – porque em pequenos nunca mencionáramos tal figura –

afirmaram tê-lo visto, assim como eu. Tratava-se de um homem

estranhíssimo, cuja idade devia correr por volta dos 30 anos; possuía

uma cabeça descomunal, com ralos cabelos castanhos bem claros mal

cobrindo a testa enorme. Trajava mais ou menos à moda de Bruce

Banner logo após voltar da terrível transformação em Incrível Hulk, qual

seja, uma calça de brim bege pela canela com a barra em frangalhos,

uma camisa surradíssima de mangas curtas, também tirante a bege,

talvez com um xadrez bem desbotado e quase imperceptível ao fundo,

sempre aberta bem abaixo do peito, que era vermelho e, à distância,

parece que áspero, como a crista de um galo, crestado que era de sol.

Seus pés, a exemplo da cabeça, eram igualmente desproporcionais de

grandes em comprimento, espessura e largura. Uns pés atualmente

quase desusados, mas dos quais havia razoável monta à época,

quando não constituía novidade alguma perambular descalço pela

cidade.

Page 21: Revista subversa v 2 n 7 2015

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O curioso era que o tal não era alguém palpável, conversável,

convivível. Sempre que o via, estava ele atrás de um alguma árvore de

tronco grosso, de modo que, no mais das vezes, o mais que víamos era

parte de sua hedionda cabeçorra, a observar-nos sorrateiro.

Amedrontador. Parece que se locomovia a pequenos saltos; sim,

saltitava. Semelhava, por vezes, alguma espécie já extinta de elo

perdido entre um pássaro e um ser humano – não me esqueço de uma

versão de O médico e o monstro do Piu-piu e Frajola em que o primeiro

dos dois se transforma em um pássaro monstruoso ao beber a

famigerada poção.

Que me lembre, via-o sempre em lugares onde havia crianças –

normalmente, perto da quadra do GEP, meu querido e inesquecível

colégio da 1ª à 8ª série –, observando sem nada dizer ou fazer. De

repente, que é feito do homem? Sumia como que por encanto. Pra

onde ia? Onde vivia? Teria família? Que teto cobria sua cabeça? E seu

quarto, sua cama, seus pertences... Mistério profundo. Como profundo e

misterioso é o coração humano.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO é colaborador frequente da Subversa

e dispensa biografia.

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SAMUEL H. DIAS

Muzambinho, MG.

Pierre

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Despejando seu ódio, fazendo assim com que os laços se partam, eu então troco

as letras por imagens e elas me retornam sentimentos.

Assim como crianças que nos dão um motivo a mais para guardarmos as boas

lembranças do passado.

O Pintor, define as mais belas cores para capturar ao máximo a bela arte

daquele momento.

Caracóis azulados caem de minhas mãos e afogam-se na areia doce.

O Que eu posso desejar partindo deste momento.

A grande torre começa a desmoronar lentamente.

Desistir absolutamente rumo à loucura.

Ser individualista.

Aos poucos vai me abandonar para não cobrir seu pequeno coração com

minhas manchas.

Eu desejei por algo em algum momento da minha vida?

Mas isto não é recíproco.

Nem ao menos as pessoas que gostamos...

Vagarosamente desaparecendo entre a névoa criada pelo meu coração.

Contando os segundos para dormir.

Sono eterno, pasmo.

Por favor, não deixem este céu ainda mais azulado.

Voltando para algum bom momento...

Um laço é criado de forma que nos tornemos apenas um, a esperança é cruel.

Vamos nos ver ao menos uma última vez, antes que...

Eu me fecho em um mundo onde suas palavras mergulham em trevas,

transformando as boas lembranças em um monstro que nos devora.

Bebendo desta fonte de pessimismo e a cicatriz incurável novamente volta a

arder, dentro de um frasco azul...

Em algum momento eu realmente estive vivo?

A figura encapuzada e sentada em uma cadeira empoeirada ao meu lado,

começa então a digitar meu nome em sua máquina, ouço engrenagens...

Page 24: Revista subversa v 2 n 7 2015

24

Cada gota de sangue tem um valor perdido e os ossos brancos ficam em minha

mente.

Eu me dissolvo neste poço de mentiras

Lentamente.

Adeus e obrigado.

SAMUEL H. DIAS

Page 25: Revista subversa v 2 n 7 2015

25

DIEGO DE TOLEDO LIMA

Joanópolis, SP.

Cansado, sensação que representava perfeitamente meu momento.

Mesmo assim insisti no caminho, apesar das negativas de pessoas próximas.

No exagero daquele calor os passos prosseguiam lentamente, vencendo a

poeira da estrada. O chapéu de aba larga e o sapatão de trabalho duro,

sinônimos de suor e superação.

CORRENTES DA LIBERDADE

Page 26: Revista subversa v 2 n 7 2015

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Perdi as contas de quantos obstáculos já havia superado, assim como o

número de poemas lidos nas semanas anteriores. Aliás, números não importavam

mais, nem frações e estatísticas.

O céu azul me ajudou a esquecer de detalhes de uma vida, dramatizados

na hora anterior dentro de um carro, a caminho do parque. Cansado da

dramaturgia televisiva preferi a vida real, em traços instantâneos de paixão e

tristeza, sentimentos tão próximos e ao mesmo tempo distantes na alma humana.

Viajante solitário, acompanhado do silêncio de uma estrada qualquer,

perdida no tempo contemporâneo: Vá em frente rapaz!

Advindo de uma pessoa externa soou como música em meu peito,

acompanhado dos latidos de cachorros nos sítios próximos.

Homem livre, não tinha raiz fincada em lugar algum... Diferente daquele

arbusto que localizei encostado numa cerca. Lembrei-me de uma antiga poesia,

entoei a despedida e fui em frente:

“É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo

Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero

Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio

Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na

boca dos lírios

Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra

que o vento espalha

Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o

meu, o meu destino

Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre

escravo dos príncipes loucos.”

(O escravo – Vinicius de Moraes)

DIEGO DE TOLEDO LIMA é técnico, engenheiro e servidor público estadual.

Andarilho e cronista, com ênfase na vida do campo e natureza. Autor do livro

“Crônicas Mantiqueiras”.

Page 27: Revista subversa v 2 n 7 2015

27

MAURICIO CHEMELLO

Porto Alegre, RS.

VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS.

Page 28: Revista subversa v 2 n 7 2015

28

Eis que coloquei um pé para fora de casa e fui.

subi a rua e passei pela padaria e fui

quando vi a sua casa eu parei

as janelas fechadas

o cachorro dormindo

e o silêncio gritando

baixei a cabeça e fui

dobrei a esquina saltando o meio-fio

quando alcancei a praia

eu não parei

entrei na água de sapatos

caminhei até tocar as mãos

triste constatação

eu não conseguiria nunca alcançar o outro lado vivo

então voltei

desdobrei a esquina manchando a calçada

levantei a cabeça e fui

quando revi a sua casa eu reparei

as janelas estavam abertas

o cachorro latia...

...eu bobo te vi

e você me reconheceu

todo molhado de amor.

MAURICIO CHEMELLO é Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, com estudos

voltados à área da Escrita Criativa e Estética da Recepção, e Professor de

Oficinas de Literatura.

Page 29: Revista subversa v 2 n 7 2015

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JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA

Maragogi, AL.

Desfiz a barba com pressa. Vesti-me que já tocavam a campainha. Visitas a

penetrarem no meu mundo, a invadir tudo, as perguntas que exigem respostas, o

sorrir às piadas sem graça, o obrigar meu corpo a fazer sala e eu fora dali, longe,

ausente. Várias fugas ao banheiro na desculpa de dores de barriga, o meu

refúgio de hora a hora a enfrentar-me refletido ao espelho, sem graça, apático.

Coubesse eu no ralo da banheira e lá ia eu na água quentinha até a fossa e num

murro, abrir a tampa e fugir dali todo sujo de excrementos, mas feliz, em plena

liberdade. Mas voltava à sala cheio de covardia a aturar o cunhado que só boca

aberta a dizer merdas, eu a rir em anuência, a concordar com as suas conclusões

ilógicas, anulando-me só para não prolongar a conversa. Ele a mudar de assunto

para outro sem interesse algum, a aturar as suas lembranças da meninice da qual

VISITAS DE DOMINGO

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30

não participei e ele a descrever em todos os pormenores tintim por tintim,

buscando nomes que não conheço em situações que não vivi. Bebi uma garrafa

inteira daquele vinho tinto alentejano que tanto gosto, aproveitando a distração

da minha mulher tão entretida nas lérias do irmão prolixo. Elevei meu nível de

tolerância à custa da vinhaça. Maravilhosa pomada. Já conseguia tirar partido

de tanta conversa inútil, ou seja, sorrir como bom ouvinte sem ouvir porra

nenhuma, refugiando-me dentro da minha cabeça, nas circunvoluções frontais,

numa cadeirinha que lá tenho reservada para o meu volumoso traseiro. De lá

consigo enxergar além dos homéricos falantes e só suas bocas se mexem sem

produzir som algum, num doce diálogo de surdos. Esses subterfúgios são cômodos

e providenciais, neles vou entrando cada vez mais profundamente dentro de

mim, naquele aconchego, como um porto ansiado numa tempestade, onde se

joga a âncora e não se quer mais velejar. Encostar os costados na preguiça dos

tempos e simplesmente ficar. Numa exclusão de mim próprio que às vezes

assusta-me por não conseguir achar uma explicação que seja transmitida por

palavras e que possa ser aceite ao comum dos mortais que me cercam nesta

vida de merda.

Visitas fora, aconchego-me no sofá e pura e simplesmente, não

penso em nada, fecho os olhos e adormeço. Tão bom.

JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há quatro

anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos literários diversos,

publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está em fase final de

edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a sair pela Editora W5.

Page 31: Revista subversa v 2 n 7 2015

31

LETÍCIA MONTEIRO

Guaratinguetá, SP.

sei que enxergo além de uma pele;

eu sei

que cada passo desesperado,

cravando trilha nos dois pontos

do mundo, de um barbante,

do meu quarto,

me trouxe até aqui.

Eu te adoro

em suas vísceras mais sujas — e se pudesse, nelas

A MORTE DO CISNE ou COMO HEI DE AGRADECER, MEU QUERIDO,

POR ME CONCEDER ESTA DANÇA?

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32

encharcaria

meus pulmões; ah, respirar

a cópula do céu com a terra!

— Vísceras. O diamante no barro.

Você me juntou o sangue à carne. É um alívio

como quando os homens viram

o mar

novamente fechado; apreciar a morte

dos mais nobres

inimigos! ou apreciar

a tão estranha

liberdade — e eu te adoro

no afogamento de seus ombros

no canibalismo de seus olhos.

Te ofereço minhas cicatrizes. É o que restou

da estrada: poemas inchados na pele.

Ademais, empresto-lhe a dor da minha língua, uma reticência

do corpo. Toma: devolva quando quiser. E espero

que você me furte

o que não consigo revelar

— E o que de você me atravessa?

Até onde te alcanço no horizonte?

LETÍCIA GABRIELA MONTEIRO é estudante de Letras na USP e pretende estudar

adaptações literárias para o cinema infantil.

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33

VINICIUS BANDERA

TINHA UM ABISMO NO FIM DO CAMINHO

Page 34: Revista subversa v 2 n 7 2015

34

Rio de Janeiro, RJ.

Ele chegara à ilação de que era o momento de voltar, mas não sem antes

cumprir o que se propusera como missão. Nisto consistia o seu dilema. Já divisava

o objeto de seu desejo, o qual vinha perseguindo lograr havia anos, mas, entre

ver e ter, tinha um abismo. Como transpô-lo? Nisto também consistia o seu

dilema. Voltar era só dar meia-volta, como no quartel. O caminho do retorno era

muito mais dilatado e demorado do que aquele exíguo espaço que o separava

do que viera buscar. Não obstante, ir em frente pressupunha atravessar o abismo

(pior do que atravessar o deserto). Não sabia nem ouvira dizer quem o houvera

conseguido e como. Ele passava os dias com os olhos presos à outra margem,

tendo que procrastinar o seu desiderato. Se o seu olhar pudesse servir-lhe de

ponte; congeminou certa vez. É como alguém que, nadando através do

Atlântico, da América para a Europa, chegando nas cercanias de Lisboa, dá-se

conta de que uma inexequível providência há a obstar que alcance os poucos

mais de mil metros derradeiros; daí, vem-lhe à razão a alternativa, não se sabe se

pior ou não, de tentar voltar. Para ele, a volta não seria tão dificultosa, mas, como

no caso do Atlântico, não conseguiria concluí-la (por suposto, tal inferência

parece óbvia dada à nímia limitação física humana). Não por uma questão de

tempo. Gastara quase todo o seu tempo útil de vida inútil em ir em direção ao

que colimara, deslindando ali e acolá, sempre tendo um norte cartesiano. Para

voltar seria menos penoso, pois já conhecia os recônditos do percurso, embora

tornar-se-ia mais pesado, porquanto teria que carregar o incomensurável fardo

da frustração. Adentrar aos confins da terra prometida e não poder prosseguir...

O pouco tempo que lhe restava era-lhe suficiente para viver o que viera buscar,

mas com esse abismo à frente o tempo estava-lhe esvaindo como uma

hemorragia que ele não sabia como estancar. Não há como parar o tempo,

donde se conclui que não havia como parar com a sua hemorragia. Só lhe

restava tentar vencer o abismo intransponível ou voltar. Não conseguia entrar em

Lisboa, então fazia-se mister que retomasse. Já não aguentava nadar os mil

metros e alguma coisa, mesmo que não houvesse a impossibilidade de que

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35

falamos; aguentaria voltar através das milhares de milhas? Moisés morreu

instantaneamente. Deus concedeu-lhe a clemência de o tirar do dilema de não

ter como ir nem voltar. E a ele, haveria um deus a adjudicar a morte em seu favor,

sem dor nem desespero, como se tratasse de um sono do qual não se acorda? O

caminho da vinda, por mais sacrifícios e armadilhas que lhe tenha custado, fora

um bálsamo diante do momento que se lhe apresentava. Se dependesse de sua

vontade optaria por não ter chegado próximo de seu objeto, a ponto de sentir-

lhe a presença, a despeito de que ainda não lhe discernisse o ponto exato em

que se encontrava. Preferia continuar indo a uma distância tal que não

imaginasse tão extensa ela era, mas com consciência de que tinha que ir

seguindo, seguindo, seguindo... sem nenhuma previsão de quando chegaria o

momento de parar, pois já se sentia próximo do que viera buscar; tomar-se-ia

premente, pois, perscrutar mais um pouco para um ponto, menos para outro, que

parecia ser por ali. Como um navio que estivesse se preparando para atracar ao

cais, ou um avião circulando para pousar. Imaginem um avião nessa situação e

sem poder aterrisar. Era o que estava ocorrendo com ele, guardadas as devidas

proporções. O combustível acabando, a hemorragia incontida. A decisão tinha

que ser tomada estando ele premido por situações análogas: lanço-me ou não

por sobre o abismo, e como? O como era tudo o que obliterava a sua decisão.

Pouso no mar (se houver) ou em uma estrada, um terreno qualquer extenso e

plano? O avião não tinha combustível para voltar nem para alcançar um

aeródromo alternativo. Ele não tinha tempo (o combustível maior dos seres vivos)

para voltar; morreria logo no primeiro terço do percurso. O avião cairia ou

pousaria sobre um local plano que talvez pudesse encontrar. Ele, esvaecido pela

sua humana condição agônica; como pular sobre o abismo? Vira umas árvores

por perto, espaçadas umas das outras. Pensou em fazer de uma delas, ou mais

de uma, uma ou mais de uma, vara. Já assistira a competições de salto com

vara. O atleta vinha correndo com uma vara na mão e, em dado momento,

fincava-a no chão e se projetava para além dela, ultrapassando uma altura de

alguns metros, não sabia precisar quantos, caindo incólume sobre a areia

acolhedora. Pela televisão, ele estimava que se tratava de uma altura

equivalente a três ou quatro homens enfileirados na vertical. Quanto ao abismo

Page 36: Revista subversa v 2 n 7 2015

36

que se dispunha a arrostar, não sabia presumir quantos dezenas de homens

deitados no sentido longitudinal seriam necessários para cobrir o seu diâmetro. O

seu tormento aumentou quando ele, em um ímpeto de desesperança, fez-se

uma pergunta cabalística: se eu por um milagre qualquer ultrapassar o abismo,

conseguirei alcançar o que vim buscar, a que dediquei quase toda a minha vida,

ou não? Sentou-se no chão, olhou para um e outro lado, para trás, levantou-se e

andou por perto, indo e vindo; simplesmente não soube responder à pergunta

que jamais se houvera colocado até então. E se eu chegar mais perto, implica

deduzir que isto me facilitará a travessia? De perto há mais possibilidade do que

de longe? Mesmo que haja, pode ser que surja um abismo justamente quando se

está a poucos passos do fim. Noventa e nove por cento foram vencidos, mas era

no um por cento restante que estava o que buscava e o que buscou por toda a

vida. É como o gol no futebol: de nada vale a bola bater na trave dezenas,

milhares, milhões... de vezes; se não entrar, não é gol. Sem gol não há vitória. Sem

vitória; viver pra que? Sim, ultrapassar o abismo... Que abismo? É físico, como

aquele que ele tinha visto em um antigo filme de cowboy? Não importa se

concreto ou ideal, para os fins colimados que para si traçara parece-nos que um

abismo é um abismo, isto é, algo intransponível ou de quase impossível

transposição. Se alguém não consegue fazer algo, está diante de um abismo.

Abismo é então mais do que um obstáculo, empecilho, estorvo. É, é, não poder

fazer algo, pela simples razão iniludível de que é impossível fazê-lo. Niestzsche

afiançou que somente voa sobre abismos quem tem vocação de águia. Aqui

estamos tratando de seres humanos. E o nosso ultrapassar não se refere tão-

somente a façanhas metafísicas, mas também, sobretudo, físicas. Ele, o que

precisava sobrepujar o abismo, poderia dizer que as uvas estavam verdes e

desistir de seu intento. Como estaria confortado se assim o fizesse, gastaria o

irrisório tempo de que dispunha a sobreviver por ali mesmo, ou então voltaria

devagarzinho, sem pressa de percorrer o retorno, porquanto não haveria mesmo

tempo de cumpri-lo ao menos em sua terça parte, já o dissemos. Mas não podia

desistir. Não era coisa sua. Algo sobrenatural, ou pelo menos insólito, instava-o a

tentar prosseguir. Talvez fosse mais confortável desistir sempre que um abismo

maior nos impusesse a tanto. Pareceria ser como um avião - novamente ele; será

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37

que já pousou ou se esfacelou? - desfazendo-se de combustível e carga para

aumentar a sua velocidade de cruzeiro diante de uma emergência surgida de

inopino; quem sabe alguém passando mal a bordo. Mas o ser humano tem coisas

e sentimentos, principalmente estes, que lhe não deixam impune se deles se

desfizer. Entendemos o espírito de seu aforisma, Nietzsche, mas o nosso problema

é outro, precisamos ultrapassar o abismo por baixo, em seu plano térreo e

telúrico; a águia não faria isso. Conseguiria tão egrégia rainha dos céus dar um

salto - não voar - e chegar sã e salva à outra margem? Nem nós, nem você,

grande pensador do caos. Voar é um apanágio dela, a natureza lho deu; quanto

a nós, reservou-nos o atributo de nos mantermos eretos e andando, quando

muito, correndo. Também podemos vencer o abismo voando, basta-nos não

mais que tomarmos um avião. E aquele do qual vimos falando: já caiu, ou

pousou? Já se foi o tempo suficiente para o seu combustível findar. Nunca

saberemos de seu desfecho nem o dessa pessoa que teve por contumácia a

missão de sobrepujar o abismo para, com isso, contemplar, ou não, e até viver,

ou não, o litigo que ele próprio lhe arrogara como destino; não se sabe o que era,

pode ter sido uma verdade axiomática.

VINICIUS BANDERA é formado Ciências Sociais (UFF) e História (UFF). Pós-

graduado (lato sensu) em Filosofia Contemporânea (UERJ), Sociologia Urbana

(UERJ) e Política Internacional (Fundação Escola de Sociologia e Política de São

Paulo). Mestre em Ciência Política (UNICAMP), doutor em Sociologia (UFRJ) e pós-

doutor em História Social (USP). Professor universitário e autor do livro Liberalismo e

cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na

virada do século XIX para o XX (Editora UFRJ, no prelo), que foi escolhido em

seleção nacional. É autor de centenas de textos literários e científicos. Publicou

Náufragos da fé, pela Laço Editorial, Deus fez a noite para matar o dia pela

Editora Autografia e a coletânea Mulheres da vida (Editora Multifoco, no prelo).

Finalista no Prêmio de Literatura SESC/Editora Record categoria conto 2012/2013.

Segundo colocado no concurso nacional de literatura Prêmio Lima Barreto,

promovido pela Academia Carioca de Letras, com a coletânea de contos

intitulada Volver a empezar (2014). Diretor, roteirista e editor de longas metragens

em HD digital.

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FERNANDA FATURETO

Uberaba, MG.

O sol interrompia a solidão disposta no quarto, entre frestas da persiana. O

corpo da mulher nu refletido no espelho voltado para a cama antevia a cena

que poderia ser refeita horas antes. O dedo ereto tocando-se em movimentos

circulares enquanto o rosto explodia num vermelho ocre e pernas se comprimiam

mais para perto de si, numa tentativa repentina de aplacar a devassidão de

sentimentos que lhe chegavam. Um corpo mergulhado numa rotina automática

da cidade. Comprimido entre estações de metrô, boletos bancários, filas de

cinema, estacionamentos, bitucas de cigarro. Entregue à maquinaria pesada de

fazer render o dinheiro de uma empresa multinacional com suas mesas de

trabalho, cadeiras ergométricas. Um corpo que ao chegar ao apartamento, ao

atravessar o campo minado entre a portaria e o elevador, esperar minutos para

A SOLIDÃO

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39

chegar ao seu andar, encarar vizinhos desconhecidos como uma batalha, abrir a

porta com a chave que emperra; trancá-la, tirar os sapatos de salto médio, botar

Billie Holliday pra tocar, olhar-se nesse mesmo espelho cúmplice pela espera

ínfima da morte rítmica. Um espasmo.

Um corpo se entrega à cama emaranhada como se lhe restasse

apenas mais uma noite. E as pequenas convulsões provocadas por cada toque

lhe devolvem a dignidade de estar ali, presente, como corpo, enquanto avenidas

e ruas não perdem o movimento usual. Da janela aberta se ouve buzinas e cheiro

de gasolina em contraste com o doce do perfume que se espelha pelo quarto

numa mistura inusitada que a excita. Estar sozinha aquela noite era o grito de paz

que não se podia ouvir na presença de outro. Em meio a cada espasmo, as mãos

percorriam os lençóis e se contraía a boca. Lampejos de lembrança de um algum

amor lhe vinha à memória, jantares, sorrisos, diálogos interrompidos.

Sozinha era como se pudesse reconstruir seu passado de sonho e

medo em um quebra-cabeça que permitia limpar todo o vestígio de erros.

Preparava-se para enfrentar outro dia com o corpo reestabelecido e íntegro. Um

corpo adormecido recuperava a paz. Da janela, avistava-se o sol surgindo e seus

feixes a convidavam para a manhã. O mesmo sol que acordava e lhe

desnudava a vista: nua entregue ao sono que feixes de luz vinham atiçar.

Acordar esse corpo que descobriu o torpor era ressignificá-lo diante de cada

instante de automatismo vivido no dia anterior. Descobri-lo ativo em meio à

engrenagem.

Ao acordar e silenciar o ocorrido noite adentro, a mulher tornava-se

cúmplice de seu próprio gesto. Abriu os olhos e de longe se olhou no espelho. A

imagem refletida garantia a ela outro tempo possível: do reconhecimento íntimo

de si contra o qual o cotidiano esbarrava sorrateiro. O sol brilha mais forte. Depois

do rompimento algo perdura.

FERNANDA FATURETO é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável

(Editora Patuá, 2014), colaboradora da Revista Samizdat e bacharel em

Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero

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40

RAFAELA MANICKA

Curitiba, PR.

Hoje o dia amanheceu frio. E, logo que acordei, percebi o porquê. Tudo

bem, o inverno está chegando, a tendência é ter os pés gelados

mesmo. Mas todo mundo sabe eu sei que o meu inverno dura o ano

todo. Pelo menos desde o dia que perdi você.

Eu ainda não sei como tudo aconteceu. Não sei se foi erro meu ou seu.

Provavelmente meu. Ou seu, porque sabe, essa mania que tenho de

colocar toda a culpa nas minhas costas eu ainda não perdi. E,

provavelmente, não vou perder. Acontece.

Aprendi que a natureza das coisas é exatamente essa: a gente vai,

enfrenta tudo, conhece alguém bacana pra te ajudar a enfrentar esse

tudo e no final... Ah, no final cada um vai pro seu lado e você continua

INVERNO

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indo e enfrentando tudo. Problema quando esse tudo agrega uma

pequena carga emocional, né? É. Não sei você, mas eu não sei lidar

direito com os meus mais sinceros sentimentos.

Tanta gente já tentou me mostrar que não vale a pena ficar

alimentando lembranças de um passado nada ruim. Se me perguntam

de você, digo que está bem, quando na verdade nunca mais soube da

sua vida. Fiquei sabendo por aí que você já me esqueceu. Prefiro não

acreditar, por mais que eu tente. Mas na minha cabeça, tudo o que a

gente passou irá permanecer e, um dia, você vai voltar correndo e

dizer: "eu me enganei".

***

Esquentou um pouco. É que preparei meu café, sabe? Na verdade, já

até arrumei a cama pra dar aquela sensação de que você continua

aqui; que não foi embora. Lembro das risadas que a gente dava

quando contávamos um ao outro o que sonhamos. E das broncas que

recebi por sempre estar com o pé no chão. Ah, os beijos de bom dia, eu

guardei todos. Eles ainda são seus.

Estive pensando e, hoje, nem que seja só hoje, eu vou te procurar. Nem

que seja em um livro, uma música ou um outro alguém. A saudade me

pegou de jeito, preciso amenizá-la.

Sabe aquele seu livro de adolescente que eu tanto debochava? Então,

eu já folheei umas páginas algumas vezes, e confesso que me

surpreendi com as palavras. Sabe, coisas do tipo "A dor pode até estar

te machucando hoje, mas algo melhor do que aquilo que você já teve

está te esperando. O ontem já passou, não adianta ficar pensando no

que não deu certo. E o amanhã nunca se sabe. Vai que sua grande

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chance de mudar tudo isso está bem ao seu lado. Dê uma olhada,

perder o que nem se tem você não vai." a gente não lê todo dia.

***

Resolvi pensar um pouco em mim. Comecei pelo rosto. Tirei a barba que

um dia você tanto criticou. Dei um trato nas minhas roupas também. Já

não estava pegando bem aquela camiseta que te servia de pijama.

Dei pro cara ali, tá vendo? Ele tava passando frio. Afinal, ainda é

inverno. Mas é aquela coisa, consegui encontrar uma maneira de

amenizar os meus pés gelados. Bom, não só os pés.

Encontrei uma pessoa, sabe? Às vezes o que a gente realmente precisa

é de alguém que se importe. E acredite, eu também me importo. Sei

que o que a gente teve foi rápido intenso, mas eu tô feliz com esse meu

novo rumo. E eu consegui te deixar um pouco de lado.

Encerro por aqui a minha rotina de escrever sobre você e para você.

Um dia, eu sei, as lembranças vão insistir em reaparecer. Mas aí o

inverno já vai ter passado e não vai ter tanto problema.

RAFAELA MANICKA é formada em Publicidade e Propaganda pela

Universidade Positivo e, desde 2010, possui o “Amanhã tanto faz”,

projeto literário onde posta textos que escreve sobre a vida em suas

diversas formas.

Page 43: Revista subversa v 2 n 7 2015

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]

Colaboração especial:

CAROLINE AGUIAR